GUERRA JUNQUEIRO O MELRO (FRAGMENTO) DAVID CORAZZI, EDITOR EMPREZA HORAS ROMANTICAS 40, RUA DA ATALAYA, 52 LISBOA--1879 O MELRO _Reservados todos os direitos de reproducção_ GUERRA JUNQUEIRO O MELRO (FRAGMENTO) DAVID CORAZZI, EDITOR EMPREZA HORAS ROMANTICAS 40, RUA DA ATALAYA, 52 LISBOA--1879 _Todos os direitos de propriedade d'esta obra no Imperio do Brazil pertencem ao Ill.^mo e Ex.^mo Sr. Commendador Bibiano Antonio de Moraes e Almeida, subdito brazileiro_. Ao meu amigo BERNARDO PINDELLA O MELRO O melro, eu conheci-o: Era negro, vibrante, luzidio, Madrugador, jovial; Logo de manhã cedo Começava a soltar d'entre o arvoredo Verdadeiras risadas de cristal. E assim que o padre cura abria a porta Que dá para o passal, Repicando umas finas ironias, O melro d'entre a horta Dizia-lhe: «Bons dias!» E o velho padre cura Não gostava d'aquellas cortezias. O cura era um velhote conservado Malicioso, alegre, prasenteiro; Não tinha pombas brancas no telhado, Nem rosas no canteiro: Andava ás lebres pelo monte, a pé, Livre de rheumatismos, Graças a Deos, e graças a Nóe. O melro despresava os exorcismos Que o padre lhe dizia: Cantava, assobiava alegremente; Até que ultimamente O velho disse um dia: «Nada, já não tem geito! este ladrão Dá cabo dos trigaes! Qual seria a rasão Porque Deos fez os melros e os pardaes?!» E o melro no entretanto, Honesto como um santo, Mal vinha no oriente A madrugada clara Já elle andava jovial, inquieto, Comendo alegremente, honradamente, Todos os parasitas da seara Desde a formiga ao mais pequeno insecto. E apesar d'isto o rude proletario, O bom trabalhador, Nunca exigiu augmento de salario. Que grande tolo o padre confessor! Foi para a eira o trigo; E armando uns espantalhos Disse o abbade comsigo: «Acabaram-se as penas e os trabalhos.» Mas logo de manhã, maldito espanto! O abbade, inda na cama, Ouviu do melro o costumado canto; Ficou ardendo em chamma; Pega na caçadeira Levanta-se d'um salto, E vê o melro a assobiar na eira Em cima do seu velho chapéu alto! Chegou a coisa a termo Que o bom do padre cura andava enfermo, Não fallava nem ria, Minado por tão intimo desgosto; E o vermelho oleoso do seu rosto Tornava-se amarello dia a dia. E foi tal a paixão, a desventura, (Muito embora o leitor não me acredite) Que o bom do padre cura Perdera... o appetite! * * * * * Andando no quintal um certo dia Lendo em voz alta o _Velho Testamento_ Enxergou por acaso (que alegria! Que ditoso momento!) Um ninho com seis melros escondido Entre uma carvalheira. E ao vel-os exclamou enfurecido: «A mãe comeu o fructo prohibido; Esse fructo era a minha sementeira: Era o pão, e era o milho; Transmittiu-se o peccado. E, se a mãe não pagou, que pague o filho. É doutrina da Egreja. Estou vingado!» E engaiolando os pobres passaritos Soltava exclamações: «É uma praga. Maldictos! Dão-me cabo de tudo estes ladrões! Raios os partam! andae lá que emfim...» E deixando a gaiola pendurada Continuou a ler o seu latim Fungando uma pitada. * * * * * Vinha tombando a noite silenciosa; E caía por sobre a naturesa Uma serena paz religiosa, Uma bella tristesa Harmonica, viril, indefinida. A luz crepuscular Infiltra-nos na alma dolorida Um mysticismo heroico e salutar. As arvores, de luz inda doiradas, Sobre os montes longiquos, solitarios, Tinham tomado as fórmas rendilhadas Das plantas dos herbarios. Recolhiam-se a casa os lavradores. Dormiam virginaes as coisas mansas: Os rebanhos e as flores, As aves e as creanças. Ia subindo a escada o velho abbade; A sua negra, athletica figura Destacava na frouxa claridade, Como uma nodoa escura. E introduzindo a chave no portal Murmurou entre dentes: «Tal e qual... tal e qual!... Guisados com arroz são excellentes.» * * * * * Nasceu a lua. As folhas dos arbustos Tinham o brilho meigo, avelludado Do sorriso dos martyres, dos justos. Um effluvio dormente e perfumado Embebedava as seivas luxuriantes. Todas as forças vivas da materia Murmuravam dialogos gigantes Pela amplidão etherea. São precisos silencios virginaes, Disposições sympathicas, nervosas, Para ouvir estas fallas silenciosas Dos mudos vegetaes. As orvalhadas, frescas espessuras Presentiam-se quasi a germinar. Desmaiavam-se as candidas verduras Nos magnetismos brancos do luar. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . * * * * * E n'isto o melro foi direito ao ninho. Para o agasalhar andou buscando Umas pennugens doces como arminho, Um feltrosito assetinado e brando. Chegou lá, e viu tudo. Partiu como uma frecha; e louco e mudo Correu por todo o matagal; em vão! Mas eis que solta de repente um grito Indo encontrar os filhos na prisão. «Quem vos metteu aqui?!» O mais velhito Todo tremente, murmurou então: «Foi aquelle homem negro.--Quando veio Chamei, chamei... Andavas tu na horta... Ai que susto, que susto! Elle é tão feio!... Tive-lhe tanto medo!... Abre esta porta, E esconde-nos debaixo da tua aza! Olha, já vão florindo as assucenas; Vamos a construir a nossa casa N'um bonito logar... Ai! quem me dera, minha mãe, ter pennas Para vôar, vôar!» E o melro hallucinado Clamou: «Senhor! Senhor! É por ventura crime ou é peccado Que eu tenha muito amor A estes innocentes?! Ó natureza, ó Deos, como consentes Que me roubem assim os meus filhinhos, Os filhos que eu criei! Quanta dor, quanto amor, quantos carinhos, Quanta noite perdida Nem eu sei... E tudo, tudo em vão! Filhos da minha vida! Filhos do coração!!... Não bastaria a natureza inteira, Não bastaria o ceo para voardes, E prendem-vos assim d'esta maneira!... Covardes! A luz, a luz, o movimento insano Eis o aguilhão, a fé que nos abraza... Encarcerar a aza É encarcerar o pensamento humano. A culpa tive-a eu! quasi á noitinha Parti, deixei-os sós... A culpa tive-a eu, a culpa é minha, De mais ninguem!... Que atroz! E eu devia sabel-o! Eu tinha obrigação de adevinhar... Remorso eterno! eterno pesadello!... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Falta-me a luz e o ar!... Oh, quem me dera Ser abutre ou ser féra Para partir o carcere maldicto!... E como a noite é limpida e formosa! Nem um ai, nem um grito... Que noite triste! oh noite silenciosa!...» * * * * * E a natureza fresca, omnipotente, Sorria castamente Com o sorriso alegre dos heroes. Nas sebes orvalhadas, Entre folhas luzentas como espadas, Cantavam rouxinoes. Os vegetaes felizes Mergulhavam as sofregas raizes A procurar na terra as seivas boas, Com a avidez e as raivas tenebrosas Das pequeninas feras vigorosas Sugando á noite os peitos das leoas. A lua triste, a lua merencorea, Desdemona marmorea, Rolava pelo azul da immensidade, Immersa n'uma luz serena e fria, Branca como a harmonia, Pura como a verdade. E entre a luz do luar e os sons e as flores, Na atonia cruel das grandes dores, O melro solitario Jazia inerte, exanime, sereno, Bem como outr'ora a mãe do Nazareno Na noite do calvario!... --- Provided by LoyalBooks.com ---