AO DE LEVE _Composto e impresso na Imprensa_ _de Manuel Lucas Torres_ _Rua do Diario de Noticias, 93_ BRITO CAMACHO _Ao de leve_ 1913 Livraria Editora GUIMARÃES & C.ª 68, Rua do Mundo, 70 LISBOA * * * * * _O estudante que hontem, no Rocio, foi attingido por uma bala na cabeça, já falleceu._ (Dos jornaes). Como não havia de adoral-o, se era seu filho unico! Para mais, elle era o retrato vivo do pae, com todas as qualidades e todos os defeitos--se um filho póde ter defeitos para a mãe que o estremece! Ficára com elle nos braços, viuva pela maior das fatalidades, quando ainda não tinham seccado de todo as flores de laranjeira que lhe tinham posto no cabello no dia do seu casamento, e nas suas faces havia ainda um pouco do rubor intenso com que as haviam tingido os beijos loucos que elle lhe dera, já seu marido, ao voltarem da Egreja. Annos e annos chorára a sua viuvez, e mesmo quando o filho lhe extendia os bracitos gordos, muito risonho, as suas lagrimas não estancavam. Mas o sau pranto já não era só de dor; a desgraça ainda lhe escaldava a garganta com soluços que lhe vinham do coração, mas já lhe nimbava a alma a promessa d'uma felicidade remota. No filho via o marido--era como se dentro de um tumulo assistisse ao esplendor d'uma aurora. Se não havia de adoral-o, a pobre mãe! Quando elle lhe saiu de casa para continuar os estudos, pareceu-lhe que ficava viuva pela segunda vez. As suas cartas mitigariam a sua saudade, e ella havia de lel-as com tamanha devoção, evocal-o com tanto amor, que a leitura seria afinal uma conversa entre ambos, elle a enxugar-lhe os olhos com beijos, e ella a lavar-lhe as faces com lagrimas. Já então elle era quasi um homem, alto e desempenado, uma pennugem leve prenunciando um bigode negro, que seria talvez farto e provocador como o do pae. Muito estudioso, e, ao mesmo tempo, muito intelligente, contava as distincções pelos exames, nunca se rebaixando a esmolar uma protecção, mantendo sempre perante os mestres uma attitude que, nem por ser respeitosa, deixava de ser altiva. Ainda n'isso elle era como o pae, orgulhoso sem presumpção, delicado sem maneirismos, altivo sem arrogancias. Como não havia de adoral-o! Surprehendia-se a fazer projectos de vida em commum, quando elle acabasse os estudos, e fosse, para aqui ou para além, exercer a sua profissão. Já a deixariam livre os negocios da sua casa, que a retinham agora separada d'elle, a contar o tempo pelo seu amor, e a achar os mezes infinitamente mais compridos do que dizem os kalendarios. Talvez elle um dia casasse; mas nem assim o deixaria, humilde na casa alheia, fazendo-se util, sendo prestimosa, realizando quantos milagres fossem precisos para se tornar indispensavel. Pois se elle era a unica razão da sua vida, como poderia alguem roubar-lh'o sem ao mesmo tempo a matar? Recebia as suas cartas em dias certos, e nunca elle deixára de lhe escrever com a mais rigorosa pontualidade. Ás vezes eram apenas quatro linhas, meia duzia de palavras que ella humedecia com os olhos, para as enxugar com os labios. Como não havia de adoral-o, a pobre mãe, se elle era o seu filho unico, para mais o retrato vivo do pae, com todas as suas qualidades e defeitos--defeitos que para ella eram qualidades! Ora succedeu que n'aquelle dia, estando como de costume á espera do carteiro, viu que elle passava pela sua porta, sem entrar. Era lá possivel não ter carta? Provavelmente confundira-a no maço, e só daria por ella finda a distribuição. Viria então entregar-lh'a. Passou uma hora, passaram duas horas, passou uma eternidade, e o carteiro não voltou. Estaria doente? Ter-lhe-ia acontecido alguma desgraça? Distrahidamente, quasi sem intenção, pega n'um jornal. O coração deu-lhe um salto dentro do peito, como se a um leão dentro de uma jaula lhe enterrassem nas carnes uma choupa em braza. Houvera tiros, houvera espadeiradas, como n'uma batalha. Do campo tinham retirado muitos feridos, tendo lá ficado alguns mortos. Foi lendo, lendo tudo, devorando as columnas do jornal, á procura d'um nome, na ancia d'um condemnado á pena ultima, que um indulto póde salvar. Esse nome lá estava. Ferido com uma bala na cabeça, fôra levado ao hospital, onde os medicos verificaram o obito. Não chorou, não soluçou, não gemeu, anniquilada por completo. Quando voltou á consciencia da realidade, ainda tinha nas mãos o jornal. Serena e tragica, como se debruçada sobre uma sepultura visse lá dentro o proprio coração; tragica e dolorida como se lhe pezasse n'alma todo o soffrimento humano; morta para o amor, abrazada em odio: --Mataram o meu pobre filho! Maldito seja para sempre, na sua descendencia, o miseravel assassino! Como não havia de adoral-o, a pobre mãe, se elle era o seu filho unico! * * * * * _Se fores um dia ao mar,_ _Que a fortuna te não deixe;_ _Bota a rede e vae-te embora,_ _--Quanto mais burro mais peixe._ Fôra creado de medico, e como a Natureza o dotára com bastante intelligencia e um notavel espirito de observação, aprendeu mil coisas com o doutor, a ponto de se julgar apto a fazer o que elle fazia. Depois chocava-o aquella subalternidade de moço de consultorio, as pessoas que entravam nem reparando n'elle, e algumas que n'elle reparavam tratando-o sem cortesia. Farto d'aquelle viver, reconhecendo-se talhado para mais altos destinos, um dia pediu contas ao patrão, e abalou sem dizer para onde. Mezes passados, enchia a cidade a fama de um doutor novo, que fazia verdadeiros milagres, havendo quem affiançasse que dera vista... a uns poucos de aleijados, e cegára uma meia duzia de coxos. Por acaso o doutor topou o milagrante collega na rua, e reconheceu n'elle o seu velho creado, muito correcto, muito bem posto, tal qual um intrujão com diploma. Ao outro dia, era um domingo, foi procural-o ao consultorio, curioso de saber como aquillo era feito. No largo, junto ao adro da Egreja, havia uma extraordinaria multidão. --Quantas pessoas calcula o dr. que estejam além? --Uns milhares. --E quantas d'essas lhe parece que serão intelligentes? --Algumas duzias. --Pois essas formam a sua clientella; o resto pertence-me. Vinha isto a proposito... a proposito... Ah! sim; a proposito da tiragem do jornal, que o administrador acha pequena. * * * * * _A necessidade de equilibrar o orçamento póde obrigar o governo a impôr sacrificios aos funccionarios._ (Dos jornaes). Era manso como um cordeiro, e leal como um velho amigo. O general montava raras vezes; mas ia todos os dias visitar o seu _Turco_, limpar-lhe a mangedoira, pentear-lhe a crina, passar-lhe a mão pelo lombo, n'uma caricia que o animal agradecia, olhando-o com ternura. Ás vezes, a caminho do tanque, encabritava-se com o impedido, dando saltos, como se quizesse fugir pelos campos fóra, no goso d'uma liberdade que não conhecia, mas que adivinhava. Lá em baixo, na varzea, as eguas pastavam tranquillamente; e os poldros, virgens de toda a domesticidade, pulavam como cabritos, mettendo a cabeça entre as mãos, e logo desatando n'uma correria doida, bebendo os ventos, o pescoço muito extendido, o focinho alto, as narinas muito abertas, respirando com estrondo. E era então que elle se encabritava com o impedido, firmando-se nas patas trazeiras, dando grandes sacões inuteis, porque a arreata era firme, e a mão que a segurava era forte. Que bom devia ser a liberdade! Por certo o tratavam bem; mas aborrecia-lhe aquella vida ociosa do quartel, todos os dias a mesma coisa--comendo e bebendo por toques de clarim, n'um automatismo de machina, com uma regularidade pendular. Mas era manso como um cordeiro, leal como um velho amigo,--uma creança faria d'elle o que quizesse. Ora succedeu que um dia foram dizer ao general que o seu _Turco_ tinha rebentado o impedido com uma parelha de coices. Não acreditou, mas entrando na cavallariça, viu o pobre diabo extendido, soffrendo horrivelmente. --Tu que fizeste ao cavallo! --Nada, meu general. --É mentira. Eu conheço-o muito bem. Que lhe fizeste? --Saberá V. Ex.ª que elle estava a comer a ração, e vou eu, por brincadeira, mexi-lhe na barriga. --Pois ahi está. Não se mexe na barriga de quem come. Era um grande philosopho, o general. * * * * * _Uma sogra nem de barro á porta._ Andava elle pelo Algarve a tratar de negocios, quando o chamaram a Lisboa, por telegramma, com a maxima urgencia. Não lhe diziam do que se tratava; mas, como era o medico quem lhe telegraphava, ficou n'um susto de morte, calculando que ou a mulher ou o filho se encontrasse gravemente doente. Pouco habituado a ser feliz, imaginou logo o peor. O primeiro comboio partia d'alli a doze horas e, como ainda pudesse servir-se do telegrapho, correu a pedir informações. Disseram-lhe que era a sogra que adoecera no mesmo dia em que elle deixára Lisboa, e que a doença se aggravava de momento para momento, receando-se um desenlace fatal. N'um grande ah! de allivio e satisfação, como precisava de assignar uma escriptura dahi a tres dias, foi-se deixando ficar, pedindo que o informassem, por via telegraphica e postal, dos progressos da doença. Receava elle, pouco habituado a ser feliz, que a doença não fosse em progresso, e por isso queria receber noticias amiudadas, se fosse possivel a toda a hora. A doente peorava a olhos vistos, e dizia o medico que a pneumonia degenerava em typho, sendo possivel que houvesse meningite á mistura. Elle tinha uma enorme confiança no doutor, que já lhe assistira á morte de toda a familia, e a quem elle conservára o partido, não para o tratar a elle, á mulher ou ao filho, mas tão sómente para a sogra. Rematados os seus negocios, metteu-se no primeiro comboio, com o coração aos baques, como quem aguarda uma sentença. Descia o medico a escada, quando elle a subia esbodegado, e com bagas de suor perlando-lhe a vasta fronte. --... Vi-a morta, meu caro amigo. Lancei mão de todos os soccorros, e posso dar-lhe a boa nova de que passou todo o perigo. A crise fez-se hoje mesmo, e agora é só questão de tempo. Subiu o resto das escadas a cambalear, como um ebrio, e atirando-se para cima do sophá que havia na sala de entrada, n'um abandono de quem se vê irremediavelmente ludibriado: --E eu que tinha tanta confiança n'esta besta do doutor!... * * * * * _A policia, ajudada pela guarda municipal, fartou-se de espancar os cidadãos pacificos, realizando muitas prisões._ (Dos jornaes). A estrada, larga e poeirenta, passava junto á porta sempre aberta do jardim, marginada de choupos e eucalyptos. Toda a gente das aldeias proximas por alli fazia caminho, no giro da vida ordinaria, homens, mulheres e creanças, alguns descalços, e outros rotos, a maior parte sem pau nem pedra, gente pacifica como bois de trabalho, muito pacifica e muito humilde. Aos domingos, nos dias santos, quando havia festa n'alguma egreja do sitio, por alli passavam ranchos de moças garridas, em cabello, cantando e rindo, cada qual pelo braço do seu namorado, parando aqui e além, aos abraços e beijos, como numa kermesse flamenga. Pois era n'esses dias que o Pandorga, locatario do jardim, quasi escondido por detraz de uma parede de buxo, atirava os cães para a estrada, açulando-os ás canelas de quem passava. _Csi, csi_, e arregalava o olho, guardado no seu esconderijo, rindo muito, sem fazer barulho, quando os cães rasgavam as saias das raparigas ou as calças dos homens, e muito mais quando lhe appareciam de rojo, após a lucta, levando ainda nos dentes boccados de carne em sangue. Ora succedeu que um dia havia festa alli perto; como o Pandorga açulasse os cães--_csi, csi_--contra um bando alegre de camponezes, rapazes e raparigas que iam passando a cantar, pacificos como bois de trabalho, ouviu-se um estalo sêcco, como um rebentar de escorva, e o baque d'um corpo que cae, lá adeante, por detraz da parede de buxo. Soube-se depois que tinha morrido o Pandorga, e os cães nunca mais assaltaram as gentes que passavam pela estrada, larga e poeirenta, e de quando em quando paravam, abraçando-se e beijando-se, como n'uma kermesse de Rubens. * * * * * _Hontem, na praça de touros, houve uma ligeira manifestação de desagrado á Familia Real. O rei não assistia ao espectaculo._ (Dos jornaes). Falava-se muito das suas valentias, embora ninguem citasse d'elle uma façanha authentica, com testemunhas de vista. Era volumoso, e d'ahi concluiam que era forte; era gabarola; muita gente acreditava que elle tivesse nos musculos tanta força como na lingua. Contava elle que d'uma vez matára um boi com um sôco, e n'um dia em que passava rente a um acampamento de ciganos, armados de cacetes e espingardas, como percebesse que lhe faziam troça, desatou aos pontapés a toda aquella malta, pregando com o mais atrevido no alto d'uma azinheira que estava longe d'alli uns poucos de metros. Os que melhor o conheciam, mofavam das suas farroncas; mas não faltava quem acreditasse nas proezas de Ferrabraz, intrepido até ao sacrificio da vida, sem lhe bulir um cabello. Ora succedeu que um dia, vindo com a familia a caminho do arraial, n'uma aldeia da visinhança, alguem o preveniu de que se preparava uma emboscada, lá adeante, n'um cotovêlo da estrada antes de chegar á ribeira. E vae elle então, muito volumoso, pallido como se todo o sangue lhe refluisse ao coração, os cabellos em pé, como se visse deante de si a guela escancarada d'um leão com fome, apalpa-se como quem procura alguma coisa, e batendo no hombro da companheira: --Vão lá andando, vão lá andando, que eu não me demoro; esqueceram-me os charutos. Não voltou, está bem de ver, e no outro dia, quando lhe contaram o succedido, ameaçou o céu e a terra, espumando como um javali ferido. --Se lá estivesse, rachava-os. E pregou tamanho murro no cinzeiro de barro, que o fez em boccadinhos. * * * * * _Hontem o sr. Marquez de Soveral teve com El-Rei uma conferencia de duas horas._ (Dos jornaes). --Franqueza, franquezinha, ó coiso, essa historia da intervenção... --Era pela certa. Hoje a politica é só de interesses, quem governa é a finança. --Bem sei, governa a finança; mas olha que isso de intervir sem mais nem menos em negocios por assim dizer caseiros... --Peço perdão; mas não se trata d'um negocio caseiro, nem mesmo d'um negocio exclusivamente nacional. --Hom'essa! Queres então dizer... --Quero dizer que em torno d'este negocio se formou uma atmosphera de interesses internacionaes... --Olha que não tens publico, e essas lerias, cá para mim... --Cumpro o dever que me impõe a minha posição, e testemunho assim, dizendo a verdade inteira, sem restricções, a minha sympathia pessoal... --Sim, senhor, és um artista. Vocês, os diplomatas, são como os homens de theatro--mesmo quando estão fóra do palco, representam. --Julgava-me com direito a maior consideração da parte... --Tambem eu julgava que me tivesses na conta de menos tolo. Não me conheces d'hoje nem d'hontem, para saberes que ninguem me faz o ninho atraz da orelha. --O que? Pois... --Qual historia!... Acreditei todas as lerias que me impingiste, com uma seriedade á altura das tuas prosapias... --Não o fiz por menos respeito; o uso das formulas... --É como o uso do cachimbo--faz a bocca torta. Sempre me sahiste um gajo!... --Espero que não fique zangado... --Peior... Essa agora não é de diplomata, é d'alarve. --Sempre amavel!... --Sempre justo. Mas falando agora de coisas serias. Tu achas que eu devo... --Ora essa! Está claro que deve. Da fama ninguem o livra, e as honras sem proveito... --E quanto achas tu... --Em negocio de tanta monta, nunca se pede de mais. --Pois sim, tudo tem limites. Ahi uns duzentos contitos, mais vintem, menos vintem... Que te parece? --Parece-me que, pedindo essa bagatela, dá provas d'uma grande generosidade. --Bem se vê que não és tu quem tem de esportular as massas. Pois está dito; faço a coisa pelos duzentos. --É como se lhes désse a elles trezentos e vinte, o que não é barro. --Quero ser generoso... --Do pão do nosso compadre... --Pois sim, canta-lhe d'essas; mas se as coisas se complicam e me põem a viola... --Qual põem! Chego ás vezes a imaginar que tem medo. --Tu não me digas isso outra vez, olha que te ponho os queixos á banda. Eu nunca tive medo. Já d'uma vez, n'uma feira, se ergueu tudo contra mim, sem saber quem eu era, e não arredei pé, de cacete em punho, sem ninguem pelo meu lado. --Bem sei, bem sei; mas se amanhã houvesse qualquer coisa, em menos de nada estavam alli os cavalinhos de pau, e tudo entraria na ordem. --E se me puzessem a andar antes d'elles cá chegarem? --Isso então era o diabo. Uma intervenção tardia, depois do facto consumado... Mas é absurdo o suppôr... --Será absurdo, será; mas, pelo sim pelo não, vou dobrar a parada. Os gajos repontarão? --Que tem lá que repontem?... --Está claro. Isto é como dizia o de Braga--ou comem todos, ou ha-de haver moralidade. * * * * * _S. M. a Rainha, acompanhada da sua dama de serviço, andou hontem distribuindo esmolas no bairro de Alfama, sem se dar a conhecer._ (Dos jornaes). Não queria que a conhecessem. Abalava de casa, vestida como toda a gente, sem nada que pudesse chamar as attenções de quem quer que fosse. Era uma creatura como qualquer outra, e passava, como qualquer outra, no meio da geral indifferença. Os que a conheciam cumprimentavam-na--bons dias, minha senhora!--e os que a não conheciam nem sequer davam por ella. O passo meudinho, muito apressado, como quem marcha para um certo fito, sem se importar com o resto. Entrava aqui, entrava além, fazia o bem que podia, e nem esperava que lhe agradecessem os miseraveis a quem extendia a mão, deixando cahir uma esmola. Como não se sabia quem fosse, chamavam-lhe a _Caridade_. Envelheceu muito, como toda a gente que teima em viver e morreu um dia, encarquilhada e secca, como a maior parte das velhas. Era a _Caridade Evangelica_. Tempos depois, nos mesmos bairros pobres entrou de apparecer uma creatura exotica, dando nas vistas de toda a gente, obrigando a parar quem passava, para a fixar com attenção. O passo largo, muito lento, como quem não tem pressa, e que quer por força dar nas vistas. Entrava aqui, entrava além, como quem passeia um reclame, e gostava que lhe enchessem as mãos de lagrimas agradecidas os miseraveis a quem dava esmola. Como não se sabia quem fosse, n'um dia que ella passava, o passo largo, muito lento, quasi rythmico, dois miseraveis que a viam passar, como quem passeia um reclame: --É a Dona Caridade? --Não; é a Exploração da Miseria. * * * * * _O Principe Real faz immensos progressos nos seus estudos, causando a admiração dos seus professores._ (Dos jornaes). Era um prodigio, o garoto. Contava a parteira que elle olhára para traz, quando nasceu piscando um pouco os olhitos ramellosos, como quem pretende ver melhor. Aos tres mezes, já tocava com os deditos côr de rosa nos bicos, pouco salientes, dos peitos da ama, pondo-os em erecção, para mammar melhor. Viam todos que era um pequeno muito talentoso, e um boccadinho brejeirote. Aos noves mezes dizia--bolas!--e foi essa a sua primeira palavra. Comia de tudo, antes de fazer o anno, e larachava com os creados finos, como se fosse uma pessoa grande. Era um prodigio, o demonio do garoto, d'uma precocidade verdadeiramente excepcional. Um familiar da casa perguntava d'uma vez ao medico, a proposito do fedelho--_Naturalmente, um genio, doutor?_ E o doutor, encolhendo os hombros em ar de duvida--_Naturalmente um idiota!_ Aos cinco annos já sabia tudo--quantas pernas tem um cão, quantas orelhas tem um burro, quantos rabos tem um gato. Era prodigioso, e cada dia que passava como que accrescia de muitos metros aquelle talento incommensuravel. Aos nove annos era um geometra como Euclides, era um historiador como Tacito, era um philosopho como Platão, era um pintor como Raphael, era um poeta como Camões, um romancista como Balzac, um cabo de guerra como Napoleão, um estadista como o sr. Lapin. A tal ponto lhe cresceu o genio, que já não havia espaço para o conter, a dentro das fronteiras nacionaes. Foi então que se reconheceu a necessidade de o mandar para longe, onde fossem mais largos os horizontes, que os genios, como os gazes quando os comprimem além d'um certo grau, são eminentemente explosivos. E porque era ainda muito novinho, sem experiencia do mundo, apezar do seu immenso talento, foi a familia com elle, e por lá ficaram todos--para bem de todos nós. * * * * * _«É melhor tratar d'outro oficio. O jornal ha de morrer á falta de leitores, porque você terá geito para tudo, menos para jornalista.»_ (Carta anonyma). _Oh! la pauvre bête!..._ Era na verdade, um animal perfeito. De côr acastanhada, a anca alta, largo dos peitos, uma estrella branca na testa, talvez demasiadamente sellado, a perna delgada e nervosa, a cauda farta e comprida, era um burro que fazia parar quem passava, admirando-o, e succedeu a mais de uma beata, ferida de tamanha belleza e correcção, estacar no caminho das suas devoções, e não poder reprimir nas arcas santas do peito esta exclamação blasphema:--_Benza-o Deus, como é bonito!..._ Procopio então passava horas no enlevo do seu burro, afagando-lhe o focinho e alisando-lhe o pello, não consentindo que sobre elle poisasse uma mosca, ou lhe manchasse a pelle acastanhada um grãosinho de poeira. Era uma especie de burrolatria, um culto religioso que lhe enchia a alma, dando-lhe todas as satisfações espirituaes que resultam para um crente da adoração do seu fetiche. E porque se lhe afigurasse que o burro não era, como os outros burros, uma simples cavalgadura, desatou a alimental-o com o melhor da sua mesa, dando todas as coisas boas e raras que encontrava na sua despensa ou se confeccionavam na sua cozinha. Mas nem o burro lhe pegava nos acepipes, nem ao menos se mostrava agradecido aos seus disvelos e blandicias. Procopio lamentava-se da sua má sorte, chorava a sua desdita, sempre amigo do seu burro, sempre idolatra do seu idolo, sempre adorando o seu fetiche. E como quer que um dia, desabafando n'um peito amigo, se queixasse da ingratidão dos burros, vae o outro, grande philosopho, com larga experiencia da vida, aconselha-o assim: --A culpa é tua, Procopio, e de mais ninguem. O burro não foi feito para comer á tua mesa, como tu não foste feito para comer á mangedoura. Queres vel-o gordo, alegre, contente, a lamber-te as mãos reconhecido? E como Procopio estendesse o pescoço, a beber-lhe as palavras. --Dá-lhe palha, Procopio amigo... * * * * * _S. M. a Rainha visitou hontem o Hospital de S. José._ (Dos jornaes). Estava perdida... Começava a soffrer do peito, havia annos, e como precisava de trabalhar sempre, trabalhar sem descanço, para não vir a fome juntar-se á doença encurtando-lhe a vida, o mal foi augmentando constantemente, aquelle terreno sendo proprio para aquella vegetação, e as circumstancias ajudando como n'um bom anno agricola. Que era uma constipação, tinha dito o medico do monte-pio, n'uma visita em automovel, a trinta... réis a consulta. O certo é que as dores augmentavam-lhe, como se tivesse o peito mettido n'uma prensa; a tosse era funda, como se lhe viesse do mais intimo dos pulmões; manchas de febre punham-lhe nodoas vermelhas na cera do rosto emmagrecido, e sentia o sangue subir-lhe á bocca, em golfadas, que a muito custo reprimia. Despediram-n'a da fabrica, incapaz de trabalhar, e como recuasse perante a morte, uma noite, a olhar as aguas do rio, foi á consulta no hospital, e ficou na enfermaria. Estava tisica. Ninguem a visitava, porque não tinha ninguem, e como fosse naturalmente pouco communicativa, passava os dias e as noites a sentir-se morrer aos boccados, amaldiçoando a sorte que a fizera pobre, e attribuindo á miseria o descalabro da sua vida. Por maneira que naquelle dia, á hora do silencio, quando acordou do seu alheiamento, e sentiu perto da sua cama como um _frou-frou_ de sedas, muito pallida, muito magra, quasi cadaverica, ergueu-se na cama como se a movesse uma mola, e fixando na visitante os seus grandes olhos negros, disse-lhe como na vehemencia d'um delirio: --Não é verdade, minha senhora, que a sociedade é infame quando a uns dá o superfluo, sem dar a todos o que é preciso? * * * * * _S. M. andou hontem pelos bairros pobres distribuindo esmolas no mais rigoroso incognito._ (Dos jornaes). Que frio cortante, meu Deus! O sol é como um brazeiro apagado, que ainda conservasse luz nas cinzas--uma luz fria e baça. O vento retalha-nos a cara, e põe nas pobres arvores sem folhas umas tremuras de velhinho, a esconder sob os farrapos as carnes enregeladas. Que frio cortante. Deus do céu! A miseria é insupportavel no inverno, porque tudo se conjuga para lhe dar uma agudeza de expiação, um requinte de pena biblica, sem laivos de misericordia. Não ha fogo no lar, não ha pão no armario, não ha cobertores no leito, ás vezes nem leito ha. Que frio cortante. Senhor! E é então que a Opulencia desce ao antro onde agoniza o miseravel, pondo-lhe na mão ressequida o quanto baste para illudir a fome. Mas porque haverá no mundo esta tremenda desegualdade, se lá nos altos céus existe uma justiça absoluta, e se existe cá em baixo uma vulgar noção do que seja a equidade? Que frio cortante, meu Deus! Dá vontade de morrer, para fugir d'este inferno, e ao mesmo tempo dá vontade de accender uma grande fogueira, a que se aqueçam todos os desgraçados. Se os poderosos soubessem como se soffre no inverno! Ou não tirariam nada aos pobres, ou lhes restituiriam quanto lhes tiram, n'um desejo sincero e grande de fazer obra meritoria. Mas elles nem sonham, meu Deus! como é horrivel a miseria no inverno. * * * * * _SS. MM. foram muito acclamadas na estação do Rocio._ (Dos jornaes). --Peço desculpa a V.ª Ex.ª mas como tenho umas continhas... --Pois sim; mas eu já lhe disse que antes do fim do mez não posso pagar-lhe. --É verdade que disse; mas como V. Ex.ª agora tem dinheiro... --Qual dinheiro, nem qual carapuça! O sr. imagina que me morreu algum tio no Brazil, que apanhei a sorte grande, ou que levei alguma banca á gloria? --Não senhor; não imagino nada d'isso. Mas como V. Ex.ª foi encarregado do vivorio, acho que pode muito bem regular já as nossas contas, para eu me não ver envergonhado com os meus credores. --O sr. está doido, com certeza! Imagina talvez que se paga aquelle serviço á larga, pelo menos com certa generosidade, como seria justo que se fizesse?... --Como isso é feito, não sei eu; o que eu sei é que ao pé de mim estava um sujeito todo bem posto, de cartola, que deu apenas dois vivas, e abalou muito risonho esfregando as mãos, e a dizer para o companheiro:--_já cá cantam dois mil réis_. E toda a gente dizia por alli que V. Ex.ª tinha recebido um conto e duzentos mil réis para dirigir aquella manobra. --Sim, senhor, para dirigir aquella manobra... e para pagar áquella gente. Imagina que se dão vivas de graça? Pois engana-se redondamente. Quem menos ganha, é quem mais grita, e ha menino que recebe as massas e fica mudo como um peixe. --Mas V. Ex.ª bem vê que eu já tenho esperado muito, e, se o importuno agora, é porque me parece a occasião favoravel. --Desfavoravel, é que ella é. Em primeiro logar, eu ainda não recebi a téca; depois tenho que pagar á minha gente melhor que das outras vezes, porque elles estavam falados para não se prestarem á coisa. Isto, meu amigo, foi chão que deu vinha. N'outro tempo, um diabo que enrouquecia a dar vivas, contentava-se com dois tostões, doze vintens, e ás vezes com um simples habito de Christo, ou uma commenda da Conceição. Vão lá agora acenar-lhes com isso, a vêr quantos lhe pegam!... --De maneira que... --De maneira que o amigo terá de esperar mais algum tempo, e como realmente eu lhe sou grato, não quero que perca o freguez, tanto mais que o senhor trabalha bem. Lá me tem ámanhã, a escolher a fatiota da estação. --Que pagará... --Quando houver outra manifestação espontanea. Resmungava o alfaiate, descendo a escada--Que grande pulha! Dizia o vivographo, fechando a porta--Que grande idiota! * * * * * _Hontem a sessão teve de ser interrompida na Camara dos Deputados, por causa do chinfrim. O sr. José Luciano mostrou-se satisfeito._ (Dos jornaes). Durante muito tempo, por largos annos, o seu ar recolhido e severo deu a muita gente a impressão d'um pensador, alheiando-se propositadamente do mundo para melhor se engolfar nas suas cogitações. E porque nada resultasse das suas locubrações d'espirito, assentou-se em que aquelle vasio significava profundeza. Não era talvez um philosopho, mas era um homem d'Estado. E assim foi trepando a escadaria ingreme da carreira politica, sempre solemne, sempre severo, sempre recolhido, e sempre ôco. Não havia duvida possivel--estava alli um prodigioso talento, uma organização rara d'estadista, a que só faltava ter uma ideia e produzir um facto. Senão quando, um irreverente que attentou n'aquella austeridade de manequim, n'aquelle ar funebre de cypreste, n'aquella fronte larga sem reverbero intellectual, um irreverente apontou-o á multidão, e gritou-lhe nas bochechas--é fundamentalmente estupido! Por maneira que outro dia, apoz aquelle chinfrim no parlamento, quando o presidente do conselho ria, como quem se banha em agua de rosas, e a camara inteira se põe ao fresco, dominada pelo vago presentimento de que fizera o jogo do governo, o pobre grande homem, antecipando a amargura dos seus desastres, encostado á parede, como quem soffre uma vertigem, deixou cahir dos labios murchos estas palavras desconsoladas--_Parece-me que fiz asneira!_ E, pela primeira vez na vida, reconhecendo que fizera asneira, o grande homem se mostrou intelligente. * * * * * _A situação do rei é de cada vez mais grave. O unico remedio ainda possivel é a abdicação._ (Nas entrelinhas dos jornaes). Era uma conspirata. Reuniam-se todas as noites fóra de portas, em casa d'um tasqueiro de boa reputação, homem de lettras gordas, mas de principios severos, incapaz de faltar á sua palavra, preferindo mil vezes a morte a uma vilania. De modo que para este não havia segredos, nem para a sua companheira, uma velhota gordunchuda que teimára em não ter filhos depois de casada, farta de os ter em solteira. Bem entendido, o tasqueiro não tomava parte nas discussões; mas quando elle entrava com o peixe frito e a caneca, de chinellas, com um lenço encarnado a chupar-lhe o suor da cachaceira, ninguem recolhia a fala ao buxo, porque se sabia que elle era incapaz de uma traição, ou mesmo d'uma imprudencia. Elle bem sabia do que se tratava; mas fingia não saber nada, correspondendo, com extremos de correcção, á penhorante confiança que tinham n'elle. Tratava-se de substituir um porco por um leitão, o que tudo vinha a dar n'uma tremenda porcaria. Mas os conspiradores mostravam-se encarniçados na sua ideia, crendo n'ella como nas pilulas Pink, ou no xarope da mãe Seigel. A unanimidade não era completa, e como uma noite resolvessem não sair d'alli sem assentarem em alguma coisa de definitivo, um d'elles lembrou que se ouvisse a opinião do tasqueiro, homem de lettras gordas, mas de principios severos, mais intelligente do que seria preciso para exercer a sua profissão, e discreto como um tumulo. Por maneira que quando elle entrou, o lenço encarnado a chupar-lhe o suor do cachaço, a travessa do peixe frito na mão esquerda, e na direita um formidavel cangirão, espumante de vinho verde, um dos conspiradores poz-lhe nitidamente a questão, e pediu o seu parecer: --Eu cá, por mim, não entendo d'essas coisas; mas sempre ouvi dizer que a racha sae ao madeiro, e meu avô, que andou nas guerras, e soffreu primeiro por causa de D. Miguel, e soffreu depois por causa de D. Pedro, costumava dizer á gente, quando se falava dessas coisas--creio que ha uns reis peores do que outros; que haja melhores, não acredito. * * * * * _Diz-se que a questão politica vae ser tratada no Parlamento com violencia, não se poupando ataques ao Chefe de Estado._ (Dos jornaes). Se tivesse echo!... Era positivamente uma obsessão; mas queria por força uma quinta que tivesse echo, e não se importava pagar esse capricho a peso de dinheiro. Deixára a Patria muito novo, e no Brasil, á força de trabalho e economia, a sorte ajudando um pouco, conseguira fazer fortuna. Todas as noites, ao fechar da loja, consultava o livro de _razão_, e como visse que os negocios lhe corriam bem, ganhando sempre, tomava o chásinho com torradas, entretinha-se um pouco com os garotos, e ia metter-se na cama tranquillo e satisfeito, como um patriarcha biblico. Sonhava então com a sua aldeia; via-se outra vez no modesto casinhoto em que nascera; encontrava-se de novo com os rapazes da sua geração, e abalavam todos de restolhada, a caçar os ninhos ou a roubar amoras, este sem chapéu, aquelle sem jaqueta, e todos não lhe pesando o pé uma onça, quando o vinheiro se apercebia do grupo, e fazia estalar a funda ou rebentar uma escorva, no momento em que estes saltavam o vallado, para colherem uvas. O que fazia o principal encanto de seus sonhos, era a conversa com o echo, um echo muito perfeito que havia perto da aldeia, no sitio chamado das Antas. Já accordado, ainda lhe parecia que tinha realmente ouvido o echo--_quem está lá!_--e fechava os olhos, n'um esforço enorme de concentração, parecendo-lhe que talvez assim o ouvisse ainda. E então, principiava a obsedial-o aquella ideia do echo, que já ouvia mesmo acordado--_quem está lá!_--victima d'uma allucinação do ouvido. Por maneira que passados annos, voltando á sua terra, deitou-se a procurar uma quinta que tivesse _echo_, não se importando pagar o seu capricho a peso de dinheiro. Soube d'isso o Thomé Cantigas, e logo se poz a instruir o velho João, um creado que já estava na casa quando elle nascera, por maneira a funccionar d'echo quando lá fosse o brasileiro, com quem tinha a quinta ajustada. Ora succedeu então esta coisa curiosa:--quando o Thomé, em companhia do brasileiro, do escrivão e das testemunhas, para verificarem o echo, gritou com toda a força dos seus pulmões--Ó João!--o pobre diabo, escondido por detraz d'uma pedra, ouvindo aquella voz tão sua conhecida, e sentindo acordar em si quarenta annos de obediencia e domesticidade, o pobre diabo respondeu n'um tom humilde--_Meu senhor!_ Imaginem agora que o rei chegava alli abaixo, perto de S. Bento, espectral como o principe da Dinamarca, quando nas duas camaras, que funccionam agora como dois bilhares, se joga a carambola politica, a maior parte dos parceiros esquecendo-se de dar giz no taco, picando as bolas ao contrario, e todos jogando pela tabella, como se não vissem a encarnada e fosse prohibido atirar-lhe para cima... Sim, imaginem que o rei chegava alli, sem ninguem dar por elle, e no mais acceso da balburdia, no meio encarniçado do jogo, gritava com a sua bella voz de barytono:--_Que é lá isso ó seus gajos?_ Quantas vozes deixariam de responder como o velho creado João, ouvindo, lá onde estava, por detraz de uma pedra, ensaiado para o echo, a voz do sr. Thomé, seu patrão de tantos annos? * * * * * _Vaidade das vaidades--tudo é vaidade!_ Viera ao mundo com a mania de que tudo andava torto, e lhe competia endireitar tudo. Era assim uma especie de messianismo arte nova, que lhe hypertrophiava a personalidade, tornando-o impertinente. Todas as injustiças o offendiam, todas as asneiras o irritavam, pondo-lhe os nervos em tal estado de vibração, que seria facil romperem-se. Mas ao mesmo tempo essas injustiças que o offendiam, essas asneiras que o irritavam, eram a propria condição da sua existencia, todo o estimulo da sua actividade, a sua unica razão de ser. Que um bello dia entrassem as coisas na bôa ordem, o bem tendo vencido o mal, o amor tendo vencido o odio, a justiça tendo vencido a iniquidade, o direito tendo vencido a força, a verdade tendo vencido a mentira, que um bello dia se realizasse tudo isto, e elle encontrar-se-ia como homem que se desequilibrasse no espaço, sem ponto de apoio, uma creatura que se visse sem ligações com o Universo, isolada como n'uma ilha deserta, um ser de geração espontanea, olhando para traz, e não adivinhando o seu passado, olhando para deante e reconhecendo-se sem destino. Considerava-se o ser por excellencia, a suprema vontade, a suprema intelligencia, a mais alta sabedoria, a mais extremada virtude. Tinha um calcanhar esse gigante, como o heroe da Iliada; mas o Páris, que pretendesse feril-o, escusava de molhar a setta em veneno, bastava que a molhasse em lisonja, que é uma droga pouco toxica e muito corrosiva. Succedeu-lhe um dia adoecer gravemente, e como lhe perguntassem, _in articulo mortis_, se não receava pela salvação da sua alma, respondeu, tartamudeando muito--_Receio que me mettam no céo. Que tortura não será a minha se caio na mansão dos justos._ Por subscripção entre amigos, ergueram-lhe um mausoleu, coisa barata e modesta, e fizeram-lhe gravar na frontaria, em bronze amarello, estes dizeres biblicos:--_Vanitas vanitatum_, o que traduzido em portuguez quer simplesmente dizer: --_Ora bolas para tanta embofia!..._ * * * * * _Parece vingar a interpretação que attribue ao sr. ministro das finanças a qualidade de portuguez._ (Dos jornaes) --Contente que nem um rato, não é verdade? --Não sei porquê... --Não sabe porquê? Pois você chega ao ultimo quartel da vida sem saber de que terra é, e d'um momento para outro, sem trabalho nem canceiras, apparece cidadão d'um paiz glorioso, e guindado ás maiores culminancias sociaes, e ainda pergunta porque deve estar contente? --Por certo. Não sendo d'uma patria determinada, eu podia tirar muito proveito de todas, conforme as circumstancias. --Mas os seus direitos... --Perdão; os meus direitos são os meus interesses, dada a minha qualidade de homem de negocios. Ter um certo direito, significa apenas, no meu entender, a faculdade de realizar um certo lucro, da mesma fórma que ter uma certa obrigação significa uma perda. A equação da vida commercial faz-se com estes dois termos--ganhos e perdas. --Está muito bem; mas parece-me que sob todos os pontos de vista o amigo ganhou. --Isso é conforme. A operação, considerada nos seus resultados immediatos, e não olhando para além do momento actual, é de resultados vantajosos; mas... --Mas... --Mas o futuro a Deus pertence, e esta naturalização definitiva póde prejudicar-me muito, se ainda tiver necessidade de mudar de nacionalidade mais uma vez. * * * * * _O principe D. Luis Filippe restituiu ao thesouro o dinheiro que lhe sobejou da viagem._ (Dos jornaes). Era doida pelo neto; mas, se o tivesse junto de si, n'aquelle momento, pregava-lhe duas bofetadas. Era aquillo um proceder de principe? Não havia memoria, na sua familia, d'alguem ter restituido fosse o que fosse, muito menos dinheiro. Raivosa, sentindo-se ferida no seu orgulho de raça, mordia os beiços até quasi sangrarem, e amarrotava nas mãos o jornal, com muita força, como se quizesse desfazel-o. Era de entontecer aquella vergonha. De repente acalmava-se um pouco, como se entrasse n'um banho morno. Quem sabe? Talvez aquillo não fosse verdade. Dizem tanta mentira os jornaes!... Ha gazeteiro que não vacilla perante a mais baixa calumnia, muitas vezes por interesse, algumas vezes por capricho, não raramente por maldade. E logo mandou vir todas os jornaes d'aquelle dia, absolutamente todos, mesmo os que ella nunca lia, por saber que sempre alguma coisa traziam que lhe fosse desagradavel. --Todos quantos se publicam em Lisboa, ouviste? Pois em todos elles vinha a noticia, a vergonhosa noticia d'aquelle neto infamante, que ficaria luzindo como uma nodoa na pureza alvissima e até alli immaculada dos seus pergaminhos dynasticos. Era doida pelo neto; mas se o tivesse junto de si, n'aquelle momento, era capaz talvez de um arrebatamento criminoso, atirando-o pela janella. Vestiu-se n'uma pressa, sem olhar para o espelho, surda ás sugestões do seu coquetismo de carcassa. Iria procural-o, exprobar-lhe a sua baixeza, que nem mesmo os poucos annos poderiam desculpar. Um principe, quando se trata de honrar as tradições dos seus maiores, é sempre de maior edade... Pisava o primeiro degrau da escada, quando o neto subia quasi aos saltos, como de costume, a estender-lhe os braços. --Ias sair, avózinha? --Ia procurar-te. --Parece que não estás contente? --E com razão. Mal entraram na sala, apanhou um jornal, ao acaso, e, apontando a noticiazinha da restituição, perguntou-lhe: --Isto é verdade? O garoto desatou a rir, a rir desalmadamente, a fazer-lhe cocegas. --É então mentira? --Se é mentira!... Na verdade, avózinha, sempre te julguei mais intelligente. Restituir dinheiro! Sei honrar as tradições da nossa casa, pelas quaes tenho um verdadeiro culto. Teve um grande suspiro d'allivio, como se lhe tirassem de cima um peso de cem arrobas. Apertou muito o neto nos braços e, tendo-o beijado loucamente, deixou-se cair no sophá, muito quebrada, como ao sair d'uma lucta. E com os olhos fechados, a respiração alta, ofegante, murmurava para não ser ouvida: --Estupida que eu sou! O pequeno era incapaz de semelhante infamia. Revejo n'elle toda a nobreza da raça. E adormeceu. * * * * * _Passa hoje o primeiro anniversario deste jornal, dia propicio á comemoração dos que foram nossos companheiros de lucta, e hoje luctariam comnosco, se a morte os tivesse poupado._ («A Lucta»). Morrer, dormir, sonhar quem sabe!... A fogueira crepita no meio do bosque sagrado, e o ramalhar das folhas, cortando o silencio augusto d'uma noite de luar, é como a prece erguida aos céus por milhares de labios virginaes. Morrer, dormir!... Em volta ha uma turba alegre, como se alli fosse realizar-se um ágape festivo, os esponsaes d'uma nobre castellã com o pagem dos seus sonhos, reluzente de pedrarias, esplendido de mocidade. Dormir, sonhar!... A fogueira crepita erguendo uma chamma cónica de uma regularidade geometrica, e um fumozinho branco, muito tenue, muito esparso, é como um boccado de gaze que alli estivesse preso á chamma, tocando-lhe sem se inflammar. Morrer, dormir, sonhar, quem sabe!... E mal o cadaver pousa na fogueira, crepitante e rútila no meio do bosque sagrado, logo sobre elle se lança aquella virgem loira e meiga, que uns padres druidas estavam ha pouco dispondo para a viagem de que não se volta. Quem sabe! Se n'esses mundos longinquos, para onde dizem que vão as almas, se conserva lembrança da vida que aqui tivemos, bem sabem vocês, queridos e inolvidaveis mortos! que é para nós de lagrimas este dia, visto que esta pagina é hoje um canto do cemiterio! * * * * * _A morte perdendo a foice_ _Creu sua força desfeita._ _Disse-lhe um medico insigne:_ _Aqui tens esta receita._ Chamava-se Corvo, e era alfaiate. Pouco trabalhava pelo officio, quasi sempre pelo campo, a caçar lebres ou perdizes, lá de longe em longe mettendo-se na jolda, e só então aventurando-se por aquelles mattos espessos, onde deixava metade da farpela, em boccados. A sua grande paixão, a sua mania de caçador era pelos pombos, á negaça. Abalava de casa muito cedo, o pombinho mettido na aljabra, o farnel mettido nos bolsos, a aguilhada ao hombro, a espingarda a tiracolo, e uma garrafinha de aguardente sem confecção, que o frio era de rachar, por aquelles dias molhados de novembro. Chegava ao _sitio_, circumdava os montados, n'uma extensão enorme, com a sua vista de lynce, e toca a fazer a choça, não fossem os pombos dar-se pressa de vir alli, apanhando-o desprevenido. Ás vezes não matava nada; outras vezes matava quantos se _faziam_; mas sempre se divertia immenso, a puxar a negaça e a aperrar a caçadeira, não se esquecendo nunca de _beijar_ a garrafinha da aguardente, que valia pelo melhor dos lumes, no desabrigo da choça, por aquelles dias gelados de novembro. Ora succedeu que um dia, ao voltar dos pombos, chegando a casa, subitamente, o Corvo sentiu-se mal, horrivelmente mal, gritando que lhe accudissem. N'esse mesmo dia, áquella mesma hora, por assim dizer, n'aquelle mesmo instante, tinha chegado o medico novo, que ainda ninguem tinha visto. Correram a chamal-o, n'uma afflicção, que o Corvo sentia-se morrer e gritava como um perdido. Vae o doutor, muito solicito, observa o doente, faz uma receita, enche uma seringa e crava-a n'uma nadega do alfaiate, que não tugiu nem mugiu. Estava morto o pobre Corvo, velho caçador de pombos, que durante largos annos, todas as manhãs, em dias gelados de novembro, abalava de casa para as montanhas, a aguilhada ao hombro e o farnel nos bolsos, sem nunca se esquecer da garrafinha d'aguardente, que valia por um bom fogo no desabrigo da choça, encostado a um sobreiro. O caso fez barulho na aldeia, e como alguem lamentasse a perda de tão eximio caçador: --Lá quanto a isso, perorou um mariola d'um barbeiro, não vejo razão para se lamentar a gente. O nosso doutor parece ser homem de boa pontaria. Mal disparou a seringa, logo o Corvo enrolou as azas, como se fosse um pombo que se _fizesse_, e apanhasse a carga em cheio. * * * * * _O sr. ministro da fazenda ficou a trabalhar em sua casa._ (Dos jornaes). A ordem fôra terminante, e não admittia excepções; s. ex.ª não _estava_ para ninguem, absolutamente ninguem. Andava a estudar um plano geral de reformas, e, como tivesse de ir passar uns dias na provincia, queria deixar os seus papeis arrumados, cada coisa no seu logar, como n'um museu ou n'uma bibliotheca. Fôra sempre uma creatura methodica, e em grande parte o seu talento, que ainda assim muitos negavam, era feito de trabalho e de methodo. Entrára na politica com uma bagagem de estudante, apenas preparado para no parlamento mandar uma representação para a mesa, e requerer que se desse a materia por discutida, a um signal do _leader_. Mas trabalhava muito, estudava muito, ambicioso de renome, atormentado pela obscuridade em que vivia, mal supportando que os outros trepassem, subissem, servindo elle proprio de degrau a bastantes creaturas mediocres. Um bello dia, quasi sem elle proprio saber como nem como não, fizeram-n'o ministro. E logo pensou n'uma larga reforma de serviços, remediando muitas insufficiencias, preenchendo muitas lacunas, pondo cobro a muitos escandalos. Lá quanto a honestidade, reconheciam-n'a os proprios inimigos. Colligira todos os elementos de que necessitava para a sua obra reformadora, e resolveu aproveitar aquelle dia para os classificar, em termos de servir-se d'elles com a maior facilidade e proveito. Estava inteiramente absorvido n'essa tarefa, quando lhe apareceu junto da mesa um continuo, muito vermelho, muito atrapalhado, a revirar o _bonet_ na mão, a querer falar, e não se atrevendo a abrir a bocca. --Que ha? --Um senhor que deseja falar a v. ex.ª --Então eu não lhe disse que não estava para ninguem? --É verdade, mas elle disse-me que se matava alli mesmo, á porta, se v. ex.ª não o recebesse. Mandou entrar immediatamente. --É você?... --Sou eu. Sabe que o Chico está irremediavelmente perdido? --O quê? --Talvez não dure 48 horas. --Coitado! E a familia?... --Ora ahi está. É por causa da familia que eu cá venho. --Mas que posso eu fazer? --Uma coisa muito simples--um adeantamento. --Mas se elle está a morrer!... --Por isso mesmo. Desconta pelo terço do ordenado emquanto viver. --E depois de morto? --Continua a descontar... no outro mundo. E assim se fez.--Era uma bagatela de dez contos redondos. * * * * * _O sr. D. Carlos manda para o Salon dois quadros._ (Dos jornaes). Era dia de assignatura. Como de costume, na sala de espera, emquanto não chegava a hora, uns fumavam estendidos em sophás de molas doces, e outros falavam de coisas varias,--as occorrencias banaes da vespera, ou os successos provaveis do dia seguinte. Pelas janellas, abertas de par em par, entrava uma aragem fresca e quasi perfumada, tanto as flôres do jardim embalsamavam o aposento n'aquelle dia lindo. Avistava-se ao longe o rio, d'aguas tranquillas, e lá para além da barra, empennachado de fumo, um navio cortava as aguas, sem estremeções, deixando atraz de si, como uma passadeira de rendas, um largo traço de espuma. N'isto abre-se uma porta ao fundo, e um homem apparece, de casaca, trazendo debaixo do braço, muito enrolado em papeis, qualquer coisa que logo se adivinhava ser um quadro com a respectiva moldura. Os que fumavam, estendidos em sophás de molas dôces, ergueram-se a cumprimentar, quasi envergonhados do seu _á vontade_, como n'um casino, e os que estavam á janella olhando para o rio, d'águas tranquillas, notando como corria leve um vapor que sahia a barra, empennachado de fumo, esses deixaram-se ficar onde estavam, baixando ligeiramente a cabeça, com cerimonia, nenhum d'elles sabendo quem era aquelle senhor. --Não sei se incommodo v. exas... --Ora essa! Por forma nenhuma. --V. ex.ª é... --O pintor da casa. E logo poz em cima da mesa, procurando posição conforme a luz, duas telasinhas de meio metro, ricamente emmolduradas, uma reproduzindo um trecho de paysagem alemtejana, n'um entardecer d'agosto, e outra representando uma commissão de sardinhas vindo cumprimentar um goraz, pelos seus trabalhos maritimos. --E V. ex.ª traz isto... --São os meus decretos; trago-os á assignatura. * * * * * _O sr_. _D. Carlos tambem hontem não assistiu á tourada no Campo Pequeno._ (Dos jornaes). --Está aqui tudo? --Creio que não falta nada. Poz a mala em cima d'uma cadeira, para não estar a dobrar-se muitas vezes, e foi tirando peça por peça. D'ahi a pouco estava inteiramente transfigurado. As suissas assentavam-lhe na perfeição, e os oculos de ouro, com vidros sem grau, transformaram-lhe de tal modo a physionomia, que ninguem, mesmo dos seus familiares, o conheceria sob aquelle disfarce. As calças é que lhe ficavam um boccadinho justas nas pernas, e o collete, se fosse um tudo nada mais comprido, dir-se-ia ter sido feito para elle--por medida e com prova. Pegou na bengala, de castão de prata, poz na cabeça um Panamá, quebrado na frente, e carregou no botão d'uma campainha electrica. --Se não soubesse... --De primeira ordem, não é verdade? --Uma transfiguração á Rocambole. --Obrigado pelo cumprimento; mas como tu é que me escolheste a farpela... --Limitei-me a cumprir fielmente as indicações recebidas. --De modo que não haverá perigo... --Absolutamente impossivel conhecel-o, disfarçado como está. --Pois olha, já que entrei n'este caminho, quero fazer a coisa completa. Has de comprar-me um bilhete de sol. Quando entrou na praça, ainda as cortesias não tinham começado. Arranjou um logar ao pé da musica, e poz-se a fumar um cigarro ainda por disfarce. Á hora marcada, com uma pontualidade fóra do costume, a função principiou. Estava interessado, contente e ancioso, como se pela primeira vez assistisse a um espectaculo ardentemente desejado. Surprehendia-se a gritar com toda a força, quando o _sol_ inteiro gritava e ainda teve o chapéu na mão, para o atirar ao redondel, enthusiasmadissimo com um _cambio_. No intervallo, como não sahisse o visinho da direita, pedindo-lhe fogo, entrou a dar-lhe conversa. --Vê-se que o amigo é amador. --Como poucos. Isto é um divertimento real. --Lá isso real... --Pois sim... Mas o rei vem aqui muitas vezes?... --Vinha muitas vezes, é o que você quer dizer... --E agora já não vem? --Acho que cortou a coleta. --Elle, afinal, tudo aborrece. --Ora ahi está. E foi exactamente por ver que aborrecia, que elle deixou de apparecer. Sabe o amigo uma coisa? Tenho estado a reparar que você se parece... Não acabou a phrase. Já o outro se tinha levantado, a fingir que alguem o chamava. D'ahi a pouco, no mesmo quarto em que mudára de farpela, dava-se a um trabalho de mil demonios para se desembaraçar das calças, muito justas nas pernas. --Ninguem desconfiou, é claro? --É claro que desconfiaram. Um gajo que estava sentado ao pé de mim, se me não safo tão depressa... --E disse-lhe alguma inconveniencia? --Lá bem inconveniencia... --O melhor, para outra vez... --O melhor para a outra vez, é não ir lá. Corto definitivamente a coleta. --E a _quadrilha_? --Lá isso fica como estava. E atirando com as suissas para cima da cama, a meia voz com despreso: --Isto é que é uma cambada!... * * * * * _O sr. João Franco acompanhou o Principe Real á festa das creanças, e pronunciou alli um grande discurso._ (Dos jornaes). --Muito interessante a festa, não é verdade? --Sim, foi interessante. --Muitas creanças, muitas flores, um dia lindo de sol... Aposto que estava a saltar-te o pé para o meio do rancho, rindo e brincando como todos, como se fossem todos do mesmo collegio? --Tu estás doida, avósinha? Comprehendo muito bem os deveres do meu cargo, e em nenhuma situação me esqueço de quem sou, e do que represento. --Bravo, meu filho! gosto de te ouvir falar assim, porque isso me prova que serás um dia o representante illustre dos teus illustres antepassados. --Assim o espero. --Assim o creio. E falaste ás creanças? --Não, avósinha. Ninguem me disse para lhes falar, nem eu sabia o que havia de dizer-lhes. --Por certo, não sabias; mas se isso fosse uma razão para não falar, muita gente estaria calada n'este paiz de palradores. Quem falou então? --Houve só um discurso... --Sim, está claro, falou s. ex.ª. E o que disse? --Para te falar com franqueza, avósinha, eu pouco ouvi do que elle disse. Mesmo na minha frente estava um garoto vestido de marinheiro, muito interessante, que passou todo o tempo a fazer cocegas no pescoço de uma senhora muito gorda, de nariz abatatado, que estava adiante d'elle, na fila immediata. De cada vez que o rapazinho lhe passava um canudinho de papel, muito delgado, pela pennugem do cachaço, atraz das orelhas, a velha fazia umas caretas muito exquisitas, aflicta, com medo de perder a linha em momento tão solemne. Não imaginas como era divertida a velhota. Divertida e estupida, porque nunca desconfiou do garoto, que se encolhia todo para não desatar ás gargalhadas. De modo que... --De modo que não ouviste o discurso de s. ex.ª. --Não ouvi tudo, é certo; mas alguma coisa ouvi. Por exemplo, ouvi-lhe dizer que n'outros tempos os povos eram dos reis, e que hoje os reis são dos povos. Que quer dizer isto, avósinha? --Quer dizer, meu filho, que n'outro tempo, os creados recebiam ordens dos patrões, e cumpriam-n'as; hoje os patrões recebem ordens dos creados, e cumprem-n'as. --Credo! Mas isso é o fim do mundo. --Pede a Deus que não seja o fim da dynastia. * * * * * _O enterro de hontem foi uma extraordinaria affirmação da força do partido republicano em Lisboa._ (Dos jornaes). Estava inquieto, n'uma ancia por noticias, quando lhe foram dizer que estava o jantar na mesa. Que teria havido! Por certo o cortejo seria numeroso, mas aprazia-lhe acreditar que a manifestação, embora significativa, não fosse de molde a tornar ainda mais evidente o desprestigio do seu nome, já bastante desprestigiado. Esquecia-se de comer, e não despregava os olhos da porta, esperando vel-o apparecer a cada momento, portador da boa nova, dando-lhe a segurança de que era já outra a atmosphera da cidade, onde elle poderia respirar com desafogo, quando quizesse, farto de correrias fóra de portas, a monte como os leprosos na antiguidade, e como os criminosos ainda hoje, quando puderam fugir á justiça. Que teria havido! Todos lhe notavam a preoccupação na physionomia transtornada, e todos sabiam o que lhe dava origem, a verdadeira causa daquelle mal-estar. De modo que o jantar ia correndo silencioso, quasi funebre, ninguem se atrevendo a arriscar uma palavra banal, o mais leve dito que pudesse desafiar o mau humor do pobre tomate recheiado. Fazia dó, mas ao mesmo tempo mettia medo, como se fosse um obuz carregado de grosserias, que uma creança maldosa pretendesse descarregar contra um homem delicado. Parecia aquella ceia da Lucrecia Borgia, em Ferrara, descripta por Victor Hugo. De repente, abre-se a porta, e um reposteiro annuncia o homem. Estava-se nas fructas. --Então?... --Muito maior do que seria licito esperar. A cidade inteira, póde dizer-se, tomou parte na manifestação, grandiosa como nenhuma outra, d'essas que andam na memoria dos homens. --De modo que o prestigio d'essa creatura... --Peço desculpa; o que atravessou a cidade, por entre alas compactas de povo, seguido de milhares de pessoas, não foi o cadaver d'um homem... --Foi então?... --Foi o prestigio d'uma ideia. Ficou por instantes suspenso, como se lhe fugisse o espirito para uma região de trevas. Logo voltou a si, como quem acorda d'um mau sonho, e acabando de descascar uma laranja, voltando-se para o peniculario que lhe ficava mais perto: --Olha lá, ó marquez, dize aos teus collegas da cozinha que não deitem fóra estas cascas. No outro dia annunciava-se uma crise em todos os jornaes. * * * * * _O rei, que hontem devia presidir ao conselho de ministros, partiu para Biarritz, onde se encontra sua noiva._ (Telegramma de Madrid). Pois se elle tem vinte annos!.. Queriam então vel-o amarrado ao throno, recebendo conselheiros e ministros, aturando reposteiros e mordomos, quando a noiva está alli, a algumas horas apenas da capital, chamando-o com insistencia de quem nada póde e tudo offerece porque tudo espera receber em troca. Pois se elle tem vinte annos apenas!... Talvez que no seu sangue toda a podridão d'uma raça; mas a mocidade é uma especie de azougue, capaz de fazer erguer um morto, dando-lhe uma vida ephemera. Pois se elle é tão novo!... Queriam então prendel-o alli, n'aquelle deserto de Madrid, aturando conselheiros e ministros, gente da burocracia e bugigangas heraldicas, quando ella está a poucas horas da capital, talvez a alongar os olhos na direcção da Hespanha, na esperança de vel-o surgir na sua frente, radiante de mocidade. Pois se elle tem vinte annos apenas!... E estranham então vel-o partir como um foguete, abandonando as redeas do governo, doido d'amor como um Quichote real, para ir colher em Biarritz as promessas d'uma felicidade sem limites prelibando uma ventura sonhada. Pois se elle é tão novo!... Depois ella é tão bella!... * * * * * _Amanhã, anniversario da rainha Maria Pia, não haverá recepção no Paço._ (Dos jornaes). --Venho dizer-te adeus... --Para onde vaes? --Para o mar. Na terça feira cá estou, para te dar os parabens. Imaginavas que ia esquecer-me do teu anniversario? --É verdade, o meu anniversario... Nem me lembrava. Emquanto elle accendia um charuto, olhando distrahidamente uma illustração ingleza, deixava ella pender a cabeça sobre o collo mirrado, e evocava um tempo muito remoto, tão remoto que lhe parecia agora, na desolação da sua viuvez, mais phantastico do que real. O seu anniversario! O throno era pequeno para a sua magestade, mas, em summa, sempre era um throno e ella nascera para reinar. Na sua cabelleira loira, como a das virgens de Raphael, o diadema régio tinha scintillações estranhas e coruscantes, que ainda assim pareciam pallidas em comparação dos seus olhares, em que havia toda a ardencia do sol dos tropicos, e toda a limpidez do crystal da rocha. Tambem ella reinára! Outros imperantes se tinham curvado na sua presença, e milhares de cortezãos tinham solicitado a esmola d'um sorriso ou d'um olhar, que ella nem sempre lhes concedia, muito altiva, muito sobranceira, no throno, julgando-se muito perto do Olympo, e fóra do throno vendo-se muito acima da humanidade vulgar. O seu anniversario! Fechava os olhos para tornar mais intensa a evocação, e logo via o desfile do immenso e luzido cortejo--os diplomatas com os seus fardamentos ricos, bordados a oiro; os ministros com as suas librés de luxo, salpicadas de veneras; os bravos militares suffocando impetos guerreiros, n'uma attitude de respeitosa fidelidade, e o numero infinito de fidalgos e fidalgas dobrando o joelho no primeiro degrau do throno e babujando-lhe a mão aristocratica com a saliva do cortezanismo mais rasteiro e mais falso. O seu anniversario! De repente, e como se reatasse uma conversa interrompida pousando o charuto sobre o cinzeiro de prata, e tomando-lhe entre as mãos a face apergaminhada, n'uma caricia muito terna: --Não, fica certa que não me esqueço dos teus annos, e verás como sou gentil... --Sim, não te esqueças. E pois que desejas mostrar-te gentil para commigo, mais uma vez, poupa-me ao desejo e á baixeza de receber os teus creados de pasta. E não houve recepção. * * * * * _Amanhã tem logar a abertura do congresso republicano no Porto. Espera-se que o sr. D. Carlos assista hoje á tourada, no Campo Pequeno._ (Dos jornaes.) --Está doente?... --Pelo contrario, nunca me senti com tanta saude como agora. De certo, se estivesse doente, era natural que fizesse chamar um medico, e não o presidente... --Sem duvida; mas chamado tanto á pressa, com a maxima urgencia... --É que na verdade o caso é urgente. Não adivinhas do que se trata? --Por mais voltas que dê á imaginação... --Não vale a pena dar-lhe grandes voltas, porque pode transtornar-se. Sabes que dia é amanhã? --É domingo. --E sabes que ha tourada no Campo Pequeno? --Como não sou aficionado... --Não sabias? Pois ficas sabendo agora. Ha tourada, e trabalha o Fuentes. Quer isto dizer que será uma tarde cheia. Como os typos estão lá para o norte, a palrar, eu resolvi ir aos touros ámanhã. --Isso não pode ser! Eu não posso tomar a responsabilidade... --Tomo-a eu, deixa lá. Em não apparecendo os cabecilhas, a arraia miuda não abre bico! --Ahi é que está o engano. Aquella gente não se move por cordelinhos; pensa pela sua cabeça; tem iniciativa propria, e procede como lhe parece melhor. --E tu imaginas que hei de passar n'isto a vida inteira? --A vida inteira, não; mas por ora tem de ser assim. --E se eu não quizer que seja assim? --Se não quizer que seja assim... --Como será então? --Então... será peior! * * * * * _O teu amor e uma cabana!_ Fôra uma loucura aquelle amor. Tinham-se encontrado na Figueira, estava ella a banhos, e elle fôra alli de visita a uns parentes da Bairrada, que não via desde annos. Como se andassem pelo mundo á procura um do outro, apenas se viram uma manhã, na Praia, amaram-se doidamente, e foi milagre que não desatassem logo a tagarelar, tu cá, tu lá, e tomassem banho juntos. Á noite, no Casino, a indispensavel apresentação, e logo se seguiu um _pas de quatre_, em que os dois eram eximios. Marchou aquillo tão depressa, que já eram noivos quando regressaram ao Porto, onde ella tinha os paes e elle o emprego, um modesto emprego de despachante, que lhe rendia vinte mil réis por mez. Todas as noites ia falar-lhe, já recebido como da familia e sempre a encontrava encostada a uma pequenina mesa quadrada, um livro de versos na mão esquerda, marcando a pagina com o dedo, e em toda a sua gracil pessoinha um ar de alheiamento e de sonho, que o fazia estacar á entrada da sala, n'um extase de devoto. --Que languidez, Virgem Santa! Casaram, está bem de ver, e foram padrinhos aquelles parentes da Bairrada, que elle tinha ido visitar á Figueira, onde ella estava a banhos. Ninguem a ensinára a trabalhar, e como elle só tinha o seu ordenado de despachante, uns vinte mil réis por mez, era impossivel metter creada, de modo que andava tudo desarrumado, a comida era mal feita, nunca estava prompta a horas, e quando uma rabanada de vento entrava pela janella, era como redemoinho correndo ao longo d'uma estrada poeirenta. Mas todas as noites, quando recolhia, farto de cuspir no café, ia encontral-a, como n'outro tempo, encostada a uma pequenina mesa quadrada, um livro de versos na mão esquerda, marcando a pagina com o dedo. E ao vel-a assim descuidada n'um grande ar de alheiamento e de sonho, toda a sua gracil pessoinha como que envolvida n'uma atmosphera de languidez quasi morbida, estacava á entrada da sala, como n'outro tempo, murmurando por entre dentes: --Que desmazelo, meu Deus! * * * * * _Dio del oro, del mundo signor._ Noite de festa. Tinham-se vendido todos os logares, e ninguem dispensava o seu bilhete como se fosse um decimo de loteria, com probabilidades conhecidas de sair n'elle a sorte grande. --Compra-se uma cadeira! --Ha quem venda uma geral ou camarote? Eram vozes clamando no deserto... d'uma multidão compacta, junto ao _guichet_, todos sabendo que não entrariam, mas ninguem tendo a coragem de se ir embora.--Quem sabe? Uma familia que se enlutou á ultima hora, e manda vender o seu camarote; um honrado negociante que precisou de abalar para o Alemtejo, e manda vender o seu _fauteuil_. Era noite de festa. Havia flores por toda a parte; colchas ricas pendiam dos camarotes, em todas as ordens, de modo que a sala tinha assim, por virtude d'aquella polychromia bizarra, um aspecto singularmente phantastico, em que se perdiam os olhos, n'um encanto. Mulheres ricamente vestidas, largamente decotadas, eram como fructos de carne em papel de seda, e formavam uma galeria de bustos sem egual, em que tivessem collaborado todos os esculptores de genio. Era noite de festa. Quando se ergueu o panno, sobre as ultimas notas da orchestra, pareceu que um jogo habil de espelhos transferira ao palco aquellas flôres magnificas que havia por toda a parte, aquellas colchas ricas que pendiam dos camarotes, n'uma polychromia bizarra, no meio da qual se destacavam bustos admiraveis de mulheres, como se fossem outros tantos peccados irresistiveis, servidos em papel de seda pelo demo tentador. No segundo acto, quando Ella appareceu, foi como se uma corrente electrica, mysteriosa e divina, percorresse toda a sala, visto como todos se levantaram, n'um movimento egual e isochrono, para a mais amoravel e sincera ovação de que possa haver registo. Muito fria, muito pallida, as lagrimas gelando-se-lhe a meio das faces apergaminhadas, um sorriso apagando-se-lhe nos labios resequidos, avança para agradecer, n'um automatismo quasi de somnambula, e logo recua, soltando um grito, deixando-se cahir, ao desamparo, n'um _divan_, que para alli tinham posto. Estava morta. No escriptorio, verificando o producto da récita, n'aquella noite festiva em que havia flores por toda a parte, e, entre colchas d'uma polychromia bizarra bustos esculturaes de mulheres eram como grandes fructos de carne servidos em papel de seda, o emprezario commentava: --Que raio de sorte! Já estavam passados todos os bilhetes para ámanhã! * * * * * _Quando o cortejo se dirigia da Egreja para o Palacio uma bomba foi atirada d'uma janella, fazendo grandes estragos. Os reis nada soffreram._ (Dos jornaes, em telegramma de Madrid). Emfim! Acabavam de ligar-se para sempre, ella radiante de belleza, elle radiante de felicidade, os dois sonhando mil cousas loucas, n'uma ebriedade d'amor que os punha fóra do mundo real. --Querida Eugenia! --Querido Affonso! Parecia-lhes pequeno o templo, para conter a sua ventura, e aquella multidão que os rodeava, fixando-os com muita insistencia, tinha assim os ares de quem espreita com inveja, e se compraz em ser incommodo. Por maneira que ao chegarem ao adro, ella radiante de belleza, elle radiante de mocidade, respiraram com muita força, e teriam caido nos braços um do outro, ebrios de amor, se um grito de saudação, reboando pelos ares, não os chamasse á realidade! Já no trem, por ahi fóra, marchando lentamente, como n'uma procissão, os ouvidos cerrados a tudo que não fosse o encanto dos seus proprios gestos intencionaes, elles architectavam mil coisas loucas na sua mente escandecida, e como que prelibavam o infinito prazer d'uma posse ardentemente desejada. N'isto ouve-se uma explosão horrivel, e um grito formidavel de terror sae de milhares de boccas, n'um unisono perfeito. É um momento de confusão indescriptivel, e nem se ouvem os gemidos dos que sofrem, nem se dá pelas convulsões dos que agonisam, porque a attenção dos que não fugiram concentra-se totalmente n'aquellas duas creanças--ella radiante de belleza, elle radiante de mocidade, os dois ainda ha pouco sonhando mil coisas loucas, n'uma ebriedade d'amor, que os punha fóra do mundo real. Estavam salvos. A commoção fôra extraordinaria, sendo milagre que um estilhaço de bomba não tivesse reduzido aquelle idilio esponsalicio a um noivado de sepulcro--como se não fosse abominavel atirar para o nada uma existencia que alvorece. --_Yo te probaré hoy que soy digna de ser tu mujer._ Fôra realmente extraordinaria a commoção, de modo que já no leito, sob a luz muito baça, muito tenue d'uma lampada ao centro da alcova, tendo ainda nos ouvidos o estrondo d'uma bomba que rebenta, e como que vendo alli, no isolamento d'aquelle ninho, creaturas que estremecem nos paroxismos de uma morte irremediavel, elle que mostrára uma coragem estoica no meio do perigo, recommendando a todos _calma, mucha calma! No ha pasado nada_, elle sente-se agora d'uma fraqueza infantil, quasi covarde, anniquilado como se entrára n'uma lucta com cyclopes. E então muito calmo, muito resignado, como quem acceita os fados, mordendo-lhe os beiços que ella estendia n'uma momice cheia de graça: --_Yo te probaré mañana que soy digno de ser tu marido._ E foi como se na virgindade d'aquelle leito repousassem duas creanças gemeas. * * * * * _O governo resolveu supprimir todas as gratificações por serviços extraordinarios._ (Dos jornaes). Iam alli implorar a protecção de S. Ex.ª. --De que se trata então? --Somos tres chefes de familia, tres honrados servidores do Estado que vimos... --Está bem; mas o que desejam? --Como V. Ex.ª sabe, acabaram as gratificações, e aquelle de nós tres que mais ganha não chega a ganhar trinta mil réis mensaes, sujeitos a descontos. --Perfeitamente; mas os senhores são empregados... --Saberá V. Ex.ª que da Alfandega. --Ora é isso mesmo, da Alfandega. Eu não posso augmentar-lhes o ordenado, e como a verba das gratificações foi supprimida. --Se V. Ex.ª dá licença... --Como a verba das gratificações foi supprimida, e não depende de mim restaural-a... --Se V. Ex.ª quizesse ter a bondade de se interessar por nós, mesmo sem nos augmentarem os ordenados e sem restabelecerem as gratificações... --A accumulação de serviços equivale a uma gratificação... --Queira V. Ex.ª desculpar, mas tudo se arranjaria facilmente se o sr. conselheiro quizesse ter a bondade de nos tomar sob a sua protecção... --É que não vejo maneira... --O que nós pedimos é muito pouco, e não é preciso tiral-o ao Estado, ou a quem quer que seja. --Em summa, o que é que os senhores desejam? --Nós desejávamos ser nomeados... gatos da Alfandega. --Gatos da Alfandega?!!... --É verdade, sr. conselheiro, gatos da Alfandega. Isso daria uns 9$000 réis por mez, a cada um, o que seria uma ajudasinha para a renda da casa. --Os senhores vieram aqui para se divertirem commigo? --Ó sr. conselheiro, pelo amor de Deus! Nós viemos aqui implorar a valiosissima protecção de V. Ex.ª, juramol-o pela bôa saude das nossas mulheres e dos nossos filhos... --Gatos da Alfandega! Mas então os senhores perderam o juizo? --Não, senhor conselheiro; o que nós perdemos foi a gratificação. --Ou anda tudo doido, ou eu não sei onde tenho a cabeça. Mas o que vem a ser isso de gatos de Alfandega? --Saberá V. Ex.ª que havendo milhões de ratos na Alfandega, sem respeito nenhum pelas mercadorias que alli se acham depositadas, e havendo todos os dias reclamações por causa dos prejuizos que estes causam, foi creada a corporação dos _Gatos da Alfandega_, para a sustentação da qual ha uma verba de proximamente trinta mil réis por mez. --Está bem; mas se essa verba é para sustentação dos gatos... --Desculpe V. Ex.ª; mas se esses empregados cumprem rigorosamente o seu dever, apanhando os ratos, não precisam que os sustentem, porque arranjam elles proprios os seus sustentos; e se alli estão só para receberem o ordenado, deixando os ratos em liberdade, não é justo que se gaste com elles um dinheirão, ao passo que honrados chefes de familia... --Pois está bem; vou informar-me do caso e prometto-lhes interessar-me pelos senhores. --Muito obrigado, sr. conselheiro, muito agradecido a V. Ex.ª Tinham dito a verdade os honrados chefes de familia, e porque o conselheiro não era homem que faltasse á sua promessa, foram os tres nomeados gatos da Alfandega, como poderiam ser nomeados secretarios do ministro, ou revisores do caminho de ferro. Os verdadeiros gatos emigraram, e uma commissão de ratos foi cumprimentar os tres honrados chefes de familia, quando viram as nomeações no _Diario do Governo_. * * * * * _Deve se ao sr. Casimiro José de Lima, director da casa da moeda, o monumento a Souza Martins, erecto no Campo de Sant'Anna._ (Dos jornaes). Eram congressistas. Desemboccaram no Campo de Sant'Anna, vindo da Carreira dos Cavallos, e como se approximassem da estatua, a alguns passos de distancia, pararam de repente, em geito de quem examina com interesse. Um do grupo, o mais velho, typo acabado de sabio allemão, genero Topsius, de sobrecasaca e oculos d'ouro, erguendo ligeiramente o chapéu, n'um cumprimento respeitoso, em que havia muito de admiração, exclama com grande convencimento:--_Schön! Schr schön!_ E logo os outros todos, em unisono, como se fosse um echo alli proximo, possuidos d'aquelle arroubamento esthetico, que é vulgar nos homens da Allemanha, exclamaram tambem!--_Schr schön!_ O mais velho, erguendo os oculos d'ouro para a testa ampla, como a querer illuminar o pensamento, feita uma ligeira reverencia á estatua immovel explicou:--Ribeiro Sanches... Foi um medico notavel do seculo dezoito, um sabio do mais alto valor. Formado em Coimbra, graduado em Salamanca, visitou successivamente os hospitaes de Londres, Marselha, Toulon, Montpellier e Paris. Estudou com Boerhaave--todos se descobriram--em Leyder, durante tres annos, e a tal ponto se impoz á estima e á consideração do Mestre, que d'ahi a pouco tendo-lhe pedido a imperatriz da Russia a indicação de tres grandes medicos, que fossem exercer cargo de professor em Moscow, o primeiro nome que lhe accudiu foi o de Ribeiro Sanches. Medico dos exercitos imperiaes, fez a campanha da Polonia, em 1735, e ainda n'essa qualidade andou pelo Paiz dos Tartaros, sobre os quaes fez estudos de anthropologia, que muito aproveitaram ao sabio francez Buffon--e todos se descobriram de novo.--Viveu em Paris, com muitas difficuldades, sempre estudando, sempre cultivando a sciencia, produzindo trabalhos valiosos sobre economia, historia e medicina. Formára a sua intelligencia no estudo de Bacon e Descartes, e temperou o seu caracter pelos conselhos de Montaigne. Accusado de judaismo, não podia vir a Portugal, e os livros que para cá mandava eram uma especie de contrabando, que o marquez de Pombal fez passar como sendo d'um phantastico dr. João Mendes Sachetti. A Imperatriz Catharina II, da Russia, grata por a haver curado d'uma doença grave, era ella princeza, estabeleceu-lhe uma mezada sufficiente, quando elle se viu na capital da França, a braços com a miseria. E assim pôde viver e publicar o seu _Methodo de estudar a medicina_, e um tratado de _Conservação da saude_ dos povos, e outros muitos trabalhos de valia, que lhe marcaram logar distincto entre os sabios do seu tempo. Um grande sabio! _Ein gross gelehrt! Viel berühmht!_--E todos em unisono, como se fosse um echo ali perto:--_Viel berühmht!_ Ia a passar uma mulhersinha, typo de mulher que esfrega, e como os visse embasbacados, approximou-se do grupo: --É o Sousa Martins, os senhores haviam de conhecer. Quem mandou alli pôr isto, foi o sr. Casimiro da Casa da Moeda--talvez os senhores tenham ouvido falar. Pois não conheciam um, nem tinham ouvido falar do outro, aquellas cavalgaduras! * * * * * _Hontem a policia deitou a mão a um gatuno de onze annos, que roubou um pão n'uma padaria da Baixa._ (Dos jornaes). Tinha roubado um pão. A mãe dissera-lhe que fosse pedir esmola, havia muitas horas sem comer, e elle abalára por essas ruas, descalço e rôto, extendendo a mão a toda a gente. Entrava nos cafés, e ninguem lhe dava nada; entrava pelas lojas, descalço e rôto, e os caixeiros enxotavam-n'o como se fosse um cão. _Dá-me cincoreisinhos, meu senhor?_ Ninguem lhe dava nada, e todos o maltratavam, chegando um policia a deitar-lhe a unha para o levar para a Correcção. Infatigavel, entrando agora n'um café, onde os freguezes nem ouviam o seu estribilho--_dá-me cincoreisinhos, meu senhor?_--entrando além n'uma loja, d'onde os caixeiros o enxotavam como um cão sem dono, já tinha percorrido a cidade inteira, extendendo a mão a toda a gente, e toda a gente olhando para elle com desprezo ou com enfado, e ninguem se compadecendo da sua miseria. E, comtudo, era nada, que elle pedia a toda a gente que passava, extendendo a mão suplicante.--_Dá-me cincoreisinhos, meu senhor?_ Cançado, cheio de fome, ahi volta elle a casa, onde a mãe o aguardava, n'uma afflicção, chumbada ao leito, havia muitas horas sem comer. Uma senhora muito bem vestida, com brilhantes, carruagem brazonada, quasi encalhando n'elle á porta d'uma Egreja, estendeu-lhe a mão enluvada, e deixou cahir na sua mãosita suja, sem olhar para elle, os cincoreisinhos que elle andava a pedir correndo a cidade inteira, extendendo a mão a toda a gente que passava, entrando nos cafés, onde os freguezes eram surdos ao seu pedido, e entrando nas lojas, descalço e rôto, e d'onde os caixeiros o enxotavam, como um cão vadio. Talvez não fosse de proposito, mas os cincoreisinhos telintaram nas pedras da calçada, emquanto a senhora que lh'os dera, muito bem vestida, genuflectia á porta do templo, e cortava o rosto fresco e moreno com o signal da cruz. Foi então que o garoto deu com os olhos n'um cesto de verga, á porta d'uma padaria, cheio de pão alvo e fresco. Alli perto estava a mãe, chumbada ao leito, sofrendo horrivelmente, noites e noites sem dormir, havia muitas horas sem comer. Quasi nem teve tempo de acommodar o pão debaixo do braço, escondendo-o com uns frangalhos da jaqueta. O padeiro grita, o garoto foge, a policia apanha-o, e a multidão horroriza-se deante d'aquelle ladrão de onze annos, que tinha a mãe alli perto, n'uma pocilga, chumbada ao leito, soffrendo horrivelmente, noites e noites sem dormir, havia muitas horas sem comer. Na esquadra, mettido no segredo, como um facinora, o garoto dá o nome e a morada; mas o terror nem o deixa desafogar em lagrimas--vejam o cynismo do malandro!--e a vergonha faz-lhe esconder a cara--admirem a astucia do patife! O policia, que foi prevenir a familia, ao outro dia, encontrou extendido no leito, ainda quente, o cadaver d'uma mulher nova, muito sêcca, muito mirrada, o ar de quem passou largo tempo chumbada ao leito, ainda quente, soffrendo horrivelmente, muitas horas sem comer, muitas noites sem dormir. Já não lhe puderam dizer que era um ladrão o seu filho, aquelle garoto descalço e esfrangalhado, que percorrera a cidade inteira, incommodando toda a gente--_dá-me cincoreisinhos, meu senhor?_ * * * * * _O rei podia impôr-se por um acto de abnegação e patriotismo, acceitando a Republica._ (D'um jornal republicano). Era um povosinho pacato, que moirejava nas suas terras, sempre alegre, sempre satisfeito, sem recordações tristes do passado, sem apprehensões pelo futuro. Enlevava-se na contemplação do mar, quando elle era sereno, e como se esquecesse então, os olhos pregados na sua superficie espelhenta e lisa, os ladrões aproveitavam-se daquella especie de somno hypnotico para lhe aligeirarem os bolsos. Bem se importava elle com isso! Tirava da terra, quasi sem esforço, tudo quanto lhe era necessario, e ainda lhe ficava muito tempo para se enlevar como um sabeista, na contemplação dos astros, de dia piscando os olhos aos raios d'um sol que não queima, de noite como a querer enchel-os d'um luar que adormenta. Era feliz. Os outros invejavam aquella tranquillidade paradisiaca, alguns milhões de bananas governados consoante a rima, e com um rei côr de laranja. Succedeu, porém, que um dia, no meio d'aquelle povo pacato que moirejava nas suas terras, sempre alegre, sempre satisfeito, sem recordações tristes do passado, sem apprehensões pelo futuro, caiu uma semente de revolta, que logo germinou e fortificou, avassallando todos os espiritos. Áquella gente pacifica repugnavam os actos violentos, e só comprehendia que se derramasse sangue para fazer cabidela, ou então para evitar congestões, quando assim o entendesse a medicina. Mas havia o rei... Foi então que um patriota, inspirado como um propheta antigo, teve uma ideia genial, um pensamento sublime--convidar o rei a adherir. Elimina-se o rei e cria-se um cidadão, exclamava com muita eloquencia, pondo arrepios de commoção na espinha de todos os ouvintes. S. M. adheriu. Como todos os bons cidadãos quizeram sacrificar-se na presidencia da Republica, houve necessidade de não crear essa funcção, e isso se fez por consenso unanime, cada um não querendo para os outros o que não poderia haver para si. Alvitrou-se a anarchia, mas como viesse a reconhecer-se, ao cabo de longa discussão, que no relogio do tempo ainda não tinha soado essa hora suprema d'amor e de justiça, tratou-se de eleger um governo, como nas outras republicas. Um velho de aspecto venerando, com um saber só de experiencias feito, propoz que na constituição do governo entrassem elementos novos e aguns dos antigos homens de governo, já com pratica de negocios publicos. --Os cidadãos que approvam esta proposta ergam as duas mãos. Como se visse no ar uma floresta de mãos: --Approvada por unanimidade. Logo uma voz se ergue, fazendo-se ouvir em toda a vasta assembléa: --Eu voto contra. No governo só deve entrar gente nova. O homem que assim falava protestando com energia, era o cidadão que fôra rei, o que deu logar a esta observação do presidente. --Mas o cidadão, quando era monarcha... --Pois sim, quando era monarcha; mas agora sou contribuinte... * * * * * _Parece que S. M. a Rainha não acompanhará El-Rei na sua proxima viagem._ --Confessa que te era mais agradavel ir só... --A falar a verdade... --Ao menos és franco, e a franqueza não passa por ser qualidade vulgar na tua nobilissima familia. --Falas-me da minha familia n'um tom de superioridade e desdem, como se descendesses d'alguma d'essas divindades soberbas, de que estão cheias as mythologias antigas. A esse respeito, minha filha, talvez seja melhor não adeantarmos conversa. Ha um anexim portuguez que resa assim;--_disse o tacho á certã, tira-te para lá não me tisnes._ --Não conheço o calão dos toureiros... --Nem eu a giria dos jesuitas. --Ao menos podias ser delicado com uma senhora. --Por certo se essa senhora quizesse ser delicada commigo. --Nunca eu tivesse aqui posto os pés. --Inteiramente d'accordo. Tinha sido magnifico para os dois. --Se não fossem os filhos e... --Bem sei; se não fosse isto de pairar no alto, estar acima dos outros... --_Je m'en fiche de..._ --Temos calão boulevardiano? --Se um dia perderes o logar, podes ir para Marrocos: o sultão, supponho eu, não terá ciumes de ti. --Nem tu saudades minhas. --Se te parece!... --Apezar de todos os pezares, minha filha, tu ainda me podias dar um prazer enorme, uma satisfação infinita. --Deixando-te ir em liberdade? --Não; deixando-me... viuvo. * * * * * _No congresso medico do Porto, o dr. Eduardo d'Abreu apresentou um velho de 109 annos._ (Dos jornaes). --Vou dar a palavra ao illustre congressista, nosso collega, que apresentará á assembléa o homem mais velho do mundo. Quando o presidente acabou de pronunciar estas palavras, fez-se na sala, até então rumorosa, o silencio dos momentos augustos. Um congressista avançou para junto da mesa da presidencia, acompanhado d'um velhote rabitezo, de peitilhos bordados, endomingado como para a desobriga. Era o homem mais velho do mundo, como dissera o presidente. Nascido no seculo dezoito, atravessára todo o seculo dezenove, e alli estava muito fresco, bem disposto, nas felizes disposições de acompanhar o seculo vinte até por ahi adeante sem cansaço de maior. Estavam alli cento e nove annos, bonita somma feita com parcelas de tres seculos, muito deseguaes em valor. Tão bem conservado o velhinho! Dir-se-ia que adormecera quando ia a entrar na velhice, ao cabo de uma florente mocidade, e a dormir deixára de fazer annos, o bom velhote. Por certo aquella alma nunca fôra batida das tormentas, não experimentara nunca as grandes alegrias nem as grandes contrariedades, porque umas e outras consomem como o fogo, abbreviam a existencia,--diluindo-a em risos ou afogando-a em lagrimas. Tão bem conservado, o velhinho! Ha rugas na sua face; mas ellas são apenas as dobras avelludadas dos lagos adormecidos, d'uma paz magestosa e inalteravel. Os olhares de todos aquelles medicos convergiam para o bom do velho, muito rabitezo, com os seus peitilhos bordados á moda de 1820--a unica coisa limpa que resta das grandes aspirações d'aquella epoca, explicou o congressista que apresentava o phenomeno. Parecia uma evocação, um phantasma que surgisse da noite dos tempos para contar historias tragicas. Mas havia tanta candura no seu olhar curioso! tanta alegria infantil no seu riso mal contido, como se tivesse vergonha de não se mostrar grave alli, no meio de tantos senhores! Aquella seriedade tinha o ar de uma meninice robusta e florida. Tão bem conservado, o velhinho! Parecia vender saude... Um dos congressistas, clinico de larga nomeada, approximando-se do velhote: --E de saude, que tal? --Ó meu senhor, graças a Deus... --Mas nunca esteve doente? --Uma vez, ainda era novo, ahi por volta dos setenta annos. --E tomou muitos remedios? --Lá quanto a isso... não tomei nenhum. Eu sempre tive muito amor á vida. Tão bem conservado, o velhinho!... * * * * * _Hontem, em conferencia dos delegados, foi resolvido querellar d'alguns jornaes._ (Dos jornaes). A sessão estava marcada para as onze. O ultimo que entrou, saudando os dois que já lá estavam, teve esta observação maliciosa: --A justiça é pontual!... --E algumas vezes... justa, accrescentaram os collegas. Cada qual desembaraçou-se do sobretudo, pôz em cima da mesa um masso de jornaes, e assentou-se. --Ha que fazer? --Pela parte que me toca... O que assim falou, ergueu os oculos para a testa, abriu um dos jornaes que tinha na sua frente, e leu pausadamente:--_É fóra de duvida que o nosso Monarcha é dos imperantes mais honestos e mais intelligentes não só da Europa, mas de todo o mundo._ Pousou o jornal sobre a mesa, deixou cair os oculos para os olhos, e attentou nos collegas, á espera. --E depois? O collega com certeza não pretende querellar d'esse jornalista, com certeza monarchico... --Engana-se o collega redondamente. Pretendo querellar a passagem do jornal, que acabo de ler, porque a encontro incursa no artigo... --Mas isso não tem pés nem cabeça, collega. Quereria então que amanhã se dissese que este augusto tribunal querellára d'um jornalista por ter elle escripto que o monarcha é honesto, é intelligente, dos mais honestos e intelligentes que o sol cobre?... --É como acaba de dizer. --Mas isso é uma loucura!... --Um pouco mais pequena do que lhe parece. Estamos aqui para cumprir a lei, e a lei, n'este ponto, é clara. --O que faria então o collega se o jornalista tem escripto que o monarcha é destituido de intelligencia e honestidade? --O que faria? Querellava-o com fundamento no artigo... --Mas é então o caso de ser preso por ter cão... --Não é nada d'isso. É o caso da lei prevenir as duas hypotheses--a da calumnia e a da troça. Concordaram os tres em que eram de troça as palavras incriminadas, e assim fundamentaram a sua petição de querella. Nunca mais, desde então, os jornalistas se atreveram a escrever aquillo a serio. * * * * * _O sr. Teixeira d'Abreu foi hontem cumprimentado por uma commissão de Juizes, que o procurou no seu ministerio._ (Dos jornaes). Era uma commissão de juizes da provincia, que vinha apresentar os seus cumprimentos a s. ex.ª. Ageitou o laço da gravata, kaiserizou um pouco os bigodes, pousou a mão direita, levemente espalmada, sobre a pasta de marroquim, deixou cair o braço esquerdo ao longo do corpo, muito á vontade, e disse ao continuo que mandasse entrar. --Vimos apresentar a v. ex.ª as nossas homenagens, felicitando-o pela justa e merecida distincção que acaba de lhe ser feita. Muito grave, tendo ouvido aquella pequena fala como se fosse um acto de vassalagem por parte de rebeldes submettidos, pausadamente como quem mede as palavras: --Agradeço as felicitações que me dirigem, e tomo-as como partindo de toda a magistratura, aqui representada por v. exas. Ordenou que se sentassem, n'um gesto brando e attencioso, e elle proprio sentou-se, com muita solemnidade, não fosse desmanchar a _pose_ que estudára de vespera para actos officiaes. E explicou: --Desejo fazer obra util, que vinque a minha passagem pelos conselhos da corôa. O complexo de medidas que tenciono apresentar, subordinadas umas ás outras como partes integrantes d'um todo harmonico, constituirá o que eu chamo _A reforma da bola_. --A reforma... --Da bola. Não fazem ideia do que seja? Não admira; trata-se d'uma coisa inteiramente nova. Já na Universidade iniciei o meu plano reformador, embora n'outro campo, e com o melhor resultado. --Se V. ex.ª... --É simples. Em vez de chamar á lição pela caderneta, chamava pelo saco das bolas. Numero tal? Era o que dava a sorte. Assim os rapazes, receando cada qual que saisse a bola do seu numero, estudavam todos a sebenta. É engenhoso não é verdade? --Sem duvida. Qualquer que não tivesse o immenso talento de v. ex.ª consideraria que os rapazes, esperando cada qual que não saisse a bola do seu numero, nenhum pegaria na sebenta. --Pois ahi está. A bola, applicada ás coisas da justiça, espero que dará os melhores resultados. Assim, por exemplo, tratando-se da collocação de juizes e delegados... A cada comarca corresponde uma bola. Estão a ver?... Acaba o favoritismo; torna-se impossivel a perseguição ou a empenhoca. --É maravilhoso! --Pois não é?... E ao mesmo tempo é simples. Espero que a minha passagem pelos conselhos da corôa, curta ou demorada que seja, não resulte improficua para os sagrados interesses da justiça e dos seus agentes. Ergueu-se gravemente, e premiu o botão electrico. Logo appareceu o continuo, que acompanhou até á escada aquella commissão de juizes, que tinham ido apresentar os seus cumprimentos a s. ex.ª. Já na Arcada, olhando uns para os outros, como que interrogando-se: --Com que então, a bola? --Redonda e de escaravelho, levada as arrecuas até ao gabinete negro. * * * * * _O illustre deputado F. fez hontem um grande discurso, muito caloroso e muito espontaneo, sendo no final cumprimentado por quasi todos os seus collegas._ (Dos jornaes). Passou por alli e entrou. Era um espectaculo novo para elle, uma sessão parlamentar. Vinha a Lisboa, muitas vezes, estando as Camaras abertas, mas em geral tinha muito que fazer, e não podia demorar-se por fóra de casa. O cavallo engorda só com a vista do dono, e elle sabia bem como o seu emmagrecia, isto é, como lhe corriam mal os negocios quando se ausentava por certo tempo. Mas uma vez não são vezes e elle poderia fazer á sua curiosidade o sacrificio das suas commodidades. Em vez de partir no comboio da tarde, que era rapido, partiria no comboio da noite, muito ronceiro, parando em todas as estações, e só chegando á sua terra a uma hora bastante incommoda, de madrugada. Entrou, e dirigindo-se ao primeiro porteiro que viu, entregou-lhe um cartão de visita para o deputado do seu circulo, pedindo uma entrada, para a galeria do presidente. Tinham-lhe dito que era d'alli que melhor poderia disfructar o espectaculo. S. ex.ª mandou o bilhete de admissão, e pedia desculpa de não vir, porque estava conversando com o ministro a respeito d'um melhoramento que tinha pedido lá para o circulo, a ponte de alvenaria sobre a ribeira, que no inverno, chovendo muito, estorvava a passagem de carros. Acabava de ler-se a acta, quando elle se installou no seu logar. Um deputado já velho, com oculos, mandou para a mesa uns papeis, requerendo que fossem publicados no _Diario_, e um dos ministros declarou-se habilitado a responder á interpelação que lhe tinha annunciado, na vespera, um illustre deputado da maioria. Pareceu-lhe aquillo pouco interessante, e já quasi se arrependia de ter alli ido, quando o presidente, não havendo mais quem pedisse a palavra, declarou que se ia entrar na ordem do dia. E logo a seguir: --Tem a palavra o sr.... Era o seu deputado que tinha a palavra. Não pensou mais em ir-se embora, está bem de ver, e como o homem tivesse a palavra forte e o gesto largo, prendeu-lhe a attenção desde o começo. A Camara estava um pouco distraida, cada qual cochichando com o seu visinho, mas elle tinha a impressão que o discurso era bem alinhavado, talvez um pouco vulgar nos conceitos, mas bastante correcto na forma, e deduzido com certa logica e habilidade. Quando faltavam apenas cinco minutos para se encerrar a sessão, o presidente, interrompendo o orador, perguntou-lhe se desejaria ficar com a palavra reservada. --Vou concluir, sr. presidente; os cinco minutos de que ainda disponho, chegam muito bem para o que me falta dizer. Quando acabou, muitos deputados foram cumprimental-o, alguns apertando-lhe a mão com muita força e outros abraçando-o com enternecimento. Esperou-o ao pé do elevador, e mal o viu estendeu-lhe as duas mãos: --Muito bem! muito bem! Elle então explicou, modestamente, que não contava usar da palavra, n'aquella sessão, e que por isso não se tinha preparado. --Foi o que acudiu na ocasião; para a outra vez será melhor. Já fóra do edificio das Côrtes, atravessando o largo, um rapaz de blusa azul, com uns papeis nas mãos, approximou-se d'elles. --Que deseja? --São as provas do discurso; v. ex.ª manda-as á typographia, ou quer que vá buscal-as? * * * * * _A continuarem as coisas assim, aos republicanos bastará um pouco de audacia para fazerem a Republica._ (Dos jornaes monarchicos). Era um pego largo, pouco fundo, com moitas de juncos pelas barreiras que se esboroavam a cada instante. De cada vez que caia um pequeno torrão, acudiam do fundo peixes em cardume, alguns doirados, outros de prata. Andavam á roda do pego uns homens graves, sem instrumentos de pesca, varando os peixes com olhares de fogo--olhares de guloso ou de avaro. Bem se importavam os peixes que elles os olhassem assim, com uma insolencia quasi dolorosa, se lá da camada funda em que andavam apercebiam-se do minimo gesto que elles fizessem, estendendo a mão, e logo mergulhavam mais, pondo-se inteiramente a salvo. Alli perto, debaixo d'uma arvore frondosa, andavam creanças a brincar. Como as chamassem, n'um prompto, correram para junto daquelles homens graves que andavam á roda do pego, devorando com os olhos aquelles peixes de oiro e prata, que se viam lá em baixo, na transparencia da agua, e de quando em quando vindo á superficie, quando das barreiras caia um pequeno torrão, que os atraía em vez de os espantar. --Ganha um vintem cada um, se atirarem para o pego muita poeira e muita lama. Os pequenos olharam uns para os outros, como que interrogando-se, e logo desataram a correr, por alli fóra, rindo ás gargalhadas, deixando estupefactos aquelles homens graves que estavam havia muito namorando os peixes, varando-os com olhares de fogo--olhares de guloso ou de avaro. Já a distancia, para além da arvore debaixo da qual ha pouco brincavam, estacaram todos ao mesmo tempo, como se obedecessem a uma voz de commando. O mais ladino, apontando na direcção do pego, com um grande ar de superioridade desdenhosa: --Queriam pescar nas aguas turvas, os gajos... E todos riram á gargalhada. * * * * * _Toda tu és formosa, amiga minha, e em ti não ha mancha._ (Cantico dos Canticos). Que os seus labios toquem os meus labios, dando-me o osculo da sua bocca, e as minhas mãos toquem os seus peitos, fragrantes como os balsamos mais preciosos... Bem me importa que ella seja trigueira, se foi o sol que lhe mudou a côr beijando-a doidamente n'um dia em que ella andava pelas encostas, apascentando os gados, esbelta como a açucena... Hei de fundir os meus desejos loucos no fogo dos seus olhos negros, para afogar n'uma gargalheira d'ouro o seu pescoço de rola. Ella é a flor do campo, o lirio immaculado dos valles, olorosa como o nardo, rescendendo como um ramalhete de açafrão que alguem tivesse collocado entre as suas pomas virgens, appetitosas como um cacho de Chypre, de bagos humidos e frescos. Não a acordem no seu thalamo de flores, que ella assim é linda como a Sulamita, cujo coração vela emquanto ella dorme, e na volupia do seu sonho, perfumado de todas as essencias do Libano, percebe a voz do seu amado, que lhe bate á porta, a escorrer-lhe do cabello em anneis todo o orvalho da noite. Os seus labios são como uma fita de escarlate, mal cobrindo os seus dentes de marfim, e as maçãs do seu rosto, como romã partida, accendem fome de beijos nos proprios cedros do Libano. Que airosos são os seus passos, e que harmonioso é o seu talhe, similhante ás palmeiras do deserto, em torno das quaes esvoaçam pombas nitentes como frocos de espuma, que o vento erguesse do mar quando as ondas saltam como cabritos do monte, procurando as folhas verdes! Não lhe perturbeis o somno, linda como é adormecida, o leito em que repousa tendo o olor de um canteiro de plantas aromaticas, onde floresce o nardo e o açafrão, o cinamomo e a mirrha. Bem me importa que ella seja trigueira, se foi o sol que lhe queimou as faces, beijando-a doidamente, n'um dia em que a apanhou no campo, esbelta como as açucenas... * * * * * _Ci git Piron, qui fut vien!..._ Accumulava com o emprego burocratico... de não fazer nada, o encargo social... de dizer mal de todos e de tudo. Assim o tempo não lhe chegava para ir aqui e além, apparecendo em toda a parte, informando-se da ultima novidade, e commentando o ultimo escandalo. Estava convencido de que nascera com immensas aptidões, um enorme talento de escriptor, um profundo genio d'artista, e que tudo isso lhe fôra roubado, ainda no berço, uma noite, estava elle a dormir e a sonhar--um lindo sonho côr de rosa, que punha estremecimentos rithmicos nas suas carninhas de leite. Teria sido um philosopho como Littré, um esculptor como Miguel Angelo, um historiador como Mommsen, um critico como Taine, um poeta como Victor Hugo, um pintor como Rubens, um romancista como Balzac, se lhe não tivessem roubado em pequeno as immensas aptidões com que o dotára a Natureza. Quando se punha a escrever, emperrava-lhe a penna ao cabo de poucas linhas, e não havia maneira, por mais que torturasse os miolos, de lançar ao papel uma ideia. Quando se punha a fazer pintura, escorregava-lhe o pincel borrando a lona, e succedia então que tendo feito o desenho para uma rosa, lhe saia inevitavelmente uma couve-flôr. Uma unica vez conseguiu levar a cabo uma esculptura; mas succedeu que tendo modelado no barro um cupidinho alado, quando o passou ao gesso se encontrou com um kanguru. Vinham-lhe então raivas tremendas, um odio enorme aos que tinham um nome, aos que faziam livros ou faziam estatuas, affirmando de qualquer forma uma competencia superior--o talento, que não é commum, ou o genio que ainda é mais raro. Era a impotencia gerando a inveja; era a inveja transmudando-se em odio. Um dia morreu e, como não tivesse amigos, quasi ninguem o acompanhou ao cemiterio. Quando iam a descel-o á cova na sua mortalha de pobre, um bohemio que alli chegou, informando-se de quem era, disse: --Deviam fazer-lhe a cova redonda... A ultima morada d'um nulo, deve ter a fórma d'um zero. * * * * * _S. M. tem recebido milhares de cartas, bilhetes e telegrammas, felicitando-o pelo mallogro do projectado movimento revolucionario._ (Dos jornaes). Estendeu o braço e premiu o botão electrico, que ficava um pouco ao lado da secretaria. --Pareceu-me ouvir chamar... --Chamei, sim. Vieram cartas, bilhetes, telegrammas, não é verdade? --E todos elles... --Todos elles dizem a mesma coisa. Até parece que foram expedidos pela mesma pessoa ou então... --Ou então foram redigidos segundo uma formula combinada, não é isso? --Exactamente, segundo uma formula combinada. --E já os colleccionaste, conforme te disse? --De certo. Á medida que chegavam ia... --Está bem. Traze aquelles que sabes e mette-os além, n'aquella caixa. --N'aquella caixa? --Sim, n'aquella caixa. Vou lel-os de monoculo. Eram algumas duzias de telegrammas, vindos d'aqui e d'além, uns do norte outros do sul, todos com muitas felicitações, muitos protestos de respeito, de estima e dedicação. Parecia, na verdade, que tinham sido redigidos segundo uma formula combinada, tão eguaes eram os seus dizeres. --Prompto, já lá estão. --Olha, põe-lhes em cima aquelle folheteco que está além, n'aquelle _étagère_, de capa verde... --Mas é a Carta... --Pois já se vê que é. Anda, põe-a lá, e raspa-te. D'ahi por um quarto d'hora, pouco mais ou menos, sentado á secretaria, na descuidosa negligencia d'um nababo feliz, a mordicar um charuto fortemente aromatico, estendeu o braço e premiu o botão electrico. --Não sei se é a mim que... --É com o que está de serviço ao bispote. --Então sou eu. --Despeja aquella caixa. * * * * * _A alma das creanças que morrem sem baptismo não entra no céo._ (Crendices populares). No dia seguinte era o baptizado. Havia mais d'uma hora que estava a devoral-o com os olhos, debruçada sobre a canastrinha de verga em que elle dormia, envolto em rendas, muito harmonioso na minusculidade das suas formas--como se fosse uma esculpturazinha de Donatello, copiada de frei Angelico, em um vago presentimento da Renascença. Ella propria o enfaixaria, subtilizando os dedos leves, ao calçar-lhe os sapatinhos de seda, não fosse magoar-lhe as carninhas tenras, d'uma rijeza de fructa verde e sadia. Não iria com elle á Egreja, fraca ainda como se sentia; mas já recommendára á parteira que o não entregasse a ninguem, nem mesmo ao padre, receosa de que mãos pesadas tomassem aquelle fardozinho ligeiro, que era a melhor fibra do seu coração, animada do mais puro effluvio da sua alma. Sem saber como, entrou a philosophar sobre o baptizado, o santo sacramento do baptismo como ensinam os livros sagrados. Seria então um peccador, o seu filhinho. Quantas creanças por esse mundo além, morrem sem baptismo, quasi ao nascer, pequeninos botões de rosa, que não chegam a abrir, porque a aragem soprou mais forte e os lançou por terra!... O espirito d'estes anjinhos irá então soffrer as torturas do purgatorio, espiando uma culpa que não tinham, purificando-se de um mal que não fizeram? Se o seu filho morresse perderia a crença em Deus, e se pudesse acreditar que a alma das creanças, mortas antes de baptizadas não ascende directa e immediatamente á vista do Altissimo, radiosa como um olhar da Virgem Mãe, negaria a justiça divina, muito peor que a dos homens... Mas então o santo sacramento do baptismo nada mais será que uma mentira?... ... Envolto em rendas, a dormir na sua canastrinha, o petiz estremeceu, e ella ficou suspensa na corrente dos seus pensamentos, enlevada na contemplação d'aquella esculptura minuscula, de formas harmoniosas, que dir-se-ia modelada por Donatello, a copiar Frei Angelico, n'um vago presentimento da Renascença. No dia seguinte lá foi o petiz a baptizar. * * * * * _Um rapaz da Beira, allegando que o pae é pobre, furou a greve, pelo que foi espancado á porta ferrea._ (Dos jornaes). Nunca fôra á escola. Os filhos da gente pobre não teem o direito de ser creanças, e os paes d'elle eram pobresinhos. Aos sete annos já era um valor, em linguagem de economistas. Fazia dó ver o garotito queimando os musculos tenrinhos n'um trabalho com que não podia. Mas os paes d'elle eram tão pobres!... Quando entrou nas sortes, já era orphão de mãe, e como tirasse um numero alto, o mais alto que havia na urna, livrou-se de ir servir o rei, deixando o seu velhote quasi cego e inteiramente tropego a viver da caridade publica. Por aquelles sitios não havia trabalhador como elle, sempre a lidar com a terra, de semana trabalhando para os outros, nos domingos trabalhando para si. Não bebia nem fumava, todos os seus ganhos eram para sustentar a casa, onde não faltava nada, a não ser a alegria. Como não ha-de ser triste o lar onde não explude um riso de mulher, onde não ha petizes que ponham tudo fóra dos seus logares, n'uma adoravel desenvoltura... Casou, e pareceu-lhe que tinha ido buscar á Egreja mais força, mais energia, mais saude. Quando lhe nasceu o primeiro filho, que foi tambem o ultimo, já o pae tinha acabado de morrer, pobre velho cego e tropego, que um delgado fio prendia á vida, desde que ficára viuvo. --Este não ha-de ser para ahi um animal como o pae, dizia apontando o filho. Aos seis annos mandou-o para a escola, e como o rapaz fosse intelligente e applicado, com muita facilidade aprendeu a ler, excedendo todos os seus condiscipulos. Ficou distincto na instrucção primaria, e como fosse notavel a sua queda para os estudos, matriculou-se no lyceu. Vencidos os preparatorios lá foi o pae leval-o a Coimbra, inchado como a rã da fabula, já a remirar-se no seu doutor. --Evite as occasiões; mas quando se encontrar n'ellas, não faça má figura. Foi esta a unica recommendação que lhe fez, de volta á sua aldeia, tendo-o installado na casa d'um conhecido com ordem de lhe abonarem o que fosse preciso. Outro dia á saida da missa, no adro da Egreja, falou-se de coisas graves em Coimbra. Vinha nos papeis... --Que foi? Um dos que estavam no grupo, explicou: --Houve lá o diabo. Sete estudantes foram expulsos, e os outros, por camaradagem, declararam-se em greve. Mas alguns, diz o jornal, abandonaram os companheiros e foram ás aulas. O seu rapaz... --O meu rapaz não foi ás aulas com certeza. Tres dias depois, como o governo mandasse fechar as escolas, appareceu-lhe o rapaz em casa, sem ter avisado como era costume. --Ouve lá, quantos romperam a greve? --Poucos, talvez uns quatro ou cinco. --Mas tu... --Considerei os immensos sacrificios que tem feito para me dar uma posição, e para lhe poupar... --Sim, para me poupares alguns dias de trabalho honrado, não achaste nada melhor que praticar a má acção de abandonar os collegas, victimas da injustiça. Nunca o tinham mandado á escola, mas abençoava agora a sua ignorancia, severo nos seus principios d'honra, intransigente na sua lealdade de camponio para com os seus irmãos da gleba, crendo na simplicidade do seu espirito que o saber deforma o caracter. * * * * * _Deus fez as almas aos pares._ (Da sabedoria das nações). Tinham-se encontrado alli no ponto onde se bifurca a estrada. O sol descahia ao longe, por traz dos montes, n'um esbraseamento de fogo amortecido, e na charneca immensa havia tanta paz e doçura, como n'uma cathedral augusta a horas mortas da noite. Cançados, cheios de pó, via-se bem que tinham feito uma longa jornada por caminhos difficeis, rasgando o fato e as carnes nas silvas e pitas dos vallados, e magoando os pés descalços nas veredas e atalhos invios. O sol descahia ao longe, por traz dos montes, e não se avistava um casal na extensão quasi infinita da charneca, silenciosa como uma cathedral augusta a horas mortas da noite. Dir-se-ia que se procuravam sem nunca se terem visto, o acaso tendo-os reunido alli, no ponto onde se bifurca a estrada, cançados, cheios de pó, o fato rasgado, e as carnes feridas, como se tivessem atravessado um bosque selvagem, sob a ameaça d'um perigo. Pois que a sorte os reunia... --Seria bom ficar aqui, ficando ambos, torturada como venho de muito longe, sem um braço amigo a que me encoste, sem um coração amigo que por mim palpite!... --Juntos faremos o resto do caminho, querendo-nos muito, amando-nos muito, cada qual rivalizando em dar ao outro a maior porção de sonho, a maior somma de ventura!... Por sobre a charneca immensa pairava uma paz bemdita, e a lua muito pallida, como se fora um pingo de leite, deixára cahir uma luz frouxa e baça--tal uma lampada mortiça no silencio d'uma cathedral augusta. Era dia de finados. Desde que a mulher lhe morrera, havia tres mezes, nem um só dia passava sem que elle fosse ao cemiterio, rezar sobre a sua sepultura, offertar-lhe flores orvalhadas de lagrimas. Tinham-se amado tanto! Por certo não se morre de felicidade, visto que elle não tinha morrido no dia em que a recebera sua esposa legitima á face da santa madre egreja, e tambem não se morre de dôr, visto elle não ter morrido no dia em que lhe cerrou os olhos, colando-lhe os olhos ás palpebras, n'um derradeiro beijo. Era dia de finados, e como não quizesse dar em espectaculo a sua dôr, o cemiterio cheio de visitantes, deixou que toda a gente saisse, já quasi ao pôr do sol, para elle então cumprir a dolorosa missão que se impuzera de ir todos os dias retalhar o coração, ajoelhado sobre a pedra que cobria metade da sua alma, que era toda a sua felicidade. Ajoelhou, chorou, rezou e quando já tinha os olhos secos de muito haver chorado, e já não tinha o coração dorido de tanto que a dôr o tinha feito soffrer, espalhando pela sepultura o seu braçado de flores, as mãos postas, o chapeu debaixo do braço, os olhos erguidos ao alto, anniquilado como se caira sobre elle a maldição de Deus, dirigiu-se para a porta do cemiterio. A poucos passos andados, cruza com elle um rapaz alto, vestido de negro, com um grande ramo de flores na mão. Parou, e sem quasi se aperceber da sua curiosidade, poz-se a seguil-o com os olhos. O outro foi seguindo, o andar estugado, caminhando a direito sem hesitar. Como elle fizera havia instantes, sobre a mesma sepultura, ajoelhou, chorou, rezou e quando já não tinha mais lagrimas para chorar, automaticamente, como se na pedra da sepultura tivesse deixado colada a alma, dirigiu-se para a porta do cemiterio. --Devia tel-a amado muito, para soffrer assim! --Se amei! Daria a vida para a resuscitar, ou para ir apodrecer ao lado d'ella, debaixo da mesma pedra. --Era então sua mulher!.. --Era simplesmente minha amante, porque tivera a infelicidade de casar antes de nos conhecermos. Havia tres mezes que a mulher morrera, que nem um só dia passava sem que elle fosse rezar sobre a sua sepultura, offertando-lhe flôres orvalhadas de lagrimas. * * * * * _Não ha bella sem senão._ Ás vezes, quando a beijava, sentia-lhe as faces quentes dos beijos que outro lhe dera. Parecia-lhe então absurdo, quasi inverosimil que a Natureza fizesse tão linda uma creatura tão perfida.--Era como se alguem mettesse lama das ruas n'uma urna de alabastro. Tão linda! Punha-se então a fixal-a muito, muito--como se, debruçado sobre um abysmo, quizesse sondar um mysterio. Pareciam feitos de treva os seus olhos luminosos! Brincava um sorriso leve nos seus labios sensuaes, em que havia o perfume intenso das violetas e o sabor casto das rosas. Tão linda! Não se acredita que haja vulcões na lua, serena e pallida, ás vezes escondendo-se por traz das nuvens, como se fosse uma mulher nua que percebesse no espaço olhos brejeiros a fital-a. Tão linda! Manchava-lhe o pescoço um fio d'ouro muito delgado suspendendo um Christo de marfim perfeito como se o fizera Donatello, vago e poetico como se o desenhára Frei Angelico. Tão linda! Mas parecia-lhe, quando a beijava, que ella tinha as faces quentes dos beijos que outro lhe dera.--As plantas venenosas nunca deviam ser bellas, attrahindo para matar--nem as mulheres bellas deviam ser perfidas, como se um tigre habitasse no calice branco d'um lirio, ou uma cobra se escondesse entre as folhas d'uma rosa! Tão linda! * * * * * _Souvent femme varie_ _Bien fou qui s'y fie..._ --Tontinho! --Imaginas, então, que eu poderia viver sem ti, privada dos teus beijos, sem a loucura das tuas caricias! Arranca a planta pela raiz, e diz-lhe depois que floresça e fructifique, que erga os braços onde não circula a seiva, offerecendo aos reverberos d'um sol quente e luminoso as suas folhas mirradas, d'um amarello chlorotico, que precede a morte decisiva... --Tontinho! --Já me afizera ás fatalidades do meu destino, e habituada a olhar nas trevas, a cerração da minha noite parecia-me ás vezes que tinha vagos lampejos d'aurora, as incertas claridades d'um crepusculo. Acreditei nas tuas palavras, e logo senti quente o sangue que se me gelava nas veias, e o coração inquieto, na desenvoltura d'um passaro que apanha a gaiola aberta, pulsar com força desusada, no alvoroço d'uma alegria doida. --Tontinho! --Se te fosses, havias de levar-me comtigo, ou havias de matar-me primeiro, desembaraçando-me d'uma vida inutil, tragica na sua dôr recalcada, e ao mesmo tempo burlesca na sua dedicação humilde, nem espirrando como a lama quando a pisam na rua. --Tontinho! Dentro do caramanchão, ao fundo do jardim, a luz branca da lua era baça, como a flor da magnolia, e discreta como uma tia velha, ou uma _bonne_ suissa. Mal se ouvia o ramalhar das folhas, como um cicio brando e perfumado, quando a brisa passava, na leveza imperceptivel d'uma borboleta branca, que fosse a alma errante d'uma creancinha tisica. Colleante, os braços nús, humedecendo os labios sêccos da febre em que toda ella ardia, mergulhou nos seus olhos castanhos os seus grandes olhos negros, e foi como se aquellas almas se fundissem, enlaçados aquelles corpos no contacto mais affectuoso e mais intimo. Não teriam ouvido o ramalhar das folhas, ainda que por alli tivesse passado algum cyclone devastador, tudo arrasando no seu caminho... Tontinhos! Mezes volvidos, tendo regressado sem se fazer annunciar, mal saccudido o pó da viagem, sentiu necessidade de ir reviver todas as venturas passadas no logar onde as fruira. Era uma noite de luar escasso, e tão froixamente passava a brisa, que as folhas não boliam nas arvores, e uma borboleta, que alli abrisse as azas, faria um grande ruido. Approximou-se do caramanchão, pé ante pé, como se tivesse medo que acordassem todos aquelles vegetaes adormecidos, e entrassem a gritar por soccorro, tomando-o por um ladrão ou um assassino. Lá dentro no caramanchão, a luz da lua era baça como a flor da magnolia, e discreta como uma velha tia, ou uma _bonne_ suissa. Pareceu-lhe que alguem falava, muito perto d'alli, e como se approximasse mais e mais, cautelosamente, quasi sem pisar o chão, não fosse denuncial-o o ruido d'alguma folha sêcca, subitamente, como se fossem gotas de chumbo fundente que lhe instillassem nos ouvidos: --Imaginas então que eu poderia viver sem ti, privada dos teus beijos, sem a loucura das tuas caricias! Se te fosses, havias de levar-me comtigo, ou havias de matar-me primeiro, desembaraçando-me d'uma vida inutil. --Tontinho! Quando saiu, a correr como um ladrão perseguido, ou como um doido que se escapa, nem pensou no escandalo que causaria a sua presença alli já noite velha, se o jardineiro o visse. E era tão grande a sua perturbação, quasi a raiar pela loucura, que parou junto á porta, deante d'um molho de cactos, a insultal-os, parecendo-lhe que eram creaturas maldosas, chasqueando do seu ludibrio, em grandes risadas vermelhas. Coitadinho! * * * * * _Os milagres não se discutem--ou se negam ou se acceitam._ Chegou á porta da Egreja no momento preciso em que o sacristão, com o chapeo debaixo do braço, se preparava para a fechar. Levava na mão uma almotolia d'azeite, obra d'uma canada, e explicou que fizera aquella promessa á senhora Santa Luzia, da sua particular devoção, no anno passado, quando estivera mal dos olhos. Deixára um homem fazendo a sua obrigação, pagando-lhe meio dia, e, como a jornada era comprida, não pudera chegar mais cedo. Seria um grande transtorno ter de voltar, e só muito tarde poderia fazel-o, porque o patrão já lhe dissera que iria para as herdades do Sado, e era natural que por lá se conservasse até ao fim da temporada. De resto, poucos minutos lhe chegavam para cumprir a sua promessa, e como ha viver e morrer, não queria ser chamado á presença do Senhor sem se pôr em contas direitas com os santinhos. Ainda no domingo passado tinha ido levar um alqueire de trigo a Santo Antonio; por causa de um atalho de cabras que se tinha sumido, e que elle receava que fosse parar á bocca dos lobos. Felizmente que nem só uma cabeça se perdera, e isso fôra sem duvida um milagre do santo, que os lobos, na charneca onde andam, são tantos como as mães. Tanta piedade commoveu o sacristão, aliás d'uma crença muito precaria, como quasi toda a gente que vive muito no gremio da Egreja. Dentro em nada era sol posto, e elle tinha de ir á villa comprar mantimentos e dar informações da mulher, havia duas semanas de cama. Disse-lhe que fosse rezar as suas orações no altar da Santa, e que despejasse a almotolia no potezinho de lata, com tampa de madeira, que estava na sacristia, logo á entrada, lado direito, e que servia só para recolher o azeite das promessas, geralmente improprio para as comidas. Que em saindo fechasse bem a porta, e entregasse a chave á rapariguinha que lá tinha em casa, para acompanhar a doente, quando elle precisava sair. No dia seguinte, pela manhã, quando foi preparar a egreja para a missa do domingo, notou que a Senhora Santa Luzia não tinha o cordão e os brincos que lhe tinha offerecido um brasileiro, tambem doente dos olhos--o cordão por ella o ter livrado do mal, e os brincos por o ter livrado dos especialistas. --Foi aquelle grandissimo ladrão! Posta a policia em campo, d'ahi a pouco estava preso o indigitado gatuno, que o sacristão reconheceu mal o viu. Não negou estar na posse dos objectos que se dizia terem sido roubados, mas jurou pela salvação da sua alma que tal roubo não commettêra. E que só falaria na presença do sr. prior, que era um homem de muita santidade, e d'uma grande sabedoria. Sem saber do que se tratava, acompanhado do official de diligencias, foi o prior a casa do juiz. Então o homemzinho explicou:--A Senhora, mal eu acabei as minhas rezas, entrou a olhar-me com muita compaixão. Contei-lhe todas as miserias da minha vida, e disse-lhe como aquelle azeite que alli levava para a sua lampada, fôra tirado á bocca dos meus filhos. Quando acabei, subi os tres degraus do altar para lhe beijar a barra do vestido. Então a Senhora, tirando o cordão que tinha ao pescoço, e os brincos que tinha ás orelhas, entregou-m'os com as suas bemditas mãos, dizendo que a ella não lhe faziam falta aquellas coisas, e que eu podia, com o dinheiro que ellas me rendessem, comprar o pão e o fato para os meus filhos. Observei-lhe que poderiam tomar-me por ladrão, vendo-me na posse de taes objectos, e isso seria a minha desgraça e a minha vergonha. Vae então a Senhora respondeu-me: --Se duvidarem da tua innocencia, invoca a autoridade do prior. Elle é um crente sincero, e quando toda a gente negasse o milagre, elle o affirmaria como possivel. Na verdade o prior affirmou a possibilidade do milagre, e como não fosse possivel demonstrar que elle não se realizára, foi mandado o homem em paz, com os brincos e o cordão. Dizia então o sacrista, vendo partir o penitente: --Grandissimo ladrão! E olhando compassivamente o prior, n'um murmurio, por entre os dentes: --Reverendissimo burro! * * * * * _Saudade! gôsto amargo de infelizes..._ (Garrett). --Fizeste bem em vir... Cançou de dizer estas palavras, e espalmando a mão no peito, ainda não havia muito opulento e agora mirrado, absorveu o ar com muita força, a bocca largamente aberta, como se lhe parára o coração no supremo esforço de fazer girar mais uma onda, talvez a ultima, de sangue arterializado. --Se soubesses como eu soffro... Brancos e delgados, muito delgados e muito brancos, os seus labios eram duas folhas sêccas, muito ricas de nervuras, frias como a neve dos polos. Eram botões de fogo, n'outro tempo, os seus beijos, que só por milagre não queimavam. --Havias de querer-me muito, se soubesses como eu soffro... Via-se bem que soffria immenso, a febre a queimar-lhe os pulmões, um suor frio e viscoso a babar-lhe a pelle, e um torniquete de ferro a apertar-lhe o tronco, inexoravelmente, como n'um carcere da Inquisição. --Havias de querer-me muito se soubesses como eu soffro; mas, havias de querer-me ainda mais, se soubesses como eu te amo... Na magreza do seu rosto, d'uma pallidez cadaverica, os seus grandes olhos negros, muito encovados, guardavam tudo o que lhe restava de vida, um sopro apenas de vida, que era um bafejo da morte. Parecia-me ás vezes, quando se fechavam, que não tornariam a abrir-se, e punha-me então a espreitar, na translucidez das suas palpebras, o momento preciso em que se apagassem. --Custa tanto morrer, sabes?... Sentou-se no leito, a muito custo, e levando as mãos á cabeça, sem dizer nada, poz-se a desmanchar o cabello. Um ou outro fio de prata, muito raro, manchava as suas tranças d'ebano, que lhe desciam quasi aos calcanhares quando as deixava cahir pelas costas. --Vê como se envelhece depressa... Fez dois mólhos do cabello, e tomando um em cada mão, emmoldurou com elles o rosto, muito magro, d'uma pallidez cadaverica. --Lembras-te?... Pelos seus labios brancos e delgados, muito delgados e muito brancos, perpassou um sorriso leve de creança adormecida, e nos seus olhos negros, muito encovados, brilhou mais intensa aquella lucilação, que era tudo o que lhe restava de vida--um sopro apenas de vida, que era um bafejo da morte... --Doidos que nós eramos!.. Revivi n'um minuto todo o poema do nosso amor, as loucuras d'um amor prohibido, a que não tinha faltado a dôr cruciante das paixões extremas, para dar ao goso uma intensidade quasi infinita. Instinctivamente, como n'outro tempo, collei os meus labios aos seus, e nem percebi que estavam gelados, folhas sêccas muito ricas de nervuras, frias como a neve dos polos. Durou o sonho toda a eternidade d'um segundo, talvez menos ainda. Mal acordei, attentando na magreza do seu rosto, d'uma pallidez cadaverica; vendo fechados os seus grandes olhos negros, já sem brilho na translucidez das palpebras enrugadas, tive a impressão de me encontrar dentro d'um jazigo, para violar uma morta. --- Provided by LoyalBooks.com ---