BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA NOITES DE INSOMNIA OFFERECIDAS A QUEM NÃO PÓDE DORMIR POR Camillo Castello Branco PUBLICAÇÃO MENSAL N.º 5--MAIO LIVRARIA INTERNACIONAL DE ERNESTO CHARDRON _96, Largo dos Clerigos, 98_ PORTO EUGENIO CHARDRON _4, Largo de S. Francisco, 4_ BRAGA 1874 PORTO TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA 62--Rua da Cancella Velha--62 1874 BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA NOITES DE INSOMNIA SUMMARIO Petronilla, Gamarra, Zamperini--Entrada para os salões--Os salões, introducção, pelo exc.mo snr. visconde de Ouguella--Ecce iterum «Silva» Chrispinus--Santos-Silva--Doudo Illustre--A catastrophe--Renan--Correcções--Mau exemplo de poetas casados--A casa de Bragança «ab ovo»--Um inquisidor portuguez e o principe de Gales--Trilogia da «Actualidade» PETRONILLA, GAMARRA, ZAMPERINI Assim se chamaram as tres actrizes que mais dinheiro vampirisaram aos argentarios portuguezes no seculo XVIII. Petronilla, cantora italiana, representou em Lisboa desde 1739 até 1745. Não era bella, nem artista superior; enguiçava, porém, com philtros diabolicos; fascinava, fulminava, cauterisava o cerebro das mais solidas cabeças, sem respeitar as testas coroadas. Um dos seus amantes foi D. João V, que orçava então pelos cincoenta. Petronilla, ou Pellatroni (dava por ambos os nomes) não se parecia com as «princezas de comedia e deusas da Opera», consoante Arsène Houssaye denomina as actrizes e dançarinas francezas coevas da amante do nosso Luiz XIV. Era absorvente como as suas parceiras; mas não esbanjava em galanices, equipagens e banquetes o producto liquido das suas transacções mercantis com o rei e os outros. Tão queridas se logravam as actrizes dos fidalgos portuguezes quanto os actores eram desprezados. O fidalgo, que não tivesse uma aventura de theatro, apenas poderia hombrear em proezas de galã com algum frade bernardo de costumes suspeitos. Os frades propriamente, n'aquelle tempo, frechavam do seu camarote o collo despeitorado da Petronilla com settas de amor platonico. Havia no theatro o _camarote dos frades_, collocado por baixo do camarote das açafatas. Tinha rotulas de pau, por entre as quaes os monges assopravam uns suspiros quentes como as lufadas da Arabia. Mas não passavam d'estes resfolegos os frades. A porção illicita d'aquelles espectaculos pertencia ao rei e aos fidalgos. Estes gabavam-se de que as actrizes eram petisco, _morceau friand_,--dizia o cavalheiro de Oliveira--que só aos grandes senhores competia. Na actriz não amavam arte nem belleza: amavam a comediante. D. João V, acirrado pelos ciumes dos seus camaristas, deixou-se illaquear n'aquelles braços elasticos da Petronilla, e locupletou-a de ouro e pedras. Quando se passou a Castella, a garrida comica levou trinta cavalgaduras carregadas de riquezas--diz Francisco Xavier de Oliveira--e acrescenta que, no theatro de Madrid, a quantidade e valor da pedraria que ostentou eram taes que as damas de primeira plana se morderam de inveja. (_OEuvres mêlées..._ Londres, 1751, pag. 33). Em Hespanha continuou a enthesourar as crystallisações do seu espirito, amoedando a ternura. A final, quando viu que era tempo do cuidar da alma, visto que a parte menos espiritual da sua pessoa andava em geral descuido, retirou-se capitalista, beneficiou mosteiros, fez capellas de santas, do mesmo passo que o seu real amante D. João V fazia capellas de santos. Ambos comediantes, e ambos, a final, fizeram figas ao embaçado demonio. * * * * * Isabel Gamarra, hespanhola estreme, floreceu em Lisboa dezesete annos antes de Petronilia, escripturada pelo actor e emprezario castelhano Annio Ruiz. Este homem era optimo poeta, philosopho, historiador e cortezão--assevera Francisco Xavier de Oliveira.--D. João V dava-lhe uma pensão annual de 120 moedas de ouro. Não foi estranho aos amores de fina tempera velados pelos reposteiros heraldicos. Tinha espiritos levantados como o seu contemporaneo Dufraisne. Em quanto engodava os fidalgos com as suas actrizes, levava ás fidalgas consternadas a boa philosophia, a boa poetica, e os casos historicos analogos á situação. E assim viveu e medrou longos annos em Lisboa. Isabel Gamarra floreceu entre nós quando em Paris arrebatava corações e algibeiras outra hespanhola, chamada Marianna Camarro, a celebrada dançarina; mas a nossa, que parecia, com pouca corrupção, a outra, quanto ao appellido, deixou em Portugal memorias dignas de romance de grande fôlego. Um dos seus amantes foi o marquez de Gouvêa, pai do duque de Aveiro, justiçado como regicida em 1758. Era casada. O marido, a rogos do marquez, recebeu alguns mil cruzados; e, deixando-lh'a, declarou que a sua alliança não tivera a seriedade matrimonial. Isabel abundou no parecer do marido, e sahiu do theatro. Amor, zelos, a gangrena que afistulava os costumes do tempo, e o descredito das ordens religiosas femininas, compelliram o marquez a instar com a Gamarra que professasse no mosteiro de Santa Monica, da ordem de Santo Agostinho. E professou. O marquez não despegava das grades, senão para servir o rei como mordomo-mór. Tinha esposa e filhos, já homens. Um foi o que fugiu com D. Maria da Penha de França e não voltou; o outro, já tambem sabem que tragico destino teve. Não tinham tido pai, senão para lhes dar o exemplo da libertinagem, com cabellos brancos. E, por isso, a freira monica o ralava com impertinencias, instillando-lhe no peito bravos ciumes, que eram a vingança da moral. O marquez recebeu um dia simultaneamente duas ordens: o rei chamára-o ao paço, e Soror Isabel ao convento. O mordomo-mór oscillou alguns minutos quando já ia caminho da côrte, e mandou retroceder o coche para Santa Monica. --Vês tu quanto te amo?--disse o marquez--dei-te a preferencia, entre ti e o rei. --Se fizesses outra cousa nunca mais me verias--replicou ella abespinhando-se. --Mas olha que me arrisco a muito, obedecendo-te!... --O teu dever é esse... _Antes que todo es mi dama_, diz Calderon de la Barca; e, se te não arriscares, e tudo sacrificares ao meu prazer, fraco amor me tens. _J'ai entendu moi-même tout ce petit dialogue, où il n'y a pas un seul mot de ma façon_, diz o cavalheiro de Oliveira, (_OEuvres mêlées_, t. 3.º p. 34). Isto é apenas irrisorio, mas desculpavel. Todos temos na vida a má digestão de um pedaço de Gamarra. O que excede toda a piedade, que uns merecem os consocios de infortunio, é que ella o trahia com um Valentim da Costa Noronha, rapaz galante, valente, o unico por quem ella sentira alguma cousa que a indemnisava da repugnancia do habito. O cavalheiro de Oliveira conta-nos assim as miudezas d'aquelles amores, que levaram o velho marquez á cova: «Conheci Gamarra melhor que ninguem. A estreita amizade, que tive com o Noronha, me occasionou durante dous annos ensejo de vêl-a, conversal-a, e conhecer-lhe os merecimentos e defeitos. Noronha, apaixonado por ella quanto cabe em peito de homem, sacrificou á intriga d'esta actriz monastica tudo que mais caro lhe era no mundo. A estima devida á esposa, o respeito paternal, o affecto dos melhores amigos, o porvir dos filhos, socego, interesses, em fim, a propria vida que expoz em muitos lances á vingança do marquez, cujo respeito benemerito soffreu muitos desfalques de encontro á coragem intrepida de Noronha... Era elle, porém, o possessor unico da ternura de Gamarra. O marquez traçou perdêl-o. Duas vezes projectou matal-o. Estava eu com Noronha, uma noite, quando o aggrediram: felizmente repulsamos os assassinos. A final, o marquez, authorisado pelo rei, logrou encarcerar Noronha no Limoeiro, onde esteve nove mezes; e com muita difficuldade obteve soltura depois da morte do marquez. Fr. Gaspar, tio d'aquelle senhor, e valido do rei, fêz quanto pôde por demorar tão injusta prisão, vingando d'est'arte os manes do marquez, seu sobrinho.» (_Obra cit._, pag. 34 e 35). O mordomo-mór estava na idade critica dos cincoenta em que as paixões atabafam o coração como aos dezesete. Os velhos, quando amam, teem a sensibilidade das meninas que principiam a amar. Se não se percatam e escudam com o arnez da paciencia e da dignidade das cãs, _maus bichos os comem_, como disse o Sá de Miranda. Maus bichos começaram a desfazer o corpo, que tão regaladamente vivêra, d'aquelle D. Martinho de Mascarenhas, terceiro marquez de Gouvêa, sexto conde de Santa Cruz, assassinado pela perfida actriz de Santa Monica no dia 9 de março de 1723. O derradeiro golpe recebera-o com a noticia de que ella havia dado a Valentim de Noronha o retrato que lhe elle dera engastado em moldura de brilhantes... _Il me fit voir_ (diz o amigo de Noronha) _entre ses propres mains ce même portrait du marquis, le même jour qu'il en avail fait présent à son infidele Gamarra._ Se era formosa? Responde o cavalheiro que diz tel-a conhecido a preceito, _mieux que personne_: «Era com certeza a mais formosa actriz que vi no theatro de Lisboa: era moça, azevieira, travessa, vivissima, espirituosissima, feiticeira em todos os seus requebros. Tinha um só defeito: era ser treda. Atraiçoava igualmente o marido e o amante. Por um tinha aversão, por outro sómente estima. Se amou rasgadamente alguem, foi Noronha.» (_Obra cit._, pag. 35). Assim que o finado marquez a dispensou do capricho do habito, quiz sahir do convento, e naturalmente visitar Valentim no Limoeiro. A prelada oppoz-se. Mandou chamar o marido, que ainda não era frade. Communicou-lhe o proposito de se declarar casada e passar-se ao dominio de seu homem, como era de justiça. O marido sondou a profundidade do seu direito e a profundeza do peculio da mulher. Requereu, disputando-a ao patriarcha Santo Agostinho. Sahiu-lhe a igreja com embargos á annullação dos votos da freira. A religião permittia que ella os transgredisse com o marquez e com o Valentim; mas que os annullasse para se tornar ao marido, isso era feio. A final, Soror Isabel safou-se do mosteiro, metteu-se em Castella, e voltou a representar com o marido no theatro de Madrid. (_Obra cit._, pag. 33, nota _A_). Quanto a Valentim, não lhe faltou medo que D. João V o mandasse enforcar como fizera áquelle gentil rapaz que ousára disfarçado em carvoeiro visitar-lhe, no convento da Rosa, a cigana Soror Margarida do Monte, a quem o rei mandára vestir o habito. O desgraçado ficou na tradição com o nome de _carvoeiro da Rosa_. Ao proposito d'esta perigosa cigana, escreve o tantas vezes citado cavalheiro de Oliveira: «Vi o proprio monarcha arrastar duros grilhões, e longo tempo captivo da astucia ou do magismo de Margarida do Monte. Quantas desordens, quantos desterros e mortes causados por intrigas d'aquella mulher! Morreu enclausurada no mosteiro da Rosa, como freira da ordem de S. Domingos. Este pai, que lhe foi imposto á força, não lhe incutiu mais juizo. Induziu ella um galã a visital-a na cella. Fez-lhe a vontade o desgraçado; foi preso lá dentro, e pouco depois enforcado.» (_Obra cit._, pag. 66). O encarregado da prisão foi o desembargador Marques Bacalhau, homem de cruas entranhas, chamado sempre a funccionar nos dramas que terminaram pela catastrophe da forca. Correram então em Lisboa umas insipidas quadras de queixume de Margarida do Monte contra o desembargador aguazil do _carvoeiro_. Diziam assim: Oh! descahido te vejam Estes olhos peccadores: Arrastado e perseguido Já que perco os meus amores. Todas nós, as freiras juntas Te havemos de praguejar Pois por caber com el-rei Nos vaes desacreditar! Justiça de Deus te cáia, E com todo o seu poder; Na bocca de um bacamarte Te vejamos padecer. Homem, deixa-nos viver, Não sejas tão turbulento; Deixa divertir as tristes Que não sahem do convento. Etc. Um amigo, que me ouviu lêr estas noticias do theatro do seculo XVIII, perguntou-me se eu as bebi nos livros do snr. Theophilo Braga. --Que livros? --A _Historia do theatro portuguez_, onde elle conta pouco mais ou menos essa historia. A paginas 8 do 3.º tomo diz elle o que vossé diz do actor hespanhol Antonio Ruiz. Possuo com singular curiosidade os livros originaes d'aquelle sabio. Abri a obra citada e li. Effectivamente copiei o doutor Theophilo, como o leitor vai observar. Em expiação da minha fragilidade, confesso a culpa, confrontando o original e o plagiato. ELLE (EM 1871) _Antonio Rodrigues hespanhol sustentou-se com felicidade muitos annos no theatro de Lisboa. Era bonissimo poeta, philosopho, historiador e palaciano._ Era homem de bem tanto ás direitas como actor de merito. _Do seu_ porte _honrado_ redundou-lhe _uma pensão annual de cento e vinte moedas de ouro que lhe dava o rei. Querido das mulheres, estimado da nobreza, e relacionado com muitos prelados do reino, até do povo se fez idolatrar._ HIST. DO THEATRO PORT. EU (EM 1866) _Antonio Rodrigues, hespanhol, sustentou-se com felicidade muitos annos no theatro de Lisboa. Era bonissimo poeta, philosopho, historiador e palaciano._ Era tão homem de bem quanto actor de merecimento. _Do seu_ proceder _honrado_ resultou-lhe _uma pensão annual de cento e vinte moedas de ouro que lhe dava o rei. Querido das mulheres, estimado da nobreza, e relacionado com muitos prelados do reino, até do povo se fez idolatrar._ O JUDEU (romance). Quem, primeiro que elle e eu, dissera isto em francez foi Francisco Xavier de Oliveira, em um livro que provavelmente o snr. Theophilo nunca viu; mas adivinhou-o, e eu copiei d'elle. Porém, no acto da copia, deslisei da versão do professor de litteratura em tres pontos. 1.º Elle escreveu em 1871: _Era homem de bem tanto ás direitas como auctor de merito_; e eu escrevi em 1866: _Era tão homem de bem quanto author de merecimento._ E o cavalheiro de Oliveira tinha escripto: _Il étoit aussi homme de bien qu'il etoit Acteur de mérite._ O _tanto ás direitas_ do snr. Theophilo é uma perola de estylo de que eu não quiz defraudal-o nem _ás tortas_. 2.º ponto: Elle disse: _do seu porte honrado_. E eu, gafando a phrase de francezia, puz _proceder_ em lugar de _porte_. Foi ignorancia que me pesa como _porte_ ou carreto; mas ainda me fica _porte_ ou capacidade para mais toneladas de materia bruta com que me quero dar _porte_ ou importancia. 3.º ponto da minha divergencia, quando em 1866 eu copiava o que o doutor escrevia em 1871: Elle pôz _redundou-lhe_, e eu _resultou-lhe_. Do feitio que elle escreveu a idéa fica mais aceada. Na nova edição do _Judeu_ hei de apanhar-lhe o _redundou-lhe_ que é bom. No entanto, posto que eu plagiasse este erudito, não sei por que artes lhe armei a sancadilha de chamar Antonio _Rodrigues_ ao actor hespanhol que nunca foi _Rodrigues_; mas sim _Ruiz_. Faz-se mister sestro de muito mentir para enganar um homem, de quem se copía o engano cinco annos depois! Parece enguiço! O cavalheiro de Oliveira escreveu _Ruiz_. Cuidei que era abreviatura de _Rodrigues_, e lá vai a peta de recochête lograr o doutor que m'a encampou cinco annos antes, a mim, seu copista! Quem me desenganou foi o poeta jocoso Thomaz Pinto Brandão; e contarei ao leitor como e quando, se é que lhe não vou contar o que v. exc.ª já sabe do doutor Theophilo. Ahi por 1730 chegou a Lisboa a companhia hespanhola, que se hospedou em casa de um clerigo seu patricio chamado D. Hieronimo Cancer. Ao assumpto d'esta hospedagem de raparigas em casa do padre fez Brandão as seguintes decimas: Victor! já chegou a gente de Madrid, tão esperada, e já foi agasalhada do seu superintendente. Este padre impertinente se intitula em Portugal Dom Hieronomio de tal, e _Cancer_ tambem seria, pois á sua enfermaria puxa as damas do hospital. Porém, viva o tal padrinho! só a taes afilhadas chega; que á Undarro, e á gallega abençôa o seu carinho. E baptisa de caminho com fé pia e fervorosa a dama em flôr magestosa, confirmada no primor; porém, se a Undarro é flôr tombem a gallega é Rosa. .............................. .............................. Com que já por uma vez, temos boa companhia, graças ao nosso Atouguia que tal companhia fez, Em fim, já chegou Garcez,[1] galan de primeira classe, que eu não cuidei que chegasse; e já muita gente diz que morreu Antonio Ruiz; mas _requiescat in pace_. _Amen._ Digo o mesmo, respectivamente ao sabio que desbalisei do seu trabalho de traductor de um livro que nunca viu. E agora vem de molde penitenciar-me d'um insolente repto que escrevi ha dous annos por occasião de recommendar certo livro escripto portuguezmente: ......................................................................... «Admiro como elle (o author) se manteve austeramente portuguez em meio dos sycambros litteratiços que, áquelle tempo, coaxavam por esses paues! Parece-me que já então por alli era (em Coimbra) contagiosa a sarna letrada do insigne rhapsodista, snr. Theophilo. Este sujeito traduzia as suas cousas originaes em vasconço azado para nos capacitarmos da sua ignorancia dos idiomas neo-latinos. Vislumbrava-se d'aquillo muito lidar com linguas teutonicas; uma construcção que cheirava ao grego, mas fallava mouro. O seu forragear no francez era um justo despique dos latrocinios que elles cá nos fizeram em 1808. Se os não citava, tambem elles lá não disseram cujas eram as patenas e os calices de ouro que nos arrebanharam nas igrejas. Retaliação justa. «Ainda assim, as rhapsodias d'este philosopho, derrancadas pelo estylo, não tinham cunho d'author escorreito. O polygrapho, chamado ha pouco a ensinar a mocidade, sustenta creditos de original, affirmados e cimentados na singularidade bordalenga com que transpõe idéas peregrinamente formosas para as suas locuções de chouto, coxas, esparavonadas, pragaes infindos, florilegios de absurdos, listrados d'algumas raras clareiras de siso commum, apanhadas de outiva, mas desordenadas no vascolejar d'aquelle craneo legendario onde o enxofre sobrepuja o phosphoro. «O homem, um dia, traduziu Balzac. Dizia elle que ia traduzir novellas para que o publico soubesse onde os romancistas portuguezes ceifavam, a furto, as suas messes. Era contra mim que o doutor desempolgava a flecha. Ai do Balzac, se o avaliaram na injuriosa versão do meu malsim! «Eu tinha então oitenta volumes com o meu nome, oitenta provocações atiradas á cara juvenil do prodigio. Lá lh'as deixo estampadas. E prometto lembrar-lh'as. «Não me ha de ser acoimada como desvanecimento a presumpção de que umas negaças litterarias, que vou tregeitando a este vidente vêsgo, hão de viver tanto como os seus apocalypses, em que a besta é muito mais intelligente e manhosa que a de S. João Evangelista. Eu, por mim, desejo que, lá ao diante, se saiba quo morri na desconfiança de que o snr. Theophilo Braga era um malabar de feira saloia enfatuado com os applausos do gentio lôrpa.» Desdigo-me de tudo que ahi fica para minha eterna vilta. Logo que fui apanhado a copiar do snr. Joaquim Theophilo Fernandes Braga, julgo-me capaz de copiar de toda a gente. * * * * * Agora, direi da Zamperini. Cantou no theatro dá rua dos Condes ha 104 annos. É a terceira das forasteiras que mais ouro mineraram em Portugal e mais authenticos documentos levaram da sensibilidade do peito lusitano. Para o theatro lyrico da rua dos Condes fintaram-se os argentarios em quatrocentos mil cruzados; e no anno seguinte, já não havia dinheiro para pagar ao tenor Schiattini. Adoptaram então os emprezarios um systema que não é hoje bastantemente seguido: como o tenor instasse pela mensalidade, metteram-o na casa dos doudos; mas, em noite de espectaculo, concediam-lhe a lucidez necessaria para cantar de graça. Iam então dous quadrilheiros trazêl-o da enfermaria dos orates em direitura ao camarim. O tenor vestia-se, e era escoltado até ao palco. Ahi, desatava o canto, compondo de sua lavra a letra, que era um desafogo de injurias rimadas aos emprezarios. O povo trovejava gargalhadas, e o improvisador, aquecido pelos applausos, sarjava a epiderme d'aquelles originaes patifes que, no fim da opera, o devolviam ao seu cubiculo no hospital de S. José. Assim andou baldeado entre o palco e a enfermaria, até que D. José I, condoido do artista, o admittiu á sua real capella. Aos biltres illustres que capitularam de sandeu o tenor, não irrogou censura o rei nem o grande ministro: porque entre elles estava o conde de Oeiras, filho do marquez de Pombal, e um dos varios amadores da cantarina. Não foi, porém, o primogenito do marquez a mais generosa victima no holocausto de Zamperini. O sagacissimo pai espiára-o até dar-se a crise da logreira dama se manter a expensas d'elle, sem o concurso dos capitalistas. Chegado o momento, Zamperini foi expulsa do paiz, por ordem do ministro. Em 1772 espalharam-se em Lisboa alguns exemplares de uma reles gravura, figurando a camara de Zamperini. Está a cantora sentada ao pé de uma banca; e, ao lado, estas duas linhas com feitio de versos: Prenez, belle et charmante coquette, prenes tout, puis que vous êtes dans un país de fous. Defronte d'ella está Anselmo José Braancamp, dando-lhe 1:000 peças, que ella recolhe com a mão direita, em quanto o monteiro-mór, ajoelhado, lhe beija a mão esquerda. Da bocca d'este sujeito partem duas linhas em inglez: The true property of an englishman T'is to pay and despise.........[2] E mais abaixo: Mylord, dont kiss her hand, Because she has no face, But kiss her... her... her... Kiss her elsewhere[3] Á direita, está Ignacio Pedro Quintella com a bolsa aberta, mas, ao que figura, ainda não resolvido a esvazial-a. Correspondem-lhe estes versos: A quoi pensez, Monsieur? elle encore ne vouz aime; allons, prenez l'exemple, et vous serez de même. Á esquerda, Antonio Soares de Mendonça mette a bolsa na algibeira, e dá visos de safar-se, com estes versos: Lasciate agli altri, amico, la campagna, questa sol con quatrini si guadagna. A um canto, está o padre Manoel de Macedo repelindo à sua celebrada ode á cantora, e João da Silva Tello recita-lhe esta quadra: Macedo, não te cances, Pois os gostos são diversos; Zamperini estima o ouro, E nada entende de versos. E assim termina a relamboria semsaboria. Os casos relativos a esta cantora são vulgares e muito sabidos da ampla nota de Verdier _Hyssope_. Os netos dos sujeitos que a opulentaram, hoje em dia, são pessoas de muito juizo, de medianas posses, e sorveteiras glaciaes em ternuras de camarins. [1] O snr. Theophilo a pag. 151 e 152 do tom. 3.º do seu _Theatro portuguez_ desmente o Pinto Brandão, dizendo que o _Garcez não veio_. O doutor, 141 annos depois, estava mais em dia que o poeta, redactor diario dos factos que vai poetisando a seu modo. Theophilo é unico! [2] O que bem caracterisa o inglês é pagar bizarramente e... andar. [3] Mylord, talvez vos désse maior jubilo, em vez de beijar-lhe a mão, etc. ENTRADA PARA OS SALÕES Eu não contava com a gloria e o contentamento de estampar nas _Noites de insomnia_ o livro completo de physiologia social, intitulado--OS SALÕES. Cuidei que o pensador severo e estylista primoroso me daria como brinde tão sómente alguns fragmentos, radiados da idéa geral da obra. Agora sei que todo o livro será meu, será d'estes opusculos que tão benigna e agraciadamente são recebidos e indulgenciados pela bemquerença de 1:000 subscriptores. E, pois que a publicação dos SALÕES principiou aqui desacompanhada da introducção indispensavel ao complexo dos capitulos, forçoso é que se interponha o soberbo peristylo por onde o leitor mais de grado irá ao entendimento dos trechos que já leu e dos outros que advierem. Este livro dos SALÕES será a porção mais para durar e sobreviver ás futilidades das _Noites de insomnia_. O visconde de Ouguella, ainda em annos florentes e vigorosos, póde dizer com o velho e experimentado Rousseau: _Je sens mon coeur et je connais les hommes_. O seu livro esplende os lampejos sinistros do espirito por onde passaram as duvidas e pungentes ironias de Proudhon--aquelle vidente que Deus mandou apregoar a prophecia da destruição debaixo dos muros da segunda Jerusalem derruida. A Justiça, a inspiradora do livro que se intitulou graciosamente os SALÕES, apparece-nos ahi sem a venda gentilica, vê pelos olhos da historia--a Fatalidade inflexa--; e emerge á flôr d'estes parceis, que nos atormentam, as evoluções da Providencia. Não estamos afeitos a taes livros com assignalado sinete portuguez. O melhor romance entre nós é um espairecimento, e o melhor poema uma balbuciação em linguagem nova. A Poesia ha de vir a ser apostolo, e a trajar insignias circumspectas de Justiça, quando os bons espiritos como Guerra Junqueiro e Guilherme de Azevedo a não descompozerem com a nudeza das tragedias, e as diatribes em que o sarcasmo não suppre o ensinamento affectivo. A «alma nova» não se compadece com uns corações que nasceram velhos. Livros para este tempo faz-se mister que venham saturados das lições do passado, e se ajustem a entendimentos rudimentares. Aos espiritos cultos pouco ha que ensinar, logo que esses nos admoestam superciliosamente que moralisemos as _massas_. Mas sejamos todos _massas_ em quanto o povo--a arraia das hortas e das galerias parlamentares--desconfiar que lhe desce do alto o exemplo que a dissolve e acanalha. O livro do snr. visconde de Ouguella será a historia ideada um pouco á feição do estylo e maneira de Lamennais quando a referia em _palavras de crente_, e quando as turbas criam e estremeciam ao relampejar do Sinay. Isso passou lá fóra, e estou em crêr que nunca se acclimou aqui. Se alguma hora o fervor politico levantou cachão na consciencia publica, a infamia assignalava as esplosões de civismo com o sangue de Agostinho José Freire. Relampagos de Sinay entre nós são os que flammejam das casernas e reverberam nos gladios dos Quichotes que constituem os reis seus Pansas. E, como eu me sinta impellido a grandes forragens historicas em terras da Mancha e Barataria, recolho-me ao vestibulo dos SALÕES, e peço ao visconde de Ouguella que nos relate como foi que um providencial acerto lhe deparou o manuscripto do desembargador. OS SALÕES INTRODUCÇÃO ... Elle eut pour lui cette reconnaissance que la perle doit avoir pour le plongeur, qui l'a decouverte dans son écaille grossière sous le ténébreux manteau de l'océan. THEOPHILE GAUTIER. Era um dia esplendido de inverno n'este ignoto canto do occidente. Abri o Almanach da agencia primitiva de annuncios, e a paginas dez encontrei o seguinte: «20 Terça. S. Sebastião, martyr. Festa na sua freguezia, e na igreja do hospital de S. José.» Perdoem-me os devotos. Nenhuma d'estas festividades me impressionou o espirito. Resolvi ir á feira da Ladra. Ás terças feiras, assemelha-se o campo de Sant'Anna a um bazar africano, na selvagem e cynica disposição dos objectos que constituem o mercado. Estas tristes e lugubres origens berberes demonstram-se sempre, e a cada passo. As magnificencias orientaes, em todo o esplendor e opulencia das inacreditaveis e sublimes raridades da Asia, nos seus soberbos e sumptuosos caravanseraes, não existem aqui. Lêem-se nos livros, aprendem-se nas _Mil e uma noites_, adivinham-se nas chronicas dos nossos navegadores, estudam-se nos espolios atrozmente mutilados das casas antiquissimas e esplendorosas dos vice-reis da India. Hoje são um mytho. Para nós--pobre povo--empurrado para as vagas espumosas do oceano, pelas civilisações que se apossaram da Europa, e que nos varrem sem piedade nem dôr para a Africa carthagineza, como se nós foramos os numidas das lendas romanas ou os ferozes kabylas das raizes do Atlas. E o que somos nós? Deus o sabe. Somos um povo essencialmente temente a Deus, essencialmente catholico, devotado á virgem de Lourdes e á Senhora de la Salette, essencialmente constitucional, e essencialmente ignorante n'estas lutas, que despedaçam thronos e proclamam republicas. «Tudo quanto Deus faz é por melhor», assevera esta familia lusitana, n'um proloquio de origem celtica, que tem todo o fatalismo e sabor das raças e linguas orientaes. As lutas do catholicismo e do crescente mourisco crearam uma epopéa grandiosa, que se traduz n'este eclectismo philosophico e religioso, que afoga, em vastas dissertações aristotélicas, e em tristissimas lutas das escólas de Alexandria, estas simples e ingenuas verdades christãs. A _graça_, evangelisada pelos doutores da igreja, é, talvez, efficaz para apagar estes torneios nas consciencias, e remir peccados de reminiscencias tão pagãs. E assim vamos vivendo. A phrase é chata e villã. Mas está officialmente reconhecida e estampada nos muito veridicos e piedosos discursos da corôa, tal qual resa e commemora o agiologio parlamentar. Houve um dia, antes das ordenanças de Carlos X, em que um jornal francez, tão lido que aterrava o throno, terminava o seu principal artigo--esculpido hoje nos bronzes da historia--com esta phrase singela e prophetica: _Pobre França, pobre rei!_... Se eu dissera aqui: _pobre_ Portugal!--Não digo. Entrei na feira da Ladra. Na entrada do campo, a um dos angulos, em face do convento de Sant'Anna, levanta-se a praça dos Touros. Edificações mais ou menos elegantes, mais ou menos sumptuosas, enfileiram-se, em linha recta, por uma das faces. Ao fundo está gizado um microscopico jardim que, na louca ambição da sua tristissima Flora, cingindo-se no cinto fanado de um empoeiradissimo buxo, caberia á vontade na mais limitada sala de qualquer nababo das possessões indo-britannicas. Pelo meio do campo, em deploravel estendal, havia pannos, pranchas de pinho e taboleiros ignobeis, onde jaziam, na mais intima convivencia, os residuos, o lixo e os detritos da geração presente e das que passaram. Acudiu-me aqui a musa do poeta florentino: «Lasciate ogni speranza, voi che entrate.» Achava-me em presença do inventario de uma capital. Examinei: Um pires secular de Sèvres, voluptuosamente contornado nas fórmas elegantes do reinado de Luiz XV, escondia-se na penumbra d'uma terrina de faiança, que fôra a ultima aspiração da fabrica de Sacavem. Havia um sacrificio a Diana, em biscuit de Saxe, tombado sobre a espora de prateleira, que fôra triste legado do ultimo marquez de Marialva. Mais longe, espreguiçava-se com a boçal ironia de _parvenu_, um saleiro da modesta porcelana da Vista-Alegre, sobre os fragmentos de um vaso etrusco, humilhado e melancolico nas mutilações e concertos com que o expunham á irrisão publica. Um espelho de crystal de Veneza, onde os amores brincavam com frechas e carcazes, coloridos sobre o vidro, por mãos de fadas, entre um rosal de perfeito esmalte, n'um berço de verdura e de papoulas, encaixilhado em ebano, aberto a buril, nos cantos, em prata dourada, repousava sobre uma farda de archeiro, coeva dos devaneios da côrte de D. João V, e reliquia marcial, talvez, dos delirios asceticos do mosteiro de Odivellas. A tampa de um assucareiro do mais antigo Saxe, levantando, em relevo, uma deliciosa grinalda de boninas e amores perfeitos, recordava, na suavidade das fórmas e no primor das folhagens, as creações elegantissimas de Vanloo e Bucher. Um prato esmaltado da mais diaphana e transparente porcelana do Japão equilibrava-se sobre um fructeiro de louça das Caldas, onde se traduzia a ridicula vaidade do oleiro, que quizera rastejar no colorido e nos embautidos cambiantes das côres, e pela opulencia dos debuxos e ornatos, com os preciosos trabalhos ceramicos de Bernardo de Palissy. Mais adiante, por entre uma selva de martellos partidos, fechaduras quebradas, correntes de ferro em completa oxydação, e chaves e cadeados de varias dimensões, dei com o retrato de el-rei D. José, pintado a óleo, em vestuario de côrte, com o globo de ouro e sceptro cinzelados, no estylo classico das monarchias absolutas. Pendia o quadro sobre um candieiro de latão, pharol de tres lumes, contemporaneo, talvez, da lampada a cuja luz Paschoal José de Mello escrevera o seu livro de direito criminal. Após estes primores archeologicos desenrolava-se uma fileira incommensuravel de botinas, sapatos, babuches, chinelas, tamancos, galochas e alpercatas, que se perdiam n'uma extensa linha, talvez a ultima illusão dos seus possuidores. _Sic transit gloria mundi_, clamavam os escravos, queimando estopa, detraz dos carros dourados dos triumphadores romanos. Desde o vestuario tragico, que acompanhava em scena os heroes do atheniense Sophocles até ao sóco plebeu da comedia vulgar, onde se expandia o riso de Aristophanes, havia tudo n'este bazar immenso das gerações extinctas. Gigantes e lilliputianos, heroes, semi-deuses e proletarios poderiam calçar-se, afoutos, n'aquelle cháos de todas as civilisações. Havia a bota de canhão, séria, grave e irreprehensivelmente lustrosa--despojo venerando de algum desembargador da casa da supplicação, de par com a chinela phantastica e imaginosa da cortezã mais desenvolta e elegante. Por entre colchas da India, recamadas de lentejoulas, esmaltadas em mosaicos de fios de ouro, entretecidos em variados matizes, lençoes de Bretanha, finissimos, arrendados em arabescos nas orlas das cabeceiras, columnas de carvalho do norte, abertas a buril, em que pousavam passaros esculpidos sobre pampanos e hastes de videira, no meio de fragmentos de apparatosos biombos de charão escarlate da phantastica China, onde aves e dragões dourados surgiam de vasos idealisados pela imaginosa creação do artista, através de crystaes de Bohemia, partidos e mutilados, enunciando todas as côres do prisma, e de envolta com vassouras de piassaba, modestas e envergonhadas em toda a humildade da sua burguezia, avistei um contador de Boule, moldado em tartaruga, envolto em festões de grinaldas de cobre dourado, no mais correcto estylo Pompadour, e arremedando, na ousadia do desenho e na elegancia e recortes das folhas de metal, as sublimes inspirações de Benvenuto Cellini. Por detraz d'este contador, que era a joia, o talisman, a maravilha, no seio d'aquelle crapuloso e hediondo bazar, equilibrava-se de cocoras, formando como novello, uma velha octogenaria, que se poderia descrever por uma ruga inteira, que em zig-zag ou em grega lhe cortava as faces, e ia perder-se, em espiral, n'uma garganta, que parecia a pelle abandonada por uma serpente do deserto. Encarei-a a medo, e com um pavor inexcedivel. Pareceu-me dar de rosto com uma das feiticeiras de Macbeth. Envolvia-se n'um cafran ou burnus--uma especie de farrapo de panno, que lhe cingia o tronco, deixando solta a cabeça, que apparecia envolta n'um lenço asqueroso, injuriado pelo tempo, e que emmoldurava dous olhos negros scintillantes e vivos, n'uma physionomia baça e livida, como um pedaço de cera amollecido entre os dedos. Dirigi-lhe a palavra em phrases breves. Cheguei a ter receio do despertar d'aquella sphinge. Ouvi, depois, um ruido surdo, como de um movel, que se arrasta, uns sons roucos e gutturaes, na melopéa arabe, uma voz cavernosa, e sahida dos abysmos, como se fôra uma das pythonissas da velha Escocia. Afigurou-se-me que lhe ouvira a saudação feita ao heroe de Shakspeare: Salvè thane de Glamis, e de Candor! A fascinação, que me produzira o cofre, explica, de certo, estas allucinações e devaneios acusticos. Enchi-me de animo, e perguntei-lhe de novo: quanto custa este contador? A velha, a sibylla, a bruxa, o que quer que era, remexeu-se, por entre os farrapos que a cobriam, rumorejou por duas ou tres vezes algumas phrases, que não chegaram aos meus ouvidos. Alguma invocação infernal, algum preito a Satanaz,--e depois accentuou em voz clara e cadenciada as seguintes palavras: --Dê-me dez libras, e leva-o de graça. --E a chave? --A chave não a tenho. Perdeu-se. Ha papeis dentro. Bem sei que os ha. São comedias, entremezes ou seja lá o que fôr. Doudices do dono. O desembargador João Aleixo de Castro Pimentel e Figueiredo escrevia muito nos ultimos annos da sua vida. --Conheceu-o? A velha sorriu-se. A ironia d'este sorriso tinha não sei que reflexo dos lampejos do fogo infernal. --Se o conheci! Fui sua criada. Tinha sido sua escrava. Comprou-me em Tetuão. Morreu-me nos braços, no ultimo de dezembro á meia noite. Eu vendo os moveis para comer. Entreguei-lhe as dez libras sem regatear cinco reis. Esperava com esta amabilidade que a antiga escrava do desembargador continuasse a sua curta narração. Mas a velha guardou o dinheiro n'um sacco que lhe pendia do cinto, velou as faces com o farrapo ou capote que a cobria, e ficou muda e silenciosa como um mysterio. Não me dei ao trabalho de procurar uma chave. Quebrei a fechadura, achei nas gavetas um manuscripto, e encontrei na primeira pagina o seguinte: AO LEITOR Vivi bastante para alcançar mais de metade do seculo dezenove. Considerei, examinei, e estudei os acontecimentos, e os homens do meu tempo. Vou debuxal-os e desenhal-os taes quaes os concebi, e taes quaes elles se teem mostrado n'estas rotações constitucionaes de uma época, que não é a minha. Onde bastar o esboço abandonarei a palheta, e usarei do lapis de carvão. Onde o vulto carecer de mais luz, e de mais vasto horisonte deixarei o pincel, e pegarei do cinzel e do escopro. Não tenho pretenções a Phidias, nem a Miguel Angelo, nem a Rubens, nem a Hogarth, nem a Van-Dick, nem a Aretino, nem a Delacroix. Faltam-me os traços de Zubarran, as linhas de Corregio, as tintas de Ticiano, os perfis de Murillo e o riso sardonico de Gavarni. Com tudo, as sombras d'estes nossos Mirabeaus, Talleyrands, Barnaves, Berriers, Collards, Cavaignacs, Favres e Marats hei de pôl-as de pé, hei de vestil-as, hei de enroupal-as, nas vestiduras do nosso seculo, e hei de com ellas e só com ellas povoar OS SALÕES Segue-se o livro. Vou publical-o. VISCONDE DE OUGUELLA. ECCE ITERUM «SILVA» CRÍSPINUS Escreve elle no n.º 69 da _Actualidade_: «Publicou-se o n.º 17 da _Tribuna_. Insere artigos e versos dos snrs. Ferrer Farol, Guimarães Fonseca, e outros escriptores, e não desmerece dos numeros _ulteriores_.» _Ulterior_ quer dizer _que vem depois_, ou _que tem data posterior_. Á vista do quê, o n.º 17 já publicado é posterior ou _ulterior_ ao n.º 18. Segundo este systema chronologico de Pinto, o _depois_ está primeiro que _antes_, 6 é a continuação de 7, e os filhos nascem primeiro que os seus paes. Se elle quizesse dizer que os n.^os 18, 19, etc., da _Tribuna_ promettiam ser iguaes aos seus precedentes, escreveria: «Tudo nos assegura que os numeros, que hão de sahir anteriormente, serão dignos dos numeros que já sahiram posteriormente.» Sem impedimento d'estes e d'outros anteriores e ulteriores furunculos de aposthema intellectual, proponho á academia real das sciencias este snr. Silva... para varredor. SANTOS-SILVA Bravo! almas generosas do meu brioso Portugal que amparastes a viuva e os sete orphãos do egregio orador! Bravo! corações que avaliastes o talento do pai e o infortunio dos filhos! Formoso rastilho de luz foi esse que vos guiou desde a sepultura de Santos-Silva até ao recinto em que uma viuva, entre a saudade e a pobreza, ampliava o regaço para aconchegar do seio aquelles sete rostos banhados das ultimas lagrimas de seu pai. Entrou, a um tempo, n'aquelle lugar de angustias, a mortalha e o manto da misericordia. Sahia um cadaver, e entrava o anjo da caridade. João Antonio de Santos-Silva levava espelhadas na retina morta as oito imagens queridas; e a Providencia rodeava de amigos aquelle sagrado grupo de crianças que punham as mãos--expressão unica das agonias inexprimiveis. A fatalidade da morte justificava, não menoscabava os designios do Altissimo. * * * * * Eu conheci-o pouco: fallei com elle duas vezes; lia-lhe os seus discursos como quem estudava a grande phrase lusitana no mais correcto e energico orador parlamentar. Tem lanços admiraveis de força e de atticismo as suas orações. Não sei nem entendo o quilate politico dos seus discursos. Estudava-o meditativamente, sem lhe graduar a justiça da aggressão ou da defeza. Os seus adversarios, a julgal-os pelo tamanho do gladio que os feria, pareciam-me grandes, como os de Isocrates e Demosthenes. Se o não eram, o orador magnanimo deu-lhes a honra de o inspirarem. Tambem eu lhe mereci a consideração de algumas cartas em que me vejo honorificado com o titulo de amigo. Mal pensava eu, quando ha dous annos lhe fallava da irreparavel perda da minha saude, que tão cedo o seu nome iria ajuntar-se aos de tantos amigos mortos, a quem eu dissera o ultimo adeus. E, quando eu lhe fallava de meus filhos com o coração cheio das presentidas lagrimas de dous orphãos, dizia-me elle que lhes seria protector n'esta vida, se Deus lh'a não tirasse ás suas seis criancinhas. Como esta carta está revendo as lagrimas e a santidade de pai!... Porque não hei de eu dar um quinhão d'esta melancolia aos que tem filhos? E uns assomos de jubilo aos que abriram mão redemptora á familia de Santos-Silva? Esta carta foi datada em 24 de outubro de 1871. «.....: Vou dar-lhe um conselho. Estudei e exerci a medicina por uma boa duzia de annos. Estudei-a nos outros, com os escrupulos de uma sã consciencia, e como quem tinha a sua missão por um sacerdocio. Tenho-a tambem estudado em mim, porque a isso me obrigam os meus padecimentos. Dos desenganos que colhi na sciencia e na pratica, resulta para mim uma regra que, se não é uma verdade infallivel, é com certeza muito geral. Nada ha mais falso ou pelo menos incerto do que o juizo que o paciente faz do seu estado, pelo que diz respeito ao diagnostico e prognostico da sua molestia. Os proprios medicos são os que, n'este ponto, mais se enganam, por que são os que mais exageram. «Não creia, pois, nas suas anemias, nem nas suas ethicas; mas não descure restaurar as suas forças, e seguir tenazmente um tratamento hygienico, analeptico e moral, que lhe reconstrua o sangue, lhe regularise qualquer desarranjo de funcção, lhe tranquillise o espirito, ou o levante de qualquer ligeira prostração. Creia tambem na sua idade, e na força medicatriz da natureza, que, quando é bem dirigida e auxiliada por um medico prudente e habil, faz milagres. «Falla-me o meu amigo de dous filhos seus, e appellou para o coração de um pai que tem seis. Feriu a minha corda sensivel; estremeceu-a com as mais vivas vibrações. Não sei se todos os paes são como eu sou: devem sel-o. De todas as desgraças humanas a que mais confrange a minha alma, e mais me angustia o coração, é a que se desata em lagrimas e em infortunios sobre a orphandade desprotegida e desamparada, a quem Deus esqueceu na hora em que encerrou o livro da vida ao pai que só vivia do santo amor de seus filhos. «Se Deus me alongar a vida, e seus filhos precisarem de mão valedora que os guie e ajude n'esta escabrosa peregrinação, irmanal-os-hei aos meus. Repartirei com elles o meu prestimo, se então o tiver. Estas palavras não são só de consolação: são compromissos solemnes, que espero não desmentir. ......................................................................... «A posteridade nem sempre se esquece de pagar as dividas sagradas de seus antecessores. ......................................................................... «Meu caro amigo, não pense em morrer. Pense no que necessita, e de que Deus, que é justo, o não póde por ora privar. Pense na sua vida, que é a vida de seus filhos.» Elle morreu; e, na hora derradeira, reconhecia ainda a justiça divina, posto que estivesse lendo nas lagrimas de sua familia e nas agonias proprias que era chegada a morte. Abençoou-a como enviada de Deus, quando sentiu na garganta a constricção da asphyxia. O halito consolador da Providencia passára, como vaticinio, por aquella alma, quando me escrevia as esperanças realisadas em seus filhos: _A posteridade nem sempre se esquece de pagar as dividas sagradas de seus antecessores_. Pagou. O monumento do grande orador é o pão da sua viuva e dos seus sete filhos. DOUDO ILLUSTRE O arcebispo de Mitylene, D. Domingos José de Sousa Magalhães, doutor em canones, jurisconsulto eminente, orador esclarecido tanto no magisterio universitario como no parlamento, ensandeceu em 1858, quando contava quarenta e nove annos, e acabou de morrer em 1872, em Villa Pouca de Aguiar, na casa onde havia nascido. Motivou a demencia d'este douto prelado a suspensão das funcções de provisor e vigario geral do patriarchado de Lisboa, dada pelo cardeal D. Guilherme I. A causa da suspensão, pleiteada acerbamente por parte do arcebispo e dos seus contendores, foi um opusculo d'aquelle prelado, que denunciava irregularidades e delictos ecclesiasticos. Teve parte n'esta pugna um dos nossos contemporaneos mais abalisados em jurisprudencia e em variada litteratura, o snr. visconde de Paiva Manso, a favor do arcebispo, e contestando o doutor Cicouro. Pleitearam com energia, por parte do patriarcha, o conego João de Deus Antunes Pinto e o reverendo academico Francisco Recreio, digno dos vigorosos impugnadores. Como quer que fosse, o arcebispo de Mitylene perdeu na brava luta a razão; e, ao parecer de illustrados juizes da sua justiça, foi a iniquidade que matou o robusto athleta. Transferido de Lisboa para o amparo de sua familia em Traz-os-montes, a esperança de restaurar-lhe o juizo desvaneceu-a a progressiva condensação da escuridade á volta d'aquella alma triste, lethargica, absorta na contemplação estupida das lagrimas dos parentes e amigos. Do torpor silencioso e abstrahido passou ás manifestações irrequietas do delirio, do sonho, das miragens que lhe tumultuaram, durante quatorze annos, nas suas escuridões interiores. Escrevia muito; dormia poucas horas; palmilhava em vertiginoso regirar o taboado do recinto, onde se refugiava dos olhares amargurados de sua familia. Possuo pequena parte dos seus manuscriptos autographos, com as datas de anno, mez e dia. Deprehende-se de alguns que o illustre alienado se considerava rei de Portugal, umas vezes; pontifice outras; e não é raro enxertar-se em jerarchias mais elevadas no reinado dos puros espiritos. De envolta com os dislates d'aquelle sonhar incessante, ha, nos escriptos do homem que fôra um dos mais alumiados da sua época, admiraveis lanços de linguagem, de conceito e até de razão. Que espantoso contra-senso! É que tambem nos delirios ha raptos de luminosas visões. Os seus escriptos são tratados, theses, dissertações cada qual com seu titulo, compostos desde o segundo até ao penultimo anno da demencia. Conhece-se, apalpa-se o espessar progressivo das trevas, a vertigem da desordem, o vasquejar das derradeiras scintillas. Eis-aqui os titulos: _O gigante--Os privilegios da corôa dynastica--As cinco questões de direito natural, ou o estudo da philosophia de direito na universidade--A missão divina--A chronica real--Da santidade do direito--Cemiterio protestante--A tyrannia impossivel--O mesmo Senhor fez os seus martyres, epistola de S. Paulo aos fieis de Galacia--O impassivel--O erro commum--Os tres fundadores--O cordeiro--A surpreza--O burrinho e o menino dos protestantes--O templo--O penhor e a hypotheca, ou o juro e a herdade--O titulo da realeza--O parocho--O demonio tentador--A espada de S. Bruno--O enigma--Mascara de ferro--O sonho--D. Maria Caraça Bonaparte ou a burrinha protestante--O viatico da eternidade--A estrella do norte ou a misericordia dos mares--A vacca--Apologo--A catastrophe_. Estes manuscriptos comprehendem sessenta cadernos em folha. Em poder da familia do finado arcebispo ainda ha rimas de papel escripto no trajecto de doze annos. Tirando ao acaso um de entre os cadernos cosidos com algodão verde e escarlate--para dar ao leitor a manifestação escripta de uma alma que esvoaça á volta dos residuos ainda bruxuleantes da sua razão---aqui vai a CATASTROPHE Affonso, por sobrenome o Sexto, filho do primeiro rei, que usurpou o titulo de duque de Bragança chamado D. João IV, foi deposto de sua primogenitura por seu irmão D. Pedro, e conservado em prisão e exilio de toda a vida. D. Pedro não podia ser mais perverso. As circumstancias atrocissimas d'este inaudito escandalo não estão bem explicadas nem eram bem conhecidas dos contemporaneos. Os mais prudentes do reino, ou porque não souberam, ou porque não poderam averiguar o intrincado drama, deram ao successo o nome de «catastrophe». Os hespanhoes limitaram-se a negar o que era patente e publico; e das verdadeiras causas e do seu fio e enredo occulto, nada explicaram na sua «anti-catastrophe», documento mediano e mal traçado para o fim, e para o grande empenho da causa e da questão; tão inferior e pueril que a desvirtua e degrada apoucando o assumpto para diminuir a impressão, ou para distrahir e desviar a attenção do horror da catastrophe. Os subsequentes historiadores pouco ou nada tem apurado d'esta vergonhosa historia da usurpação; as suas monographias são como memorias de encommenda que chegam ao seu fim por meios tortuosos para espalhar algum erro ou para afugentar algum receio politico; e do verdadeiro fim da historia não curam nem tratam: porque a prevenção da historia é o erro, e com este rumo ninguem póde navegar nem progredir. Attribuem geralmente os protestantes aquelle sinistro ao partido cardinalicio de Roma, segundo o seu costume e petulante ousadia de calumniadores, que commetteu o delicto para o assoalhar e publicar por um lado attribuindo-o aos seus maiores inimigos, em quanto vão por outro lado desfigurando sempre em vão alguma memoria de maior horror, ou alguma imputação mais pronunciada, mais manifesta e visivel, e n'este falso empenho confundem a historia e geram o erro dos seculos; mas a verdade é como a luz mais forte, que penetra através dos maiores obstaculos em toda a parte onde estiver encerrado o homem pela maior tyrannia para alumiar o captivo, e até para esclarecer o cadaver, que geme debaixo da lousa e do epitaphio, que lhe escreveu o maior crime, em quanto não revela o enigma da sua escura sepultura. A analogia dos factos é o melhor meio de descobrir os mysterios da historia. Para escrever a dos crimes ainda até o presente não achou a boa critica outro fio de mais severa logica, nem documento mais fiel e verdadeiro, nem testemunha mais digna de credito e de authoridade. A Divina Providencia dá causa á catastrophe para punir a atrocidade da injuria; o demonio escreve a anti-catastrophe; mas o effeito subsiste, o facto permanece, o som repercute e sôa em outro ponto e orgão, ás vezes só no echo até á altura, que o Senhor fixa ao bramido para se reproduzir no decurso dos seculos, se um unisono accorda igualmente terrivel e medonho ou funesto e assustador até para o demonio que o gera e produz. Sôa do orgão a tuba, e não é a mão do homem que fere a tecla, nem a musica e pensamento do seu compositor que produz a melodia. Devia o homem vêr no arcano a sciencia divina, que deu ao ar modulado pelo instrumento a euphonica sympathia dos sons e o gentil devaneio do mais accorde accento. O orgão da historia não é um instrumento de imbecis, e mentecaptos que julgam illudir as turbas attribuindo a causas falsas o effeito verdadeiro da sua maravilhosa impressão: deixai o orgão ao templo catholico; porque só n'elle avulta e brilha; aos viciosos e prostibulos de maior vergonha apenas cabe a profana chula de tabernal comedia, e a ironia da musica. A arpa é instrumento real, a lira só a tange a poesia e a verdadeira inspiração que o Senhor concede ou nega ao cantor pelo moto da trova e pelo pensamento da sua religião e virtude. A historia verdadeira ou falsa, illustrada ou cega e pedinte--eis o dilemma unico da sciencia, e o programma que o escriptor competente sempre encontra diante e dentro do seu pensamento segundo o fim a que se propõe e persuade: a maior parte dos eunuchos só presam o devaneio do canto pelo sustento que recebem e pelo dinheiro que contam para satisfazer as suas abominaveis e depravadas paixões. São homens, que se deixam mutilar sem possuir a falsa virtude de Origenes, nem a verdadeira e santa da nossa catholica virgindade; e como pactuam a sua deshonra não exaltam o tiple do seu desenfado sem sonhar com opiparo e somnolento banquete; e por isso todas as suas lôas acabam em comer. O estigma d'este falso ministerio da historia recahe sobre todos os homens do mesmo engenho e calibre, que adoptam os seus estados e profissões só pelo benigno e precioso metal que auferem e adoram--e d'estes é sempre o maior numero; o actual enche de eunuchos todos os theatros e d'histriões a comedia d'aldêa, e a sua nobreza de tamanco. Que mais diremos d'este reprobo e amphibio meteoro, senão que jámais deixa de se converter contra o inventor e mais obstinado sectario? o ennucho converte o sexo, e faz-se besta de carga, ou machina de pura digestão, e morre a pedir, ou vai por conta d'estranho herdeiro dispor o cemiterio da familia, que já se sabe é a familia dos eunuchos sempre a mais torpe e immunda, que nem merece a honra do homem proletario. Queremos dizer, que todos estes hão-de sahir a campo com os vozeirões para aturdir e desmemoriar a maioria dos nossos leitores; este opusculo ha de rir do tremedal e produzir o seu effeito: acanhar os truculentos, e fazer duvidoso o seu ocio e evitar o seu pestifero alento sem ter necessidade de fugir da sua sanha, e sem accelerar o passo do seu domestico e providente animal. Não estranhemos o som do orgão mais vil e desentoado, que vai ás costas de erradio transfuga deslumbrar o calix da sua melodia a todas as tabernas e lupanares; olhai para o rosto e decifrai os signaes, que vos revelam a historia com mais fidelidade do que as memorias que deviam retratar os seus pensamentos de historiador, e apenas contém a sombra da sua ignominia e proterva hediondez e peçonha. Possuir ou não possuir a casa de senhorio de Bragança sempre foi synonymo de ser ou de não ser rei; mas possuir a casa sem possuir o direito é dar pasto á ambição oligarchica e á falsa platêa de comedia; é o mesmo que entregar o supremo poder aos mais vis e ignobeis, ao mais desleal e traiçoeiro corrilho e atroz sequella. Este é o unico partido que póde formar-se e existir em Portugal, em quanto dura e vigora a usurpação; os seus meios os maiores crimes, a sua politica a giria mais desleal e machiavelica, e o perpetuo enredo do engano; o estribilho protestante, o punhal do forasteiro mais atrevido e audaz, e a entrega da patria perdida ao mais ambicioso estrangeiro, e ao maior renegado do demonio. A sua authoridade sempre falsa não impera, pactua em toda a parte com os maiores scelerados, e consegue fins mediocres e resultados de dinheiro sempre ephemeros e fallazes: porque os juizes d'esta tontina roubam-se uns aos outros. Subiu o primeiro usurpador ao throno, e foi este D. João I: a sua mais negra, e mais atroz usurpação foi a da casa de Bragança, mas primeiramente o rei não pôde usurpar, nas provincias nem em Traz-os-Montes, em segundo lugar a usurpação veio toda a pertencer aos caudilhos, que o governaram e dominaram e á sua lei mental e miseravel recurso; que só pôde communicar a seu filho com o mais tetrico e deploravel exito, justo e bem merecido castigo do Senhor pela abominavel traição de Coimbra. Por esta fórma D. João não reinava, e o cardeal romano cujo nome o infame usurpador dava ao summo pontifice, tinha o escravo sempre encerrado na sua possilga, que era o peor palacio da casa de Bragança, sempre a sorver quartilhos de vinho tabernal, cuja despeza faziam entre si os falsos possuidores dos bens para não soffrer a furia real, que era indomavel e grotesca. Se estivesse bem abeberado deixava-se vencer, e cahia ao chão, como Grão Lamma, depois de opiado pelo melhor tabaco e café de Moca, e pelos prazeres reunidos do seu abominavel harem. A lei mental foi uma medida deficientissima para o seu fim, mas prova até que ponto é verdadeiro o principio e evidente em nossa doutrina. O padre santo durante o interdicto de vinte e sete dizia: entregai os bens á casa de Bragança;--disse então a abominavel facção: entregar os bens é o mesmo que entregar a corôa;--e logo faziam um processo com grande numero de testemunhas para provar que não havia successor á corôa, e que D. João I por esta falta de successor fôra justamente acclamado. Escreviam ao mesmo tempo uma Memoria protestante, que aitribuiam a João das Regras, e davam ao falso documento o cunho das côrtes de Coimbra, aonde não foi nem podia ser apresentada sem grande irrisão e escarneo de todo o povo. Alli ficava o corpo santo do duque de Bragança para desmentir todas as memorias, mas tal é a audacia de todos os herejes e fementidos, que nega a verdade conhecida, uma vez que possa fundar-se na apparencia do erro. Este João das Regras não existiu; o nome é de um anonymo; o effeito da Memoria foi contraproducente, o povo ria, zombou, irritou-se e condemnou ao desprezo a falsa e torpe oligarchia que usurpava os bens em nome do simulacro da realeza; e sustentava esta figura só para desfrutar o rendimento da casa de Bragança. Todos os histriões do torpe magnetismo das façanhas da estrada orçam pelo mesmo vulto e dimensões; os seus meios são analogos, a sua cobardia proverbial, a sua vangloria o mais vil commento e a mais ambiciosa tyrannia. Em 1811 outros da mesma chita allegavam no Brazil os grandes serviços que fizeram contra os francezes e obtinham os premios de lograr obeliscos devidos ao valente Ajax: alguns d'estes, se viram os francezes, foi para entregar e vender a patria e os penates, os templos e a sua santidade, as mulheres e todo o verniz do rosto vil e infame do idolo das suas abjectas heresias e traições: se algum militar brioso e valente do exercito appareceu no Brazil foi vendido tres vezes, ludibriado, atraiçoado e escarnecido, porque não assignava os mais falsos documentos e os mais caluminosos e torpes enganos que preparavam e reuniam para a historia de todas as façanhas e proezas do nosso exercito peninsular. Porque razão não se escreveu ainda este vergonhoso commento da usurpação? porque de todo o modo ha de ser a historia mais catholica dos seculos modernos, e o infame hereje e protestante não póde attribuir ao Senhor a menor virtude nem hão de conceder ao povo a correspondente sombra de galardão. Na época de D. João I o povo venceu as batalhas, o rei gemeu na sua escravidão de toda a vida, os usurpadores conspiraram, escreveram seus anachronismos, e falsa historia, e o principio Divino triumphou, porque a luz da verdade é a luz da Providencia, e não ha obstaculo na força humana, que possa occultar a verdade santa que calou na consciencia do povo como queijo do melhor fermento do cordeiro e do novilho. A casa de Bragança venceu o que D. Duarte apenas sonhava como possivel, e deixava entregue ao tristissimo evento das successões para se realisar no decurso de muitos seculos: era um engano absoluto; o partido usurpador é como a familia dos flamengos e dos ciganos--prova e reprova todas gerações e partos suppostos como põe e dispõe os seus monarchas pela ultima arma do veneno e do punhal. D. João I por fim da sua vida estava como o condestavel atormentado pelos remorsos; este deixou os bens usurpados aos outros aventureiros, e pediu esmola á porta do convento com bastante industria e sagacidade; aquelle seria morto na mesma possilga em que vivia, se tentasse restituir a corôa; porque a verdadeira estava na cabeça dos ambiciosos ministros da sua historica realeza. A lei do remorso é a mais imperiosa que se conhece; ao pé da forca, no banco dos réos, no ultimo transe de vida, ou no meio da mais funesta desventura, chega a subjugar e a dominar, e rompe como o furacão através dos maiores obstaculos, e derriba as torres, e arranca as arvores com a sua tormenta e fracasso. D. João I fez uma confissão, e morreu;--quem estrangulou o monarcha? o processo começado das provas evidentes de testemunhas oculares contra os partidarios de Bragança. Quem são estes em vista do opusculo do anonymo João das Regras? Já ia o algoz para descarregar o ferro do cutelo sobre alguns infelizes, que choravam os males da patria, quando chegou novo interdicto de Roma expedido em virtude de uma queixa e de uma prevenção que o rei já se via obrigado a dirigir ao cardinalicio de Roma; onde dizia, que a sua consciencia vergava debaixo do peso de invenciveis remorsos, mas que não podia entregar á casa de Bragança uma corôa sem entregar a vida aos seus tyrannos e crueis usurpadores, e algozes, e d'estes tirava o seu seguro e pedia desaggravo e redempção. D. Duarte viu-se brevemente no mesmo apuro; a lei mental era uma ficção e um engano; este documento prova que os usurpadores da casa de Bragança não contam com successor, e que são muito sujeitos á maldição da esterilidade. O que D. Duarte pedia para os falsos donatarios, e verdadeiros usurpadores veio para a familia real em pena de aleive e da calomnia do falso e fementido João das Regras: quasi todas as successões são actualmente da casa de Bragança por bom e legitimo direito de familia; mas a tyrannia e o roubo é o mesmo--o seu castigo providencial vai sendo identico da mesma catastrophe e represalia. Esta é a analogia dos factos: os que escrevem a historia não pintam a sua verdade porque não são dignos de praticar as suas gentilezas nem tem a virtude necessaria para desmerecer a hipocrisia do embuste, nem o horror das suas traições, nem o abominio e esconjuro da sua aleivosa mordacidade e peçonha. Camões commandou um reducto no cerco memoravel de Diu, Barros e Couto foram dos mais valentes soldados da Asia; e o nobre Cesar das suas façanhas o animo real do senhor D. Affonso d'Albuquerque temia mais a calumnia da historia do que o feroz basilisco do turco, que tomava pela frente como crocodilo do Egypto, sem tombar ao impeto e sem estremecer do vulcão. Chegado a este ponto, já entregava a descripção ou a lenda d'esta memoravel catastrophe ao mais innocente mancebo e ao mais simples academico, uma vez que fosse dotado de boa fé e acreditasse na Divina Providencia, e désse a esta philosophia o peso que os herejes attribuem ao dinheiro de todos os seus commettimentos e unicos recursos. Em regra, moeda vale tudo pelo peso, e pouco ou nada pelo cunho, e pelo signal da sua boa fé; o hereje só admitte da fé e do cunho o maior desprezo para fazer seu o proveito, e para continuar o lucro da sua torpe veniaga. D. João IV tambem usurpou a casa de Bragança e o nobre titulo de duque; todos sabem com que falsidade e com que atroz engano e mais que feroz e brutal ardil: teve da heresia o mesmo fim e o mesmo tragico feretro: os dous primeiros usurpadores do mesmo nome escalaram os seus thronos pelos mesmos meios e falsos degraus, no fim a mesma ruina, na vida a excommunhão e o interdicto, na morte a corda e a traição, o mesmo desenlace, e a mesma reprovação e condemnação divina. O conde da Ericeira escreveu n'esta era a sua vergonhosa historia; o conde era verdadeiro sandeu; o author de «Portugal Restaurado» recebeu a falsa herança de uma casa; e trabalhoso no appetite fazendo do conde o fundo da sua ambição pelo veneno que propinava, e pela astucia mais que diabolica de que se servia no empenho. Apenas concluiu o seu trabalho, disse: Dai-me o premio;--e apenas se viu senhor do falso titulo e casa, disse: Dai-me o preço da obra;--e fez d'esta outra historia um thesouro para se enriquecer e empavesar de fidalgo: este era o verdadeiro João das Regras; porque a sua original possilga nunca se descobriu nem annunciou, e dizia-se que tinha nascido aquelle oraculo da historia ao pé da feira da Ladra de uma mulher, que vendia a chanfana do açougue pelas portas de Lisboa, e que apregoava pelas ruas maior engano. Dizia alguem que o grande erro de D. João IV fôra o acclamar-se duque de Bragança: mas que faria o usurpador depois de matar como matou á traição em Lisboa o legitimo successor de Bragança e do throno? quem havia de sustentar a sua tyrannia, quem ousaria contemplar em frente sem desmaiar e sem horror o monstro de tantas vidas, que bebia o sangue humano, e se recreava com o vil officio de algoz e de executor da nobreza? D. João I principiou a considerar como proprios da corôa todos os bens da casa real de Bragança; D. João dispunha como duque e como senhor de todos os bens para imitar ou produzir a realeza e invicta memoria do senhor D. Manoel I. Esta questão tinha sido tratada e muito debatida na primeira época; todos se acostumaram a considerar a usurpação da casa e dos seus bens como prova heretica de infrene e perversa oligarchia, e D. João professou o erro em Inglaterra, e tinha no seu palacio um ministro de Calvino semelhante ao que foi expulso das Necessidades em nossos dias pelo clamor do povo e pela justa queixa da parte sensata e catholica do reino. Todos os herejes são monarchomacos, o seu rei é de taberna, o seu preito o juramento da loja que o falso rei presta ao veneravel, e se o rei tem o falso cargo jura como rei ao immediato sujeição e obediencia ás decisões maçonicas, e como são muitas as lojas, a cada passo se vê partida ou fraccionada a realeza, ou despedaçada a sua monarchia pelas seitas mais fortes ou mais ousadas, que empolgam o vislumbre do poder. Entre nós só tem havido um partido legitimo que é o catholico e brigantino de todas as eras; só um partido usurpador e constante, que é o dos bens da casa que desfruta pela via directa e occupa pelo mais feroz engano. As seitas e os corrilhos, que se formam das fezes de todos os partidos estrangeiros e execraveis contam como elemento uma vez que o lisonjeie e afoute para maior roubo e façanha da contribuição e da injuria que se haja da fazer á casa da Bragança, e com estas promessas todas sobem, e todos descem, se as frustram ou illudem. Este facto é o que nos resta a provar para complemento da catastrophe e para sua prova real e exuberante. Quando D. Affonso VI se sentia desprezado por todos os portuguezes recorreu aos estrangeiros, e sabe-se, que trazia comsigo alguns valentões, que o defendiam e faziam respeitar em Lisboa, e não podia ser esta força angariada contra o povo, mas antes devemos acreditar, que o rei se fazia forte contra o partido dos usurpadores da casa da Bragança a cuja frente estava a rainha viuva; e por isso teve a regente tanta difficuldade em conceder as redeas do governo ao presumido successor. Este conflicto nasceu e cresceu da mesma antiga causa de todas as discordias da usurpação, e pelo motivo da injuria que tinham feito á casa de Bragança e ao seu popular e heroico senhorio. D'esta vez o governo pontificio ainda não estava resolvido a ceder; não faria a menor concessão de reconhecimento sem a absoluta e total entrega dos bens de Bragança ou dos bens da corôa, e D. Affonso estava resolvido a todos os sacrificios, uma vez que achasse uma collocação em Roma e um modo de viver ou uma absolvição vantajosa para o seu arrumo e fim. Esta deve ser a ambição do usurpador que nasce; o seu throno não offerece encantos, nem póde servir de balisa para a gloria verdadeira e santa que se embebe na felicidade do povo e no heroismo e façanha. N'este estado, privado do seu natural apoio, D. Affonso VI ainda que fosse tão corajoso e tão absoluto como foi o quinto do nome, devia fugir ou sahir do reino para não soffrer a perda da liberdade; tentou o impossivel, e quebrou pela reconhecida prevaricação e má fé da nova e falsa casa de Bragança, que seu pai organisou em Lisboa como partido protestante para sustentar a negra e atroz usurpação: estes factos são innegaveis. O _Joannes à regulis_ da primeira usurpação era um hereje estrangeiro semelhante a um Ditzi, e talvez ministro da seita: D. João IV tinha na sua côrte um ministro protestante da convenção de Cromwell, e todos os usurpadores dos bens da casa de Bragança deviam ser da mesma seita e falso cunho: D. Affonso VI abraçava a doutrina catholica, e, consoante os bons principios de direito, devia perder o titulo de rei; e, se em vez de casar em França, fosse ao reino ceder da corôa, lisonjearia o reino catholico, e podia obter a liberdade, que outro Affonso achou no mesmo reino. D. Affonso conservou a corôa e por esta razão o povo portuguez não podia ingerir-se na questão para defender o preso; D. Pedro, seu irmão, era nimiamente cruel, mas não temia o partido de seu irmão, porque não o tinha: D. Pedro tambem não tinha o partido da nação, e por isso affectava grande humanidade para com seu irmão, e grande respeito pelas côrtes, que sempre o repelliram e despeitaram amargamente. D. Pedro, depois do celebre processo que fez ao irmão para o privar de todos os seus estados até o dar por demente e por impotente, aceitou a mesma mulher, a celebre Saboya, e como esta tinha o tratamento de rainha, D. Pedro julgou que o mesmo throno o fazia successor do titulo de rei; e parecia logico que a deposição perpetua de Affonso o investisse na authoridade real, e o coroasse rei em vez de regente; o titulo de principe não lhe podia competir, nem o de infante, que pouco tempo depois começaram a usar por inaudita usurpação e roubo, e pelo mais atroz anachronismo os filhos segundos d'esta familia de D. João IV. Dizem geralmente as suas historias que sendo duque de Bragança D. João IV e senhor da casa, instituira a do infantado a favor de seu filho segundo para prevenir a falta de successor pelo receio da morte do principe, e uma supposição e um embuste indigno, ou um meio de que se servia a atroz calumnia da usurpação dos bens para tirar a D. Affonso VI o que lhe tinha ficado da casa de Bragança e para os dar ao seu predilecto: e por esta razão veio a D. Affonso o desejo de restituir, e occorreu á facção o pensamento de depôr o insensato. Assim manejou a perfida intriga os seus aleives e falsidades e da mesma maneira em todas as eras procura colher e alcançar o seu unico fim que é o roubo pela pertinaz heresia e pelo mais atroz engano e enredo. D. Pedro usou immediatamente do titulo de rei, mas o povo sempre lhe negou o tratamento; as nações não cessavam de o responsabilisar pela vida do infeliz e proscripto; e já se julgava que fazia guardar como rei um homem estranho, quando o deixou sahir de proposito em Cintra e o fez prender e reconhecer pelo povo como verdadeiro D. Affonso VI no meio do tumulto dos seus agentes e confidentes, que fizeram grande alarido d'aquella supposta revolução para declarar novamente como doudo o triste que se deixou cahir no laço. D. Pedro a cada passo reunia as côrtes do reino sempre na esperança de que o reconhecessem rei, mas jámais o conseguiu pela grande desaffeição e justo odio que tinha merecido e grangeado. A casa do infantado foi uma falsidade d'este partido; mais tarde se assenhorearam da falsidade para tomar posse nas provincias de todos os bens de Bragança e de S. Bruno, e para os desfrutar e gozar por almoxarifes que nomeavam do infante. A casa do infantado mandava para as terras juizes, e assalariava por todo o genero de engano os cobradores da falsa e aleivosa renda, e por esta fórma constituiu as suas instituições e morgados: o povo reagia contra a usurpação, mas o rei e o governo, o infante e os seus almoxarifes conspiravam, e apesar do odio do povo que não podia ser mais justo nem mais bem merecido colhiam e recolhiam do roubo grandes interesses e mortificavam o povo com exacções de cruel engano e tyrannia, que desvirtuavam do seu fim primordial e applicavam para outro de maior escandalo e torpeza. O nuncio de Roma teve ordem de visitar a D. Affonso VI, que cumpriu, mas jámais foi admittido a vêr o verdadeiro, e por esta razão ficou a figurar por alguns annos como prisioneiro o que já era cadaver; a sua mudança para a ilha é uma chimera, as suas cartas para Hespanha ficam abaixo de toda a critica: D. Affonso VI não era admittido a escrever; o mesmo governo de D. Pedro fingiu ou suppôz as cartas para dar ao preso a laia de hespanhol e não o quiz dar por brigantino; porque d'este partido se temiam muito; e porque o seu fim era desacreditar e dar como vivo e como existente o homem que dormia debaixo da lousa o somno do sepulchro. Com effeito, pouco depois d'esta falsidade, D. Affonso foi dado por morto na ilha para que ninguem o visse nem examinasse, e appareceu D. Pedro em côrtes a pedir o seu tratamento real. As côrtes disseram que tomasse o titulo e o tratamento de seu pai, isto é, que fosse usurpador hereje, e injusto possuidor dos bens de Bragança e de S. Bruno, e com isto se houve por acclamado e por installado na sua falsa e apocrypha realeza. Veio então a questão romana do reconhecimento. A curia cedia em quanto aos bispos, depois de não haver nenhum no reino pelo grande alarido do povo, uma vez que os nomeados tivessem a apresentação real de Bragança. O governo passou pelas forcas caudinas, e deu então o ultimo testemunho e prova de sua torpe e nefanda ambição. O rei ficou de mero facto, e póde dizer-se que o escravo d'alheias vontades vegetava na mais sordida taberna, ou no ergastulo do seu captiveiro, ou na fetida jaula da mais indomita fera; por que estes reis sempre andaram presos, e a que chamam casa de Bragança de Lisboa governa o seu estado, como o domador ensina e conduz o seu ganha-pão pelo mundo dos seus espectaculos. Havemos de julgar que a familia não é livre, e que desde o seu nascimento cada individuo é obrigado a beber o veneno da maior heresia a torpeza para ficar doudo e bem sujeito á vontade imperiosa ou caprichosa dos seus verdadeiros senhores e tyrannos. Não admira que estes sejam sempre estrangeiros e revesados de origem ou de má procedencia e de abstrusa memoria; por ahi pretendem alguns que a lingua do paço seja a franceza, outros que seja a ingleza; em tempo pretenderam fallar a italiana, jámais admittiram a portugueza vernacula, nem suscitaram as questões da côrte d'aldêa; nem deram ao povo fiel o ingresso e a influencia, que lhe cabe nas questões do estado para não ouvir verdades amargas, e a sincera queixa de tanta tyrannia e de tão inauditas usurpações e falsidades, e de tão grande subserviencia aos estrangeiros e a todos os inimigos da nossa fé e da nossa gloria e renome. João das Regras, nome verdadeiro ou supposto, não era mais do que um fementido estrangeiro, as suas doutrinas não se ensinavam, nem corriam entre nós; os seus dogmas proprios da mais abjecta demagogia podiam apenas applicar-se ao imperio dos Tiberios e dos Caligulas, dos Neros e dos Heliogabalos; as nossas côrtes de Lamego ficavam semelhantes á lei regia d'Augusto e o santo corpo de D. Affonso Henriques seria como os Tusculanos de Cicero e de sua REPUBLICA, só para a posteridade; e estaria em algum recondito n'aquelle tempo de D. João I para se revelar e apparecer sómente nos seculos seguintes, e no grandioso, monumental e eterno d'el-rei o snr. D. Manoel. É justo confessar que estas falsidades causam tedio e nojo. D. João IV usava do titulo de Rei e do tratamento de magestade, sem lhe competir e por heresia de infame e vil protestante. Agora dizem os apologistas da mesma seita que Portugal sempre foi protestante; mas não dizem como se retractou a viuva, nem diz como precisou a ignobil memoria de D. João IV de ser absolvida como contrita á hora da morte para ter sepultura de corpo. Como hereje deu em receber o titulo de magestade á imitação de Cromwel cuja seita seguia: entre os catholicos sempre se entendeu e teve por boa e por firme doutrina, que só o summo pontifice é senhor de conceder o titulo ao mais puro e santo monarcha legitimo. Antigamente se reservava esta rosa d'ouro só para um rei ou imperador que acontecia ser o que confirmava a eleição real, se ainda não tinham o titulo; e jámais o pretenderam nem aceitaram os reis de Hespanha e de Portugal por terem o mais nobre de catholicos e o mais santo e humilde de alteza e como vigarios do Senhor. Na Hespanha não havia herejes nem raças impuras que não estivessem separadas e bem extremadas para não eivar as familias, nem cansar o escandalo de philisteus, e de immundos entre bons catholicos e fieis. Durante a usurpação sempre procuraram os herejes tomar lugar e assento, e á medida que fugia a fé da sua pureza invadiam as raças, e vinha o armenio e o judeu, o cigano e o protestante invadir as rendas e fazer monopolio das reaes para cultivar as massas e para dar pasto á luxuria dos maiores desvarios e ameaças. E seria só pela necessidade de fazer proselytos, e instrumentos de tyrannia? É certo que o imperio de necessidade compelle até os tyrannos, mas o principio de desmoralisação é um systema, que os actuaes herdaram dos seus antecessores, e que estes tinham recebido de outros, e de muitas successões estrangeiras, que o demonio communica a todos da mesma fonte e pensamento do desprezo da santa lei e fé. Outra sanha d'este abominavel systema foi o impio tratado de Methuen cujos artigos secretos são da infame propaganda protestante que invadiu o reino por consentimento do falso e perfido governo, e se obrigava este com todos os usurpadores dos bens da santa casa de Bragança a seguir o falso preito, e a prestar homenagem secreta ao demonio e ao mais infame ministro de Calvino, que, segundo dizem, era monarchico, assim como Luthero era republico, e sophistico orador de comicios; e já os protestantes se dividiam n'este ponto essencial do governo: mas os seus superiores e chefes sempre estavam accordes no ponto principal da injuria que haviam de fazer ao Senhor verdadeiro e ao seu santo vigario, e no odio á santa casa da Java por causa dos bens e da fé. D. João I fez com Inglaterra o primeiro convenio secreto, mas era só de pirataria e de heresia, cujos vicios já minavamos thronos de Hollanda e da França, da Bretanha e de Londres, como é sabido e se estendia por meio de ramificações secretas por toda a Europa, e bebia as falsas idéas da santa acclamação de D. João I. Esta seita ou partido foi inaugurado pelo mesmo demonio no tempo em que Juliano se fez truão e ridiculo para depôr o papa de sua soberana cadeira e para o entregar, como então se dizia ao mais desvanecido principe que havia de surgir para governar o mando e para resuscitar os immortaes. Estes abominaveis e impios reformadores do mundo começavam as suas iniciações por um symbolo do demonio, e davam á sua falsa fé o caracter verdadeiro de diabolica, e alcunhavam de divina, de tyrannica, e protestavam fazer triumphar o inferno, e pelos seus meios da maior astucia progrediam e illudiam sempre até o grau de maior engano, a este como simples mação, áquelle como aprendiz, a outro como mestre, e aos mais adiantados como convivas do mesmo demonio; e não sabia o menor os maiores segredos dos outros graus, em quanto não obtinha os verdadeiros da maior abominação de seu secreto esconjuro. Em nossos dias os mesmos fados ostensivos, e a mesma historia secreta revela todos os arcanos, e explica, o que parece inexplicavel, de atroz calumnia, e de sarcastico pensamento. A morte do ambicioso meteóro, que nasce sem o prestigio da duração, e que vem ao mundo para a conquistar dos que só podem communicar a falsa e perfida, morre asphyxiado fóra do seu elemento; porque as claridades da sua existencia não o habilitavam para conviver no espaço dos ares com os astros opacos da sua natureza, e por isso o precipitam mais depressa para que conheça o que é e o que póde valer como energumeno. Alguem julga que o meteóro póde fazer-se cometa, e que o cometa póde vir a ser planeta ou estrella sem que o Senhor o faça; o atroz engano de falsa ascensão precipita mais cedo este rustico presagio. Agora já dão ao timido o nome vil do seu catholico reinado e se lhe põe o nome de _mechas_, ou de _põe mais_..., mais adiante o fazem _José do nabo_, e o compellem a tomar novo Ditzy, ou a subir os degraus da forca sem levantar o espectaculo do cadafalso: os inimigos são sempre os mesmos e da mesma sorte unidos pela tyrannia do crime e pelo estupor das suas façanhas. Se agora diverge o maior attentado sempre triumpha e atrella ao carro de seu triumpho todos os seus sectarios, e escravos; mal dos que não comprehendem a necessidade de obedecer cegamente ao mais audaz partido e ao homem mais facinoroso. O sophisma é a apparencia da virtude; os que queimam no inferno o incenso podre ao demonio, são despojados da propria pelle, e victimas da nova crueldade dos monstros. Alguem julgaria que Simão comprava de boa fé a S. Pedro o poder dos milagres: é um engano. O infame só aspirava a enganar o padre santo, se a sua tentação inclinasse a S. Pedro para a torpe venda, o demonio que fallava pela bocca do maldito teria conseguido o seu fim, ria do desventurado e cantava a sua victoria. Por esta razão S. Pedro condemnou o tentador com o triplice poder do seu divino amor e pareceu severo, mas foi sómente justo, porque Simão, o demonio apparente e ostensivo, já era escravo de outro mais negro e atroz, que persegue toda a humanidade para a sua ruina e perdição. A catastrophe de Affonso termina com a injuria que Simão fez a Pedro. Quantos deslisaram da escola santa sem a comprehensão dos meios divinos e sem o alcance dos fins do sublime culto, e se embrenharam na mais damnada chorêa da usurpação que se fez ao Senhor! Esses hão de ter n'este mundo e no outro a mesma sorte--a catastrophe--e o mesmo exito e cruel engano. RENAN O snr. Antonio Augusto Teixeira de Vasconcellos tratou com exemplar juizo e prudencia a questão da academia real das sciencias e Ernesto Renan. Estas linhas do _Jornal da Noite_ compendiam todos os argumentos do esclarecido publicista: _Merecem respeito as convicções. Mas a consciencia dos outros é tão d'elles como a nossa, igualmente livre, de todo o ponto respeitavel._ É aquillo que dizia eloquentemente Vieira de Castro, no opusculo da Republica: _nós, que de tolerantes nos desvanecemos, somos intolerantissimos como frades_. O menospreço d'este canon de liberdade sem rebuço nem condições explica as diatribes desfechadas contra os seis academicos adversos á admissão do author da _Vida de Jesus_. Os adaís da liberdade forjam golilhas de phrases para o alvedrio dos que votaram segundo sua consciencia. Offendem e injuriam. O author do romance intitulado _Vida de Jesus_ é malquisto dos seis academicos que se dispensaram da sua camaradagem litteraria. Fruiram o indisputavel fôro da sua consciencia, rejeitando-o, como romancista indiscreto que enreda as suas novellas com o sacratissimo nome de Jesus Christo. Se Renan escreveu sobre linguas orientaes um livro mui dilecto do snr. Soromenho, tambem orientalista, isso não é motivo bastante a que as almas profundamente christãs se devotem á apotheose do depreciador de Jesus, descontando-lhe as falsificações historicas do romance nos descobrimentos linguisticos que fez ácerca do syriaco e do chaldeu. Por outro lado, os academicos vencidos na votação e revelados no ulterior protesto, merecem igual inviolabilidade na sua consciencia, mórmente quando, á imitação do snr. Antonio Augusto Teixeira de Vasconcellos, declaram que estremam entre o author da _Vida de Jesus_, e o author da _Historia geral das linguas semitas_. Temos em conta de veneravel e honroso o proceder dos academicos que afastaram do seu convivio o escriptor que atirou um livro corrosivo ao coração ulcerado da Europa como quem arroja petroleo ás linguas de um incendio. A França lá sabe o que deve aos discipulos de Salvador e de Strauss, e nomeadamente a Renan, o compilador de Reville, de Reuss, de Schérer e Colani. Se alguns homens illustrados pela experiencia e receosos das fatalidades congeneres de certos livros, reprovaram que Renan recebesse publicamente em Portugal a consideração que o snr. Soromenho lhe faculta por sympathicas affinidades phoneticas, o que temos a recear d'ahi é o espectaculo das vaias e satyras com que alguns escriptores estão provando que entre nós é mais urgente um compendio de civilidade que a convivencia academica do sabedor de linguas do Oriente. CORRECÇÕES Convém fazer algumas ao artigo _O Decepado_ (n.º 4, pag. 71). Ministrou-m'as o snr. J. F. Torres; e eu, trasladando-as, ajunto á gratidão o contentamento de encontrar quem ainda se entretem com cousas tão remotas e alheias das _novissimas_ charadas, das _capitações_, do _don-juanismo_ e dos bancos. Transcrevo a carta do cavalheiro, que não tenho o prazer de conhecer; e, se não illido as palavras que encarecem os meus estudos, é porque o appellido que a subscreve ainda não exercita alçada litteraria que levante turbilhões de gloriosa poeira á volta do meu carro triumphal. Eis a carta do snr. J. F. Torres: ......................................................................... «Deliciei-me com a leitura das veridicas noticias historicas do meu conterraneo Duarte d'Almeida, _o Decepado_. Ora, v. incansavel em revolver e pesquizar tudo quanto possa esclarecel-o em tão gloriosa e ardua tarefa, não levará a mal, e relevará a um ignorante o arrojo de lembrar a v. umas insignificantes correcções, que em nada alteram a verdade do facto, nem desdizem do eminente grau litterario de seu author. «Não existe (se é que existia) casa nenhuma acastellada no lugar de Villarigas (hoje por corrupção Vilharigues) no concelho de Vouzella[4]; mas sim um castello ou cubello quadrado e muito alto, em parte mandado demolir pelo fallecido procurador da casa Penalva, Martinho do Banho, para com a pedra mandar fazer escadas e outras toscas obras que conduzem á capellinha de Santo Amaro, pertenças da mesma casa Penalva. Existe outro igual monumento no lugar de Bandavizes, freguezia de Fataunços. «A casa da cavallaria sita na villa de Vouzella, e que em tempo devia ter sido uma vivenda ostentosa, como se vê do que ainda hoje existe, pertence actualmente por emprazamento a João Corrêa d'Oliveira. «A capella da casa é hoje adega, palheiro ou cousa semelhante; e nada alli existe que faça lembrado o nosso celeberrimo S. fr. Gil[5]. Ha porém na villa uma elegante capella do santo, onde se celebra missa todas as segundas feiras; e onde se conserva a pia em que se baptisou o santo; e bem assim o queixo inferior do mesmo, reliquia muito venerada pelos habitantes da villa. O corpo, como v. sabe, jaz enterrado em S. Francisco de Santarem.» Outra correcção a respeito do prestidigitador Herrmann, mencionado como fallecido, ha dous annos, no artigo intitulado: _A exc.^ma madrasta d'el-rei D. Luiz I calumniada_. O snr. Comparse Herrmann está vivo em Vienna d'Austria, e é banqueiro opulento. Quando se retirou rico do theatro, declarou elle aos seus admiradores que morrera na rampa e ia resuscitar na barra, a mais eloquente de quantas conversaram com o genero humanal depois da outra biblica. João de Deus, o excellente poeta, cantava d'est'arte, ha 15 annos, em Coimbra o dadivoso prestigiador: Herrmann! Herrmann! espantas-me! Não scismo Nos prodigios da milagrosa vara Que o Senhor Deus te deu: Teu coração, Moysés do christianismo, Tua alma é que eu admiro, e te invejára, Se o que é teu fosse teu. Tanto era d'elle o que era d'elle que está banqueiro; e João de Deus, que tem o condão prodigioso de abrir fontes de lagrimas, e não invejava a varinha que tirava de uma manga da casaca trezentas jardas de fita, ainda não é banqueiro, segundo me consta. Pois tambem Herrmann era poeta, e, se é licito acredital-o, tinha talento. Elle o disse aos academicos n'estas quadras que, entre outras, sobrevivem ao prestigiador, na pag. 295 do tom. VIII do _Instituto_: Le coeur est ulcêré, quand pour prix d'un bienfait On s'apperçoit alors des ingrats qu'on a fait. Et pourtant chaque jour j'adresse à l'Eternel Une promesse sainte, dans un voex solennel! Si, par lui, mon talent me donne la richesse, J'ai ma mission aussi, soulager la détresse, Grâce à vous, tout s'eclaire, un instant a suffi, Pour ramener enfin le calme en mon esprit. N'este poema queixava-se o gentil allemão das suas illusões perdidas, da sua infinda tristeza, e das angustias de coração com que entrára n'aquelle recinto da _charmante jeunesse_. Queixava-se outro sim, de ingratidões que lhe ulceravam o peito. Era um romance de amores começado no Porto, romance que bifurcou em dous fios de ouro: um foi prender-se á orla de um throno não sei aonde, outro á carteira de uma casa bancaria em Vienna d'Austria. Brilhantes desenlaces! E foram os rapazes de Coimbra--aquelles viventissimos rapazes de 1859, Corvo, Vieira de Castro, João de Deus, Northon, Victorino da Motta, e dezenas de galhardos espiritos que lhe degelaram as Maldades do coração retranzido. _Gloire à vous!_ exclamava Herrmann. [4] Existia no seculo XVII, segundo m'o affirma um escripto nobiliario de testemunha coeva e ocular. [5] Em 1780 ainda se via n'esta casa a capella, no local onde nascera S. fr. Gil. MAU EXEMPLO DE POETAS CASADOS ... Une femme prudente y doit regarder à deux fois avant d'épouser un poete! J. JANIN, _Le livre_. Se o fino amor não é condão dos poetas, é escusado esgaravatar essa rara perola em outra concha. O amor duradouro é incompativel com a creatura sujeita á decomposição e á morte. As recomposições interiores são incessantes, até ao momento em que o espirito vital se evóla, e a podridão começa. As reformações da alma operam-se mais de afogadilho que as do corpo. Envelhecem almas em corpos novos. Muita gente sente o graváme e a melancolia da idade de ferro nos annos dourados. Ha tambem o reverso d'isto. Almas floridas em corpos devastados. Os primeiros tem auréola de poesia lugubre. Os segundos são lastimaveis quando, em honra de suas cãs, arrancam um a um os renovos da alma, ou os vão delindo com secretas lagrimas; e são irrisorios, quando aviltam a magestade da velhice, dando resplendor á calva com um nimbo de namorados. Foi d'esta especie D. Thomaz de Noronha, cognominado, no seculo XVII, _Marcial portuguez_. Amou numerosas primas, e casou com uma, de quem ficou viuvo. Deus sabe como o coração de sua esposa Helena de Salazar foi anavalhado de ciumes para a cova! O perfido, em quanto se andava pela côrte diluindo em trovas a fé conjugal, deixava em Alemquer a consorte, cuidando dos trigaes e dos parrécos. Casou em segundas nupcias com D. Catharina da Veiga, tanto ou mais desafortunada que a primeira. Pensava ella, porém, que o marido, ahi pelos cincoenta, ganharia juizo, e se faria serio, acolhendo-se ao santuario da familia com a lyra e com o rheumatismo. Enganára-se D. Catharina, a infausta esposa, que, por lhe agradar, se bezuntava de posturas, e arrebicava de inuteis artificios. Santa senhora! O dissoluto não só a trahia, senão que a zombeteava em verso, depois de a ter mofado na prosa caseira--a prosa de marido enfastiado, que é o vasconso mais barbaro da glottica humana. Aqui está um dos cantares com que o sobredito _Marcial_ desprimorosamente chasqueava as caricias, os vernizes, as tranças retintas, os algodões que lhe acolchoavam o seio, e arqueavam as ancas da esposa, em fim, tudo aquillo que a paixão engenhosa inventára, á custa de inexprimiveis magoas e dolorosos retrocessos nos vestigios da belleza perdida. E observem que o cruel a denomina _Sara_, equiparando-a á velha da Biblia. Lêde, senhoras, que hospedaes poetas no coração: Escuta, ó Sara! Pois te falta espelho para vêr tuas faltas, não quero que te falte meu conselho em presumpções tão altas. Lembre-te agora só que és terra e lôdo e terra te has-de vêr do mesmo modo; mas não te digo nem te lembro nada porque ha muito que em terra estás tornada. Que importa que, alguma hora, a prata pura de tuas mãos nascesse, e que de teus cabellos a espessura as minas de ouro désse! Se o tempo vil, que tudo troca e muda, sómente do ouro poz, por mais ajuda, em tuas mãos de prata o amarello, e a prata, de tuas mãos em teu cabello! se um tempo, foram de marfim brunido no seculo dourado, não vês que o tempo as tem já consumido, não vês que as tem gastado? Deixa, Sara, deixa esses vãos enredos; que eu, quando toco teus nodosos dedos, me parece que apalpo, e não me engano, cinco cordões de frade franciscano. Viciando a natureza com taes tintas, com pinceis delicados, jasmins e rosas em teu rosto pintas. Deixa esses vãos cuidados; pois quando tua cara me alvorota, mascara me parece de chacota; e, se é das tintas, digo n'este passo que a mascara está inda em calhamaço. Como pretendes, pois, com mil enganos, vestir mil primaveras sem ter a primavera de teus annos! Como não desesperas! que o tempo chegou já ao seu estio, aonde toda a fruta perde o brio; parecendo tua cara desmedrada fruta que se seccou, noz arrugada. Se feitura de Deus Eva não fôra, dissera, sem porfias, que de Eva foste mãi, velha senhora, pois te sobejam dias para esta presumpção que agora tenho; e, concluindo em fim, a alcançar venho, pois alcançar não posso tua idade, que deves ser a mãi da Eternidade. Teus olhos, por descargo da consciencia, a idade os tem mettidos em duas lapas, fazendo penitencia; e estão tão escondidos, que, quando os vou buscar porque me choram, não acerto co' bêco aonde moram; porque o tempo os mudou, seu passo a passo, da flor do rosto lá para o cachaço[6]. ............................................ ............................................ Em fim, senhora, se te vejo em osso, com essa cara posta em tal pescoço, me parece, tirada a cabelleira, em cima de um bordão uma caveira. ............................................. Sabe que sei, e d'isto me não gabo, que te alugou sem duvida o diabo, invejando teu corpo, cara e dedos para a Santo Antão fazer maiores medos[7] E deixa, em fim, tanto vão cuidado; e ao sagrado te acolhe primeiro que te ponham em sagrado. Este conselho colhe; admitte o que te digo sem desgosto; que eu, quando vejo teu funesto rosto, d'elle tambem o seu conselho tomo, pois cuido que me diz: _Memento, homo!_ Esta poesia ou outra peor tesourou os ligamentos da vida de D. Catharina, abrindo-lhe as portas do paraiso. Elle, o viuvo consolavel e impenitente, por aqui ficou até aos oitenta ou mais, deshonrando a idade provecta com poemas sordidos, e taes que os prelos não os despejaram á circulação dos enxurros. Sem embargo, Jacintho Cordeiro, no _Elogio de poetas lusitanos_, conceitua n'esta altura o descaroado marido: D. Thomaz de Noronha em tanto augmento Confirma de sus versos la escellencia Que admirando sutil su entendimiento Puede hazerle a Quevedo conpetencia: Alma de tan ayroso movimiento, Luz parece de sol de su presencia Y sol a cuya luz crecen desmayos, Aguila no soy yo de tantos rayos... Que te fulminem, Jacintho!--diria um leitor circumspecto. Achou-lhe airoso movimento na alma, assim como nós, os filhos d'este seculo cortez e cavalheiroso, lhe achariamos na arca do peito as vertigens ebrias d'um trovista de tasca. A poesia, que um sorriso meigo de mulher agradeceu, logrou a sua nobre missão: divinisou-se. Essa outra cousa, que se chama poesia, porque metrifica a injuria ou o chasco vil á mulher, é a hydrophobia do talento, é enfermidade repugnante. [6] Segue uma estrophe cuja nudeza, posto que não envergonhe o realismo hodierno, nos pareceu propriedade dos livros escriptos para _homens_, cuja deshonestidade os authores lisonjeam com as dedicatorias dos seus romances. [7] _Metter medo aos medos de Santo Antão_, era adagio do tempo, que teve a seguinte origem: No terceiro domingo de agosto de 1577 sahiu uma procissão da antiga parochia de S. Julião. Entre varias figuras e carros triumphaes ia um homem representando Santo Antão no deserto, e á volta d'elle varios demonios com feitio de monos o aterravam com caretas e tregeitos medonhos. A CASA DE BRAGANÇA «AB OVO» D. Gonçalo Pereira, trigesimo-quarto arcebispo de Braga, quando estudava as santas theologias em Salamanca, achou compativel a sciencia de Deus com as curiosidades philoginias, gregamente faltando. D'esta compatibilidade, em que foi parte integrante e constituinte, chimicamente fallando, D. Thereza Peres Villarinho, resultou nascer um menino robusto, como os recem-nascidos do _high-life_, o qual se chamou Antoninho. Este D. Antonio Gonçalves Pereira ordenou-se, foi prior do Crato, e pai de 32 filhos, compativeis com o priorado. Uma das mães d'este rapazio todo chamou-se Eyria de Carvalhal, e das predestinadas entranhas d'esta menina apojou D. Nuno Alvares Pereira, pai da primeira duqueza de Bragança, casada com o bastardo de D. João I. D'esta estirpe, bastantemente gafa de couto-damnado e bastardias, nos veio a redempção em 1640. Bemditos e louvados sejam aquelles padres arcebispos e priores! Se elles fossem castos ou infecundos, não teriamos Braganças, e gemeriamos ainda hoje captivos de Hespanha. O arcebispo descança ha 526 annos, em uma capella contigua á porta travessa da sé de Braga. La lhe vi, um d'estes dias, a figura esculpida no mausoléo. Portuguez de lei era aquelle padre, posto que se apaixonasse por hespanholas. O coração não tem _ubi_. O escolar de Salamanca lêra talvez o philosopho grego que dissera serem todas as mulheres uma. Se a natureza as não discriminára, como estremal-as por fronteiras? Mas tão portuguez era que articulou em seu testamento que, se um dia a mitra primacial cingisse a fronte de prelado castelhano, fosse arrazada sobre suas cinzas a capella em que ia esperar o clangor da trombeta! Ainda não vi impressa a noticia do desastre extraordinario que motivou a morte do D. Gonçalo. Nem D. Rodrigo da Cunha nem o padre José Corrêa, biographos dos arcebispos bracharenses, a souberam ou quizeram divulgar. Parece-me, todavia, que o primeiro, tanto por haver sido prelado como por genio investigador de antiguidade, não ignoraria o que era constante de um processo existente no archivo da mitra. Eis o caso: Em 1347 foi D. Gonçalo visitar a provincia transmontana. Chegando a Villa-Flôr com grande sequito, travaram-se alli os seus criados com os moradores da terra, e de ambas as partes belligerantes morreram quatro homens e sahiram doze mal-feridos. Tangeram os sinos a rebate. Levantou-se a povoação armada. Cercaram a residencia do arcebispo, mataram-lhe seis homens, e matariam o proprio prelado, se não fugisse, pendurando-se de uma corda, que lhe não evitou cahir de costas no terreiro e contundir-se gravemente. Não contentes os de Villa-Flôr com a fuga do seu arcebispo, tomaram-lhe as mulas, de envolta com parte dos capellães e seis criados. Protegido por atalhos, o contuso prelado chegou a Carrazeda de Anciães, povoação importante n'aquelle tempo, fortificou-se no castello, fez lavrar instrumento publico, e enviou-o a D. Affonso IV. O rei, poucos dias depois, mandou a Villa-Flôr uma alçada com dois algozes bem escoltados, e fez enforcar os sacrilegos que pôde colher na devassa. Esta vingança nem por isso alliviou os incommodos do arcebispo descadeirado na queda. Transferido a Braga, deitou-se para nunca mais se erguer. Quatro mezes depois adormeceu no Senhor. E assim morreu, por effeito de tão miserrimo lance, aquelle valente do Salado, que deu o exemplo da bravura e legou a espada ao seu quarto successor D. Lourenço, o raio de Aljubarrota. Fôra elle o defensor da cidade do Porto, quando o enfurecido amante de Ignez levava na sua vanguarda o incendio e a devastação. Fôra elle ainda quem acaudilhára a hoste de portuguezes, quando uma invasão de hespanhoes, em desapoderada fuga, deixou o sangue de trezentas vidas nas lanças dos alabardeiros do arcebispo. Santo Deus! um heroe d'esta polpa chega a Villa-Flôr, amotina-se a arraia-miuda, foge de escorregão por uma corda, cahe de cangalhas, amolga o osso sacro, e morre! Mas em fim, maior seria a desgraça de Portugal se elle, antes de lesar as vertebras lombares e regiões visinhas, nos não tivesse deixado os embryões da casa de Bragança na pessoa de seu filho prior! UM INQUISIDOR PORTUGUEZ E O PRINCIPE DE GALES O filho de Jayme I de Inglaterra veio a Madrid, em 1610, para vêr de perto a princeza Anna, filha de Philippe III, uma das mais formosas mulheres d'aquella época. D. Fernão Martins Mascarenhas, inquisidor geral de Portugal, e residente em Lisboa, assim que soube da chegada do heretico neto de Maria Stuart, escreveu-lhe com a santa presumpção de o reduzir á fé catholica. O principe, todo embebecido nas magias da filha de Philippe III, guardou a carta para mais tarde resolver esse negocio que se lhe figurou de importancia subalterna. A opinião de alguns historiadores, porém, é que a Inglaterra voltaria ao redil da igreja romana, não tanto pela influencia theologica da carta, como pelos filtros amorosos da princeza Anna. O principe de Gales pediu-a para esposa; e, quando em Londres se preparavam os festejos do noivado, morreu o noivo em 1612. A carta do inquisidor bispo do Algarve é inedita. A este prelado devemos a impagavel fineza de expurgar das livrarias de nossos avós todos os livros gafados de heresias. Se não fosse elle, é muito de recear que em Portugal se lêssem então os livros que no seculo XVII propulsaram as sciencias na França e Allemanha: o que seria uma calamidade. Eis a carta do santo varão: «A vinda de V. A. a esta côrte foi de tanta alegria para todos os que nascemos em Hespanha, que ainda aquelles que estamos mais distantes da sua presença, temos obrigação de fazer demonstração publica, assim em dar graças a Deus por esta mercê, como em significar a V. A. o animo, e a vontade com que festejamos a honra que todos alcançamos por esta causa. «O que todos agora desejamos, e pedimos a Deus com continuas orações, para melhor servirmos a V. A. n'aquillo que mais lhe importa, é que queira V. A. ouvir e entender a razão do que por cá acha, e é professarmos a fé, e a religião que professa, e ensina a igreja catholica romana, verdadeiramente apostolica; porque o animo com que desejamos paz perpetua entre as corôas de Hespanha e Inglaterra, nos obriga a procurar a conformidade na religião entre os principes dellas, pois, como diz Santo Agostinho, não póde haver verdadeira concordia aonde os entendimentos estão desunidos na terra. «Muitas razões se podiam allegar para V. A. se dispôr a fazer este serviço a Deus, e mercê a toda a Hespanha, porque os livros estão cheios d'estas materias, mas tres são só as que lembro a V. A. para satisfazer a obrigação que tenho n'este reino de Portugal. «A primeira é considerar V. A. que isto que nós professamos em Hespanha, acerca da obediencia á sé apostolica-romana, professaram, sem nenhuma interrupção, os serenissimos reis de Inglaterra por mil annos, desde o tempo de S. Gregorio Magno pontifice, e Mauricio imperador, até o de Henrique VIII de Inglaterra, que por seus respeitos fez mudança na religião; porque como nunca se havia preferir o parecer dos que querem innovar cousas ao juizo d'aquelles que dellas perseveraram por tantos annos, bem se vê, a prudencia natural está pedindo que se repare muito n'esta variedade que se introduziu em Inglaterra nos derradeiros annos. E é muito para vêr a fórma em que escreveu Eduardo, rei de Inglaterra, ao papa Alexandre III, porque ambos estão condemnando o que agora se segue no mesmo reino com palavras tão claras que não soffrem interpretação alguma. «A segunda razão é porque todos os reis de Inglaterra que antes de Henrique VIII tiveram o sceptro d'aquelle illustre reino depois de Alberto, fundaram a sua jurisdicção na obediencia á igreja romana, em que presidem os verdadeiros successores de S. Pedro, principe dos apostolos, e vigario universal de Christo na terra, até Ina e Ataulfo fazerem o proprio reino tributario da sé apostolica, e este tributo durou por novecentos annos. E ainda que alguns reis de Inglaterra houve que em cousas e casos particulares guardaram menos respeito do que deviam aos pontifices romanos, nunca lhes negaram o serem cabeças da igreja catholica, e sempre depois vieram a fazer penitencia de seus erros, como consta dos proprios annaes e chronicas de Inglaterra que Polidoro Virgilio II seguiu, e tratou em sua historia. «A terceira razão é porque o mesmo Henrique VIII que fez esta mudança, quando morreu declarou que errára, e por esta causa expirou com summa pena, e inquietação, como consta da relação que fizeram homens de muita virtude, letras, e authoridade que assistiram á sua morte, e os aponta Sandero, com outros muitos historiadores inglezes que trataram de suas cousas; e se não remediou seus erros foi por occulto juizo de Deus que permittiu lhe faltasse n'aquella hora quem o encaminhasse, e lhe lembrasse o que o proprio escreveu tão doutamente contra Luthero, e dirigiu ao papa Leão X. «Por onde tornando V. A. a receber aquillo que os reis seus antecessores tiveram e professaram por largos annos, sendo tão virtuosos, prudentes e valorosos, como o mundo todo reconhece, não fará mais que restituir á fé a casa d'onde contra razão e justiça anda desterrada; e com esta restituição além da gloria immortal, que alcançará em todos os seculos vindouros, obrigará a Deus Nosso Senhor abrir as mãos da sua liberalidade para lhe acrescentar muitos reinos com novas prosperidades temporaes.» A TRILOGIA DA «ACTUALIDADE» Quando o snr. Moutinho de Sousa, ha pouco tempo, negociava, em Lisboa, actores que preenchessem e aperfeiçoassem a companhia dramatica do theatro Baquet, o snr. Silva, roto saboyardo do escangalhado realejo litterario da _Actualidade_, escreveu, com o desplante da sua ignorancia impenitente, que a escripturação dos tres indicados actores formava uma agradavel TRILOGIA. Tres actores, tres pessoas--uma _trilogia_! O leitor (se não é elle) sabe que os gregos denominavam _trilogia_ o conjuncto de tres peças theatraes, quando o poeta pleiteava o premio da tragedia. Uma compoz Eschylo, a mais commevedora que nos legou a antiga scena. Shakspeare fez uma _trilogia_ com as tres tragedias que completam Henrique VI. O _Walstein_ de Schiller é tambem uma _trilogia_. Querem os francezes por igual ter a sua na concatenação do _Barbeiro de Sevilha_, _Casamento de Figaro_ e _Mãi delinquente_ de Beaumarchais. Tambem nós, em os nossos humildes fastos litterarios, temos uma _Trilogia romantica_, em que se annunciavam collaboradores Antonio Pereira da Cunha, D. João de Azevedo, e João Machado Pinheiro (visconde de Pindella). Por analogia, tres composições em um livro, tres tratados, tres discursos, poderemos denominal-os _trilogia_; mas chamar _tratado_ (_logos_) ao snr. Pola, e _composição_ á snr.ª Virginia, e _discurso_ á snr.ª Emilia das Neves, hellenisando-as pessimamente, seria uma fineza grega, se não fosse uma asneira portugueza. Este snr. Silva (aviso aos naturalistas) dizem-me que tem as orelhas de tamanho regular. Elle e os 2 Joaquins são tres partes de uma só cousa--_trilogia_. Aqui vão bem; cálham: são tres peças que arredondam um tolo superlativo. Ainda, no dominio grego, podéramos chamar aos tres--_triga_. (Veja um _Lexicon_ o snr. Pinto). E, quando apparecer um quarto, por não sahirmos de Athenas e das analogias remotas, os quatro serão _quadriga_. Ora ahi tem gregarias em barda. Divirta-se. _P. S._ Eu dissera-lhe _adeusinho_, quando fui _banido_; mas elle, mentindo e espremendo novamente o figado, espirrou um golfo de bilis negra. Faz-se mister não levantar mão das ventosas. Ou elle estuda, ou eu o esfolo. FIM DO 5.º NUMERO --- Provided by LoyalBooks.com ---