BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA NOITES DE INSOMNIA OFFERECIDAS A QUEM NÃO PÓDE DORMIR POR Camillo Castello Branco PUBLICAÇÃO MENSAL N.º 8--AGOSTO LIVRARIA INTERNACIONAL DE ERNESTO CHARDRON _96, Largo dos Clerigos, 98_ PORTO EUGENIO CHARDRON _4, Largo de S. Francisco, 4_ BRAGA 1874 PORTO TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA 62--Rua da Cancella Velha--62 1874 BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA NOITES DE INSOMNIA SUMMARIO _Os salões, pelo exc.mo visconde de Ouguella--Subsidios para a historia da serenissima casa de Bragança--O paço real da Ribeira--As Cruas entranhas de D. Maria 1.ª, a Piedosa--D. Maria Caraca Bonaparte--Lixo--Bibliographia--Pobreza academica--Sobre Anselmo--Ao Publico_ OS SALÕES CAPITULO VI UMA AURORA Opprimé par des déspotes, qui, á leur tour, étaient menés par les jésuites, et asservi sous le pouvoir sans frein des prêtres et des nobles, ce petit peuple menait ainsi, sans aucun doute, pendant la première moitié du dix-huitième siècle, l'existence la plus miserable parmi toutes les nations de l'Europe. GERVINUS. L'histoire n'est jamais faite, on la refait sans cesse. VOLTAIRE. Les hommes embrassent volontiers avec une ardeur violente les rêves qu'ils se font, mais ils ne veulent point qu'on les leur impose. ARSÈNE HOUSSAYE. Ignota obscurae viderunt sidera noctes, Ardentemque polum flammis, coeloque volantes Obliquas per inane faces.... LUCANO. Nos confins do globo, nas regiões arcticas, ao tocarmos as ultimas zonas habitadas, toma a existencia proporções fabulosas. Expiram, alli, todas as ousadias, todos os commettimentos, todas as aspirações dos mais intrepidos navegadores. É longo o obituario dos homens illustres, que teem perecido, abandonados, n'estas epopêas ignoradas. Seriam famosas as chronicas, onde se compendiassem as façanhas, os esforços heroicos, as luctas incessantes, e a coragem inexcedivel dos martyres, que vão perdendo a vida em busca d'aquellas solidões polares. Todas as proezas que a antiguidade nos narra: os doze trabalhos de Hercules, a entrada no formoso jardim das Hesperides, as excursões em demanda do vellocino de ouro, o ousado empenho de transpor o labyrintho de Creta, o maravilhoso e demorado cerco de Troya, a viagem aventurosa de Ulysses procurando a patria, a retirada heroica de dez mil gregos pelo interior da Asia, as conquistas de Alexandre, as invasões de Sesostris, a fundação de Sparta, de Athenas, de Roma, e de Carthago--finalmente as narrações de Homero, Xenophonte, Herodoto, Diodoro, Thucydides, Quinto Curcio, Tito Livio, Plutarcho, e Eutropio, e ainda as creações grandiosas, que remontam aos tempos pre-historicos dos vedas, do Maha-Bharata, do Ramayana, do Kalidasa, e do Boudha Sakya-Mouni, todos estes mythos, todas estas epopêas, todas estas lendas, todas estas luctas titanicas, todas estas épicas aventuras são debeis esforços, limitadissimos exageros, vagas e triviaes descripções, em presença dos arrojos de Vasco da Gama, de Pedro Alvares Cabral, de Christovão Colombo, de Américo Vespucio, de Magalhães, de Franklin, de Cooper, e de não sei quantos outros navegadores e descobridores temerarios, que teem avassallado os dous oceanos, indo, alguns d'elles, povoar, com os seus esqueletos, as regiões remotas dos gelos polares. Ha um parallelo formidavel e tremendo entre a vida physica e moral da humanidade. As leis, que regem o espirito e a materia caminham a par. O alvorecer da liberdade, quando um povo desperta do lethargo da escravidão, assemelha-se á luz vaga e indecisa, com que a natureza previdente, e sempre mãi, acode á escuridão das immensas noites arcticas. Contemplemos. Em phases astronomicamente determinadas, o facho de luz, que arrasta este globo, acariciando-o, e alimentando-o carinhosamente--como em berço de ouro, e em fachas de purpura--deixa, na solidão e nas trevas, por longas e frigidissimas épocas, as regiões que se aproximam dos polos. Esconde-se o astro do dia. Levantam-se tempestades inexcediveis, rangem nas proprias raizes os arbustos, que uma temperatura, milagrosa para a vida humana, permitte e consente que sobrevivam a uma lucta constante; fogem espavoridos os ferozes animaes, que o Creador concedeu áquelles climas, e o homem, ainda que afeito a esta existencia inexplicavel, busca em cavernas, cavadas no proprio gelo, um refugio, um abrigo contra estas tormentas, em que a terra parece agonisar. E quando a noite vai longa,--longa a ponto que parece interminavel,--quando a presença d'um ente organisado assusta e apavora, porque os vultos dão visões d'espectros, n'aquelles cataclysmos e inversões de todas as normas por que physicamente se governa a humanidade--do seio d'este cahos, do vacuo de todos estes ruidos, da solidão infinda de todas estas planuras assomam os lampejos d'uma luz vaga, indecisa, e bruxuleante--robustecem-se, avivam-se, condensam-se, animam-se, fulguram, e em duas columnas investem com o horisonte, aproximam-se do zenith, e desdobram-se n'uma corôa de fogo, que resplandece, offusca, e afaga na pallidez dos planos em que se desenha, os montes, pyramides e arcarias de gelo com que as solidificações da agua teem revestido a terra. É uma aurora polar. O phenomeno termina. As trevas adensam-se, os ventos impetuosos enfurecem-se, o gelo augmenta de volume, as plantas não receberam calorico que as aviventasse, e a terra conserva-se fria, inerte e abandonada. É porque o calor e a luz foram ephemeros, e a natureza continua envolta no seu sudario de neve, até que o luzeiro vivificador, o centro de toda a nossa existencia venha expandir os seus raios, as suas frechas de ouro por sobre o nosso planeta. A liberdade é como o sol. Só ella vivifica, só ella alenta, só ella esparge os seus raios de luz pelas escuridões da intelligencia humana. Só ella rasga os véos densissimos, que entenebrecem o senso moral dos povos. Só ella exalta Galileu, Copernico, Luthero, Leibnitz, Calvino, Voltaire, Rousseau, Beccaria, Filangière, Darwin, Proudhon, Lamennais, Bentham, Comte, Stuart Mill, Littré, Michelet, Quinet, e toda esta phalange de apostolos, que evangelisam a palavra de Deus, e pregam a boa nova, explicando as maravilhas da creação, d'envolta com os hymnos, que offerecem ao Eterno. As auroras polares são simulacros de vida--são phenomenos meteorologicos, que fulgem e desapparecem, sem que a terra estremeça de contentamento, sem que a natureza acorde do somno lethargico das noites arcticas, sem que as regiões do gelo dispam o alvo manto, que as envolve, exhaurindo a luxuriante vida, e os ricos thesouros da sua vegetação por todos os poros dos seus ferteis e uberrimos torrões. Quando os povos não estão ainda preparados para as grandes evoluções sociaes, quando as nações jazem adormecidas, nos pesadelos d'uma lenta e demorada tyrannia, as aspirações d'um grupo diminuto de homens, o credo da nova crença, symbolisado n'uma obscura e limitada pleiade, as esperanças do futuro, formuladas pelos videntes e vates d'uma nova era, são como a semente perdida de que falla o evangelho--não brota, não germina, não rebenta, não fecunda, não viceja: fica entalada nas pedras, ou comem-na as aves do céo. As evoluções sociaes, sonhadas nos improvisos e imprevidencias dos homens, que anceiam por precipitar acontecimentos inopportunos ou prematuros, e que tentam arrastar os tempos, na insensatez com que os Titans ousaram escalar o Olympo--segundo a maravilhosa lenda da mythologia grega--são auroras polares, que fulgem, brilham, e se extinguem, deixando o frigidissimo gelo da descrença no coração dos povos que imaginaram regenerar. Assim foi a revolução de 1820. Na noite de ignorancia, de fanatismo, de escravidão e de miseria, que ia tão longa, e tão frigida, como nas trevas dos polos, ergueu-se um luzeiro ephemero, passageiro, e rapido, que atravessou o horisonte politico da patria, e esvaiu-se e dissipou-se, como um meteoro, deixando submersa, nas trevas da mais feroz oppressão, a nobilissima Lusitania. A aurora polar de 1820 dissipou-se. As trevas de 1828 surgiram e adensaram-se com o nefasto nome de usurpação. O vaticinio da emancipação dos povos, o credo dos videntes da boa nova foram afogados no completo desconhecimento da soberania popular. Ficou o Lazaro amortalhado, no sepulchro, sem escutar nem entender o verbo harmonioso da redempção. Por vezes, no fundo d'um horisonte diaphano e transparente, recorta-se um ponto imperceptivel, um atomo negro, que só vistas perspicazes descortinam. Vai o baixel singrando em aguas remansadas, impellem-no ventos prosperos e adequados a uma facil navegação; e subitamente o atomo torna-se colosso, o ponto negro transforma-se em tempestade, e os elementos desencadêam-se, enfurecidos, sobre o mareante, confiado e seguro na tarde bonançosa e estival dos climas tropicaes. Assim nasceu a revolução. As colonias do norte da America, esmagadas pela soberba oppressão da velha Albion, proclamaram-se independentes. A França educada já nas luctas dos philosophos e encyclopedistas, affeiçoada ás theorias e doutrinas de Descartes, Voltaire, Rousseau, D'Alembert, Hobbes e Diderot auxiliou esta grande lucta de emancipação; e a Europa, viu, com assombro, o Novo-mundo aceitar a republica como um systema de governo, e sustentar a democracia como uma verdade inconcussa, que parecia o complemento da missão do Nazareno. É que o christianismo recuára diante da escravidão. «Dai a Cesar o que é de Cesar», dissera o Messias; e a França, como n'um Sinay de luz e de transformações sociaes, formulára os direitos do homem, e esmagára, sem remorso, todas as oppressões, e todas as tyrannias. A França é o capitolio da raça latina. Nem uma só vez a nobre terra das Gallias deixou de regar com o proprio sangue um grande principio. E ainda, quando arrastada pela louca ambição d'um homem desvairado, percorria a Europa, na sofreguidão das conquistas--ainda assim, cada patrona dos seus legionarios era um fóco de propaganda, e uma ameaça tremenda para os despotas ungidos pelo direito divino. Os excessos da revolução franceza--se os houve--foram a consequencia logica e fatalmente necessaria de tantos seculos de carnificinas, d'escravidão, e de infamias. «Os grandes só são grandes, porque nós estamos de joelhos: levantemo-nos», clamava Seyés ao raiar a aurora da mais esplendida revolução, que narram os annaes de todos os povos. E o morticinio dos albigenses, a destruição dos huguenotes, as fogueiras das inquisições, os encerramentos nas torres, e nas bastilhas, o estupido orgulho, e os ignobeis e torpes privilegios d'uma aristocracia banal e dissipadora, os barbaros direitos feudaes, a miseria publica na sua hediondez, e todas as vergonhas, todos os abusos e todos os vexames dos governos absolutos foram anathematisados e pulverisados á face dos grandes principios, que os vultos homericos da assembléa nacional e da convenção ousaram proclamar. É d'aqui, e só d'aqui, que data a emancipação da humanidade. A fé religiosa podéra ser--e foi--um balsamo de consolação. Era um esteio para as consciencias, era uma valvula de segurança, forjada pelo clero, pelo sacerdocio, pela theocracia, para obstar ao desencadeamento de todas as indignações, e apagar, com as adulteradas palavras de misericordia e resignação, as justas represalias legadas por milhares de gerações. As palavras de Christo, no Golgotha: «Perdoai-lhes, meu Pai, porque elles não sabem o que fazem», ficaram sendo, na amphibologia da sua applicação, o pára-raios de dezoito seculos de abusos, de ultrajes e torpezas. Rebentou a revolução franceza. E os raios d'este Sinay da biblia da humanidade encheram de luz a palavra justiça, em toda a severa e inexoravel verdade do vocabulo romano: «_Jus sum cuique tribuendi._» Os decemviros d'esta era famosa prestavam, pela primeira vez, homenagem á dignidade de todos os entes racionaes: viam e consideravam todos os homens irmãos e iguaes. Como é triste e demorada a perfectibilidade humana! Quantos seculos de trevas, para luzir no craneo do rei da creação esta simplicissima verdade: todos os homens são iguaes! E são. O genio e o idiotismo formam os dous polos d'esta arca santa, d'este tabernaculo do pensamento, da vastidão do cerebro, onde a consciencia moral, quando culta e desenvolvida, desperta sofrega dos seus direitos, e irrompe-lhe a intuição generosa e espontanea dos seus deveres e obrigações. As colonias hespanholas responderam, com enthusiasmo, a este clamor unisono da America do norte, e por sobre os dous oceanos voou a mensagem de que o Novo-mundo estremecia de jubilo ao contemplar a liberdade. Foi isto bastante para que o movimento revolucionario se propagasse na metropole. E ao passo que os autocratas da Europa forjavam uma alliança reaccionaria, com o intuito pueril de levantar um dique á torrente caudal, que trasbordava nas planuras habitadas pela raça latina, a revolução caminhava triumphante no meio dia do nosso continente, e aceitava, como modêlo, a constituição hespanhola de 1812. Era a democracia que levantava o collo, e arremessava o cartel aos privilegios de dezoito seculos. As centelhas luminosas da liberdade, as chispas d'este fogo sagrado irrompiam tão espontaneas, e tão vivazes, que pareciam vulcões abertos pelas forças temerosas da electricidade, fluidos magneticos, que em correntes subterraneas pretendiam surgir dos seios da terra, em quanto esta se debatia, agonisante, nas convulsões d'uma nova transformação. Em 1820 estremeciam os dous mundos. A Hespanha, o Brazil, o reino de Napoles, o Piemonte, e os proprios christãos avassallados na Grecia despertavam ao clamor da emancipação dos povos. Irradiava o sol da justiça. Dissipavam-se as trevas na consciencia humana. Desde o Chili até Boukarest coroavam-se as montanhas de fachos de luz, e como se uma só vontade, um só incentivo, um só impulso dirigisse as nações, echoava em todos os pontos o sagrado nome da liberdade. Ouvia-se o ruido das velhas instituições que desabavam. O clero e a nobreza perdiam o prestigio, a força, o poderio; e a humanidade, que ouvira absorta a palavra omnipotente da convenção nacional, estremecia jubilosa e reverente, como a virgem de Nazareth ao escutar a saudação celestial do anjo mensageiro. Durou pouco a esperança. Detraz dos hymnos festivaes vinham os crepes funerarios. Após esta radiante aurora seguiram-se as trevas da reacção, os carceres, as galés, as deportações, os exilios e os morticinios. A velha Europa estendeu os pulsos e deixou-se algemar. O mais hediondo mal da escravidão é o habito torpemente adquirido de ser escravo. O maior crime da tyrannia é educar as gerações para a abjecção moral, para a aniquilação da dignidade individual, e para a ignorancia dos proprios deveres. Todavia as evoluções sociaes não dependem da vontade dos homens. As legitimas penalidades, na terra, imprimem-se implacaveis e cruentas em quem pretende destruir o que de si é immutavel e eterno. O desconhecimento completo das leis physicas e moraes da humanidade arrasta, as mais das vezes, repetidos cataclysmos e sangrentas catastrophes. A arca santa do mosaismo é o symbolo immaculado da indestructibilidade das normas, por que o universo se rege. Todos os seculos teem uma feição propria, uma formula predominante, por que se inscrevem na historia. Assim se exprime o seculo de Pericles, o seculo de Augusto, o seculo dos Medicis, o seculo de Luiz XIV. Detraz de cada um d'estes epithetos, que são como uma synthese, caracterisada n'uma epigraphe, transparecem grandes commettimentos, estudos longos e pacientes, como de benedictinos, luctas heroicas, trabalhos herculeos, progressos infinitos, que formam a vereda, representada pelos marcos milliarios da civilisação dos povos. Definem-se, pois, os seculos por um grande pensamento, e gravam-se com uma nova idéa. E á medida que as civilisações se multiplicam, as transformações são mais rapidas; e as evoluções sociaes precipitam-se. É assim que os phenomenos da electricidade e a força do vapor teem hoje, desde a Oceania até aos confins do occidente europeu, a humanidade perplexa e surprehendida n'um contacto constante, e as idéas transmittem-se com a velocidade da luz. Mas as gerações que se teem ido succedendo, em seculos determinados para a sua missão--egoistas e imprevidentes, foram legando ao seculo dezenove a solução de todos os formidaveis problemas com que hoje nos achamos a braços. Nós--entregues e devotados ás sciencias d'observação, aos estudos analyticos, á razão critica, á severa e leal escolha da pureza dos elementos que constituem o nosso credo, e a encyclopedia fundamentada dos actuaes conhecimentos humanos, encontramo-nos face a face com a futura solução de todos os problemas religiosos, scientificos, litterarios e sociaes, que a machiavelica prudencia de todos os defensores dos rigorosos principios authoritarios vai deixando accumular. Queixem-se de si, e só de si os zelosos apostolos da reacção--phariseus de todas as épocas, e de todas as raças,--quando a democracia implacavel e inexoravel na sua marcha, arrastada involuntariamente pela sua velocidade adquirida, achar de subito a formula inteira de todas estas temerosas soluções. Mil oitocentos e vinte é apenas uma data. Echo remoto da revolução franceza, grito agonisante d'uma nação exhausta, indolente, ignorante, fanatisada e escrava, o povo balbuciou sem consciencia nem fé a palavra liberdade, e adormeceu de novo, no seio de theorias que não entendeu, de principios que não comprehendia, para acordar d'este somno febril e agitado nas tristes e luctuosas carnificinas do caes do Tojo. A inviolabilidade da vida humana era uma utopia e um escarneo para uma geração, que se estorcia convulsa, ainda, no medo e pavor com que a feriam em face os sombrios e ferozes carceres da inquisição. A democracia nem era apenas um sonho n'estes devaneios da classe media. O proletariado, quando muito, seria uma casta de parias, que d'envolta com o pauperismo merecia os ergastulos e gemonias da preconisada republica romana. As republicas gregas e latina não eram comprehendidas pela ausencia total das sciencias modernas. E se os vocabulos se entendiam nos lexicons da época, desconhecia-se, pelo menos, a essencia da organisação e constituição de povos tão diversos. A philologia e a ethnographia eram como hieroglyphicos para uma sociedade que apenas queria destruir. O seculo dezoito vivera em parte dos discursos emphaticos de Raynal, Volney e Rousseau, e das historias fabulosas, escriptas pelos aulicos e cortezãos de todas as vaidades e pompas mundanas. A democracia, na rasgada e imponente accepção do verbo supremo, havia de irromper, mais tarde, n'este luzeiro immenso, que será a redempção da humanidade. VISCONDE D'OUGUELLA. SUBSIDIOS PARA A HISTORIA DA SERENISSIMA CASA DE BRAGANÇA II A VENIAGA Sem preambular com as repetidas accusações (veja Rebello da Silva, Soriano, Pinheiro Chagas) escriptas contra a cobarde inercia de D. João, duque de Bragança, que desatravancou ao usurpador castelhano o accesso a Portugal, vou arrolar com miudas provas as verbas que representam o valor da honra e do patriotismo do avô de D. João IV. Possuo um codice que pertenceu ao archivo da casa de Bragança, escripto em 1687, com estes dizeres na folha de rosto: _Doações do real estado e casa de Bragança, conforme se vão desbrindo em papeis e documentos authenticos de que em summa se dá noticia._ Convém saber que os successores do duque D. Fernando, degolado em tempo de D. João II, nunca poderam obter de D. Manoel, de D. João III, da rainha regente, de D. Sebastião e do cardeal, parte dos privilegios que o filho de Affonso V lhes jarretára. A absoluta independencia da corôa, e o absoluto dominio em Villa-Viçosa, nunca poderam os duques extorquil-o á condescendencia dos soberanos. Obteve-o, porém, o avô de D. João IV, em fevereiro de 1581, da velhaca magnanimidade de Philippe II de Castella, quando foi comprimentar a Elvas o usurpador, que vinha entrando triumphalmente em Portugal. O primeiro passo era crear magistrados seus, instaurar tribunaes sem appellação nem aggravo das sentenças dos seus juizes, e defender o ingresso de viandantes em seus dominios, quando elles eram suspeitos de procedencia de lugares impedidos, e até quando o não eram. A seguinte _doação_ de Philippe II ao duque de Bragança, D. João, primeiro de nome, está registada no livro V da camara de Villa-Viçosa, fl. 31, pag. 2. «Eu el-rei, faço saber aos que este alvará virem que havendo respeito ao duque de Bragança, meu muito amado e presado sobrinho e a D. Catharina minha muito presada prima residirem ora em Villa-Viçosa, e por outros respeitos que a isso me movem; hei por bem e me praz que a pessoa que o dito duque nomear por guarda-mór da saude da dita villa tenha a alçada com o dito cargo adiante declarado. Que entrando alguma pessoa na dita villa, sem licença do dito guarda-mór, e constando que vem de lugar impedido, o possa _mandar prender, e sendo peão será condemnado a um anno de degredo para o couto de Castro Marim com pregão na audiencia e 2$000 reis para os captivos; e, sendo de maior qualidade, a mesma pena de degredo e pregão e 4$000 reis. E o mesmo nos que metterem fatos e mercadorias das terras impedidas; e os que vierem de terras não impedidas, entrando sem licença, presos, e da cadêa pagarão 2$000 reis._ «E todas estas penas sem appellação nem aggravo, e que as sentenças sejam dadas em camara com os vereadores. E que não passe pela chancellaria. Ambrosio de Aguillar o fez em Elvas a 23 de fevereiro de 1581. Roque Vieira o fez escrever. El-rei.» Em 2 de julho de 1582 concede o mesmo monarcha ao mesmo duque _poder despender as rendas dos concelhos das suas terras no que lhe aprouver._ Em 2 de maio de 1584 o mesmo Philippe II assigna o seguinte aviso: «Eu el-rei. Faço saber a vós licenciado Lopo de Abreu Castello Branco que ora o duque de Bragança (D. Theodosio) meu muito amado e presado sobrinho, com minha authoridade, envia por juiz de fora da sua villa de Villa-Viçosa, que eu hei por bem pela confiança que de vós tenho, que além dos poderes que por minha ordenação são dados aos juizes ordinarios, vos tenham mais o poder e alçada ao diante declarados: «_Que nos casos crimes possa mandar açoutar peões de soldada que estiverem assoldadados, e outros peões que ganharem dinheiro por braçagem, e escravos, e que possa degredar os ditos peões para os lugares d'além-mar por dous annos, e para os coutos do reino até tres annos. Que possa degredar escudeiros e vassallos que não forem de linhagem, e officiaes mecanicos para os lugares d'além-mar por dous annos, e para os coutos do reino por tres annos... Que se alguns fidalgos, cavalleiros e escudeiros de linhagem, e vassallos, fizessem cousas por que mereçam ser processados, os empraze para que a certo tempo appareçam._ João da Costa o fez em Lisboa a 2 de maio de 1584. Rei.» Seguem mandados confirmando e revalidando doações abolidas ácerca das rendas das feiras, que os duques de Bragança continuaram a perceber, como seus avós, antes das reformas de D. João II. Em 1589, o duque de Bragança D. Theodosio decreta nos seus dominios isentando os ferradores e mais officiaes mecanicos de sua casa _de todos os serviços e encargos do concelho, de fintas, de talhas, montes, pontes, fontes, caminhos, calçadas, etc.; nem vá com presos, nem seja tutor, nem curador de nenhumas pessoas, nem pousem com elles, nem lhes tomem suas casas de moradas, nem adegas, nem estrebarias, nem roupas, nem palha, etc._ N'esta fórma de decreto assigna D. Catharina, por ser ainda menor o duque. D. João, segundo de nome, e que depois foi rei, ainda em 1635 impetrou licença de Philippe IV de Castella para crear doze misteres, especies de zeladores na cobrança das alcavalas que a serenissima casa exercia sobre os vassallos. D. Duarte concedêra que o duque de Bragança podesse nomear juiz, quando o juiz de nomeação real lhe fosse suspeito. D. Affonso V confirmou. D. João II aboliu. D. Philippe IV de Hespanha, a requerimento do duque de Bragança, que depois foi rei, confirmou a lei de D. Duarte. Por doação de 1587 é permittido ao duque de Bragança não cumprir as cartas dos corregedores da côrte. No mesmo anno lhe é facultado avocar a si as causas das suas terras e _sentenciar como lhe parecer_. Em 1607 é permittido ao duque de Bragança formar chancellaria e _levar direitos d'ella sobre cartas de seguro em caso de mortes negativas, ou confessativas de morte, de resistencia a officiaes de justiça, ele, em provimentos de officios e isenções de cargos_. Esta concessão derivava do animo bizarro do castelhano que pagava ao duque de Bragança com o dinheiro dos proprios portuguezes, e do animo avarento do agraciado que se cevava na pobreza dos seus conterraneos. Tal graça era tão pesada para os portuguezes quanto vaidosamente inepta para o duque a do tratamento de _excellencia_ que obteve em 1597, por lei extravagante de 6 de dezembro, que só aos duques de Bragança e aos infantes a concedia[1]. Afóra a _excellencia_, «o duque de Bragança--escreve Rebello da Silva--por ser o mais nobre e poderoso, foi tambem o primeiro que o soberano exaltou, lançando-lhe elle proprio sobre o peito o collar do tosão de ouro, e entregando-lhe o estoque de condestavel do reino, dignidade por elle pedida em vão, como sabemos, ao cardeal-rei e aos cinco governadores.» (_Hist. de Port. nos seculos XVII e XVIII_). Na acclamação de Philippe I de Portugal, «o primeiro que jurou foi o duque de Bragança, o qual depois veio beijar a mão d'el-rei.» (_Obra cit._) Esta preeminencia importava menos que a concessão então obtida de transportar da India uma determinada porção de especiarias isentas de direitos da alfandega. Constituiu-se pois a serenissima casa de Bragança o primeiro armazem de canella e pimenta n'estes reinos; e, como não pagava direitos, a sua mercadoria era a mais procurada por duas considerações: a barateza do genero e a qualidade do especieiro. [1] Por provisão particular de 12 de dezembro de 1605, passada em Valhadolid foi concedido o mesmo privilegio aos duques de Aveiro, em attenção ao grande luzimento de sua casa, pois D. Jorge de Alencastre, nascido em 1481, era filho do rei D. João II e de D. Anna de Mendonça, que,--por via de regra estatuida--acabou commendadeira de Santos. Aquelle mosteiro assignalou-se como harem de odaliscas desbotadas. O referido D. Jorge, mestre das ordens de S. Thiago e Avis, senhor de Aveiro e mais terras do infantado, foi creado segundo duque de Coimbra (o 1.º duque de Coimbra fôra seu bisavô D. Pedro, morto em Alfarrobeira), por D. Manoel em 1500, ou por seu proprio pai, como diz _Portugal, De Donat. reg._ n.º 410. O PAÇO REAL DA RIBEIRA De um manuscripto, que seria optimo livro da topographia de Lisboa, se o terremoto de 1755 o não suspendesse, aniquilando talvez a mão laboriosa que o escrevia, extrahimos o capitulo respectivo ao paço da Ribeira, e edificios convisinhos. É a mais detida descripção que ainda vimos. Os escriptores, que conheceram Lisboa antes da catastrophe, á semelhança de João Baptista de Castro (_Mappa de Portugal_) poucos delineamentos particularisaram dos grandes edificios da Lisboa de D. João V. Iremos transcrevendo o que nos parecer mais grato aos antiquarios, e ainda aos que, sem grande affecto a velharias, se comprazem em reconstruir na imaginativa as feições da sempre formosa Lisboa. «O palacio real da Ribeira, situado junto das margens do Tejo, em frente de uma das maiores praças da Europa, chamada _Terreiro do Paço_, é um soberbo e vastissimo edificio, commodo e magestoso. É obra d'el-rei D. Manoel, para o qual se mudou dos antigos paços da Alcaçova, e onde, desde então, ficaram assistindo os reis d'este reino. Fórma este real edificio dentro em si tres grandes quadras, com dilatadas galerias em roda, com admiraveis quartos, preciosamente guarnecidos, e muitos salões, os maiores dos quaes são: a casa chamada de _gala_, a sala dos _tudescos_, onde costuma estar a guarda allemã de sentinella. Esta sala é uma das maiores de toda a Europa, porque tem 130 palmos de comprimento e 76 de largura. A quadra que fica junto da igreja patriarchal, chamada _pateo da capella_, é toda rodeada de galerias de arcos sobre columnas, com janellas ao de cima bem rasgadas. Por baixo d'estas arcadas ou galerias, em toda a circumferencia, ha muitas tendas e lojas onde se acha tudo que mais precioso ha no mundo, ouro, diamantes e outras pedras preciosas. Sahindo d'esta quadra por um vasto portico voltado ao sul, se entra em outra quadra mais comprida que larga, tambem cercada de bellas galerias, sobre a qual abrem as janellas do quarto das rainhas. Ahi ao pé ergue-se uma altissima e bem fabricada torre de marmore, com um magestoso sino de relogio, e dous mais pequenos dos quartos. É obra do snr. rei D. João V, o _Magnifico_. Tambem ha n'esta segunda quadra muitas lojas onde se vendem cousas preciosas. Para a parte da _Ribeira das Naus_, forma este palacio outro grande quarto, feito á moderna, obra do mesmo monarcha, chamado o _quarto dos infantes_; e, ao cabo d'elle, abre-se uma formosissima varanda descoberta, gradeada de marmore á volta, primorosamente lavrado, sobre cujos pilares assentam vasos de jaspe cheios de murta e flôres. «Aquella parte d'este soberbo edificio, que olha para o oriente, e abrange a largura toda do _Terreiro do Paço_, é occupada por uma espaçosissima galeria, que termina em um magnifico pavilhão chamado o _Forte_. É obra de Philippe II de Hespanha, dirigida pelo famoso architecto Philippe Terzo, podendo affirmar-se que não ha outra semelhante em toda a Europa, como confessam todos os estrangeiros que vem a Lisboa. D'aqui se descobre toda a barra, e o porto da cidade, porque fica sobre a praia do rio. É tanta a magestade d'este edificio que não vi em todo o reino de França, nem nos famosos palacios de Louvre e Versailles tão justamente encarecidos obra tão sumptuosa; sendo para sentir que não se chegasse a concluir o risco d'esta elegante fabrica, pois estava delineado fechar toda a praça do _Terreiro do Paço_ em roda, com outro pavilhão fronteiro no sitio onde hoje (1754) estão as casas da alfandega: porém, é sestro já muito antigo ficarem imperfeitas todas as obras que outros principes começaram. «Contigua a este lanço, corre uma varanda de arcos que dá serventia para a sala dos _tudescos_, e pela fachada do sul se communica para outro quarto, não menos magestoso com suas galerias, eirados e torreões, onde assistem os infantes, irmãos ou filhos dos reis, e hoje serve de residencia á rainha-mãi, D. Marianna de Austria. Tem este quarto grandes e preciosas ante-camaras com tapeçarias e moveis inestimaveis, e pinturas dos mais insignes authores. «Sua magestade costuma residir no quarto do _Forte_, que dá sobre o _Terreiro do Paço_, e é o melhor do palacio, cujas ante-camaras, salas e gabinetes encerram em si o mais precioso que póde a terra dar; porque as tapeçarias de ouro, prata, velludo, damasco e outras sedas, quadros de admiraveis pinturas, e toda a mobilia, dão a conhecer a soberania da magestade que o occupa. A casa dos _embaixadores_ é a melhor da Europa. Ha n'este palacio uma notavel bibliotheca, constante de muitas casas de livros, com manuscriptos os mais raros; e, sem duvida, se estivesse em ordem como as bibliothecas do vaticano, e de el-rei de França e da Sorbona, não lhes seria inferior; para o que muito concorreu a curiosa applicação (!) e magnifica despeza do snr. rei D. João V mandando comprar fóra consideráveis collecções. «Para o lado do rio tem este palacio um bello jardim com grande eirado, com viveiro abundante de todo genero de aves raras, especialmente pombas e rolas de varias castas. Não se póde dar mais aprazivel espectaculo no mundo que a vista d'este jardim sobre o mar. «O snr. rei D. João V acrescentou outro quarto a este palacio: é o que fica no _largo da Patriarchal_ e corre até ao _theatro da opera_. Consta este augusto edificio de varios corpos e muitas galerias todas de apuradissima arte, obra do famoso architecto Frederico, em que os marmores apostam duração com a eternidade. Dous lanços d'este quarto abrem para o _largo da Patriarchal_, e em meio de cada um avulta um portico grandioso, levantado em grossas columnas marmoreas, com capiteis corinthios, excellentemente folheados. Todo o restante d'este primoroso edificio é feito de polidissima cantaria, com formosos lavores e remates, com oculos romanos na cimalha, que lhe dão graça e belleza. O saguão que vai do _largo da Patriarchal_ e atravessa este quarto para a _Campainha_, é a melhor peça d'arte d'esta cidade; porque as quatro columnas de jaspe que tem na frente de duas escadas lateraes, são perfeitissimas no trabalho dos lavôres. «Para o lado do _theatro da opera_ fórma este quarto uma quadra pequena com sumptuosas galerias, para a qual se entra por um grande vestibulo fronteiro á _Patriarchal_; mas a serventia ou passagem para o _theatro_ é a mais arrogante e magestatica obra de Lisboa. Aqui, os marmores são de maneira sinzelados, que nem a cêra seria capaz de mais tenues arabescos. A natureza é vencida pela arte; porque os bustos, as carrancas, os festões, os relevos, os capiteis, os frisos, as folhagens são cousa tão prodigiosa, quanto é mais de assombrar a qualidade da pedra tão rija para impressões tão delicadas. Por cima d'este vestibulo, ergue-se uma capella magnificentissima feita para uso particular dos patriarchas, tal e qual os pontifices a tem em Roma. E, posto que ainda não esteja concluida, é soberbissima pela profusão de jaspes vermelhos, negros, brancos e outras côres que lhe dão o esmalte.» * * * * * Este pallido bosquejo das opulencias do paço da Ribeira era escripto em 1754. No 1.º de novembro do anno seguinte, quem procurasse estas riquezas com o roteiro do incognito author por guia, encontraria um entulho, coroado de linguas de fogo, e a espaços lambido pelas vagas do Tejo. E escrevia o assombrado homem que aquelles marmores estavam alli a _apostar duração com a eternidade_! AS CRUAS ENTRANHAS DE D. MARIA I A PIEDOSA D. Martinho de Mascarenhas, marquez de Gouvêa, e filho do duque de Aveiro, justiçado em 1759, não tinha culpa no delicto de seu pai. Não obstante, entrou muito moço nas trevas das masmorras, e lá o retranziram frio, fomes, sêdes e terrores por espaço de dezoito annos. Em 1777 sahiu do carcere com os outros presos. E, como não tinha de seu uma taboa--pois que a opulenta casa de Aveiro havia sido confiscada, salgada, arrazada, absorvida--foi enviado aos frades de Mafra para lá o fartarem no seu refeitorio. Os historiadores coevos não houveram noticia d'esta passagem do carcere para o mosteiro. Todos os outros fidalgos, exhumados dos ergastulos á voz de D. Maria I, tinham familia que os consolasse e restaurassem com as cariciosas lagrimas da alegria. D. Martinho de Mascarenhas não tinha ninguem! ninguem que lhe désse uma lagrima e um bocado de pão comido em liberdade! Fez como os ultimos mendigos: foi ao convento de Mafra. Alli o encontrou o bispo de Coimbra, D. Miguel da Annunciação, quando, n'aquelle anno de 1777, sahiu tambem da masmorra de Pedrouços, e por lá passou, caminho da sua diocese; mas tão cortado de oito annos de escuridade e nudez que já em 30 de agosto de 1779 era sepultado. Do itinerário do bispo, que tenho de letra de mão, em floreados caracteres, como brinde feito áquelle prelado, vou extractar as linhas respectivas ao marquez de Gouvêa:[2] «... Pelas 11 horas e um quarto da noite chegou a Mafra, aonde passou o dia seguinte recebendo fraternaes obsequios da sua amada communidade. Ahi se achava o exc.mo D. Martinho Mascarenhas, marquez que é de Gouvêa, filho primogenito do infeliz duque de Aveiro. Distinguiu-se muito nos obsequios do exc.mo bispo aquelle bem instruido, amado e agradavel fidalgo, que soube tirar e trazer da sua reclusão as mais bellas qualidades de um cavalheiro christão. Deve-se a Deus a sua indole, e a um bom mestre que teve na sua prisão a educação, que o faz merecedor de toda a estima e fortuna que conseguiria na boa conservação de seu pai. Elle se chama desgraçado, e deve á sua desgraça a occasião de se fazer ainda mais benemerito pelas suas virtudes.» N'este tempo já era morta a duqueza de Aveiro, no convento do Rato, onde servia as freiras para ganhar o seu alimento; e, por não poder comprar sapatos, andava descalça. Este supplicio era assim benigno porque se provou que ella e seu filho de todo em todo ignoravam os intuitos regicidas do duque. O marquez de Gouvêa tinha por si a compaixão dos proprios inimigos de seu pai. Todos o animavam a pedir á rainha a restituição de alguns dos bens confiscados; e o maior jurisconsulto d'aquelle tempo, Paschoal José de Mello, encarregou-se de escrever a _Representação_ a D. Maria I. Este requerimento é um dos poucos trabalhos ineditos do eminente escriptor; e a meu vêr, como historia e como supplica eloquente, benemerito de estampar-se. A mim me cabe o prazer de o possuir e tiral-o da indigna obscuridade. É como segue: «SENHORA. «A innocencia opprimida, digno objecto da piedade de um principe, a quem o exemplo de Deus serve de regra, se prostra diante do real throno implorando a clemencia de vossa magestade, e para mais facilmente a conseguir offerece esta humilde representação, fundada nos principios da humanidade e justiça, confirmados com uma longa serie de exemplos. «O fim das leis consistindo em dar a cada um o que lhe toca, não alcança o juizo humano livre de illusão. Como póde sem culpa ter lugar algum castigo, nem como seria conveniente aos interesses de um monarcha justo, o desvio da imitação de Deus, privando da sua graça os innocentes? O que poderia haver para alguns de problematico n'este ponto, a lei divina o decide. Ninguem deve pagar o crime alheio por maior que seja a sua proximidade com os delinquentes, e esta verdade foi muitas vezes descoberta sem mais soccorro do que as luzes naturaes: é dito de um espirito famoso que uma cousa são leis, outra é a justiça verdadeira. E, se tambem é certo que pouco faria qualquer homem em regular o seu procedimento pelo que sómente as mesmas leis prescrevem--que pratica de virtudes se não devera esperar de um soberano para corresponder á elevação em que Deus o pôz tão distante do resto dos mortaes!? Os de maior sabedoria dados pela Providencia para a felicidade dos povos: os merecedores do nome de pai da patria, e em fim os mais felizes no governo de vastos dominios, persuadidos de que lhes venha de Deus todo o poder, e que de sua submissão ás leis divinas dependia mais que tudo a respeitosa obediencia dos que mesmo Deus sujeitou á sua direcção, para serem tratados como filhos, acharam sempre injurioso o direito rigoroso, e o não poderam conciliar como dictames mais convenientes á magestade do throno. Os pretores antigos já foram chamados os moderadores das leis, pelas frequentes emendas do que n'ellas se permitte aos juizes, prohibido pela honra e equidade, e entre estas as que geralmente se acharam mais contrarias á recta razão e á humanidade foram aquellas em que o castigo passava além do ultimo termo da existencia dos culpados, e chegava a propagar-se até aos innocentes. «Devendo ser as penas commensuradas aos crimes, e não havendo nenhuma proporção entre o delicto e a innocencia juntamente, pareceu estranho que, onde a calumnia não póde inventar nada para denegrir reputações, chegassem as armas da justiça. Contra isto parece não ter cabimento nenhuma casta de pretexto. As qualidades da alma não se podem considerar hereditarias na fé do livre arbitrio: a boa ordem e o bem publico não dependem sempre da maior severidade, antes pelo contrario a experiencia em todo o tempo tem mostrado que a fortuna acompanha a clemencia, e com ella se mudaram os genios mais ferozes. É com tudo notorio, que em algumas leis tiveram as paixões particulares maior introducção, do que uma certa prudencia necessaria para as fazer validas no conceito de um principe christão. A famosa lei dos imperadores Honorio, e Arcadio, que impõe tão atrozes penas aos filhos dos criminosos de lesa-magestade, é derogada pelo direito divino, pelo direito natural e das gentes. Por este ultimo, porque desde que os homens principiaram a unir-se em sociedades distinctas, todas as providencias se dirigiram a preservar a innocencia das irrupções e violencias em que tinha degenerado a liberdade humana. Pelo direito natural, porque destroe o principio da rectidão que a natureza inspira a todo o ente racional, e priva a innocencia do direito que tem a impunidade, e a todos os mais actos de justiça. E pelo direito divino, porque em repetidos lugares das sagradas letras é defendida a innocencia com pena eterna. Tambem foi abolida pelo direito civil, porque os mesmos imperadores, a quem pertence, passados annos, movidos da penitencia, como dizem graves authores, reduziram todas as penas por uma nova constituição aos unicos réos dos delictos. «D'esta lei foi deduzida a nossa ordenação, cujos termos ambiguos e a necessaria conciliação dos capitulos seguintes mostram, com bastante clareza, ser a intenção do legislador que se modere: com effeito immediatamente a imposição das penas como perpetuas as faz transitorias, declarando não deverem ter a execução se não em quanto os que a ella sujeita não forem restituidos ao estado do seu antigo esplendor; e além d'isto a jurisprudencia julga todas as penas exorbitantes em direito simplesmente comminativas, e não executivas. Estas e outras semelhantes reflexões, que por brevidade se não expressam, moveram a religião, a justiça e piedade dos gloriosos reis que occuparam o throno portuguez a deixar na historia tantos exemplos de rebeldes executados, como de filhos impunidos; mas conservados, e restituidos á nobreza, honras, dignidades e bens de substituição; d'estes exemplos se referem os seguintes, e, por parte do innocente o infeliz marquez de Gouvêa, se offerecem á real inspecção de vossa magestade: EXEMPLOS «João Lourenço da Cunha foi sentenciado por crime de lesa-magestade, e confiscados os seus bens; porém o morgado de Pombeiro passou a seu filho Alvaro da Cunha, a quem foi tambem feita a mercê do senhorio da mesma villa, possuido antes por seu pai. D'este descendem não só os condes de Pombeiro, mas a maior parte da nobreza da côrte actual; porque tres filhas suas depois da referida sentença casaram nas mais illustres casas d'este reino. «D. Pedro de Castro, senhor do Cadaval, foi sentenciado pelo mesmo crime, e os seus bens todos confiscados; mas os morgados, e os bens da corôa passaram a seu filho primogenito D. João; cuja filha herdeira casou com D. Fernando II, duque de Bragança, de que descendem innumeraveis casas illustres, nas quaes com especialidade se inclue a de Cadaval; além d'isto a D. Fernando, filho segundo do dito delinquente, primogenito da casa de Cascaes, lhe fez depois mercê do Paul chamado do Governador, de varios senhorios de terras, e da alcaidaria-mór da Covilhã. «O conde de Vianna, D. João Affonso Telles de Menezes, commetteu o mesmo crime, foi morto tumultuariamente pelo povo de Palmella, e foram confiscados os seus bens; mas el-rei D. João o 1.º deu depois a seu filho D. Pedro de Menezes o condado de Villa Real e capitania da cidade de Ceuta, e muitos senhorios de terras: a filha legitima d'este D. Pedro succedeu na casa de Villa Real, e D. Duarte, seu filho illegitimo, progenitor de uma casa das mais illustres, conseguiu, como se sabe, depois de muitas mercês, ser conde de Vianna e alferes-mór do reino. «D. Gonçalo Telles, conde de Neiva e Faria, alcaide-mór de Coimbra, senhor de Cantanhede, e de outras muitas terras, foi sentenciado por crime de lesa-magestade, e confiscados todos os seus bens; mas apesar disso possuiu a casa seu filho D. Martinho com o senhorio de Cantanhede: foi depois mordomo-mór da rainha D. Philippa, e é progenitor da illustre descendencia que ainda se conserva. «Diogo Lopes Pacheco de que descendem as mais illustres casas, foi havido e reputado por traidor, sem que a seu filho João Fernandes Pacheco servisse isso de obstaculo para a conservação da dignidade de rico-homem, que lograva, a maior que então havia da nobreza. «Alvaro Vaz de Almada foi sentenciado pelo mesmo crime, e confiscados os seus bens. Mas os de morgado passaram a seu filho primogenito D. João d'onde vieram a recahir na casa do conde de Valladares, e a D. Fernando, filho segundo do dito criminoso, de que descendem por varonia os Almadas do Rocio, foram dados os bens da corôa, que vagaram pelo delicto de seu pai. «Martim Coelho foi sentenciado por crime de lesa-magestade, e seu filho succedeu nos morgados, e da mesma fórma nos senhorios de terras possuidas por seu pai. Lopo de Azevedo foi sentenciado pelo mesmo crime; não tinha morgados, mas os senhorios de terras por elle possuidos passaram a seu filho. «O infante D. Pedro foi julgado criminoso de lesa-magestade, porém el-rei restabeleceu seu filho em todas as honras, e dignidades antecedentes. «O snr. D. Diogo, duque de Vizeu, foi morto, e sentenciado pelo mesmo crime, e confiscados todos os seus bens: não deixou filhos legitimos, mas um bastardo seu que por essa circumstancia de nascimento, não succedeu nos morgados, tão longe esteve d'elle prejudicar o crime de seu pai, que casou na casa de Villa Real, e lhe deram o emprego de condestavel, occupado algumas vezes pelos senhores infantes. D. Alvaro de Athayde, filho segundo da casa de Atouguia, e seu filho D. Pedro de Athayde foram sentenciados por crime de lesa-magestade, cuja sentença pela ausencia de D. Alvaro teve sómente a execução em D. Pedro que foi morto, e esquartejado em Setubal: isto não obstante passou toda a casa herdada por este ultimo de sua mãi a seu filho D. Fernando, o qual fallecendo sem successão passaram os morgados a quem tocavam; mas os bens da corôa foram dados a D. Antonio, filho do segundo matrimonio do sobredito delinquente D. Alvaro, e este D. Antonio foi conde da Castanheira, vedor da fazenda, e grande privado de el-rei D. João III, e é por filhos e filhas avô da maior parte da nobreza d'esta côrte. «Fernando da Silveira, escrivão da puridade de el-rei D. João II, filho primogenito do barão de Alvito, foi culpado e sentenciado pelo mesmo crime: fugiu para França aonde teve o atrevimento de escrever injuriosas cartas a el-rei, foi morto n'este reino por ordem do mesmo soberano, a quem tinha tão gravemente offendido, sendo o ministro da execução o conde de Pallas, catalão; mas não obstante tudo isso, seu filho D. João foi restabelecido, e como tal casou illustremente: foi commendador de Montalvão, governador de Ceylão, trinchante d'el-rei D. João III, e seu embaixador a França. «D. Fernando de Menezes, terceiro filho do conde de Vianna, irmão do conde de Loulé, foi culpado e justiçado pelo mesmo crime, e confiscados os seus bens. Não consta que tivesse morgados; mas sabe-se que lhe sobreviveram seus filhos dos quaes os dous primeiros casaram illustremente e possuiram os bens da corôa que vagaram pelo delicto de seu pai. D. Diogo, segundo filho d'este mesmo, deu principio á casa de D. José de Menezes e o terceiro filho do dito criminoso seguia a vida ecclesiastica; foi desembargador do paço, cujo emprego n'aquelle tempo era occupado por fidalgos. O conde de Penamacor foi culpado no mesmo crime, porém seu filho D. Garcia de Albuquerque foi restabelecido e teve o lugar de copeiro-mór de el-rei D. João III. «O conde de Faro, irmão do conde de Monte-Mór foi culpado do mesmo crime de lesa-magestade, mas seu filho D. Sancho de Noronha foi restabelecido; foi conde de Odemira, senhor de muitas terras e alcaide-mór de Extremoz. «Martim de Castro do Rio foi culpado e esquartejado por crime de lesa-magestade, porém seu filho Jorge Furtado de Mendonça foi restabelecido, casou illustremente, teve maior estimação do que antes do delicto tivera seu pai, e d'elle descenderam os viscondes de Barbacena. «O marquez de Villa Real, seu filho o duque de Caminha, D. Agostinho Manoel, o conde de Armamar, e Fernando Telles, foram sentenciados por crime de lesa-magestade: os quatro primeiros foram degolados, e o quinto queimado em estatua: a todos se confiscaram os bens, e como só Fernando Telles tivesse filhos, a estes passaram os morgados, e os dos outros delinquentes a quem de direito pertenciam. «Francisco de Lucena foi julgado e justiçado por crime de lesa-magestade, da mesma fórma o senhor de Regalados, um dos Soares de Alarcão, os mascarenhas de Montalvão, D. Raymundo, quinto duque de Aveiro, e outros foram reputados criminosos, sentenciados como taes, confiscados seus bens; alguns d'estes tinham descendentes, a quem passaram os morgados, e além d'isso conservaram a mesma estimação, e lograram as mesmas honras, que teriam se seus ascendentes permanecessem innocentes. Francisco Maldonado, e Francisco de Mendonça foram julgados por traidores, e como taes justiçados, e confiscados os seus bens; nenhum d'estes tinha filhos legitimos; mas Francisco de Mendonça deixou uma filha bastarda, que conservou a mesma estimação que teria se seu pai não commettesse o delicto; casou competentemente ao seu nascimento, com descendencia nobre de quem tomou tambem o appellido. Muitos outros factos semelhantes se omittem para não abusar da regia paciencia; só se nota não haver nenhum em contrario de pessoa de certa ordem; e é tambem de admirar que até quando por algum dos nossos monarchas foi recommendado ao seu successor que se conservasse inexoravel com os que deixava profundados na desgraça, nunca tiveram efficacia bastante as razões politicas d'este conselho, e triumphou contra elles a clemencia e justiça. D'ahi se seguia manifestar-se mais que nunca n'este reino a verdade importante de ser a religião o mais solido fundamento das felicidades e das glorias. Tudo n'este tempo pareceu por Deus abençoado, e d'este modo se conservou, não sómente a raça respeitavel, com que viemos a recuperar os nossos fóros nacionaes; mas concorreram tambem para a sua exaltação muitos descendentes dos proscriptos antigos tornados pelo mesmo rei afortunado ao estado venturoso. «Estes exemplos constituem um perfeito costume, porque concorre n'elle a multiplicidade dos actos, a diuturnidade do tempo e a sciencia de principe. Se foram de justiça, não é o supplicante menos innocente, nem menos fiel e obediente ao sceptro do que aquelles em quem se não executou a lei, para que n'elle se interrompa uma tão dilatada serie nos ditos exemplos; tanto mais não lhe tendo valido até agora a opinião de muitos santos padres, de doutos juristas, canonistas e theologos, que deu occasião ás leis estabelecidas nos reinos mais policiados da Europa, dos quaes reputando-se os filhos nascidos antes dos crimes de seus paes, livres de infecção, sómente a do peccado original são preservados de toda a pena, antes pelo contrario, tendo estado o dito supplicante expiando por excesso de rigor o crime alheio pelo tempo que se equipára á morte, por ser já de uma duplicada vida civil, e que pelas violentas circumstancias da rigorosa prisão em que padeceu, lhe teria acabado a natural, se a Providencia divina lh'a não tivesse conservado apesar dos esforços empregados para a brevidade da sua duração,--pena nunca praticada, porque nem as leis dos imperadores, nem a nossa ordenação, nem alguma outra impuzeram exorbitante castigo a semelhantes filhos innocentes. «Se os mesmos exemplos são de graça, o supplicante prostrado diante do throno de V. M. a implora, tomando por protectores, a religião e a piedade d'um principe, que preparado de muito longe pela Providencia, com dotes proporcionados ao magestoso encargo que lhe destinava, se nos mostra possuidor em grau sublime de tantas virtudes christãs, que fazem o mais brilhante ornato da sua corôa. «D'um principe a quem com antecipadas luzes, sendo evidente que para beneficio dos que deviam obedecer-lhe seria poderoso o seu exemplo mais do que a sua real authoridade; que por não ter na terra tribunal que lhe fosse superior, devia exceder muito em perfeição aos homens ordinarios; e que em lugar tão eminente poderia o seu beneplacito ser a regra soberana por onde tudo fosse decidido, passou os instantes da sua preciosa vida, em um continuo exercicio do dominio das paixões e foi sempre o juiz mais severo de si mesmo. D'um principe, em fim, que com estes respeitaveis fundamentos certo de ter estabelecido o mais feliz imperio nos corações dos seus vassallos, só fará sensivel o peso immenso da sua real grandeza aos inimigos da igreja e da verdade. Não dará outro uso ao seu poder, senão para que se execute o que Deus manda; e assim como alguns, que foram a delicia dos seus povos, fará consistir a sua maior gloria em livrar da oppressão os desgraçados. «Debaixo d'estes ditosos auspicios, d'estes augustos intercessores, espera o supplicante vêr o termo do seu abatimento, a restituição da sua liberdade, da sua honra, do seu credito e dos bens que o direito do sangue lhe conferiu pelas vocações de seus ascendentes. Esta graça humildemente pedida, será para o supplicante um novo vinculo da sua submissão. E para el-rei nosso senhor um eterno monumento da sua benigna magnanimidade.» Esta pungente invocação á caridade da rainha, que esvasiava os repletos cofres do estado no mosteiro do Coração de Jesus, não valeu ao desgraçado, sequer, uma esmola do real bolsinho. Braganças!... O marquez de Gouvêa viveu longos annos da caridade do seu parente conde de Obidos, e já no fim da vida recebia uma mezada que lhe dava D. João VI. D. Martinho, se bem me recordo do que li, morreu em Lisboa, em uma humilde casa, no bairro de Buenos-Ayres, por 1804. [2] É este o titulo do manuscripto: _Itinerario do ex.mo snr. bispo conde, restituido ao seu bispado, para o qual partiu de Lisboa no dia 11 de agosto de 1777._ D. MARIA CARACA BONAPARTE Não conheci, em Lisboa, esta senhora D. Maria, bastantemente historica e benemerita de immorredoura escriptura. Conheceu-a aquelle esclarecido arcebispo, cujos sonhos, na noite da demencia, o leitor ouviu no sublime desarranjo chamado _A catastrophe_. Est'outro escripto, menos nevoento e cerrado das turvações do delirio, tem especies em que o riso se trava com o compadecimento, e outras em que a compaixão d'aquelle distincto homem nos redobra o pezar de se haver perdido no vigor da idade tamanho espirito. D. MARIA CARACA BONAPARTE, OU A BURRINHA PROTESTANTE D. Maria Caraca teve tres estados: foi orphã, casada e viuva: seu pai morreu na guerra da Italia combatendo contra os francezes pela independencia da peninsula italiana; era natural de Milão, cantor da opera e grande enthusiasta das novas idéas da republica, que haviam volcanisado o seu cerebro até o delirio. Quando este maestro da opera viu que a França proclamava a liberdade para tyrannisar os povos, lançou-se no partido mais hostil aos francezes da republica sanguinaria, e morreu deixando a sua morte bem vingada. As suas idéas eram falsas e exageradas em religião e em politica; porque seguia occultamente todos os erros e absurdos de Luthero e de Calvino: o odio, que tinha ao summo pontifice era tão profundo, que o obrigava a blasphemar e praguejar contra os cardeaes e contra a santa sé, contra os bispos e contra as mitras e cadeiras. Bonaparte venceu muitos ou todos os partidos que estiveram em campo contra a França: o general da republica principiou a imperar, e a exercer a sua tyrannia nas provincias muito antes de exaltar na metropole o throno do seu fatal despotismo, como sempre acontece. Verres na Sicilia era mais do que imperador; Cesar sempre imperou nas provincias. Se D. Affonso d'Albuquerque fosse susceptivel de ambição podia usurpar o titulo de imperador da Asia; porque o povo desejava conferir-lhe todas as attribuições do imperio. Bonaparte no Egypto era saudado como rei do fogo; Mahomet e todos os impostores e usurpadores da sua escola recebem a mesma baixa e servil adulação que as almas mais vis sempre se empenham em prodigalisar ao vencedor. A sciencia, e a virtude de homem grande, consiste em desprezar estas frivolas demonstrações e em saber reprimir todos os excessos do enthusiasmo, que se esvaem e perdem como o fumo. Bonaparte passou como um cometa; a sua descendencia extinguiu-se e toda a sua parentela: existe na throno de França um homem que não tem pai nem mãi, nem alliança, nem façanhas nem grandeza. É um homem que apenas aspira a fazer com auxilio alheio uma memoria que mereça ser approvada em uma academia. Os protestantes urdem e tecem muitos generos de lisonja aos seus heroes; são arcos e pompas de triumpho, grinaldas, festins, e poemas, representações, e orchestras, lisonjas e desvanecimento. Um deputado da convenção nacional disse a um seu amigo e collega, que ia para Lião em commissão sanguinaria: tu verás em Lião a minha esposa, abraça-a. N'este tempo todos os revolucionarios levavam as suas mulheres aos horrorosos estupros do templo profanado: a mulher que servia de modelo, e o homem que a gozava, eram escolhidos entre todos os concorrentes sem attenção ao estado nem á condição dos que eram designados. Na Italia tributavam em quasi toda as cidades a Bonaparte a honra de o desposar com a mulher mais formosa; Bonaparte aceitava este tributo da infamia protestante, gozava e passava para outra cidade, aonde era recebido com igual torpeza. Em Milão cahiu a nefasta sorte em Maria Caraca Bonaparte; e como era filha d'um homem morto pelo exercito francez recusou sujeitar-se á estranha condição para que a designaram, apesar de ser tão protestante como seu pai. Os influentes de Milão que andavam empenhados n'esta impia e baixa lisonja corromperam todos os parentes da burrinha; de sorte que cedeu de seu odio politico, e principiou a ser do conquistador. Se Maria Caraca fosse verdadeira catholica, jámais consentiria em tão grande infamia e vileza, porque esta especie de tyrannia é mais impia e mais cruel de que era o tributo das cem virgens para o serralho e para o harem. Uma amante ou manceba podem nutrir uma esperança honesta, e chegam ás vezes a legitimar as suas uniões e prole; estas burrinhas são sempre a negação da moral, o escarneo do affecto, e o epigramma do amor e da sympathia. O protestantismo trata todas as mulheres como negras escravas. Despreza-as para as fazer bem vis; porque a mulher deve ser semelhante ao homem que a elege, e que a fórma e educa para sua companheira. Os milanezes deram a um tio de Maria Caraca a espectativa de um canonicato, prometteram á sua victima dous mil cruzados de dote, e por esposo o primeiro cantor da opera de Milão. Maria Caraca e a sua familia realisaram todas as condições; os protestantes de Milão cumpriram as suas fielmente: o casamento verificou-se, o dote sahiu da renda da cidade, que pagou para Bonaparte ter uma desgraçada por companheira dos seus vilissimos prazeres. Os que dispunham tão impiamente dos beneficios ecclesiasticos não podiam ter duvida em defraudar o thesouro do municipio. Maria Caraca e seu marido seguiram o partido de Bonaparte, e na restauração dos thronos viram-se na necessidade de emigrar para Portugal: perderam patria, emprego, e até o sobrenome de Bonaparte de que usaram por muito tempo. O marido morreu e deixou um filho e uma filha em Lisboa; o filho exerceu n'esta cidade por algum tempo com seu pai a profissão de musico: tambem morreu: eu só conheci a viuva e a filha chamada D. Thereza, as quaes moraram na rua dos Poyaes de S. Bento. Quantas vilezas, quantas degradações, e quantas tyrannias envolve o atroz procedimento de Milão! Não ha impiedade mais provocadora, não ha infamia mais torpe, nem injuria maior feita ao mesmo tempo á igreja e ao estado, á mulher e ao esposo, ao amor e ao estado e á santidade do matrimonio. Estas estrangeiras eram da escola da infame Bisardeli: conviviam com a sua amante, que foi muito tempo em Lisboa uma mulher luxuriosa e depravada, que vendia todo o fumo da perfida nunciatura d'aquelle tempo. Eu foi conduzido em mil oitocentos e quarenta como deputado para a casa das referidas Caracas: as lojas maçonicas dispunham do meu destino traiçoeiramente para dispor de minha vida, e vivi por mais de um anno na casa dos Poyaes de S. Bento com outros deputados, que serviam as lojas, e que me vendiam, e entregavam aos seus caprichos: por esta razão ouvi e aprendi o esboço d'esta negra historia; assim agora ouço e aprendo o seu complemento e torpissimo enredo. A inspiração é a minha sabedoria; se em outro tempo soube alguma cousa agora declaro, que nada sei e que todas as minhas idéas são communicadas e inspiradas, do alto céo, e no seu piissimo docel. Eu tinha trinta annos de idade, e julgava que todos os homens eram de boa fé, e amigos do seu semelhante. Bons e excellentes para a companhia e convivencia, os traidores são os mais lisonjeiros: eu tive seis companheiros de casa n'esta época: só um vive, cinco já falleceram. Os meus inimigos, que são todos os vilissimos protestantes, fizeram as maiores diligencias para me matar: não houve astucia, nem enredo, nem traição que não empregassem para conseguir este malevolo fim: é bem de presumir que um d'estes fosse o veneno. A infanta e todos os usurpadores da casa de Bragança, o governo e todos os seus clientes, a maçonaria e todos os seus agentes nacionaes e estrangeiros, ora armavam contra mim o braço do cruel Mattos Lobo, ora forjavam ou fingiam revoluções e acclamações nocturnas para me surprehender no conflicto, ora lançavam sortes para me seguir de noite e para me matar nos arroios da cidade ou nas encruzilhadas: ora engajavam estrangeiros e carniceiros por grandes sommas para que me procurassem e matassem na propria casa, aonde eram recebidos pelas infames Caracas. Um d'estes era um lanceiro, e carniceiro, que esteve na guerra do Porto, a quem deram o preço do regicidio, e o bilhete de passagem em um brigue para sahir para França logo que consummasse o attentado. Todas estas traições e maquinações eram cumulativas, horrorosas, e tão desleaes e insidiosas, como as que se urdem ao innocente que não sabe ou não póde defender-se. Eu estava no caso da mais perfeita ignorancia porque nem sabia o que era: infelizmente a minha vida era n'este tempo mui sujeita á fragilidade e a quedas que eu não procurava, antes tentava e não sabia evitar. Estes monstros da tyrannia do inferno pediam e repelliam a minha eleição; porque o seu fim unico exclusivo era a minha morte; só admittiam a meu favor algumas apparencias ou disfarces com que encobriam as suas tramas e horrores: eram seducções, tyrannias, convites para lugares de traição, venenos, e armas occultas. Se viam que eu vingava como advogado em Villa Real, pediam para eu ser eleito deputado só para me atraiçoarem em Lisboa; e logo se arrependiam, e punham todos os embaraços da sua infame escola e odiosa seita á minha eleição e elevação; se viam que eu não era morto em Lisboa desejavam que eu fosse para Coimbra aonde punham como ultima mira a cruz de meu martyrio e funeral. Como podia livrar-me de tão infernal perseguição? Os monstros não consentiram mais na minha eleição e ainda me propozeram pelo circulo de Arganil, onde fui eleito deputado no anno de 1852, mas os infames logo se arrependeram, e cassaram ou annullaram a eleição na camara, sem me ouvir, e sem me mostrar o processo das suas infernaes tramoias. Quem deixaria de eleger-me para todas as legislaturas depois de vêr e saber que o meu nome era singular e unico, e que a minha representação não tinha igual em todo o mundo e redondeza? Quando concordaram na minha eleição para suffraganeo do patriarchado entregaram a minha vida ao maldito e infernal nuncio, e ao abjecto e tredo patriarcha e ás suas seitas e partidos para se desonerarem da tarefa que os infames julgaram e declararam superior ás suas forças. Estes monstros esgotaram toda a traição, todas as maquinações e os seus enganos, e não conseguiram o que desejavam: o perfido e abominavel ministro do anti-papa chegou a convidar todas as seitas para o espectaculo do meu envenenamento, as quaes enviaram os seus deputados e representantes para assistir a esta scena de horror que se representou na presença da diplomacia cruenta das actuaes usurpações da vergonhosa Europa e da America por duas vezes. Só Deus omnipotente podia isentar-me de tão imminentes catastrophes. O nosso fim actual é descrever a burrinha protestante e a sua bestial condescendencia e venalidade. Um deputado que vivia na mesma casa da viuva Caraca mandou um seu criado ao meu quarto para me offerecer uma criada da casa em que ambos viviamos; eu não sabia desviar estes golpes, que o Senhor deixava ao meu alvedrio para o merecimento, e para que désse a devida preferencia á sua santa luz e mandamento. O inimigo occulto era d'uma seita de usurpadores de Deus: a sua traição vingou por pouco tempo; quando me tentou com alguma pessoa da sua familia não conseguiu o que desejava; o criado fez-lhe a traição, que elle me urdiu a mim. Os inimigos da nossa casa e dynastia recorreram a D. Thereza Caraca, e fizeram-lhe o mesmo partido, que os milanezes tinham feito á sua mãi para que me seduzisse e envenenasse. Prometteram-lhe dinheiro, um marido, e um emprego para este, e realisaram todas estas promessas, mas eu só bebi meia taça de seu perfido veneno; na primeira occasião que tive de lucido intervallo repelli a seductora, e todas as suas seducções, e, como vi que se obstinava, sahi da casa. O que é a verdade? esta mulher disse que estava gravida e tentou attribuir-me o seu ventre, ou isentar-se pelo aborto do seu nefando e odioso mister de calumniadora; disse-me que ia queixar-se de mim ao nuncio, ou agente occulto da junta apostolica que por este tempo estava em Lisboa, em quanto estiveram interrompidas as relações com a côrte de Roma. Eu zombei da perfidia e do sarcasmo d'esta mulher calumniadora e embusteira; e procurei livral-a de sua tentativa de aborto, o que felizmente consegui por dinheiro. Esta odiosa creatura teve n'este tempo dous amantes: o primeiro era um deputado, que a seduziu para que me envenenasse, o qual morreu pouco tempo depois, e logo adoeceu tão gravemente que parecia um espectro, ou um cadaver ambulante: era um agente dos pedreiros livres. Havia n'esta casa só duas pessoas da familia, a mãi e a filha; eu tive dous enlouquecimentos de falso amor; repelli duas tentativas da mesma perfida natureza e nojenta cavillação. D. Thereza tocava dous instrumentos e cantava, tinha um amante para casar que a acompanhava no canto e com o violoncello: eu comprei em quanto alli estive dous pintasilgos ensinados a tirar agua com o bico, os quaes foram ambos mortos por um gato, que havia em casa. A criada tambem teve dous amantes, um era sapateiro coxo, que a procurava e requestava para casar: ambos realisaram os seus casamentos. A filha da viuva Caraca tinha na mesma casa um estabelecimento de capella, e inculcava-se ao respeitavel publico como modista: a mãi tinha o seu estabelecimento de hospedaria. Eram dous estabelecimentos: a casa tinha sahida para duas ruas e duas portas para a rua dos Poyaes de S. Bento: viveram alli commigo cinco deputados, dous delegados, dous juizes do districto, dous governadores civis, dous juizes da antiga magistratura, dous Domingos dos quaes um era o atraiçoado e o enganado por todos os outros: eramos ambos deputados pelo circulo de Villa Real: os outros eram deputados por outros circulos. Os delegados foram Domingos Vieira, e José Manoel Botelho, os juizes foram o José Maria da Chamusca e o Quesado, os governadores civis foram o dr. José Maria e João Pedro Pessanha, os juizes antigos foram o mesmo José Maria e Domingos Vieira, e não preciso dizer quem eram os Domingos, senão que eu sou já tão diverso do que era, que não pareço o mesmo. Os cinco e seis deputados formavam as cinco e seis qualidades já referidas. Quem poderá calcular as lagrimas que tenho chorado para carpir os peccados e os erros da minha mocidade, e para os emendar com divina graça e misericordia? está-me parecendo que reunidas faziam o maior lago dos nossos passeios e jardins. Actualmente não como carne nem peixe não bebo vinho nem cerveja, passam-se quinze dias e tres semanas sem que prove doçura, nem chá, nem café, nem chocolate, como por medida e por peso, e não uso de carne nem de genero algum de tabaco, não passeio, nem vou aos espectaculos; prefiro andar a pé e só peço ao Senhor que se compadeça da minha alma. A burra protestante é bem parecida com a vacca, e com o burro da seita: eu não conversava com estas em pontos ou artigos da santa fé, o seu veneno era a maior traição e os seus reconditos apenas me revelaram parte da sua historia de Milão. Eu sempre assisti á missa mais catholica de que tinha noticia, e não suspeitava em ninguem cavillação ou perfidia tão negra e atroz, que chegasse a ostentar fé falsa da diabolica e tenebrosa consciencia: agora sei que ha muitas d'estas embrutecidas consciencias, e não duvido que as duas Caracas fossem d'este hediondo esconjuro. Os maçons são em geral d'esta sanhuda seita do inferno; os usurpadores de Portugal pactuam com o demonio, e entregam as almas para poderem possuir as leis das santas casas do divino Salvador. Mas estes venenosos monstros apenas gozam a presa: o direito santo e eterno foge d'elles como foge a cerração quando nasce a aurora que vem remir o mundo. Os mesmos inimigos recebem outro engano ou desengano semelhante quando tentam usurpar o poder da santa igreja para legitimar a sua tyrannia. A falsa communhão dos protestantes está no estado: não póde legitimar os actos do poder usurpador e dominador. O estado catholico está na igreja, e por isso legítima os seus poderes todas as vezes que recorre para este fim ao poder espiritual do summo pontifice. A era actual é a perfeição da disciplina. LIXO O snr. Joaquim Antonio de Sousa Telles de Mattos, critico erudito e menos conhecido que merece, publicou, em Evora, um opusculo intitulado: _A imparcialidade critica do snr. Joaquim de Vasconcellos._ Allude á _Analyse critica da versão do FAUST_. A obra do critico do snr. visconde de Castilho é um livro crasso que morreu de tabardões, e jaz no _carneiro_ das livrarias esperando que o dente roaz da carcôma o pulverise por modo que as letras portuguezas se desenfezem d'aquellas escamas de ignorancia e odio. O snr. Telles de Mattos colligiu algumas necedades graudas que denominou _vasconcellismos_. Abre a lista, com a novidade--_declinar_ verbos. Eis a passagem onde se encontra o lerdo descôco do critico de Castilho: _Nenhum doutorando dos ultimos cinco annos em Coimbra, estaria no caso de_ declinar _os verbos auxiliares allemães, sem merecer palmatoada..._ (pag. 26). E acrescenta o snr. Mattos: «Quando eu vi o _Sejai_ e _Estejai_ julguei que era erro typographico dos _germanismos_ annunciados; vendo porém _declinar_ verbos, percebi que o snr. Vasconcellos saberá tanto de allemão como qualquer analphabeto nascido debaixo do paternal carinho de Bismarck.» Observa que a pag. 57 o snr. Vasconcellos inclue a Suissa na Allemanha; e acrescenta: «A Suissa pertence á Allemanha na geographia do snr. Vasconcellos; ella deve ser equiparada á sua grammatica.» Nota que o snr. Vasconcellos escrevendo: _os manes do Olympo_ (pag. 128) désse a perceber que os deuses olympicos tem manes. _Manes_ tanto significam almas dos mortos como deuses infernaes. A mythologia do snr. Vasconcellos é como a geographia, e não desdiz da grammatica. Cita, na pag. 208, o imperativo do verbo _ser_, _apud_ Vasconcellos: «_Sejai_ pois corajoso e apparecei como modêlo.» E a pag. 507: «_Sejai_ tão infames quanto quizerdes.» E a pag. 337: «_Estejai_ dentro ao golpe da sineta.» _Coup de clochette_--golpe de sineta, segundo Vasconcellos. Em portuguez, traduz-se _badalada_, ou _toque de sineta_. Desculpem esta observação os alumnos de instrucção do 3.º anno dos lyceus. «Desço eu (diz o snr. Vasconcellos a pag. 239) sem cessar de cima para baixo.» O snr. Telles de Mattos ajunta: «Leitor, agradece a fineza: sem o pleonasmo, ficavas percebendo com certeza que se desce de baixo para cima.» Os cães, _apud_ Vasconcellos, grunhem. A pag. 273: «Tu vês um cão... elle _grunhe_.» A pag. 277: «Não grunhes, cão!» E torna: «Quer o cão... _grunhir_.» Nunca se usurpou tantas vezes a linguagem ao cevado. Se o snr. Vasconcellos estudasse portuguez pelo _Methodo_ de Monteverde, teria aprendido nas _Vozes dos animaes_ do snr. Pedro Diniz como vozêam cães e porcos. _Muge_ a vacca; _berra_ o touro; _Grasna_ a rã; _ruge_ o leão; O gato _mia_; uiva o lobo; Tambem _uiva_ e _ladra_ o cão. .......................... _Chia_ a lebre; _grasna_ o pato; Ouvem-se os porcos _grunhir_; Libando o succo das flôres, Costuma a abelha _zumbir_, etc. Tambem Vasconcellos, traduzindo Goethe, descobriu no cão um _caroço_ (pag. 285). Diz-lhe o snr. Telles que _Kern_ significa _pevide_ ou _caroço_, quand se trata de fructos; mas n'outras conjuncturas, é _amago_, _substancia_, etc. O snr. Vasconcellos, quando tirava os significados de _Kern_, achou _caroço_, e pespegou-o logo no cão; por isso o cão encaroçado _grunhiu_ tres vezes. Podéra... A pag. 474, escreve Vasconcellos: _ouvir por um oculo._ Eu esta phrase não a estranho. Mais me espantára, se elle dissesse: _vêr por uma corneta acustica._ Dá-nos Vasconcellos a pag. 503 Tantalo _enterrado até ao queixo na agua._ Póde uma pessoa estar _enterrada_ na agua, e estar _submergida_ na terra. Tambem não estranho isto; mais me assombra a coragem da ignorancia, se é que não ha um fado irresistivel e tolo que nasceu comnosco, ou _com nós nasceu_, como diz Joaquim de Vasconcellos a pag. 339. BIBLIOGRAPHIA _Escriptos humoristicos em prosa e verso do fallecido JOSÉ DE SOUSA BANDEIRA, precedidos da biographia e retrato do author. Porto, 1874._--O berço da liberdade em Portugal foi embalado com as trovas politicas do redactor do _Azemel_ e do _Artilheiro_. Bandeira é o patriarcha da facecia jornalistica entre nós. A sua graça era da velha escóla de José Daniel e de José Agostinho de Macedo. Não pespontava de delicadeza: ia direita aos beiços do leitor e abria-lh'os forçosamente em casquinadas de riso. Hoje em dia, o riso é mais preguiçoso, quando folheamos estas paginas do livro escripto ha 38 annos. São cinzas, e cinzas esquecidas os estadistas que José de Sousa Bandeira motejou no tumultuoso palco politico de aquelle tempo; todavia, a historia não prescindirá de consultar os _Annaes da imprensa da liberdade restaurada_, quando houver de assentar de vez os vultos dos grandes obreiros do governo representativo; e, entre todos os archivistas das luctas d'esses dias, José de Sousa Bandeira foi o mais independente e afouto. Custodio José Vieira, talento insigne e apreciador inflexivel dos homens e das cousas, escreveu a biographia do jornalista com quem muitas vezes pleiteou na sua juventude de publicista. É um lavor incompleto, dado que na vida de Sousa Bandeira lhe não esquecessem os lances capitaes. É incompleto, por que as 83 paginas escriptas deviam prolongar-se até completar a historia e o proseguimento da restauração dos direitos civicos em Portugal. Custodio Vieira revela-se, n'este eloquente escripto, historiador severo. No estylo, usa as concisões de D. Francisco Manoel de Mello, e o atticismo dos historiographos que melhormente exemplificaram a arte de narrar. Se elle um dia poder furtar-se aos braços da sua amada e amantissima jurisprudencia (que amores!) póde ser que a historia se preze de brindar os portuguezes com os fastos da sua emancipação. * * * * * _No Minho, por D. ANTONIO DA COSTA. Lisboa, 1874._--Apenas publicado, divulgou-se o gracioso livro de D. Antonio da Costa, escriptor provado em ramos de variada litteratura. Os _Tres mundos_ foi obra que affirmou os distinctos dotes revelados nos livros anteriores. Este do _Minho_ é o repousar suave de circumspectas canceiras, que asseveram meditação, estudo, espirito reflexivo e capacidade para tentativas avessas do indolente genio portuguez. Escrever 310 paginas ácerca d'estas moutas verdejantes do Minho, sem enfastiar, é condão de quem sabe quebrar com as diversões da arte a monotonia da natureza. E, depois, jornadear por estradas reaes, pernoitar por estalagens urbanas--em que não ha vislumbre de urbanidade, nem sequer misericordia--passar uma noite em Braga, é sentir-se a mais robusta e inventiva alma encodear de uma crusta de estupidez que nos faz pensar que temos no peito uma tartaruga sôrna. Braga, a scintillante esmeralda d'esta manilha de pedras finas que D. Affonso Henriques tirou do pujante braço de Hespanha, Braga seria a querida dos forasteiros de todo o mundo, se as camas das suas hospedarias não fossem alfobres de insectos _apteros_ com seis patas, e _hemipteros_ com azas, segundo Cuvier. Sei que no Indostão ha hospicios em que as pulgas são pensionadas e medicadas nas suas enfermidades. Sei que os indostanicos respeitam o dogma da metempsychose, e se deixam sugar devotamente por ellas; mas nem Braga é Aurengabad, nem eu sou da raça mahratta, nem tenho razões bem assentes para desconfiar que o espirito de minha avó se compraz em me morder no hotel Real de Braga. Não encontro memoria d'este martyrio no livro do snr. D. Antonio da Costa. Attribuo a omissão á delicadeza do martyr. Ha tormentos tão sujos que o relatal-os em gemidos é indecencia consignada no _Compendio de civilidade_ do snr. João Felix. Se bem me lembro, Boileau cantou a pulga em magnificos alexandrinos; hoje em dia; nem á pedestre prosa se consente rolar uma lagrima sobre a cutis sevandijada por estes e outros carnivoros creados em um dos sete dias genesiacos... para satisfação e proveito do homem. O meu amigo D. Antonio da Costa, convisinhando do snr. Manoel dos Malhos, que roncava impenetravel ás harpias do hotel, chorou copiosamente no capitulo intitulado: _Uma insomnia._ Quem sabe se, n'aquella noite, as luras epidermicas da casca de Manoel dos Malhos attrahiram as hordas a desenxovarem n'ellas as suas larvas e nymphas? Eu, n'aquellas estalagens, encontro sempre dous Manoeis dos Malhos, um de cada lado, e os outros bichos no meio. Formal e substancialmente são admiraveis os capitulos d'este livro, intitulados _O Bom Jesus do Monte_, _Um castello feudal em 1873_, _A mulher do Minho_, e a _Ultima impressão_. N'estas paginas que fecham o livro reluzem os entranhados desvelos com que o snr. D. Antonio da Costa, ha tantos annos, afaga as criancinhas carecidas da segunda alma da educação. Este capitulo é um obelisco de gratidão publica e amoravel a perpetuar a memoria de D. Maria Francisca dos Santos Araujo, abastada senhora de Leça que fez do seu ouro um quinto evangelho de propaganda caritativa. «Ah, senhora!--escreve o eloquente enthusiasmo do obreiro da instrucção--devem de ser formosos os vossos momentos, quando na escóla que edificastes vos achardes rodeada das meninas que se estão educando no vosso bafo, e não menos quando sahindo d'alli festejada por ellas, ao passardes pelas ruas de Leça, chegarem ás portas todas aquellas mães com as filhinhas mais pequenas ao collo, e fordes vendo todas essas mães apontarem para vós, dizendo alvoroçadas para as crianças: _É aquella!_» O livro _No Minho_ está julgado por 1:500 leitores que o já possuem; e, todavia, annunciou-se a excellente obra nos primeiros dias de julho. Não são triviaes estes triumphos em Portugal, repetidos com as mais notaveis producções do benemerito escriptor. Aquelle grave e philosophico livro dos _Tres mundos_, relido com intelligente ardor e creio que já reimpresso, attesta que renasce n'este paiz o afan do estudo, e o gosto da instrucção solida. Deviamos vir a isto, depois do cataclysmo de palavrorio e marmanjarias com que uns sycambros andaram por ahi a querer derrancar a mocidade. Não póde o illustre escriptor frizar de todo a sua indole peculiar ao genero escoteiro--digamol-o assim--d'estas cousas levissimas e quasi futeis que se escrevem em jornadas de fronteiras a dentro. O modêlo, que Almeida Garrett imitou dos francezes, é um estorvo que desanima. O romance, interposto na viagem, era em 1840 um dôce engodo, e foi grande parte na prosperidade do livro. Estavamos ainda no periodo romantico. A menina dos rouxinoes devia ser contemporanea dos bardos que se inspiravam das proprias cabelleiras á Saint-Simon. Os rapazes d'aquelle cyclo acreditavam em Garrett, e andavam saturados do amor dos Espronceda e Musset. Hoje, não. O livro do snr. D. Antonio da Costa é, a intervallos, condimentado das grandes questões do dia, da vitalidade regeneratriz que estúa no pulso de todas as forças. Se parte dos leitores o desejam mais futil, ha de haver muito quem assim o estime em dobro. Eu, de mim, achei n'estas trezentas paginas o sorriso alegre, a meditação melancolica, o rebate saudoso de perdidos contentamentos, o estimulo a considerações de porvindouros beneficios a filhos e netos--consolação unica, mas santa, que a Providencia dá aos que não esperam nada da vida presente. * * * * * _Phantasias e escriptores contemporaneos, pelo VISCONDE DE BENALCANFÔR. Porto, 1874._--Ricardo Guimarães, com o camartello do folhetim, derruiu o carroção, no Porto, ha vinte annos. O carroção tinha, por aquelle tempo, dous seculos de moda. Fôra inventado na rua das Cangostas para uso de uma familia obesa, formada de quinze pessoas adiposas. Esta familia derreteu-se no estio de 1650; mas o carroção ficou. No lapso de duzentos annos, o carroção, parado no largo da Batalha, com a lança vermelha atravessada nas sôgas dos ramalhudos bois, viu passar e desapparecer todos os vehiculos adelgaçados pelo cepilho do progresso. O carroção escancarou as goelas, e riu da americana, da victoria, do phaetont, do landeau, da caleche, do dog-cart, da tipoia, do coupé, do tilburi, do daumont, do brougham, do mail-coach, do poncy-chaise, do groom, do break. Ricardo Guimarães, fundibulario da hoste moderna, carregou a funda de estylo, remessou-a ao Golias de couro; e o gigante, arrastado pelos bois que mugiam saudosos da palha-milha que comiam á porta do theatro lyrico, dispersou os membros por Barcellos, Famalicão e regiões visinhas. O milagre não fôra obra de um homem nem de uma geração de espiritos finos. Fôra o estylo de Ricardo Guimarães--o estylo que é a dynamisação de todas as forças, desde a polvora até á dynamite, desde a alçaprema de Archimedes até á machina de Papin. Era uma delicia o escrever d'este rapaz, e outra delicia o modo como entornava no papel os brilhantes paradoxos, as hyperboles ridentes, as metaphoras originalissimas. Era meu companheiro de hotel (que hotel, ó Ricardo!) em 1855. Escrevia artigos politicos de madrugada, na calma, entre meio dia e uma hora, do seguinte feitio: tinteiro e papel no sobrado; elle adaptava-se horisontalmente ao colchão, na postura de quem espreita a profundidade de uma cisterna, descia o braço direito até ao pavimento, e escrevia lá em baixo. Assim tratava Ricardo Guimarães, de bôrco, a politica do _Nacional_, no soalho, como quem deita migalhas a uma pêga. Depois, um dia, enfardelou os fraques e os vernizes, os retratos de algumas mulheres formosas e os economistas mais avançados, desdobrou as azas da sua arrojada phantasia, deu um sorriso aos seus amigos, e... adeus! D'ahi a pouco, deputado, esposo, pai. Fez-se um silencio de annos na sua voga de escriptor. Os seus camaradas, que haviam afivelado com elle a espora de cana em algaras litterarias, trajaram luto quando se convenceram que o _visconde de Benalcanfôr_ era o epitaphio de _Ricardo Guimarães_. Eil-o que resurge com as feições mais accentuadas, o sorriso menos expansivo e mais hervado de ironia, a graça mais palaciana, a satyra com oculos verdes para que a não acoimem de estouvada, e as antigas imagens de sua invenção com decote que não deixe vêr a curva da espadua. D'esta reforma, salvou o visconde de Benalcanfôr as facetas resplandecentes do estylo, deveras portuguez na palavra, francez no boleio da phrase--ligação que é uma formosura, quando o escriptor tem a consciencia d'essa difficultosa amalgama. Tem o visconde publicado os melhores livros que possuimos ácerca de viagens. Este das Phantasias seria aquelle que eu mais encarecesse em quilates de graça e critica, se me não visse ahi tão amigavelmente indulgenciado em onze paginas. Ponderei, gravemente, meu caro Ricardo, n'este livro o teu capitulo, intitulado ELOGIO MUTUO. Tu, com certeza, antes queres de mim uma reminiscencia da juventude, que os tardios e quasi inuteis gabos feitos ao teu assignalado talento. * * * * * BERNARDINO PINHEIRO. _Amores d'um visionario, romance historico original do seculo XVI. 2 tom. Lisboa, 1874._--Se a linguagem das civilisações adiantadas e os pensamentos de perfectibilidade humana podessem pensar-se e exprimir-se no seculo XVI, este romance do snr. Bernardino Pinheiro corresponderia, cabalmente, á qualificação de _historico_. A illusão desfaz-se a cada pagina, sempre que os personagens entendem na questão do progredir social. Que Antonio de Gouvêa, o heroe do livro, depois de ouvir, na Europa litteraria e convulsa de reformas, as theorias dos adversarios do papa e do dogma, propagasse idéas e palavras novas em Portugal, é possivel; mas que a freira do Salvador, e D. Margarida de Lencastre, e a escrava liberta discreteassem tão eloquentes e progressistas ácerca dos direitos do homem, da emancipação do escravo, da liberdade do pensamento, repugna aceital-o a razão, posto que de bom animo nos affeiçoemos á vehemencia e esplendor d'essas phrases intempestivas. Mulheres illustradas, se as houve em Portugal no seculo XVI, são umas que o snr. Pinheiro nos mostra em um dos admiraveis capitulos do seu livro. As paginas descriptivas de _Uma academia feminina do seculo XVI_ quadrariam em livro da mais selecta historia do reinado de D. João III. Alli estão as Sigéas, que não gozam fama de pudentissimas escriptoras, se um poema erotico as não calumnía. Pois, n'esses completos moldes que o snr. Pinheiro nos deu da sciencia feminil, está o maximo, o ultimo estadio do alcance intellectual da mulher. Soror Maria, a monja que, de escrupulosa, não ousava erguer o véo a sós com o amante, revelou incapacidade para discorrer tão liberrima, na carta a Gouvêa, ácerca das regalias do coração. Escrevendo ácerca de uma visionaria, diz a freira ao seu amado: «Os espiritos convictos são logicos. O fanatismo tem as suas leis fataes--e, por vezes, posto que raras, felizes...» E acrescenta com intelligente ironia: «Que enormissimos criminosos que nós somos:--amamo-nos, e acreditamos no evangelho puro!... Quando serão no mundo livres o pensamento e o amor?!» A freira em 1548, podia delinquir porque era mulher; mas não saberia desculpar o seu delicto com argumentos d'aquella natureza. E soror Maria, se tivesse no corpo o demonio incubo da philosophia, quando abriu a porta da cerca monastica ao amante, sahiria por ella, em vez de, colhida em flagrantes amorios, pedir misericordia á mestra de noviças. Teria feito o que fez depois, independente de luzes que lhe mostrassem a nullidade e tyrannia dos votos de reclusão, castidade e pobreza. Esta macula é resgatada por nitidissimas paginas que manifestam o historiador avantajando-se ao romancista. O capitulo XVIII (_Illustrações em Coimbra_) é labor bastante a graduar um espirito culto na convivencia dos varões insignes do seculo XVI. A disposição do grupo é magnifica. Alli se admiram os luzeiros que chammejaram á volta da alma negra de João III e não vingaram esclarecel-a. O quadro do auto de fé em que Antonio de Gouvêa é salvo da fogueira pela cohorte dos escravos, é tão vigorosamente desenhado quanto inverosimil. Os frades de S. Domingos não se deixavam embair por tretas nem sancadilhas á sua credulidade, quando queimavam herejes da laia de Gouvêa. Não obstante, esse trance, pelas commoções que produz, dispensa-se dos realces da naturalidade. Em summa, _Os amores d'um visionario_ é um livro que merece graduar-se entre os bons romances portugueses, tanto pelos predicamentos da imaginação, como pelo subsidio de historia que presta ás pessoas desaffectas a demorados estudos. POBREZA ACADEMICA O secretario da academia real das sciencias de Lisboa, José Bonifacio de Andrade e Silva, escreveu a monsenhor Ferreira Gordo, pedindo-lhe um donativo para ajuda de se pagar o busto do duque de Lafões, D. João Carlos de Bragança, que a mesma academia desejava collocar em uma das suas salas. O sabio monsenhor respondeu com circumspecção e graça por meio da seguinte carta, que está inedita: «Poderá v. s.ª certificar em meu nome á academia, que eu estou disposto a concorrer com o contingente, que me couber, guardada a proporção arithmetica, para o monumento, que pretende dedicar á memoria sempre saudosa do seu illustre fundador, e que aproveitarei de bom grado todas as occasiões, em que possa dar-lhe mostras do meu reconhecimento pelo muito, de que lhe fui devedor. Mas não se achando todos os socios n'este empenho, e fallecendo á maior parte d'elles meios, para fazer donativos d'esta natureza, parece-me que a academia teria resolvido com mais prudencia, e circumspecção decretando que a despeza do dito monumento sahisse inteiramente dos seus fundos. Que póde doar sem detrimento seu um religioso, não sendo commissario da Terra Santa, prior geral dos conegos regrantes de Santo Agostinho, abbade geral do mosteiro de Alcobaça, ou ministro provincial dos menores observantes de qualquer das duas provincias de Portugal e Algarves? Que rendimento tem um professor regio de humanidades, um lente da universidade, um ministro, e qualquer outro funccionario publico, que na fallencia de bens patrimoniaes, lhe não seja indispensavel para sua mantença? Dirá alguem que a academia roga, e não manda, e isto é verdade; mas como ninguem quer o fóro de pobre, nem ser marcado com a nota de pouco officioso, esta rogativa virá a ser para a maior parte dos socios, o effeito de um rigoroso mandamento. De mais se a academia é real, se todos os seus trabalhos se dirigem a fazer prosperar, e florecer os estados de quem lhe deu este titulo, e a subsistencia, e se até agora tem gozado a singular prerogativa de ser presidida por uma personagem de sangue real, acho muito improprio, que a despeito, de tudo isto, se lhe queiram dar os attributos de uma irmandade religiosa, fazendo dependente da caridade de seus irmãos, e não do seu patrimonio, qualquer despeza extraordinaria, que emprehender. Perdôe v. s.ª como secretario a liberdade, que tomei, que como meu amigo que é, tenho certeza me desculpará, se o que acabo de escrever se encontrar com o seu parecer, que muito respeito.» Os academicos de hoje são outra casta de gente, quanto a pelintraria. Se não fazem bustos, é porque ainda estão vivos todos os sujeitos que hão de resuscitar no marmore e no alabastro. Aquelles salões desertos hão de ser povoados de estatuas, quando as cangas de sabios que hoje lavram os baldios da sciencia, se foram a pascer nos almargens da immortalidade. Medita a geração nova no modo de os entrajar, pois que a funeral casaca destôa das arrojadas manias e sabenças de cada sujeito. Creio que deveremos apparecer, nós, os academicos, cada qual com seu caranguejo symbolico na mão operosa. O mocho, a ave de Minerva, apenas cabe de direito ao snr. João Felix Pereira, o pervigil diurno e nocturno. SOBRE ANSELMO Usam dizer algumas pessoas assalteadas por bandidos da imprensa: «Não respondo, porque o insultador é canalha.» Isto é um desacerto. Não ha canalha irrespondivel. Todo o infame que calumnía representa uma parcella da opinião publica. E essa parcella, malevola ou enganada, crê esmagar o calumniado quando o interprete de seus odios ou preconceitos tem no espinhaço a couraça repulsiva do escaravêlho, invulneravel aos bicos da penna e aos loros do látego. Anselmo é um como isso. E, todavia, eu respondo a um grupo de sujeitos representados na imprensa por Anselmo. Separal-o individualmente, e atagantal-o, isso é que de modo nenhum. O sapo esguicha um pus fetido quando lhe verberam as pustulas do couro. Não se bate em homens d'esta laia, desde que o pelourinho e o açoute foram expungidos da lei. Convém saber que Anselmo não escreve: assigna. Theophilo Joaquim Fernandes é o tubo intestinal por onde Anselmo estrava a alma excrementicia; ao mesmo tempo que Anselmo é a testa polida (não é tartaruga: finge) em que Joaquim escreve as suas protervias a carvão. Theophilo, o ignorante que eu abafei com a critica risonha, sem lhe impor alçada ás devassidões notorias, resfolga nas iras do outro. É a vingança negra do mais safado caracter que ainda sahiu desembolado ao curro das letras. No impresso assignado por Anselmo de Moraes encontrei duas aleivosias que me doeram por estar conspurcado n'ellas o nome serio do snr. José Gomes Monteiro, invocado como authoridade no meu descredito. São as seguintes: «Da cadêa começou Camillo a abrir brecha para a rapina na casa Moré, mandando ahi mostrar um romance de descompostura ao dignissimo procurador regio, que não lhe tolerou certas obscenidades no carcere; o amigo do procurador regio, gerente da dita casa, teve de pagar o romance para poupar um desgosto ao magistrado respeitavel. Ainda não ha muito tempo que o snr. José Gomes Monteiro se refugiou no nosso escriptorio para evitar o encontro de Camillo na loja Moré, que ia alli armar uma _escroquerie_, com o fim, dizia elle, de pagar uma decima... «Ultimamente comprometteu a sorte de Vieira de Castro com a sua defeza; explorou a desgraça do amigo com o drama o _Condemnado_, que vendeu a dous individuos.» Pedi ao snr. José Gomes Monteiro, antigo gerente da casa Moré, e editor do _Condemnado_, que se dignasse ajudar-me a interpretar estas deshonrosas referencias a um romance que s. exc.ª me pagára para não ser publicado, a uma fuga de s. exc.ª no escriptorio de Anselmo para se furtar a uma _escroquerie_; e finalmente á dupla venda do drama _O Condemnado_ a s. exc.ª e a outro simultaneamente. O snr. José Gomes Monteiro, na volta do correio, respondeu d'esta fórma: _Snr. Camillo Castello Branco._ Meu amigo. Acabo de receber a carta de v. datada de hontem, incluindo o impresso que Anselmo de Moraes fez aqui circular. Apresso-me em responder-lhe. O primeiro periodo marcado por v. allude ás _Memorias do Carcere_ cuja editação v. me veio propor em seguida á do _Amor de Perdição_. Ajustamos a publicação d'essa obra antes de eu ter lido o original, que só no dia seguinte me foi entregue. Li então o manuscripto aonde encontrei algumas expressões que me pareceram offensivas da reconhecida probidade do conselheiro Camillo Aureliano da Silva e Sousa, então procurador regio junto á Relação do Porto. Por este motivo tive de devolver o original a v. rogando-lhe houvesse por nulla a nossa convenção, por isso que eu não podia ser editor de um livro em que de certo por erradas informações, era maltratado um amigo meu, que eu tinha na conta de magistrado integerrimo e de honradissimo cavalheiro. V. veio immediatamente procurar-me e aceitando o meu testemunho como a expressão da pura verdade, confessou ter sido mal informado ácerca da immaculada probidade do meu amigo. Voltou o manuscripto devidamente reformado e v. não se limitando a expungir as phrases que eu havia condemnado, fez generosamente justiça ao honrado magistrado. Publicou-se o livro e elle mesmo dará testemunho da inexactidão do que se affirma no citado impresso, de que eu me vira obrigado a pagar um romance escripto por v. contra o meu amigo para lhe poupar um desgosto. Confesso não ter guardado rigorosa reserva sobre este incidente, do que sinceramente me peza, visto que a minha indiscrição deu lugar a que os factos fossem desfigurados em desabono de v. V. não precisa de certo que eu o justifique, nem me justifique a mim de me haver um dia refugiado no escriptorio do signatario do impresso para me subtrahir a um pedido de v. Declaro com toda a ingenuidade não me recordar d'esse grave capitulo de accusação dirigido não sei se a mim se a v. O que afoutamente posso asseverar é que nas muitas transacções commerciaes que temos tido encontrei sempre em v. a maior franqueza e inexcedivel probidade. Não é por isso verdade que v. depois de me haver vendido a propriedade do drama _O Condemnado_ o tivesse subrepticiamente vendido tambem a outra casa editora. É verdade que d'este drama se veio a fazer no Rio de Janeiro uma contrafacção, mas tenho completa certeza de que v. fôra inteiramente alheio a esta fraude, que a falta de um tratado com o Brazil infelizmente authorisa. V. fica authorisado a fazer d'esta minha carta o uso que lhe convier. Sou como sempre De v. etc. Porto, 25 de julho de 1874. _José Gomes Monteiro._ Apraz-me grandemente o publico testemunho d'esta carta, no momento em que as minhas relações sociaes e commerciaes com o snr. José Gomes Monteiro se desatam. Eu não poderia, sem impostôra inutilidade, fingir-me amigo de s. exc.ª desde que do contexto da sua carta se deprehende que o snr. Gomes Monteiro não se recorda bem se fugiu de mim para o escriptorio de Anselmo. Figura-se-me mais consentaneo ao honesto caracter do snr. Gomes Monteiro negar-se pela palavra a um favor pedido, e não pelo escondrijo no escriptorio de Anselmo a quem, pelos modos, s. exc.ª não disse _que nas muitas transacções commerciaes que tivera commigo encontrára sempre a maior franqueza e inexcedivel probidade_. Tirante esta feição mais attendivel do impresso, o remanescente é indiscutivel nos prelos e nos tribunaes. Tenho vergonha das infamias alheias, e respeito os nomes das pessoas que ahi se ultrajam. No entanto, não me esquivo a tocar dous episodios da minha biographia, que lá vem contados: Que eu guardara cabras em Villa Real. Quer o leitor saber onde Theophilo foi esquadrinhar este indecoroso lance da minha vida? Em um livro meu, chamado DUAS HORAS DE LEITURA, escripto ha 20 annos. Sou eu que, em uma carta ao meu fallecido amigo José Barbosa e Silva, conto assim o caso das cabras: «Aos meus dez annos, levantou-se uma tempestade no seio da minha familia. Uma vaga levou meu pai á sepultura; outra atirou commigo de Lisboa, minha patria, para um torrão agro e triste do norte; e a outra... Não merece chronica a outra: arrebatou-me um esperançoso patrimonio. Foi bem pregada a peça, para que eu não tivesse a impudencia de nascer, a despeito da moral juridica, filho natural de não sei que nobre. Disseram-me que uma lei da snr.ª D. Maria I me desherdava. A boa da rainha, se tivesse amado mais cedo um certo bispo, não legislaria tão cruamente para os filhos do peccado; Denominava-se a _piedosa_, pela mesma razão que um rei nosso, soprando a fogueira de vinte mil hebreus, se chamou o _piedoso_... Fui educado n'uma aldêa, onde tenho uma irmã casada com um medico, irmão de um padre, que foi meu mestre. O mestre podia ensinar-me muita cousa que me falta; mas eu era refractario á luz da gorda sciencia do meu padre. Fugia de casa para a serra, dava muitos tiros ás gallinholas e perdizes... O meu gosto era (_hic_, cabras) pascer o rebanho de casa por aquelles saudosos valles. Todavia, minha irmã oppunha-se a este humilde serviço. Dizia-me cousas que eu não percebia ácerca da minha dignidade, reprehendia os meus baixos instinctos, attrahia ao seu voto o marido e o padre, e cortava-me o rasteiro vôo, escondendo de mim a clavina, o polvorinho, os salpicões, a brôa, e a cabacinha da aguardente. Não obstante, eu pedia tudo de emprestimo, e ia com as ovelhas para o monte. Passava lá o dia inteiro, sentado nas espinhas d'aquelles alcantis fragosos, sempre sósinho, scismando sem saber em quê, engolfada a vista nas gargantas dos despenhadeiros.» * * * * * A respeito de cabras, não ha mais nada nos archivos impressos, que eu deva transmittir á posteridade. Ai! meu saudoso rebanho! Provavelmente, d'este lidar com cabras é que me ficou o sestro e coragem de aparar as marradas de cabrões, como Anselmo. N'essa mesma carta a Barbosa e Silva, conto eu que ajudava diariamente á missa a cinco sacerdotes. O sarrafaçal deixou escapar o ensejo de dizer ao publico que eu tambem fui sacristão. E a historia da filha do taberneiro, que me deu um fato novo e uma moeda para eu lhe casar com a filha; e vai eu pego a fugir com o fato e a moeda e deixo a rapariguinha perdida! Desbragada porcaria! Ó meus amigos de Villa Real, ou lá d'onde se passou o caso infando! Procurai a miseranda menina; e, se a topardes n'alguma gafaria--derradeira paragem da espiral das perdidas--trazei-a a casa d'este Anselmo para lhe agradecer o pregão que a vinga, e para lá se rehabilitar, vendo-se honesta em contacto com certo exemplo femeal de podridão d'alma e corpo. * * * * * Despedi-me, ha dias, de assignante da _Actualidade_. Estou arrependido. Devemos todos contribuir com alguns cobres para que Anselmo de Moraes não seja forçado pela necessidade a _picar-nos_ (giria d'elle) o paletó no cunhal da viella da Neta. Em quanto aquelle archi-pulha tiver gazeta, o seu pão, embora deshonrado, garante-nos do assalto nocturno. Não lhe leio mais o jornal; mas dou-lhe a esmola dos 240 reis mensaes. Mande-os receber em quanto a espinha em via de amollecimento me consentir subscrever com seis patacos, a fim de que elle me não liquide a cadêa do relogio. É verdade: affirma o impudentissimo caloteiro que tem lá uns titulos do saldo de nossas contas. A fim de que esses documentos appareçam, offereço o seguinte e perpetuo supplemento a todos os numeros da _Actualidade_: ANSELMO DE MORAES É RADICALMENTE LADRÃO, COM UM CORTEJO DE TORPEZAS ESPECIAES E RARAS NOS LADRÕES MAIS DESPEJADOS. AO PUBLICO AO PUBLICO Distribuiu-se ahi ha dias com generosa profusão um libello famoso por motivos a que sou completamente estranho, mas em que nem por isso quizeram que eu deixasse de figurar. Indignou por ahi a todos a alludida publicação, sem exceptuar os proprios amigos ou parciaes do signatario d'ella, o snr. Anselmo de Moraes. Dou-me com isso por bem vingado das malevolas intenções que me apontaram ás iras atravessadas do insultador enraivecido. Não ha desforço pessoal que valha tanto, e, ainda que o houvesse, não seria eu que o tirasse. A dignidade nem sempre manda procurar o aggressor, antes ás vezes exige que se evite. O meu fim é, pois, sómente esclarecer o publico, a quem respeito, como devo, e de quem quero continuar a merecer bom conceito, ácerca da perfida insinuação com que se intentou manchar a minha probidade commercial, que só d'isto posso aqui fallar sem offensa da moral publica. Obrigou-me aquella insinuação a dirigir-me ao exc.mo snr. José Gomes Monteiro, que, como homem de bem, se dignou dar-me o testemunho que se segue: _Snr._ _Respondendo restrictamente á carta que de V. acabo de receber, cumpre-me declarar, como o exige o meu caracter, que durante o tempo que sob a minha direcção V. serviu a casa da snr.ª viuva Moré, nunca d'ella subtrahiu cousa alguma ou quantia e prestou regularmente as suas contas._ _De V._ _Porto 28, 7, 74._ _attento venerador_ _José Gomes Monteiro_ Depois d'isto seria de mais tudo quanto eu podesse dizer. Fica o publico habilitado para fazer o seu juizo. _Ernesto Chardron._ FIM DO 8.º NUMERO EMENDAS AO N.º 7 Pag. 47, lin. 15: quer-me _parece_, emende: quer-me _parecer_. Pag. 95, lin. 10: _king-charles_, emende: _king's-charles_. --- Provided by LoyalBooks.com ---