Anthero de Quental & C. Castello Branco Sá de Miranda Com uma carta ácerca da "Bibliographia Camilliana" de Henrique Marques por Joaquim de Araujo LISBOA Typ. da Companhia Nacional Editora LARGO DO CONDE BARÃO, 50 1894 Sá de Miranda Anthero de Quental & C. Castello Branco Sá de Miranda Com uma carta ácerca da "Bibliographia Camilliana" de Henrique Marques por Joaquim de Araujo LISBOA Typ. da Companhia Nacional Editora LARGO DO CONDE BARÃO, 50 1894 POESIAS DE SÁ DE MIRANDA Edição feita sobre cinco manuscritos ineditos e todas as edições impressas, acompanhada de um estudo sobre o Poeta, variantes, notas, glossario, e um retrato, por Carolina Michaëlis de Vasconcellos; Halle, Max Niemeyer, 1885. É esta a primeira edição critica das Poesias de Francisco de Sá Miranda, o Horacio e o Seneca portuguez, como lhe chamaram os contemporaneos, o reformador do Parnaso portuguez no seculo XVI. Foi necessario que se passassem mais de 300 annos (Miranda morreu em 1558: a primeira impressão de parte das suas obras tem a data de 1595) para que apparecesse uma edição critica, indispensavel todavia desde o primeiro dia. E ainda assim não a devemos a nenhum dos nossos--como a nenhum dos nossos devemos a admiravel edição do Cancioneiro de Garcia de Resende (de Stuttgard), a edição diplomatica do Cancioneiro do Vaticano (publicada em Halle pelo italiano Monaci) e tantos outros valiosissimos trabalhos sobre a nossa lingua e literatura, publicados, no decurso dos ultimos 50 annos, em Allemanha, Holanda e França. Uma senhora alleman, hoje portugueza pelo casamento, pessoa tão modesta como intelligente e laboriosa, e a quem a historia da lingua e literatura portuguezas tinha já a agradecer trabalhos, que, por passarem desapercebidos nesta verdadeira Caverna do Esquecimento, que é o Portugal de hoje, nem por isso deixam de ser de primeira ordem, emprehendeu e levou a cabo a restauração do texto do grande poeta moralista do seculo XVI, que até agora andava, mais do que o de nenhum outro dos seus contemporaneos, incerto, obscuro e deturpado. O trabalho corresponde plenamente ao muito que havia a esperar do saber e penetração da autora daquella notavel série de Estudos camonianos, que começaram a lançar alguma luz sobre o estado cahotico do texto do nosso grande lirico. Dez annos de aturado trabalho; estudo comparativo escrupolosissimo das edições impressas e dos manuscritos ineditos; conhecimento profundo e quasi topographico da epocha, dos costumes, dos personagens, da lingua, das tendencias intellectuaes, uma extraordinaria familiaridade com todas as _fontes_ do grande seculo; um grande e seguro sentimento da realidade historica; criterio penetrante e elevado, ainda no meio das minudencias a que tem de descer--eis o que representa esta edição critica, que não encarecerei chamando-lhe um modelo. Não sei se entre os _romanistas_ da Allemanha (penso sobretudo no sabio Storck) haverá algum que tivesse podido desempenhar-se do encargo, como se desempenhou a sr.ª D. Carolina Michaëlis: mas creio que afoutamente se póde affirmar que em Portugal, com excepção desta senhora, ninguem mais o poderia fazer, com igual exito. Não é este um facto bem singular? Hoje, são os estrangeiros que estudam e estimam a nossa antiga literatura: nós não. A crescente e hoje quasi total desnacionalisação do espirito publico é o facto mais consideravel da nossa psychologia collectiva, nos ultimos 50 annos. Os da actual geração, pode dizer-se que, pelo pensar, pelo sentir, deixaram já de ser portuguezes. Ha por ahi muito rapaz intelligente e, a seu modo, instruido, que conhece mais ou menos Molière, Racine, Voltaire e até Rabelais e Ronsard, e que nunca leu um auto de Gil Vicente, uma canção de Camões, uma eglogla de Bernardim Ribeiro ou de Bernardes, uma carta de Ferreira ou de Sá de Miranda. Os que conhecem um pouco intimamente a historia das revoluções portuguezas neste seculo (não fallo só das politicas) e têem reflectido sobre ella, acharão facilmente a explicação deste facto e, mais do que a explicação, a necessidade delle. Mas nem por isso deixa de ser cousa triste de considerar este abysmo de esquecimento, que se abre cada vez mais largo, entre o pallido, anemico e inexpressivo Portugal de hoje e aquelle seu grande ascendente, o heroico, o pittoresco e inspirado seculo XVI. A falta de sentimento nacional poderia, até certo ponto (no que diz respeito ao estudo da nossa antiga literatura) ser supprimida pelo sentimento historico, pela curiosidade critica e _philologica_, como dizem os allemães: mas a decadencia dos estudos historicos tem vindo acompanhando _pari passu_ a decadencia do sentimento nacional sem que um ponto de vista mais largo, puramente scientifico, viesse, como em França, por exemplo, substituil-o efficazmente, para compensar aquella falta, pelo menos na esphera da intelligencia e do gosto. Esse sentimento _philologico_ (geral, humano, critico, não restricto e nacional) é o que caracterisa, entre todas as nações cultas, o espirito allemão. Na sua imparcial sympathia, tão vasta como a natureza humana, abraça ao mesmo tempo a antiguidade e os tempos modernos, as edades classicas e os periodos barbaros, o Oriente e o Occidente, todas as raças e todas as culturas. Essa sympathia exige uma só condição: a originalidade. Tudo quanto foi realmente vivo, quanto manifestou uma maneira _sui generis_ de ser e de sentir, tudo quanto revelou uma face distincta da complexa natureza humana, tem direito á sua attenção. E é por isso que a erudição alleman se distingue por uma feição unica: é uma erudição viva. Houve erudição e eruditos: a curiosidade pelas cousas passadas é uma das funcções da intelligencia. Mas uma erudição que sente ao mesmo tempo que indaga, que critica e juntamente sympathisa, minuciosa e enthusiasta, indagadora e poetica; uma erudição que revolve montanhas de textos, datas, documentos, para descobrir, não factos seccos e mortos, mas a alma e a vida das cousas extinctas; uma erudição, se assim se póde dizer, inspirada, tal como nos apparece nesses heroes da philologia, os Boeckh, Welcker, Hermann, F. A. Wolf, Winckelmann, Grimm, Niebuhr, Creuzer, Otfried Muller, Ritschl e tantos outros; uma tal erudição era cousa desusada, e sem precedentes. Ella transformou a comprehensão da historia, fazendo circular uma vida nova atravez dessas cryptas dos seculos sepultos, onde a candeia fumosa da velha erudição academica apenas espalha uma claridade phantastica, quasi tão morta como as cinzas que ali repousam. E ahi está porque vemos uma senhora alleman publicar estudos magistraes sobre o texto de Camões, publicar uma edição critica das Poesias de Sá de Miranda, preparando-se assim, durante annos, com toda a casta de subsidios linguisticos, historicos e archeologicos, para nos dar (ou antes, para dar á Allemanha) uma historia da literatura portugueza. Outros lhe darão a historia da literatura indiana, ou da chineza, da grega, da hebraica, da poesia dos Trovadores, das epopeias da Edade Media, que sei eu? pois não ha um canto do vasto mundo da historia, que escape á curiosidade ardente e penetrante da erudição alleman. A sr.ª D. Carolina Michaëlis internou-se pelo reino semi-classico do Romanismo e ahi conquistou para si uma provincia, bem mais famosa do que conhecida, ainda dos mesmos nacionaes: a lingua e literatura portuguezas. Mas, dirão muitos, que necessidade havia de uma edição critica de Sá de Miranda? pois não ha por ahi tantas edições dos poetas Quinhentistas, desses famosos _classicos_, que pouquissimos lêem, é certo, mas que ninguem que se preze deve deixar de citar com veneração, e até póde romper no excesso de ter na sua bibliotheca? Estes ignoram (nem admira) que esses veneraveis _classicos_ são, até certo ponto, um mytho. Excepto o de Ferreira, nada ha mais duvidoso do que o texto desses desgraçados poetas. Das suas obras, a maior parte só se imprimiram depois da morte dos autores, nalguns casos vinte, trinta, ou mais annos depois. Imprimiram-se sobre copias manuscritas e geralmente copias de copias, e os editores não se esqueceram de juntar aos erros dos copistas, ou suppostos erros, as suas proprias _emendas_. A mesma paternidade das obras é em muitos casos duvidosa. Dos sonetos attribuidos a Camões pelo seu mais recente editor, o sr. T. Braga, boa terça parte não lhe pertencem ou são duvidosos. Tres eglogas de Bernardes são dadas geralmente como de Camões. Ha autos de Gil Vicente que pertencem muito provavelmente a outros autores. Poderiam multiplicar-se estes exemplos. Em geral, os poetas de maior nomeada absorveram pouco a pouco as composições dos menos famosos. E ainda se fosse só isso! Mas o proprio texto de cada uma das composições não offerece, em geral, a authenticidade sufficiente: a linguagem foi retocada pelos copistas ou editores; muitos versos foram substituidos. Junte-se a isto a variedade de lições, de edição para edição, de manuscrito para manuscrito (dos que ainda existem, e são bastantes) e comprehender-se-ha o que quiz dizer com a palavra _mytho_. Quiz dizer que quando cuidamos lêr Camões, por exemplo, podemos muito bem estar lendo Bernardes, ou Caminha, ou Bernardim Ribeiro, ou _vice versa_ podemos tambem estar lendo alguns daquelles _minores_, que foram absorvidos na aureola dos cinco ou seis astros de primeira grandeza--ou podemos simplesmente estar admirando o parto engenhoso do editor do seculo XVII. Os antigos editores portuguezes nunca primaram por criticos: se ainda é tão raro encontrar um que o seja! O editor portuguez era, antes de tudo um _devoto_: elle sahia á estacada, não para apurar um texto, o texto preciso, com as suas lacunas, defeitos ou erros, se os tinha, mas para levantar o _seu poeta_ acima de todos os outros, attribuindo-lhe o maior numero possivel de composições e com a forma mais perfeita possivel. Se encontrava um papel velho, no canto de alguma bibliotheca devia ser do _seu poeta_: publicava-o. Se os versos eram maus, é porque a copia estava errada: emendava-os. E é assim que, de edição para edição, foi crescendo o numero de composições duvidosas, crescendo o numero de interpetações e emendas, com que o texto cada vez mais se ia depurando. Dos poetas do seculo XVI, os dois mais maltrados pela _devoção_ impertinente dos editores são sem duvida Sá de Miranda e Camões. Para este ultimo não sabemos quando chegará o dia da justiça (da justiça philologica, entenda-se) mas deve estar longe, a avaliar pela maneira porque os seus dois mais recentes editores, aliás benemeritos pelo trabalho e grande amor ao poeta, os srs. Visconde de Juromenha e Theophilo Braga, se houveram nas suas edições, que, em pontos de critica, correm parelhas com as dos mais _devotos_ editores do seculo XVII. Talvez nunca chegue, a não ser que se metta nisso algum allemão. Sá de Miranda, ao menos, póde lêr-se com segurança no texto critico, admiravelmente discutido e apurado, da edição de Halle. Sou pouco erudito, nem estou escrevendo um artigo para alguma Revista philologica, mas uma simples noticia para um jornal diario: por estas duas razões, não me posso alargar pela analyse do trabalho da sr.ª D. Carolina Michaëlis, entrando pela parte technica delle. Quero só observar ainda uma cousa: é que este volume de mais de 1000 paginas, e carregado de notas, é um livro interessantissimo. Porque? pelo que acima disse do caracter da philologia alleman. O sentimento historico anima toda aquella erudição; a comprehensão da epocha dá relevo e interesse ás indagações apparentemente aridas de datas, genealogias, etc. A cada passo encontramos uma circumstancia, um facto biographico, pormenores de costumes, que abrem repentinamente uma nesga do horisonte sobre aquella vida extincta e a fazem resurgir para a nossa imaginação. Quanto saber, mas saber intelligente, saber que diz e ensina, enterrado modestamente naquellas notas, que occupam as ultimas 200 paginas do volume! Essas notas, juntas com a magistral Introducção, constituem uma verdadeira monographia de Sá de Miranda. Com aquelles elementos poderia a auctora ter feito propriamente um livro de _literatura_, que se contaria entre os melhores e seria lido, citado e festejado. Preferiu a essas vaidades o cumprimento quasi religioso de um encargo, ha tres seculos por cumprir, fazendo ao velho Poeta o maior serviço que elle imploraria, se podesse erguer a voz do seu tumulo: a restauração do texto das obras. _O bom Sá_ (como lhe chamavam no seculo XVI e depois) encontrou afinal um nobre espirito, que piedosamente e quasi filialmente escutou aquelle queixume de uma pobre larva e consagrou dez annos da sua vida para a satisfazer. O _bom Sá_ deve agora dormir descançado no seu tumulo. Bom Sá! Diz o velho biographo que, nos seus ultimos tempos, "com a magoa do que lhe revelava o espirito dos infortunios da sua terra se affligia tanto, que muitas vezes se suspendia e derramava lagrymas sem o sentir." Tenho scismado muitas vezes nestas lagrymas do poeta humanista da Renascença. E, não sei como, a minha imaginação approxima-as logo da tragica melancholia de Miguel Angelo, da nobre tristeza de Vittoria Collona, da misanthropia incuravel de Machiavel, da nuvem de desgosto e desalento que envolveu a velhice de quasi todos os grandes espiritos da Renascença. Tinha motivo de chorar o nosso Sá de Miranda, como tinham motivo de se entristecerem os seus illustres congeneres. É que elles presentiam todos, uma cousa sinistra: o abortamento da Renascença. Áquella immensa aurora succedia, quasi sem transição, o crepusculo nocturno: e elles, os videntes, devisavam naquelle crepusculo inquietador os movimentos de formas estranhas e sombrias, como de monstros desconhecidos, e ouviam passar vozes mais assustadoras ainda, vozes que cresciam formidaveis de todos os pontos do horisonte, sem se ver quem as soltava. Ahi por 1550, o abortamento da Renascença era já visivel aos olhos dos que ainda restavam daquellas duas incomparaveis gerações dos promotores della. O Concilio de Trento entrara já na sua 6.ª sessão e era agora irremediavel a scisão do mundo latino com a Reforma germanica. Começavam as guerras da religião, que iam durar, numa furia crescente, perto de cem annos, destruindo nações inteiras. Os Jesuitas abriam os seus Collegios, onde o espirito da Renascença, sophismado, amesquinhado, pervertido, servia de capa á reacção. Por toda a Peninsula, fumavam e crepitavam as fogueiras da Inquisição. O Humanismo alado transformava-se em erudição plumbea, inerte. A Arte cahia da creação no amaneiramento. Um furor indiscriptivel, furor de disputas, furor de matanças, apossava-se da Europa e o pensamento livre, os sentimentos largos e humanos, a alta cultura pareciam prestes a desapparecer da face da terra. Tudo isto viam ou previam aquelles grandes espiritos. Tinham sonhado salvar o mundo pela razão, e a razão parecera impotente, e o mundo desesperado appellava definitivamente para a sem-razão. Dahi aquellas incuraveis melancholias de uns, aquella desdenhosa misanthropia de outros; dahi as lagrymas do nosso Sá. Este antevia ainda outra cousa: a morte da patria. Aquelle ouro do Oriente parecia-lhe já (como depois se viu bem que era) um caustico sobre o corpo da nação, que lhe queimava, que lhe roia as carnes, até a deixar secca de todo, um esqueleto. Tinha motivo sobejo de chorar, o pobre poeta! Sim, lembram-me muitas vezes aquellas lagrymas. Descubro mais de uma analogia entre aquella idade e a nossa. A razão não morreu, afinal. Soterrada, respirando apenas, resurgiu todavia. Sómente mudou de trajo e de nome: já não é Humanismo, como no seculo XVI: chama-se agora Philosophia, mas é sempre a mesma, é sempre a rasão. E nós tambem, filhos da Philosophia, sonhamos salvar o mundo pela rasão, dar-lhe ordem e paz com as leis eternas por ella reveladas. Mas o mundo parece novamente atacado de vertigem, parece appellar mais uma vez para a sem-rasão, para os instinctos bestiaes e para uma superstição mais monstruosa ainda do que as passadas: a superstição da força. A democracia á maneira que triumpha, perverte-se, parecendo preparar-se para marcar um despotismo sem nome, o despotismo anonymo da multidão, o achatamento universal. Lembram-me as lagrymas de Sá de Miranda. Se teremos tambem de as chorar na nossa velhice? Esperemos que não, ou digamol-o, pelo menos, para não desanimar ninguem--para não desanimarmos tambem nós. Junho de 1886. ANTHERO DE QUENTAL. UMA SATYRA DE SÁ DE MIRANDA Alguns jornaes provincianos, quando o sr. visconde de Lindoso, ha dois mezes, foi promovido a conde, disseram que na geração de s. exc.ª havia dezenove alcaides-móres de Lindoso, a contar desde o reinado de D. Diniz. Se ha erro na contagem, não serei eu que o corrija. O leitor não hade, desta vez, exultar com a certeza de que o sr. conde de Lindoso tem dezenove alcaides na sua arvore genealogica. O meu proposito é averiguar se algum dêsses dezenove praticou façanha que o immortalisasse na chronica ou na epopéa. Effectivamente, deparou-se-me um, cujo nome está identificado a uma poesia de Francisco de Sá de Miranda. Dos outros, por emquanto, apenas sei os nomes e as tradições provaveis dumas existencias obscuramente e honradamente pacatas em Guimarães, no transcurso de quatro seculos. A celebridade que Sá de Miranda, commendador das Duas Egrejas, deu ao alcaide seu contemporaneo e visinho, não é nada épica. Chamava-se o alcaide-mór de Lindoso, Christovão do Valle, e residia no seu castello. Sá de Miranda morava na sua casa commendataria da Tapada, não longe de Lindoso. Tinha o poeta um criado gallego que o alcaide, especie de administrador de concelho e commissario de policia do seculo XVI, prendeu por motivos insignificantes. Sá de Miranda, escrevendo em _Redondilhas_ a seu cunhado Manuel Machado, Senhor d'Entre-Homem e Cavado, conta-lhe a prisão do gallego, lardeando a noticia de axiomas sentenciosos que muito lhe abonam a antonomasia de Seneca portuguez. Principia assim: Inda que eu ria, e me cale, Que me eu faça surdo e cego, Bem vejo eu por que o do Vale Correu tanto ao meu galego. Em quanto o do Valle lhe corre o gallego, diz elle que uns Ladrões de seiscentas côres Andam por aqui seguros, Não lhe sahem taes corredores. E a causa dessa impunidade é que o alcaide não fazia caso dos malfeitores que lhe ameaçassem o physico: Após quem torna a si E primeiro mata ou morre Não corre o do Vale assi, Que após um tolo assim corre. E vae nomeando uns patifes que andavam a salvo, um Bastião, um Ribeiro, personagens que se faziam respeitar pela valentia ou pelo dinheiro. Depois de muitas maximas de san moral, o poeta volta-se para o governo e exclama: Executores da lei, Havei vergonha algum dia! Este chama: Aqui dei rei! Este outro chama a valia. Ora o fecho da satyra, que é o mais pungente della, está deturpado na composição negligente das impressões que conheço, dêste feitio: Outro chama: Portugal! De varas não ha e mingua. Desata a bolsa, que val. Traze sempre alada a lingua. Com esta construcção, assim aleijada, a satyra penetrante fica de todo deslusida e estragada. Para que os equivocos flagelladores resaltem do jogo das palavras de accepção dupla, a reconstrucção deve ser esta: Outro diz: em Portugal[1] De varas não ha hi mingua; Desata a bolsa, que Val Traz sempre atada a lingua. [1]Neste verso adoptei uma variante que se encontra na ultima edição das poesias de Sá de Miranda. É claro o intuito mordaz do poeta. Manda _desatar a bolsa_. Procede uns bons cincoenta annos o _Put money in thy purse_ de Shakespeare. O poeta inglez, pela bôcca perversa do _honest Iago_, mandava encher a bolsa; o portuguez manda desatal-a depois de cheia; é a mesma ideia. _Desata a bolsa_, diz elle, porque o Valle, o alcaide de Lindoso, quando o amordaçam com dinheiro, Traz sempre atada a lingua. O verso é máu; mas Sá de Miranda visava principalmente a fazer boa philosophia, e contentava-se em alinhavar versos conceituosos em prosa chan; por isso mofava delle o Camacho, na _Jornada do Parnaso_, taxando-o de Poeta até o umbigo, e os baixos prosa. Seja como fôr, dos dezenove alcaides de Lindoso nenhum outro se gaba de ter o seu nome registado na obra do grande mestre da Renascença lyrica da Peninsula. * * * * * Não sei se é notorio em Portugal e nomeadamente no Chiado e Clerigos que uma senhora, nascida e educada na Allemanha, e residente não ha muitos annos no Porto, publicou em 1885 uma edição das _Poesias de Francisco de Sá de Miranda_, impressa em Halle. É um volume em 8.º fr. de 1085 pag.; a saber CXXXVI que comprehendem a biographia do poeta, a topographia de Carrazedo de Bouro, da quinta da Tapada, do solar de Crasto, e a noticia particularisada dos codices manuscritos e das edições impressas que a illustre escritora manuseou. As 946 paginas restantes comprehendem as poesias conhecidas e as ineditas colhidas de varios manuscritos, repartidas em quatro secções; e na secção ou _parte 5.ª_ encontram-se todos os poemas dedicados a Sá de Miranda. Na margem inferior de cada pagina inscreve a sr.ª D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos as variantes dos codices conferidos, e nas _Notas_, que começam a pag. 739, entra s. ex.ª na parte critica do seu valioso trabalho, desenvolvendo raros e copiosos conhecimentos da literatura portugueza dos seculos XV e XVI, e da vida intima dos seus poetas. Referindo-se á satyra de Sá de Miranda, cujos fragmentos trasladei, escreve a illustrada senhora a pag. 754: _As allusões a um_ da Vale... _já não podem ser decifradas_. Seria assombroso que s. ex.ª conseguisse exhumar da poeira dos cartapacios genealogicos de Guimarães aquelle Christovão do Valle, alcaide infesto ao serviçal do poeta. Quantas gerações de leitores da carta do commendador das Duas Egrejas terão passado inconscientes por sobre aquellas allusões! Nas notas, porém, da sr.ª D. Carolina de Vasconcellos ha lances de investigação historica tão penetrantes e intuitivos que dão muito a esperar, se os seus estudos nos baldios ingratos da archeologia literaria não desanimarem arrefecidos pelo desaffecto que os portuguezes manifestam pelo archaismo. Aqui se me offerece um exemplo de lucida exploração investigadora no livro admiravel desta senhora. Na _Carta V_ de Sá de Miranda a _Antonio Pereira_ (pag. 237), o poeta, referindo-se ao solar dos Pereiras, escreve: Do qual irão ha muitos annos Um que aqui Braga regeu, Pondo aparte os longos panos, O passo dos castelhanos Á espada o defendeu. Commentando estes versos, explana a sr.ª D. Carolina de Vasconcellos (pag. 806): _Julgamos que se trata do avô do grande condestavel, i. é de D. Gonçalo Pereira que regeu Braga como arcebispo no meado do seculo XIV. Quando o infante D. Pedro invadiu em 1354 as provincias de Entre Douro e Minho e Traz-os-Montes acompanhado de seus cunhados D. Ruy de Castro e D. João de Castro foi ao seu encontro o arcebispo de Braga, que o havia advertido em tempo dos sinistros projectos de D. Affonso IV. O prelado apresentou-se como medianeiro para acalmar a contenda, e desviou o colerico infante do Porto..._ Esta exposição tem equivocações. S. ex.ª como logo veremos, corrige alguns enganos com muita boa critica historica; outros, porém, que não emenda, pedirei licença para os apontar. O infante D. Pedro não invadiu a provincia de Entre Douro e Minho em 1354. Ignez de Castro foi assassinada em 7 de janeiro de 1355. A rebellião do filho contra o pae começou nesta ultima data e terminou em 6 de agosto do mesmo anno, pelas pazes feitas em Canavezes. Quanto aos irmãos de Ignez: ella não teve algum que se chamasse _João_ ou _Ruy_. Teve dous: um, seu irmão inteiro, chamou-se D. Alvaro Pires de Castro, que foi conde de Arrayolos e condestavel; o outro, seu meio irmão, chamou-se D. Fernando Rodrigues de Castro. Além destes irmãos, teve uma meia irman, D. Joanna de Castro, que, depois de viuva de D. Diogo, senhor de Biscaia, casou com D. Pedro, _o Cruel_, rei de Castella, depois da morte de Maria Padilha. Quanto ao arcebispo D. Gonçalo Pereira, considerado por todos os escritores nacionaes e estranhos que ha mais de dois seculos tratam a historia portugueza no seculo XIV, pacificador na guerra civil consecutiva á morte de Ignez de Castro, emenda a sr.ª D. Carolina de Vasconcellos (pag. 882): _O arcebispo de Braga, D. Gonçalo Pereira, jaz sepultado numa capella annexa á Sé de Braga, onde na inscripção tumular se lê ter elle morrido no anno de 1348. É, pois, impossivel que a lenda sobre a sua intervenção nas luctas de D. Pedro, o Justiceiro, e de Affonso IV (1354) seja veridica._ Conjectura depois a reflexiva escritora se o poeta alludiria á intervenção do arcebispo nas pazes entre o infante D. Affonso IV e seu pae D. Diniz, ou á concordia que o mesmo prelado restabeleceu entre Affonso XI de Castella e Affonso IV de Portugal. Estas hypotheses suggeriu-lh'as o _Nobiliario do Conde D. Pedro_, editado por A. Herculano, pag. 285. Não póde, todavia, prevalecer alguma dessas conjecturas da excellente commentarista; porquanto Sá de Miranda, nas suas trovas, não trata de pazes; é de guerra, e á ponta da espada com castelhanos: Um que aqui Braga regeu Pondo aparte os longos panos O passo dos castelhanos Á espada o defendeu. Daqui a pouco, espero conseguir que s. ex.ª acceite o facto historico, desembaraçada de hypotheses, como elle se acha escrito nos antigos livros portuguezes. Quanto á morte de D. Gonçalo Pereira emendou s. ex.ª um descuido repetido por todos os historiadores desde Manuel de Faria e Sousa e D. Rodrigo da Cunha, que tambem faz D. Gonçalo contemporaneo de D. Pedro I, já reinante. A data da morte do arcebispo em 1348 não era extranha para mim, quando em 1874 escrevi: "Em 1347 foi D. Gonçalo visitar a provincia transmontana. Chegando a Villa Flor com grande sequito, travaram-se alli os seus criados com os moradores da terra, e de ambas as partes belligerantes morreram quatro homens e sahiram doze mal-feridos. Tangeram os sinos a rebate. Levantou-se a povoação armada. Cercaram a residencia do arcebispo, mataram-lhe seis homens, e matariam o proprio prelado, se não fugisse, pendurando-se de uma corda, que lhe não evitou cahir de costas no terreiro e contundir-se gravemente. Não contentes os de Villa Flor com a fuga do seu arcebispo, tomaram-lhe as malas, de envolta com parte dos capellães e seis criados. Protegido por atalhos, o contuso prelado chegou a Carrazeda de Anciães, povoação importante naquelle tempo, fortificou-se no castello, fez lavrar instrumento publico, e enviou-o a D. Affonso IV. O rei, poucos dias depois, mandou a Villa Flor uma alçada com dois algozes bem escoltados, e fez enforcar os sacrilegos que poude colher na devassa. Esta vingança nem por isso alliviou os incommodos do arcebispo descadeirado na quéda. Transferido a Braga, deitou-se para nunca mais se erguer. Quatro mezes depois adormeceu no Senhor." (_Noites de insomnia_, n.º 5, pag. 91 e 92). Neste mesmo artigo, commemorando as proezas do avô do condestavel D. Nuno Alvares, escrevi: _Fôra elle ainda quem acaudilhára a hoste de portuguezes, quando uma invasão de hespanhoes, em desapoderada fuga, deixou o sangue de tresentas vidas nas lanças dos alabardeiros do arcebispo._ (_Ib._ pag. 92). Aqui tem s. ex.ª a façanha que o Sá de Miranda celebrou na sua carta a um dos descendentes do prelado guerreiro; e para que a illustre escritora a conheça de melhor auctoridade que a minha, aqui lhe dou o traslado de chronista antigo: "Por estes annos, entraram por ordem de el-rei D. Affonso onzeno de Castella pelo reino de Portugal, com mão armada, D. Fernando Rodrigues de Castro e D. João de Castro seu irmão, capitães do reino de Galliza, roubando, desbaratando quanto achavam, com muita gente de armas, até chegarem á cidade do Porto, e fazendo todo estrago que podiam sem acharem resistencia, estando juntos nella o bispo D. Vasco, e D. Gonçalo Pereira, arcebispo de Braga, que antes fôra Deão do Porto, e o Mestre de Christo D. Frei Estevão Gonçalves refizeram 1:400 homens entre infantes e cavallos, com os quaes os contrarios não quizeram cometer peleja; e voltando as costas se foram recolhendo com a preza que levavam; mas seguindo-lhe os portuguezes o alcance lhe fizeram largar tudo, e custar a retirada mais do que cuidavam, até que com morte de D. João de Castro e outros muitos soldados se foram recolhendo a Galliza: foi isto na Era de 1374, anno de Christo 1336..." (D. RODRIGO DA CUNHA, _Cathalogo dos B. do Porto_, pag. 96, ediç. de 1742). Não nos restam, pois, incertezas quanto ao feito de armas encomiado por Sá de Miranda; e de todo em todo, á vista do anno em que falleceu o arcebispo, irrefutavelmente fixado pela sr.ª D. Carolina Michaëlis, é excluido aquelle prelado da intervenção que os historiadores e até modernos dramaturgos lhe dão nos successos posteriores á morte de Ignez de Castro. Mas, donde procede essa confusão dos historiadores? Quem é o sacerdote Pereira que defendeu o Porto da invasão do infante D. Pedro em 1355? Vamos conhecel-o. Assim como leu a pag. 285 do _Nobiliario do Conde D. Pedro_, se a sr.ª D. Carolina de Vasconcellos lesse a pag. 286, achava a decifração do enigma. Ahi nos conta o continuador do conde de Barcellos (digo _continuador_, porque D. Pedro fallecido em 1354, não podia referir factos occorridos em 1355) que o defensor da _Villa do Porto_, não fortificada, foi D. Alvaro Gonçalves Pereira, filho do arcebispo D. Gonçalo. Não foi portanto, o pai; foi seu filho, o prior do Crato, pai do condestavel D. Nuno. E por que o texto do _Nobiliario_ tem uma concisão engraçada e pittoresca não será desagradavel ao leitor conhecel-o. Vai textualmente: _Este Prior D. Alvaro foi o que pos os pendões por muro, estando na villa do Porto para a guardar por mandado del-rei D. Affonso IV, porque o Infante D. Pedro andava alçado del, queimando e destruindo muitos logares do Reino, fazendo mal e danando a Diogo Lopes Pacheco, a D. Gil Vasques de Rezende e a Pero Coelho e a todos os que el culpava que foram conselheiros na morte da infanta D. Ignez de Castro, que citei seu padre matou, e a villa do Porto não era murada em aquelle tempo, senão em poucos logares de máo muro, e o Prior D. Alvaro fez muros de pendões das náos que ahi estavam, chantando as hastes delles pelo campo a redor da villa, e percebendo_ (industriando) _suas gentes como defendessem os pendoens. O Infante D. Pedro esteve ahi em cerca da villa 16 dias com grande poder de fidalgos portuguezes e de Galiza. Estes fidalgos desejavam muito cobrar a villa por a riqueza della. Isto durou até que chegou El-Rei D. Affonso IV, e o Prior D. Alvaro entregou-lhe sua villa, e alguns disseram que o Infante se soffreu de combater a villa por honra do Prior D. Alvaro. A verdade assim pareceu, que o Prior D. Alvaro, como entregou a villa a seu senhor El-Rei começou de andar em preitezias_ (negociações) _entre El-Rei seu padre e aveo-os_ (avençou-os) _e fez-lhe dar a sua quantia de maravedis que seu padre lhe tinha alçada_ (suspensa) _e fez-lhe dar o condado ao Infante D. João seu filho, e outras muitas mercês... etc._ Ahi está o facto historico. A correcção reconstituinte da sr.ª D. Carolina de Vasconcellos e os esclarecimentos que ouso offerecer-lhe serão bastantes para expungir das historias patrias que por ahi correm a intervenção lendaria do arcebispo de Braga na guerra civil de 1355? Talvez não. Ha erros enkistados que nenhum bisturi de critica desarreiga. * * * * * Recopilando as impressões que recebi do livro da illustrada alleman: a biographia de Sá de Miranda, expurgada de inveterados erros, está primorosamente redigida. A minudenciosa visita de s. ex.ª ao Castro e á quinta da Tapada revellam o amor com que a auctora estava possuida do seu assumpto. As reflexões philologicas rescendem um sabor germanico de que em Portugal decerto não achou exemplos. A linguagem, a despeito de quasi imperceptiveis incorrecções, parece ter sido estudada nos melhores mestres desde os primeiros alvores da sua educação literaria. Desata problemas invencilhados de genealogias; restitue a uns poetas obras attribuidas a outros; gradua o quilate dos diamantes que lapida sob o esmeril da critica mais esclarecida. Cotteja factos contemporaneos dos poemas, para lhes averiguar a ideia ou a allegoria. Prodigiosa paciencia e rara vocação por tanta maneira divergente da nossa indole superficial em averiguações desta natureza! Devemos, portanto, á insigne escritora a primeira edição digna do grande e quasi olvidado poeta. Devemos-lhe além disso ter feito mais conhecido e apreciado do que era em Allemanha o grande luminar donde promanaram discipulos como Antonio Ferreira, Diogo Bernardes, Andrade Caminha, e a pleiade de seiscentistas que formam com Luiz de Camões a idade aurea da literatura portugueza. Com o livro estimavel da illustrada escritora será mais lido em Portugal Sá de Miranda? Envergonho-me de confessar que não. S. ex.ª achou-me exaggerado quando eu disse, que na minha terra se conhecia o poeta _Sá_ pelas charadas. "Sou poeta portuguez-I. Poeta portuguez com uma syllaba? É por força Sá." Insisto em teimar, minha senhora, que, quando a transcendente idiotia das charadas cahir no abysmo do ridiculo, apagar-se-ha de todo o nome do poeta. E, quando isso succeder, folgará grandemente a alma rancorosa de Christovão do Valle, ex-alcaide de Lindoso, que está, pelo menos, no purgatorio expiando a perseguição que fez ao innocente gallego, vingado pela satyra do seu immortal patrão uzurariamente. S. Miguel de Seide, 1887. VISCONDE DE CORREIA BOTELHO. BIBLIOGRAPHIA CAMILLIANA (CARTA AO AUCTOR) _Meu prezado Henrique Marques_: Revia eu as ultimas provas de um modesto livrinho de homenagem, por mim offerecido á insigne escriptora e minha excellente amiga D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos, quando me chegou ás mãos o precioso exemplar do monumento, que a perseverança de V. soube alevantar á memoria de Camillo. Compunha-se o meu preito, á alta intelligencia e ao nobre caracter da senhora D. Carolina Michaëlis, da reunião dos artigos, que em Portugal saudaram a portentosa edição das _Obras de Sá de Miranda_, na ordem chronologica do seu apparecimento: são dois apenas, que mais não conheço, mas com serem dois, teem a impol-os respectivamente a auctoridade de Anthero de Quental e do Visconde de Correia Botelho, no unico logar em que Camillo rubricou, com o seu nome transformado, um escrito literario. É ver o folhetim do n.º 91 do _Commercio do Porto_ de 13 de abril de 1887. Ali, Camillo presta voto de homenagem ao saber e á honestidade, com que Sá de Miranda foi evocado, em um espirito critico a que andavamos deshabituados, e a que por egual fizeram justiça, nas citações dos seus livros, Theophilo Braga, Adolpho Coelho, Oliveira Martins, etc. Neste lanço, e uma vez em meu poder a _Bibliographia Camilliana_, rebusquei a individuação do estudo de Camillo, que bem interessante é, por signal. O n.º 573 do seu livro não o menciona, nem indica, donde me pareceu que lhe é desconhecido na fórma primeira de folhetim; que, de resto, V. lá o aponta ao memorar dos trechos componentes do _Obulo ás creanças_. Junte-o, pois, agora, em fórma autonoma, á sua esplendida Camilliana--por certo a mais notavel que ainda se reuniu em Portugal e no Brazil--e consinta que neste lugar, que já agora tenho pelo mais opportuno, e numa cavaqueira amiga, o mais obscuro admirador da sua monographia, carreie duas ou tres annotações, que sirvam de aperfeiçoamento á traça de um edificio, nobremente cimentado por trabalho improbo, como é o seu. Acaso vale a pena de consignal-as neste opusculo, á sombra do nome illustre da doutissima escritora alleman, que tirou carta de naturalisação entre os mais consideraveis publicistas do nosso paiz, e sob a égide dos dois grandes homens que firmam as paginas, precedentes a estas linhas corridas, de palestra amiga. É de mais rapida monção ir inscrevendo as notas em relação a numeros, e na ordem de secções. Para aqui as traslado, pois, redigindo os hierogliphicos, com que marginei o seu presente de nababo, numas horas rapidas de exame: N.º 10.--_O Clero e o sr. Alexandre Herculano._--Dêste curioso folheto extrahiram-se exemplares em papel azul, meio cartão. Vi ha annos um, na loja do sr. João V. da Silva Coelho, á rua Augusta. Vem a pêllo referir que Latino Coelho inseriu anonimamente, num dos primeiros volumes da Revista Popular, uns valiosos traços de apreciação dêste opusculo. N.º 95.--_Divindade de Jesus._ Este livro reune artigos publicados muitos annos antes, e teve como fim immediato facilitar ao auctor a acquisição de um exemplar rarissimo dos _Amusements périodiques_ do Cavalleiro de Oliveyra, que José Gomes Monteiro possuia e que Camillo namorava desde muito. Esse exemplar ajudou á elaboração do _Judeu_, da _Caveira da Martyr_, das _Noites de Insomnia_, e, mais tarde, de algumas secções da _Historia de Portugal_ de Oliveira Martins. Possuo-o eu actualmente, tendo successivamente pertencido a Augusto Soromenho, José Gomes, Camillo e Annibal Fernandes Thomaz. Numa das guardas do 1.º vol., lançou Camillo a seguinte cota: "Dei por este livro o mss. da Divindade de Jesus, reputado em 14 libras, a José Gomes Monteiro". N.º 146.--_O Condemnado._--É, effectivamente, uma contrafacção. Basta que o meu presado Henrique Marques se dê ao incommodo de reflectir que em 1871 a casa Moré se achava ainda num periodo de relativa actividade e que nada tinha que ver com a loja de João Coutinho. Pelo mesmo motivo, applico esta observação ao numero immediato, (147). N.º 174.--_A Caveira da Martyr._--Da queima do 1.º volume--feita por motivos de consciencia,--salvaram-se uns quarenta exemplares, por se acharem deslocados nos depositos do editor. São esses os que teem sido vendidos. Não ha, nem houve reimpressão daquelle tomo. O editor recusou mesmo vender a propriedade da obra, quando traspassou a Pedro Correia a de todas as demais livros de Camillo, que havia adquirido. A nota de H. Marques é absolutamente injusta. Conheço o sr. Tavares Cardoso, o bastante para tomar a responsabilidade desta affirmativa, que o seu caracter me garante e abona. N.º 176.--_Curso de litteratura._--Numa das cartas publicadas no opusculo adiante descrito, sob n.º 289, acha-se, a breve trecho, uma curiosa e incisiva apreciação da parte dêste trabalho, redigida por Andrade Ferreira. N.º 221.--_Bohemia do Espirito._--O estudo sobre Luis de Camões tem, pelo menos, uma passagem, que se não lê nas impressões anteriores, e que se refere ao Sá de Miranda da sr.ª D. Carolina Michaëlis. N.º 237.--_Delictos da mocidade._--Além da edição especial que ficou apontada, ha uma outra, em papel Japão tambem, mas sem as letras capitaes a côres. Possue um exemplar o meu amigo dr. A. A. de Carvalho Monteiro. N.º 263.--_Amôr de perdição._--Fui eu quem traçou o plano da edição. Pertence-me a redação do prospecto e a escolha dos individuos que tiveram de escrever a parte critica. Camillo tinha em grande attenção o meu enthusiasmo por este admiravel livro, a que todavia antepunha o _Romance de um homem rico_ e o _Retrato de Ricardina_. Dois ou tres dias depois de uma das muitas conversas que tivemos, sobre o thêma do _Amôr de Perdição_, vinha-me da residencia amiga de S. Miguel de Seide um exemplar da extraordinaria novella, com o seguinte _envoi_ do notavel romancista:--"_Para fazer chorar de novo Joaquim de Araujo--essa suprema expressão das almas boas, chorar._ C. C. Branco". Henrique Marques cita um exemplar especial da 1.ª edição. Póde addicionar-lhe o que deve existir na Biblioteca particular de El-rei, o que foi presenteado a Fontes e o que recentemente adquiriu o meu amigo Joaquim Gomes de Macedo. Esta tiragem especial foi de 12 exemplares, com destino a brindes, que por então se effectuaram a individuos e sociedades de Portugal e do Brazil, sob indicativa de Camillo e de José Gomes Monteiro. N.º 289.--_Cartas de Camillo Castello Branco a Joaquim de Araujo._ Entre os meus papeis, encontro mais a seguinte missiva de Camillo, bastante curiosa para a historia do n.º 189: _Meu amigo:_ A tarefa de escrever o _Perfil do Marquez de P._ em 20 dias deixou-me o cerebro em lama. Vou ver se os ares de Braga e a ausencia de livros me restauram. Anna Placido vae ler os seus versos. Conhece os que appareceram dispersos nas folhas. Diz ella que a linguagem dos poetas lhe está sendo hoje um dialecto oriental. Accrescenta que está muito velha, muito materialisada pela vida rural e pelas enormes tristezas da sua vida. Entretanto, as suas poesias alumiam escuridoens. Logo que volte de Braga participo-lh'o. De V. Ex.ª Admirador e amigo S. C. 2 de junho de 1882. _C. Castello Branco._ Nunca vi exemplares em _grand papier_ do _Perfil do Marquez de Pombal_, mas o editor Manuel Malheiro asseverou-me que fizera imprimir uns tres ou quatro. Só a sr.ª viscondessa de Correia Botelho, minha muito estimada e querida amiga, poderá desenvincilhar hoje este pequeno problema bibliographico. N.º 291--_Genio do Christianismo_--Embora o frontispicio das quatro edições publicadas atribua esta versão a Camillo Castello Branco, o facto é que a interferencia do grande escritor só tem relação com os primeiros capitulos; os demais foram vertidos por Augusto Soromenho. Para compensar o editor Coutinho, Camillo derivou o cumprimento do seu contracto para um romance original--_Como Deus castiga!_ cuja acção se desenrolava pelos tumultos, a que no Porto deu origem a creação da Companhia das Vinhas do Alto Douro. Existem escritos cinco capitulos, um dos quaes se acha menos correctamente mencionado, sob n.º 607 da _Bibliographia_. A elaboração dêste romance data de 1861; abandonando o assumpto, Camillo saldou noutro volume as suas contas com o editor. _Como Deus castiga!_ deve ser citado entre os n.os 49 e 55, no grupo de obras originaes. N.º 300--_A Freira no subterraneo._--Nenhuma das edições traz nome de autor; ouvi que Camillo redigira elle proprio o romance, aproveitando alguns dados de promenorisadas noticias, alludentes ao sequestro de uma emparedada em um convento russo. N.os 333 e 373--_Catalogos etc._--A serem verdadeiras, como são, para mim, as indicações de Henrique Marques, o logar dêstes numeros deve marcar-se entre a serie das obras originaes do autor. N.º 470--_Obulo ás creanças_--As duas procissões, dos _Mortos e dos moribundos_, correram mundo em jornaes diversos, que não vejo designados no 5.º grupo da _Bibliographia_. A proposito, escreveu Camillo a Bulhão Pato uma eloquente carta, que este distinctissimo poeta engastou num commovido folhetim do _Diario Popular_, referente á loucura de Freitas e Oliveira. Camillo convidava Bulhão Pato a enfileirar tambem processionalmente os seus mortos queridos. Com um talento extraordinario de visão das idades transcorridas, com o inestimavel estilo que Oliveira Martins considerava impressionavelmente consolador e unico, nessas evocações, já, antes do convite de Camillo, Bulhão Pato fundira o inimitavel tomo _Sob os Ciprestes_. Pelo corrente deste livro, as suas recentes _Memorias_ pertencem á cathegoria dos trabalhos de primeira ordem, que, entre nós, se teem produzido, na segunda metade deste seculo. Admiro sem restrições o autor de tão altos primores, como os que se revelam nas nobres paginas consagradas a Anthero de Quental. Entre os livros que conteem escritos de Camillo, por certo que ainda falta--e até quando?--accentuar bastantes, embora V. apresente uma soberba lista; lembra-me indicar-lhe a _A Propriedade intellectual_ do meu querido amigo e eminente publicista Visconde de Faria Maya, impresso num limitadissimo numero de exemplares, em Ponta Delgada; os _Homens e letras_ de Candido de Figueiredo; _A Sciencia e probidade_ de Francisco Adolpho Coelho; o _Fausto de Castilho julgado pelo elogio mutuo_ de Joaquim de Vasconcellos; e um dos _Catalogos_ do sr. Lima Calheiros: sendo possivel que neste capitulo se possam inscrever os trabalhos philologicos de Manuel de Mello e os opusculos faustianos de Graça Barreto. Escrevendo estas linhas longe dos meus livros, não posso jurar nas ultimas indicações, que registro, apenas, a beneficio de inventario. Quanto á secção de jornaes e revistas, ha que ter em conta os numeros do _Primeiro de Janeiro_, em que Camillo publicou a _Necrologia do commendador Vieira de Castro_, as cartas a Germano de Meyrelles por motivo do processo do grande tribuno dêste nome, e a João de Oliveira Ramos, em occasiões varias; o _Circulo Camoniano_; o _Diario da Tarde_, onde a collaboração de Camillo foi extensa, e onde se acha reproduzida a materia do _Bico de gaz_ (n.º 504), sem a menor obediencia ás sete chaves com que, annos depois (!), na Bibliotheca Municipal do Porto intelligentemente lhe vedaram, a V., o direito de copiar o exemplar, que lá se guarda; o _Diario Nacional_ que revelou em primeira mão alguns dos promenores historicos de _D. Luis de Portugal_. Muitos outros haverá decerto. E por se fallar em jornaes, lembro-lhe a utilidade de nos indices finaes do seu trabalho, mencionar á parte os periodicos, de qualquer indole, que tiveram Camillo como redactor ou editor exclusivo, e bem assim os volumes que devem a sua impressão ou reedição ao grande escritor, embora com o concurso de livreiros. Dada a lucidissima organisação dos seus numeros de recorrencia, é facil esmiuçar toda a casta de indices. Um dos mais curiosos seria o de todas as pessoas citadas na _Bibliographia Camilliana_. Uma observação ainda: diz respeito a tiragens especiaes. Ha, que eu saiba, dos seguintes numeros: 368 (poucos exemplares em papel Whatman); 401 (oitenta a cem exemplares em velino e linho nacional); 409 (1 exemplar em China, 2 em velino, e 38 em linho) 458 (6 exemplares em Whatman); 462 (diversos exemplares em linho); 488 (8 exemplares em China); 494 (6 exemplares em papel cartão amarello.) Das _Poesias e prosas de Soropita_ fez-se tambem uma impressão á parte, de pouquissimos exemplares, menos talvez ainda do que os que o editor Chardron mandou tirar das _Escavações bibliographicas_, folhetim do _Diario Mercantil_, em que Theophilo Braga analisou severamente o apparecimerito daquelle volume. Clareia a manhan, e tempo é de ensaiar um termo a esta carta, do tamanho classico das legoas da Povoa. Infelizmente, não lhe posso dar mais alta prova da minha consideração pelo seu livro, digno, em tudo, do grande escritor a quem é consagrado, e quasi pagamento de uma divida nacional. Por mim, registro-o como um dos mais valiosos subsidios para a nossa moderna historia literaria, e as pequenas minucias que lhe addito testemunham exhuberantemente ao meu amigo o applauso mais sincero e o parabem mais enthusiastico. Do seu editor, e meu excellente amigo A. M. Pereira, tão sómente lhe digo que, na publicação da _Bibliographia Camilliana_, praticou uma das mais bellas acções da sua brilhantissima carreira. S. c. Lisboa, 25 de agosto, 94. Seu adm.or e amigo obg.mo _Joaquim de Araujo._ Preço 200 réis --- Provided by LoyalBooks.com ---