J. P. CALOGERAS Os jesuitas e o ensino RIO DE JANEIRO IMPRENSA NACIONAL 1911 Algumas linhas premonitorias são necessarias para explicar a razão de ser, em sua forma primitiva, desta reimpressão de nosso estudo sôbre os jesuitas e o ensino. Destinado originariamente á _Revista Americana_, terminou sua redacção antes de expedido o recente decreto federal, que reformou a instrucção publica. A este, portanto, não se podia referir. A presente tiragem, embora posterior á Lei Organica, não apresenta um texto modificado, no sentido de se pronunciar sobre o acto governamental. Não vae nesse silencio louvor, nem vituperio: assignala, apenas, a insufficiencia do escopo. O novo Codigo encerra algumas medidas boas quanto ao magisterio superior; outras, menos felizes, attinentes ao chamado cyclo secundario, ligadas a providencias que se preconisam. Emmudeceu sobre o estagio basilar, essencial, do ensino primario. No ponto dominante do problema, o _punctum vitae_ da formação mental, os moldes officiaes regrediram do que já estava conquistado, vencedoras varias campanhas nesse rumo no seio do Congresso. Desfalleceu nesse transe em mãos do Govêrno a causa da educacão nacional. Sabedores de pedagogia dirão as vantagens ou os inconvenientes das normas recem-edictadas. Todos os homens publicos, porém, cumpre ponderem as consequencias graves do abandono em que continúa o periodo primeiro da cultura intellectual. Ahi se trata, não nos cancemos de repetil-o, do problema politico, maximo entre os maiores, da elaboração do caracter brasileiro, com todos os seus derivados na vida de nosso paiz, em seu govêrno, nas soluções dos conflictos entre a intellectualidade e as crenças. Esse ensaio de philosophia politica tentamos esboçar nas paginas que seguem. Junho de 1911 INDICE Pagina. Preambulo III Indice V I--Fundação da Ordem. Suas tendencias 1 II--Criticas contra os jesuitas. Decadencia. Reorganização 13 III--Aspecto brasileiro do problema. 25 IV--Sobrevivencia das tradições do regimen imperial. Agnosticismo da Constituição republicana 35 V--Missão do Estado 47 VI--Laicidade e ensino 57 I _Fundação da Ordem. Suas tendencias_ Não ha, talvez, exemplo mais flagrante de injustiça collectiva do que a reputação opprobriosa dos jesuitas. Feitas todas as reservas sôbre seus methodos de disciplina e sua casuistica, não haveria exaggêro em dizer que elles são os grandes calumniados da historia. Razão de sobra tem Monod[1] quando nota que nunca se falou da Companhia com serenidade e espirito imparcial, figurando sempre os escriptos sôbre ella em um dos dous extremos: a apologia sem limites, nas obras da seus adeptos; o pamphleto sem critica, nas accusações de seus detractores. A verdade, a probidade scientifica e o amor á justiça parece estarem banidos de tal literatura. E, entretanto, representam os discipulos de Inigo de Loyola um dos factos mais importantes da humanidade, e nenhuma noção completa se pode ter da evolução das idéas, da historia das religiões, do progresso intellectual e do surto moral do homem, sem estudar sua collaboração continua, preponderante mesmo no seio do Catholicismo, no elaborar a mentalidade das successivas gerações que regeram o Occidente a partir do seculo XVI, e os conceitos dogmaticos definitivamente impressos no clero, desde o Concilio Tridentino até o Concilio do Vaticano. Tanto bastaria, entretanto, para investigar sua historia com o espirito calmo e desprevenido de preconceitos que deve presidir á analyse dos factos e dos elementos formadores da propria vida. Quando, a 15 de Agosto de 1534, na capella de Montmartre, Ignacio e seus seis companheiros lançaram as primeiras bases da sua associação, não iam seus designios além da conversão dos musulmanos da Terra Santa. Si fôsse impossivel realisá-la, elles se collocariam á disposição do Papa, que lhes haveria de designar o modo por que pudessem salvar suas almas. A ultima hypothese se verificou. De Veneza, onde se reuniram, já elevado a dez o numero de socios, tiveram de tornar para trás em 1535, a conselho de Paulo III, em vesperas de iniciar nova cruzada contra os turcos, com o imperador Carlos Quinto e a Republica das lagunas. Voltou-se então Loyola para a missão interior, cuja necessidade, em pleno schisma reformista, se lhe evidenciou tão indispensavel e urgente quanto a propaganda da fé entre os incréos. Nesse anno, teve a Curia de estudar os estatutos da Companhia de Jesus. Fê-lo com pouca sympathia, causando delongas, impondo restricções, e somente em 23 de Setembro de 1540 a bulla, prophetica em muitos sentidos, _Regimen militantis ecclesiæ_, confirmou a nova Ordem. Era exclusivamente uma associação sacerdotal para a missão interior, trazendo como caracterisco o voto especial de fidelidade ao Summo Pontifice, a quem prestava obediencia incondicional, identica á disciplina dos exercitos. Della se serviu desde logo Paulo III, como de tropa auxiliar posta a seu dispôr. Sua primeira tarefa foi a conversão das massas irreligiosas: pêlo catecismo, para as creanças; pêlo tribunal da penitencia, para os adultos; pêla prédica, para a generalidade dos homens. Devia salientá-la, em tudo, seu zêlo por obras inspiradas no amor do proximo, applicando sempre a bella maxima do Fundador: «Ser tudo para todos, afim de merecer a confiança de todas as almas». Breve alargou-se a esphera da propaganda. Francisco Xavier, primeiro de uma legião de missionarios, foi evangelisar o Oriente. A actividade intellectual e moral, e a promptidão, bem como a habilidade com que desempenhava suas incumbencias, grangearam á Ordem a inteira confiança pontificia e tambem a da Curia, que, de principio, vira com pouca fé fundar-se uma congregação nova. Foi-lhe entregue a reforma de conventos, onde a disciplina afrouxara. Começaram seus membros de leccionar na Universidade Romana. Foram enviados em missão de combate á heresia. Receberam, sem discutir, encargos secretos de alta politica, incumbidos de sublevar a Irlanda catholica contra seus soberanos ingleses, fautores do schisma, que os varios _prayer-books_ evidenciavam. Seu prestigio, fama e valimento subiram logo, tanto que foram jesuitas os theologos pontificios no Concilio Tridentino, Lainez e Salmeron; jesuitas, ainda, os coadjutores da missão que levou á Alemanha, como legado, o grande Cardeal Morone; jesuita, sempre, o segundo apostolo da Germania, van der Hondt, o immortal Canisius. Cresceu sua reputação de saber: de toda a parte chegavam pedidos de mestres que se incumbissem de reger as cadeiras das universidades. Em seis annos, o ensino superior estava dominado pêla Ordem, mas é preciso lembrar que tal transformação de seu rumo primitivo não se dera por iniciativa de Loyola, constrangido a ceder a pedidos de protectores da nova associação. Acceitando a incumbencia, embora a contragosto, organisou-a e deu-lhe, com a maior energia e habilidade, o cunho especial que a caracterisa entre todas. Dahi resultou, pêlo successo de seus fructos, um quasi monopolio do ensino em muitas regiões catholicas e mesmo em Estados protestantes. Fôram incalculaveis as consequencias da escola catholica dirigida por elles em puro país da Reforma. A ella se deve, em parte, a reconquista romana nessas zonas que Roma já reputava perdidas. Por um novo desvio de sua orientação primeira, êste jubilosamente acceito por Ignacio, a Ordem encetou o combate extrenuo, sem treguas nem transigencias, com o Protestantismo. Ao bispo de Modena, Morone, cabe provavelmente a iniciativa da mudança de roteiro. Antes, e até 1552, a lucta contra a heresia, a prédica dos jesuitas, fôra obra individual de cada um delles, ou imposta por ecclesiasticos de hierarchia elevada, ou solicitações de amigos da Ordem. A todas as tentativas se mantivera extranho o Fundador. Da ida á Allemanha, em 1542, como legado pontificio acolytado por jesuitas, resultara em Morone a convicção da necessidade de prégar a contra-reforma nos países infectados do virus lutherano, não com sacerdotes latinos, mas com missionarios oriundos daquellas mesmas regiões. Dahi a fundação do Collegio Germanico, em Roma, clarividente creação do Cardeal, mais do que de Loyola. Loyola adoptou a idéa, deu-lhe organisação genial e vasta, e considerou a extirpação do êrro protestante como alvo capital da acção jesuitica. De 1554 data seu plano de campanha contra a Reforma, cujo alcance só mais tarde os papas comprehenderam, plano applicado, sem falhas, a partir de 1573, após a remodelação feita por Gregorio XIII. Para a duplice mudança nos intuitos primeiros de Santo Ignacio ao fundar a Companhia de Jesus, em ponto nenhum tivera elle a iniciativa. Em ambas as circumstancias, obedecera á ordem ou solicitação de influencias que não pudera evitar: a Curia, os Wittelsbach, os Habsburg, Morone e alguns bispos. Feita a mudança, applicou aos novos conceitos toda a sua incomparavel qualidade de organisador. A partir de 1555, pouco mais de vinte annos após a fundação em Paris da humilde sociedade de conversão dos musulmanos, a transformação dera-se inteira e absoluta, e as Constituições elaboradas pêlo vidente Navarro davam á Companhia sua feição definitiva de congregação catholica educadora e de Ordem militante anti-reformista. O alto ideal que propugnava era a soberania do Papa e da fé catholica. Estes titulos houveram sido sufficientes para grangearem posição de destaque no exercito monachal os admiraveis servidores da maior gloria de Deus. Maiores titulos, entretanto, lograram pelos raros dotes no cumprimento de sua missão, dados a época em que surgiram e o partido que abraçaram na lucta, muita vez secular, entre os papas e os concilios. Vinha a Europa trabalhada por fermentos de dissolução religiosa. Luther, Calvin e Zwingli, invocando a auctoridade dos Evangelhos contra a doutrina romanista, ao mesmo tempo que, em nome da liberdade humana, affirmavam os direitos da analyse individual, rebellavam-se contra as crenças impostas e contra os abusos e os escandalos correntes na Sé Apostolica. Taes escandalos forneceram o principal elemento de propaganda do novo crédo, por entre populações cansadas de exacções. No proprio seio das potencias catholicas existia poderosa corrente reformista, perigosissima mesmo para a inteireza do dogma, pois visavam os novadores sanear a Egreja na cabeça e nos membros, desde o supremo poder pontificio até os ultimos ramusculos da frondosa hierarchia. Era a submissão fatal do papado ao predominio conciliar, a pureza da revelação sujeita ás oscillações das maiorias de assembléas deliberantes. Tudo fêz a Santa Sé para se oppor a tal descalabro. E si, em 1545, Paulo III cedeu ás reiteradas solicitações de Carlos Quinto, e convocou, em Trento, o grande concilio, do qual devia sair purgado o catholicismo, fixado o dogma e extirpados os abusos, só o fez depois de assegurar-se de auxiliares preciosissimos: os Habsburg, a côrte portuguesa, os Wittelsbach e, acima de tudo, a tropa de escol, que eram os jesuitas. Esses, e esses tão somente, eram inteira e absolutamente dedicados aos intuitos da Curia, emquanto os demais estabeleciam condições. No proprio Concilio, e apesar da condemnação preliminar da heresia protestante, muitas sympathias encontrava a Reforma quanto ás Santas Escripturas, ao peccado original, á justificação pêla fé; o Augustinianismo ainda possuia fortes adeptos. Triumphou Lainez, obtendo da assembléa oecumenica a confirmação da doutrina escolastica medieval sôbre a justificação, rechassada a de Santo Agostinho. A França e a Allemanha exigiam concessões gravissimas--casamento dos sacerdotes, communhão sob as duas especies, uso da lingua vulgar na liturgia, reforma dos conventos, e, principalmente, reforma do proprio Papado. O Cardeal Morone, diplomata habilissimo, que soube mudar as disposições do Imperador Fernando I, pôde evitar que as exigencias tivessem satisfacção, com grave prejuizo para a unidade da Egreja. Expor, sem restricções nem refolhos que os prelados-diplomatas tinham de observar para se não tornar irreductivel a opposição; expor o ponto de vista integral da Curia, do Papa, de seu Geral: a infallibilidade papal, a supremacia absoluta do Summo Pontifice sôbre os bispos, sua superioridade sôbre as potencias terrenas--foi a tarefa do jesuita. Este progamma ecclesiastico-politico Lainez defendeu com singular elevação e videncia, e a Companhia sempre propugnou té o triumpho definitivo no Concilio do Vaticano, em 1870, mais de três seculos depois de inicialmente formulado. Desde Trento, Catholicismo e Companhia de Jesus são inseparaveis, estreitamente e indissoluvelmente unidos seculos afora. Era fatal a preeminencia dos jesuitas na hierarchia catholica, amigos dos momentos difficeis, defensores abnegados até o sacrificio, heroes de uma lucta sem tregoas a bem da Egreja. E si esta era a rota seguida por elles no seio da catholicidade, acção por assim dizer intrinseca, nenhum esfôrço poupavam, antes prodigalisavam seu labor para chamarem á grey as ovelhas desgarradas, e assegurarem o predominio dos principios por elles proprios abraçados e defendidos. E era logica e inevitavel tal orientação, ultimo e definitivo rebento do espirito monachal, em sua lenta evolução, desde os solitarios da Thebaida e os stylitas até a admiravel floração mystica, fraternal e humana, que eram os filhos de Francisco de Assis. Facil seria traçar os pontos capitaes dessa curva ascendente, visando os mais altos fins altruistas da salvação das almas e da caridade christã: do eremita, ou da colonia de eremitas, onde se busca a sanctificação individual, ao mosteiro, no qual o amor fraterno se impõe egual ao alvo da perfeição subjectiva. O isolamento primitivo dos monges foi dentro em breve substituido por sua progressiva subordinação ás exigencias da Egreja. Primando sôbre tudo, no conceito monachal, o ascetismo tende progressivamente a ceder a primeira plana ás obras praticas de amor ao proximo, de caridade secular. E, em ambas as ordens de idéas, no adoravel _Poverello_ de Assis, encontramos o exemplo que Inigo seguiu com submissão absoluta e intuição genial: na obediencia passiva, que o _perinde ac cadaver_ jesuita copiou literalmente do Santo Stigmatisado; na obra social, que a Companhia de Jesus desenvolveu seguindo o rumo das Ordens mendicantes. Dest'arte, ao clero secular vieram trazer concurrencia formidavel as novas associações monasticas, que dentro em pouco comprehenderam ser sua missão principal a prédica e a salvação das almas. A esses meios de agir sôbre a massa dos crentes, accrescentaram os jesuitas a funcção educadora, em grau mais alto e mais perfeito do que seus antecessores, a ponto de serem quatro quintos de seus membros ou professores ou estudantes. O successo de seus methodos pode avaliar-se pêlo numero de alumnos, que, em 1660, Böhmer calcula ter sido de 150.000. A _Ratio Studiorum_ do Geral Claudio Aquaviva, redigida em 1599, e antes as regras pedagogicas de Ignacio, resumiam as experiencias do Collegio Romano; não traziam ideal novo de ensino, mas introduziam na escola o que se julgava incarná-lo. Além disso, cuidavam os jesuitas muito de polir as maneiras de seus discipulos, afeiçoando-os á vida em meios mais cultos do que o da maioria de seus alumnos. Davam gratuito o ensino. Não sobrecarregavam programmas com os rudimentos de grego, hebraico, arithmetica e geographia, que figuravam na escola protestante; os castigos corporaes eram rarissimos; a doutrina religiosa tambem lhes era extranha, reservada antes ao confissionario. Por outro lado, a emulação, talvez levada ao exaggero, e a delação mutua systematisada mantinham em constante exercicio o cerebro dos estudantes. A protecção da Companhia acompanhava seus filhos espirituaes pêla vida afora. Assim, por esse conjuncto de circumstancias e pela superioridade de suas escolas sôbre as demais, até meiados do seculo XVII, foram preferidas pêlas familias catholicas, e mesmo, como o provam os annaes dos collegios, pelos proprios protestantes. Orientada a formação intellectual para a uniformidade, para a obediencia ás regras preestabelecidas, é natural que as iniciativas ahi rareassem e que produzissem taes normas a subordinação confissional. O methodo, um dos mais poderosos meios de dominio usados pêla Companhia, perdurou até que, do espirito analysta, brotaram typos pedagogicos mais elevados, que desthronaram aos poucos a escola jesuita. A direcção das consciencias na vida real completava a obra iniciada pêla escola. Não era usual, até o seculo XVI, a confissão frequente dos fiéis. Só em momentos de grande afflicção, em circumstancias particularmente solennes, se approximavam do tribunal da penitencia. Mas, quando se desenhou a tendencia de fazer do confessor o assistente moral, o conselheiro sempre ouvido do christão, ninguem mais do que Loyola preconisou e fomentou a evolução, na qual via um dos melhores meios de combater o peccado. Dentro em pouco, o jesuita confessor gosou de fama egual á do professor jesuita, e tanto quanto a cathedra e a grammatica latina, diz Böhmer, poderia o confissionario symbolisar a Companhia. Extraordinario exito colheram como directores, principalmente pêla indulgencia que revelavam, pêla extrema restricção que impunham ao conceito de peccado mortal, pêlo ambito correspondente que davam á noção de peccado venial, ao complexo de cousas licitas. Dêsse laxismo ao desapparecimento dos sãos principios da moral, havia um passo, facil e rapidamente transposto pelos casuistas; aliás a Ordem, por mais de uma vez, repudiou toda solidariedade com estes ultimos. Mas a area de tolerancia era vasta, e em tempos perturbados como o periodo das guerras de religião, naturalmente preferiam-se os directores de consciencia mais cordatos. Assim, a contragosto da Ordem, e mesmo contra suas indicações, se viram alguns de seus membros forçados a acceitar cargos e encargos junto a principes e reis. Na situação especial dêsses sacerdotes, era-lhes impossivel evitar a politica, pois pêla direcção da consciencia régia fatalmente teriam de pesar actos, intenções e planos dos governos. E redobrou a intensidade do influxo quando, em França, a partir de 1670, tiveram de desempenhar funcção analoga á dum ministerio dos cultos moderno. Em numerosos casos intervieram no sentido das soluções preconisadas pêla Ordem: attestam-no as guerras suspensas pêla paz da Westphalia, a revogação do edito de Nantes, a perseguição ao jansenismo e tantos outros fastos da historia. A influencia da Companhia, emquanto se manteve forte, sã e disciplinada, só podia exercer-se em sentido nocivo aos interesses nacionaes dos differentes povos. Associação essencialmente internacional, com o caracteristico de verdadeira milicia papalina, só lhe era licito pensar e agir como até hoje age e pensa a Egreja--em conjuncto e impessoalmente--alheia a fronteiras politicas, pois não ha patrias nem differenciações nacionaes para as almas de que cura o Catholicismo. Universal em sua essencia e em sua manifestação, á Egreja como responsavel pêla salvação das almas, tanto quanto ao jesuitismo, seu meio de acção, era e é vedado raciocinar sob a pressão de limitados e estreitos interesses regionaes. Dahi frequentes conflictos entre o papel politico do confessor regio e seu dever religioso: sentimento nacional de um lado, exigencia do principio internacional do outro. Nunca tolerou a Ordem, emquanto viveu o espirito que presidira á sua fundação, qualquer subordinação de seu escopo universal ás conveniencias dos governos locaes, a quem, entretanto, lealmente procurava servir. Nisto residiu sua fôrça por largos annos. A decadencia começou quando os jesuitas se afastaram de sua origem. Durante longos prazos, por três generalatos, pôde a Companhia manter-se essencialmente hespanhola, e só se disseminou na Italia, graças á profunda hespanholização da peninsula apenina. Em 1581, eleito Preposto Geral o astuto napolitano Claudio Aquaviva, após a curta presidencia do belga Everardo Mercurián, grande foi o desgosto na provincia iberica por ver passar definitivamente para outras terras a direcção que, desde Ignacio, se mantivera privilegio seu. A revolta manifestou-se por tentativas de reformar a Regra, fazendo desapparecer a autocracia creada por Loyola, dando-lhe como succedaneo uma sorte de federação, na qual as provincias, pelo menos a Hespanha, fôssem governadas por vigarios geraes. Já era outro, não o do Fundador, o espirito da Ordem, onde taes insurreições contra a obediencia passiva se podiam manifestar. Logrou Aquaviva annullar todas as tentativas, até que Clemente VIII ordenou a revisão das Constituições. Ainda assim, conseguiu afastar da Congregação geral os elementos dyscolos, entre elles o celebre Mariana, chefe da conspiração. A assembléa da Ordem, não encontrando como censurar Aquaviva, após inquerito por êste solicitado, deu-lhe ganho de causa e permittiu fôsse o director effectivo das deliberações collectivas. Tanto valeu impedir quaesquer alterações da Regra; e as proprias corrigendas, impostas pêlo Papa, resultaram inefficazes. Mas, para manter inflexivel a disciplina e consolidar a victoria da Regra de Santo Ignacio nas mãos de Aquaviva, fôra mister se seguissem no generalato homens da mesma tempera e de habilidade egual á dêsse extraordinario jesuita, vencedor a um tempo de Felippe II da Hespanha, da Inquisição e de Clemente VIII. Foi, porém, eleito seu successor o _Anjo da Paz_, Mutio Vitelleschi, meiga creatura, que solicitava ou aconselhava quando devera ordenar. Sentiu-se immediato o resultado da falta de energia na direcção da Companhia, e dentro em poucos annos a autocracia foi cedendo o logar a uma oligarchia composta dos mais graduados jesuitas, dos provinciaes, dos chefes das casas professas. Relaxado o laço disciplinar, a dissolução da Ordem se manifestou em todos os ramos. O voto de pobreza foi illudido, feitas as doações não mais á Companhia, mas a determinados estabelecimentos, dos quaes o outorgante se tornava administrador. A gratuidade do ensino mantinha-se, mas os educandos se recrutavam nas classes abastadas, afim de offerecerem compensações as dadivas das familias. O voto de obediencia ao Papa mal podia ligar quem desrespeitava a hierarchia ferrea instituida por Loyola. A sociedade de Jesus entregou-se então ao commercio, á industria, aos negocios bancarios, á usura. De todos os lados chegavam ao Geral queixas da avidez de seus soldados, da sua ganancia no commercio e na captação de riquezas. Entregues a tal dissolução de costumes e a taes desvios de seu ideal primitivo, não podiam os chefes da milicia dominar de muito o nivel médio dos commandados. Começou então a serie de superiores frouxos, sybaritas, gosadores, descuidados da vida interior para só curarem dos proventos de cargos, onde as divicias abundavam. Quando apparecia um que outro Goswin Nickel, ou González de Santillana, o poder usurpado pelos membros da Ordem e o relaxamento da Regra não permittiam a acção saneadora do Geral. Desappareceu assim a seriedade com que se entregaram á sua primitiva missão. O ensino ankylosou-se nas formas antigas. Novos methodos surgiam para satisfazer a necessidades novas, e a nada os jesuitas attendiam, mantendo, immutaveis, normas já envelhecidas. Onde os seminarios obedeciam á sua inspiração, a ignorancia do clero avultou. Nem mais o monopolio da instrucção conseguiram manter, e de todo lado surgiam com os novos ideaes pedagogicos, novas escolas, novos programmas. Phenomeno analogo se notou na economia da Ordem dentro na Egreja, no dogma que defendiam: e viu-se então jesuitas acompanhando o gallicanismo do govêrno de Luiz XIV e escrevendo contra a infallibilidade papal e a supremacia do bispo de Roma. Em 1687, foram condemnadas taes obras a ser queimadas por mãos do carrasco. Intolerantes em sua missão, quando encontravam concurrentes de outras congregações, despertavam rancores extremos por parte das Ordens mais antigas, ás quaes offendiam e perseguiam, tratando-as com menospreço. Do mesmo modo agiam com as auctoridades ecclesiasticas, baseados nas bullas de Paulo III e seus successores até Gregorio XIV, que lhes asseguravam o privilegio de terem como chefe directo o papa e não dependerem do ordinario local, e lhes conferiam faculdades quasi illimitadas. Em suas controversias, eram tenacissimos na argumentação e nos meios postos em pratica para fazer triumphar a todo transe suas convicções. Defendendo as theses da Egreja, não conheciam limites a seus esforços. Quando seu ponto de vista discordava da opinião da Curia, sabiam ameaçar e fazer pressão sôbre o Papa, acenando-lhe com a convocação do Concilio Oecumenico. Foi prova eloquente disto a attitude dos jesuitas na sua longa disputa com os dominicanos de Hespanha sôbre a doutrina da graça; avocada a disputa perante a Curia, o Papa inclinou-se para a these dominicana, e os jesuitas tanto ameaçaram que Clemente VIII falleceu, sem ousar contrariar a poderosa Companhia. Era natural que taes falhas lhes augmentassem o numero de desaffectos, e que, baseados nellas, se congregassem inimigos para mover guerra á Ordem. Não será exaggero lembrar que no seculo XVII, a opinião da França dictava a lei para a Europa. E nesse país, exactamente, a lucta se desenhou com mais intensidade e maior odio. Não eram somente as congregações rivaes, humilhadas, que revidavam golpes antigos. Eram os adversarios da primeira hora, tambem: o Parlamento e a Universidade--as duas maiores auctoridades no direito e nas letras,--que nunca haviam desarmado e agora renovavam seus ataques. Era ainda o jansenismo, que os jesuitas haviam perseguido por suas sympathias augustinianas e pêla grande acceitação encontrada nas espheras mais cultas e mais altas da sociedade francesa; era o jansenismo que, por intermedio de Pascal e de Port-Royal, lhes perturbava a vida com fundadas e terriveis criticas moraes e religiosas. Por mais que a Curia lhes viesse em auxilio, e embora a bulla _Unigenitus_ censurasse officialmente a nova philosophia religiosa, ficou o fermento da analyse, e, em segrêdo, nas almas mais elevadas, um espirito novo ia formulando novas exigencias de vida em uma doutrina que a Companhia porfiava por manter immutavel, rigida e hieraticamente amortalhada nos actos Tridentinos. E era logico e inevitavel assim procedesse, tal a fatalidade de origem e de missão da milicia pontificia creada por Ignacio. Por sua vez, o influxo protestante, tão cruelmente combatido pela Egreja militante, vingava-se, pondo em confronto seus methodos de ensino e suas possibilidades philosophicas com a escola, já em franca decadencia, dos jesuitas, e a paralysação intellectual decorrente de sua pedagogia. A par do declinio da Ordem, exaggerando vicios e falhas consecutivos ao abandono da primitiva Regra, alçava-se e fructificava o espirito analytico progressivamente predominante nos meios cultos. E, dentro em pouco, somente o rei e algumas altas auctoridades ecclesiasticas defendiam os jesuitas, formidavelmente guerreados pelos mais puros representantes da intellectualidade e dos sentimentos religiosos da França. Que uma causa geral--a decadencia do Instituto pelo desrespeito ás Constituições de Loyola--agia para precipitar a crise, nenhuma duvida pode suscitar, pois queixas identicas, exprobações eguaes se faziam ouvir em todos os países. Não foi a França quem primeiro supprimiu a Ordem, em suas fronteiras: foi Portugal em 1759. Mas, em menos de dez annos, a medida se tinha generalisado, e de todos os governos tinham emanado os actos de expulsão nos respectivos territorios: em 1763, em França, após o escandaloso processo Lavalette, que foi o processo da Ordem, a vingança do Parlamento, da Universidade e de Port-Royal; em 1767, na Hespanha, em Napoles e na Sicilia; em 1768, em Parma e Malta. Culminou a reacção com o breve de 1773, de Clemente XIV, deferindo as reclamações de todos os Bourbons--de França, Hespanha e Sicilia--e ordenando a completa e total suppressão da Companhia de Jesus. Nos países acatholicos, na Prussia e na Russia, junto aos principes mais louvados pelos philosophos, Frederico e Catharina, os jesuitas encontraram abrigo contra a intolerancia, reinante nos arraiaes de seus adversarios. Assim mesmo, pouco durou a protecção prussiana, pois em 1776 tiveram de abandonar aquelle Estado e de refugiar-se na Russia, onde aguardaram sua reorganisação e seu restabelecimento. II _Criticas contra os jesuitas. Decadencia. Reorganização_ Era immenso o acervo de serviços prestados pelos jesuistas ao Catholicismo, fôssem quaes fôssem os desvios posteriores. A missão exterior tinha fundado imperios nas reducções paraguayas, estabelecido colonias christãs no Congo africano, onde Livingstone achou tribus que delles tinham apprendido a ler e a escrever. Na selva amazonica, no extremo-oriente, nos grandes lagos canadenses, na India central, na Malasia, em toda parte a roupeta do jesuita testimunhava o ardor apostolico da Ordem e seu incansavel zêlo na lucta contra os infiéis. A missão interior reconquistara para a orthodoxia mais de metade dos países já dominados pêla Reforma. A França permaneceu a filha primogenita da Egreja, e coroou seu esfôrço anti-protestante pêla revogação do edito de Nantes, em 1685. A Allemanha e a Austria, de quasi inteiramente adhesas a Luther e Melanchton, dividiram a meio os territorios confissionaes. Na Italia, toda heresia pereceu. E em todos esses logares, os grandes triumphadores foram os jesuitas, e a elles se deve a reintegração no gremio da fé das regiões contaminadas. Á Egreja prestavam o incomparavel auxilio de sua voz e de seu esforço incessante, com o fito de lhe manter com inteira pureza, nas grandes Assembléas do Catholicismo, seu duplice caracteristico essencial de doutrina fundada na revelação e na auctoridade, livrando-a do virus dissolvente e lethal do parlamentarismo conciliario. Ao espirito humano permittiram, pêla resistencia victoriosa ás tendencias fragmentadoras da Reforma, evoluir e crescer em um ambiente regido pêla disciplina mental, impedindo assim disseminação improficua pêlas innumeras orientações individuaes, incapazes, naquella phase historica, de produzir o esfôrço collectivo necessario ao progresso ascensional da humanidade. Deante de tão grande benemerencia para a Egreja, e tambem para o pensamento social, como explicar os odios, leigos e religiosos, que a Companhia desperta, a ponto de seu nome ser correntemente usado como synonymo de hypocrisia, astucia malfazeja, ganancia e falta de escrupulos? Pôsto de lado o fructo da campanha de malquerença das Ordens mais antigas, supplantadas pelos jesuitas, persiste ainda a formidavel mole de accusações movidas por seus adversarios, philosophos e protestantes, governantes e governados, clero e povo. Cedo teve inicio a grita, e foi-se repetindo e propagando, hauridas as censuras principalmente no immortal pamphleto das _Provinciales_, de Pascal, nos _Extraits des assertions_ publicados pêlo Parlamento de Paris por occasião do processo Lavalette, no _Discursus de erroribus qui in forma gubernationis Societatis Jesu occurrunt_ do celebre Mariana, e na audaciosa fabula das falsas _Monita Secreta_. Citadas taes fontes, de parcialidade absoluta contra as regras de Santo Ignacio, é obvia a suspeição das criticas que nellas encontram assento. Ha, em Pascal, a par de insufficiente conhecimento das _Constitutiones_, intuição admiravel de certas tendencias da Companhia. A sua obra, entretanto, reçuma por demais o mal contido rancor do jansenista perseguido, e a lucta de Port-Royal contra a orthodoxia official. As _Assertions_ são verdadeira obra de má fé. A longa hostilidade com a Companhia permittiu á magistratura de França enxergar nos abusos do padre Lavalette, na Martinica, uma occasião de se vingar da Ordem, aproveitada com pouca lealdade. As respostas dos jesuitas, mostrando a improcedencia, a inexactidão dos assertos da publicação parlamentar, enfraqueceram, quasi annullaram o valor do libello. O livro do padre Mariana, que não ousou publicá-lo em vida, é o reflexo do espirito particularista das provincias ibericas, especialmente da Hespanha, quando esta, descontente com a eleição de Aquaviva para Geral de uma Ordem até então preponderantemente hespanhola, quis attenuar a auctoridade incontrastada do superior e dar certa autonomia ás circumscripções nacionaes. Para isso, teve de escrever o processo accusatorio da concentração de toda a vida no cabeça da Companhia, e a regra de fiscalisação mutua, descambando na delação constante, vigente entre seus membros. O caso das _Monita Secreta_ é de audacia inaudita. Quiseram os adversarios da Sociedade de Jesus attribuir seus triumphos e seu enriquecimento a uma regra secreta, que se contrapunha ao admiravel _Institutum Societatis Jesu_, e em virtude da qual se tornava conducta commum ou normal exactamente o que mais se exprobava, como abuso e crime, a seus membros. Ora, uma associação de poderes concentrados como essa, uma monarchia dirigida pelos conceitos de um homem só, na phrase de Gregorio XIV, sociedade cuja fôrça residia na permanencia immutavel das regras dadas pêlo Fundador, não precisava de doutrina secreta; antes soffreria com o conflicto fatal entre a massa dos fiéis do credo publico e o pugillo de iniciados na norma esoterica. Nos lustros que precederam a guerra de Trinta Annos, e mais tarde no periodo que viu surgir o celebre edito de Restituição, que generalisou a questão e desencadeou a procella, veiu a lume uma literatura de pamphletos, visando os pontos de vista antagonicos dos contendores religiosos, e combatendo ou defendendo os jesuitas, justamente considerados os representantes directos do pensamento pontificio, norteado pêlo restabelecimento da unidade da fé nos países de Reforma, e pêla attribuição de meios assecuratorios da manutenção do culto. Pessoa profundamente conhecedora do _Institutum_, um jesuita renegado talvez (e foi citado, sem provas embora, o nome de Hyeronimus Zahorowski), fêz circular, a principio, copias manuscriptas, e, a partir de 1614, a edição de Cracovia das _Monita privata Societatis Jesu_. Era a deformação, systematicamente pejorativa, dos principios prégados e postos em practica pêla Companhia. O protesto de todas as auctoridades maiores fez-se ouvir, mas a malquerença contra a Ordem, junto á analogia de trechos entre a regra verdadeira e a contrafacção pamphletaria, deram curso á plausibilidade da versão de duas doutrinas, publica uma e clandestina a outra, e reforçaram o ambiente de malevolencia já existente. Hoje em dia, nenhum historiador serio liga importancia a tal calumnia. Na época em que se divulgaram, as _Monita_ foram arma do mais alto valor contra a Companhia. Do conjuncto de criticas e de invectivas, ficava, entretanto, um residuo, que parece ter sido justo, commedido e exacto, pêla inteira conformidade com as normas estabelecidas por Loyola. A piedade, no conceito dos jesuitas, tornava-se exercicio automatico, gymnastica intellectual, visando subordinar a consciencia á direcção exterior, á letra dos casuistas, dando primasia absoluta a uma virtude unica--a obediencia--, e esta nas suas três manifestações dos actos, das vontades e das intelligencias. Era o _perinde ac cadaver_. O ensino proprio e o alheio, no dizer de Macaulay, eram levados até onde podia comportá-lo a cultura, sem que degenerasse em emancipação intellectual. Na direcção das consciencias, o laxismo ia tão longe que os casuistas jesuitas, hespanhoes em sua maioria, sendo, entretanto, em geral, homens de moral inatacavel, permittiram se firmasse a convicção erronea de haver uma moral peculiar á Ordem, ethica na qual as distincções subtis, o abuso da restricção mental, a latitude do conceito de peccado venial, o conceito estrictissimo de peccado mortal, a arguta acrobacia da direcção de intenção, tudo eram outros tantos factores para se accusar a Companhia de hypocrita, de protectora dos peores desvios, de accommodaticia para com as mais graves aberrações. A politica, dirigida por elles, não mais collimava altos designios nacionaes. Orientava-se pêlas conveniencias internacionaes do Catholicismo e da Ordem, e, em geral, arruinava os países que a acceitavam. Assim, a intima ligação dos jesuitas com o legado pontificio Chigi durante longo tempo difficultou a pacificação da Allemanha na guerra de Trinta Annos, mau grado os immensos prejuizos que dahi decorriam para os povos conflagrados. O fanatismo do partido catholico era açulado pêla Ordem, para o fim de, em virtude do principio de applicação usual _cujus regio, ejus religio_, se obterem conversões em massa na redistribuição de provincias protestantes por principes adhesos á Egreja. O empobrecimento moral e material da França foi consequencia da revogação do edito de Nantes, triumpho assignalado da Companhia na sua campanha contra os reformados. O despovoamento da Bohemia seguiu-se á victoria austriaca sôbre o elemento tcheque, e em dezenas de milhar se computaram as familias expulsas de suas antigas casas, graças á applicação inexoravel do plano de saneamento confissional ideado pelos jesuitas Lamormaini e Philippi. A Polonia foi victima da intervenção politica continua da congregação. Em Portugal accelerou a decadencia de um país que se exhauria em tentativas coloniaes desproporcionadas com seus recursos em homens e meios materiaes. Felippe II deu o primeiro golpe e o mais funesto na grandeza e no poderio da Hespanha, mas os desastres que se seguiram revelaram o influxo deleterio da Sociedade de Jesus. E, com esses, outros exemplos poderiam ser citados, que justificariam o conceito de Monod: «Sempre que os jesuitas exerceram acção preponderante, na Austria, na Bohemia, na Polonia, nos países latinos, seu reinado foi acompanhado do empobrecimento economico e da decadencia intellectual». Tal correlação, junta ás consequencias do progressivo desvio da Companhia da primitiva regra de Ignacio, tem sido mal interpretada pêlo vulgo, e a tudo--males advindos ás sociedades civis, enriquecimento desmedido das casas da Ordem, enfraquecimento moral das consciencias regidas pêlo _distinguo_ da casuistica, nivel abastardado do ensino pêla pedagogia auctoritaria--a tudo se ligava a prevenção de assim agirem os filhos de Loyola com o fito de tudo destruir para sôbre os escombros edificar o imperio de sua propria Associação, garantindo liberdade plena para seus membros e impondo submissão aos demais viventes, polvo sombrio a sugar a vida da collectividade. É esse o reflexo das luctas a que já nos temos referido, mais uma prova de quão pouco influem raciocinio e calma nas correntes sentimentaes da multidão. Nenhuma doutrina fundamentalmente damninha ou immoral--contraria ao interesse collectivo, em summa--, pode duradouramente predominar, pois a convergencia espontanea de tendencias superiores, e socialmente vantajosas, elimina aos poucos a tendencia regressiva que qualquer doutrina representa. É o que se teria dado com os jesuitas, si verdadeiras foram as accusações que lhes moviam seus adversarios. Um dêstes, porém, e dos mais intelligentes, Voltaire, bem os defende de taes increpações, quando pondera: «Nenhuma seita, nenhuma sociedade teve jamais ou poderá ter o intuito preconcebido de corromper os homens». No seu afan de salvar eternamente as creaturas, de «ser tudo para todos, para ganhar a confiança de todas as almas», não tinham remedio os discipulos do Navarro immortal sinão multiplicar os pontos de contacto com o seculo, afim de se insinuarem em todas as classes e em todas ellas dirigirem a vida, collimando a eternidade. Toda convicção profunda, principalmente em se tratando de problemas sociaes, é operante em sua essencia. E desde que, contra as determinações primeiras do Fundador e mau grado a reserva imposta pelas assembléas da Ordem, se viram arrastados á direcção de consciencias régias, a intervenção dos jesuitas na politica era fatal e inevitavel, e fôra illogico suppor que tal se desse, contravindo os fundamentos da associação: predominio absoluto das conveniencias religiosas sôbre todas as considerações terrenas; acção internacional de seus membros ao envés das exigencias das collectividades nacionaes, lembrados de que universal é a Egreja e sem limites o Verbo-Divino; noção de humanidade contraposta á de patria. E só traíram tal missão os jesuitas, quando se accentuou a decadencia da Companhia. É possivel que no tribunal da penitencia, em uma épocha agitada como foram o seculo XVI e o seguinte, quando as consciencias viviam perturbadas por paixões terriveis e actos de violencia, é possivel que a tolerancia e a benevolencia fôssem dictadas em parte pêlo dever politico de attrahir o maior numero de fiéis, certos como estavam os socios de Santo Ignacio da superioridade de sua acção, de seu triumpho final no bem e na pureza. Mas, por certo, nem foi o movel unico de sua actividade, nem, talvez, siquer o mais valioso. Era velha a lucta entre a severidade e a indulgencia nos fastos da Igreja, e encontrava forma remota no contraste entre as imprecações de Isaias e de Ezequiel e a meiguice de Christo. Fora da Sociedade encontravam-se laxistas. E, no seio della, a subtileza na analyse dos determinantes do acto culposo procedia essencialmente do amor ao proximo, que procurava encontrar attenuantes da falta, nem só restringindo os casos graves, passiveis de fulminação capital, como alargando a noção de venialidade. Mas o que mais contribuiu para crear a fama depreciadora da moral applicada pêla Companhia, foram as obras de theologia de Escobar, Busenbaum, Laymann, Sánchez e outros, onde os mais escabrosos casos vinham estudados e attenuados á luz de distincções de tal subtilidade, que se pôde sustentar ser permittida pelos jesuitas a pratica de todos os peccados. O êrro, entretanto, era duplice. Nem só taes obras não aconselhavam pratica alguma, apenas estudavam faltas já commettidas (o que é essencial no julgamento do alcance moral dos compendios). Visavam, além disso, guiar e instruir o director de consciencias em circumstancias espinhosas, procurando prever todos os desvios possiveis (e nisto residia grave cinca) e apurar, para cada um, o grau de responsabilidade e de culpa do delinquente. Não sem razão foram considerados verdadeiros manuaes do direito penal ecclesiastico, inteiramente comparaveis á literatura penal moderna; ambas destinadas aos juizes e aos philosophos, aos auctores nunca se devia accusar de provocadores da realisação de crimes que infringissem a lei vigente. E, entretanto, essa censura fez-se aos casuistas... Não nos occupamos dos desvios excepcionaes dêste ou daquelle membro da Ordem: o juizo formulado abrange a esta em seu conjuncto. Tanto o influxo politico da Ordem, como suas normas ethicas, postos de lado os abusos, nada tinham de systematicamente contrario á moral. Eram conceitos antagonicos que se degladiavam: um, puramente religioso, internacional e superior ás cousas do mundo, tudo subordinava ás exigencias oecumenicas da Egreja; outro, admittia a iniciativa individual, mesmo no exame da lei revelada, circumscrevia-se aos limites de uma patria, não reconhecendo superioridade alienigena, pois ao proprio poder proclamava como dimanando directamente de Deus, e resultava do espirito de analyse favoneado pêla Reforma, das conveniencias nacionaes, do individualismo avido de se fortalecer. Seria a escola, fatalmente, a arena da contenda, pois ahi se formaria a mentalidade das novas gerações de combatentes. De um lado, a escola jesuita, baseada na auctoridade dos textos, contando, antes que aquilatando, os testimunhos e as opiniões, immobilisada nas noções pedagogicas do seculo XVI, impermeavel ás novas correntes intellectuaes, nada concedera ás exigencias novas da nova phase social. De outro lado, a escola regida por protestantes ou imbuida do espirito philosophico, de jansenismo ou de outros matizes mentaes, favorecia iniciativas, cultivando o _eu_, prégando a liberdade. Contrapõe-se o surto individual á obediencia passiva, a exuberancia de movimento á immobilidade hieratica, obra de vida opposta á rigidez da morte. Estas mesmas virtudes, entretanto, que levavam o pensamento emancipado a augmentar a intensidade da existencia pêlo auxilio prestado ás forças animadoras de suas proprias fontes, em seu nascedouro intellectual; essas mesmas virtudes aconselhavam á Egreja, tradicional e voltada para o passado, proteger as instituições que tão leal e fielmente traduziam seu modo peculiar de encarar e solver o problema capital da salvação das almas. Catholicismo e jesuitismo, no bom sentido do termo, estavam por demais unidos, intimamente ligados, como a essencia e uma das suas manifestações, para que pudessem perennemente estar divorciados. Era inevitavel cessasse o dissidio. Pouco durou, de facto: apenas o pontificado de Clemente XIV. Não fôra, porém, inteiramente innocua para a disciplina da Ordem a resistencia á bulla de suppressão. O nucleo de socios que se haviam revoltado contra a deliberação pontificia e tinham encontrado protecção junto a principes acatholicos, violara francamente o voto de obediencia; e, em sociedades fortemente organisadas, como a Companhia, as brechas na muralha da disciplina são pontos fracos por onde irrompem todos os abusos. Bem se viu quanto fôra prejudicial a infracção da Regra, quando, restabelecida a Ordem pêlo breve _Sollicitudo omnium_ de Pio VII, em 1814, tiveram os Geraes de luctar contra a insubordinação de varios dos seus soldados. Só por 1820, restabelecida a séde no Gesú de Roma, pôde o Geral Aloysio Fortis sanear a Companhia e novamente impor-lhe a primitiva obediencia. Felizmente para a Sociedade, coube-lhe a fortuna de eleger uma serie de Geraes notaveis, capazes de comprehender a nova situação social e de agir de acordo com ella. Philippe Roothan foi o maior de todos, mas sua obra foi dignamente continuada por Beckx, Anderledy, Martin e Wernz. Constitue honra altissima para a Sociedade de Jesus o apêgo invencivel ás Constituições de seu Fundador. Nas maiores difficuldades e provações, nunca quiseram apartar-se dellas e sempre as consideraram intangiveis. Quando consultado pêlo Papa sôbre modificações da Regra, que evitariam a bulla de suppressão da Ordem, respondeu o Geral Ricci, que bem sabia as agruras decorrentes de sua resposta e morreu preso no castello Sant'Angelo: «_Sint ut sunt, aut non sint!_» Com taes precedentes, a reorganisação levada a cabo por Philippe Roothan e seus successores não podia visar modificações de essencia: crearam, apenas, novos modos de agir, sempre de acordo, entretanto, com o intuito primeiro de Inigo. Roothan evitou empresas directas de acção catholica, fora dos quadros da Curia. Em compensação, redobrou de esforços junto a esta, e, por seu intermedio, pôs em practica suas normas de dominio universal das consciencias. Cada vez mais augmentou seu valimento juncto á hierarchia ecclesiastica. Egrejas nacionaes não podiam mais subsistir, e, em Roma, as mais altas auctoridades acceitavam plenamente o influxo e a collaboração intelligente do jesuita. Tanto bastava para tornar predominante o pensamento de Loyola nas deliberações do clero. Dentro em pouco os factos vieram provar a valia de sua voz: Affonso de Liguori, mestre da casuistica adoptada pêla Ordem, foi canonisado e proclamado doutor da Egreja, dando assim sancção universal aos methodos de theologia moral usados pelos jesuitas; a proclamação, pêlo Papa exclusivamente, do dogma da Immaculada Conceição, foi ainda um asserto da superioridade pontificia sôbre o concilio; os Syllabus de 1864 e de 1907, a condemnação do modernismo, foram outras tantas affirmações da immutabilidade dos conceitos da Egreja; os dogmas do primado da Santa Sé, da infallibidade papal e do episcopado universal do Summo Pontifice, pêlo Concilio do Vaticano, em 1870, valeram pelo solenne triumpho da obra de Lainez em Trento. Podem lastimar quantos veneram a admiravel obra do Catholicismo, que, com taes recusas de admittir concepções modernas, a Egreja voluntariamente se colloque á margem das idéas contemporaneas e se condemne a quedar extranha e hostil a todo progresso e a toda conquista de niveis mais altos de civilisação. É incontestavel, entretanto, que tal attitude de intransigencia absoluta só pode inspirar o profundo respeito, de que são dignas as convicções sinceras. Por isso mesmo que se trata de convicções, não podiam os membros da Companhia permanecer inactivos. O proselytismo, comtudo, tomou aspecto novo. Não mais se nota a intervenção directa sob a forma politica, mas ainda se move, ora prégando doutrina junto aos dirigentes, ora agitando as almas religiosas. Ahi, exactamente, se encontra a explicação da diversidade de sua vida nas nações protestantes e nos povos catholicos: junto ás primeiras, age sôbre a minoria dos habitantes, e, para afastar difficuldades com os poderes publicos, evita cuidadosamente a politica e limita-se a evangelisar as massas; junto aos ultimos, sua acção varia conforme a posição reciproca do Estado e da Egreja, dominadora em se tratando de uma religião official, com tendencias muita vez invasoras no regimen concordatario, exigindo relações liberaes nos casos da agnosticismo constitucional por parte do Estado. Em todas as circumstancias, seu esfôrço se exerce como em missão interior, e esse é o fim principal de sua obra escolar. O velho ideal da Companhia--a escola livre, a Egreja livre, o mando absoluto da Egreja no mundo--deve certamente despertar grandes sympathias nos países de regimem agnostico, pois os dous primeiros termos da trilogia merecem todo apoio de quantos reconhecem a differença necessaria entre o dominio temporal e o dominio espiritual. Em ambos, trata-se de assumpto reservado á livre escolha dos interessados. Mas a Egreja só admitte a liberdade para si e não para a communhão. Quanto ao terceiro termo, o predominio da Egreja, cabe á livre concurrencia das opiniões em contraste conquistar a confiança das almas, ao Estado cumprindo manter neutralidade absoluta na contenda, dando, a todos os credos, eguaes direitos e egual protecção no seu exercicio. É facil, portanto, inferir dahi os elementos favoraveis que o regimen agnostico assegura a todas as confissões. Os novos Geraes bem comprehenderam as vantagens da situação, e o esforço da Companhia norteou-se no sentido de alta intellectualidade, dirigida a propaganda pêlo jornal, pêlo livro, pêlas revistas scientificas, contraposta a trabalhos analogos feitos por adversarios seus. Ainda nesta phase, a literatura da Ordem foi militante contra a impiedade, fôssem quaes fôssem sua origem e sua manifestação. Alterou-se, pois, profundamente o modo por que os jesuitas intervinham para assegurar o advento da monarchia espiritual absoluta que sonhavam para o mundo. Na politica propriamente dita, sua acção confunde-se com a de Roma, pois hoje em dia elles a inspiram por intermedio da Curia. Na direcção das consciencias, já possuem a primasia que lhes era attribuida no seculo XVI e no seguinte. Resta, portanto, sua nobilissima tentativa de conquista pêla escola, alvo verdadeiro de sua missão interior: a evangelisação das almas e a formação do espirito da mocidade, que um dia governará. Pouco importa si o processo é lento: a Egreja, tanto quanto o Estado, tem por dever considerar os factos sociaes _sub specie æternitatis_. III _Aspecto brasileiro do problema._ Coincidiram a depuração da Ordem, sua volta aos intuitos primitivos de Santo Ignacio e o rejuvenescimento de seu ardor missionario com o periodo de luctas e de gestação confusa de que proveio a emancipação politica da America meridional. No Brasil, ruira a obra pombalina. Viera, entretanto, substituida pêlo espirito nascido da Encyclopedia, da Revolução francesa e da ascendencia crescente da investigação analytica. Sem se elevarem até o conceito da separação dos dominios, o temporal distincto do espiritual, taes factores geraram o molde em que se vasou a Carta constitucional do Imperio: a preeminencia do poder civil ao lado da religião official, a intervenção regalista nos negocios ecclesiasticos. Do choque de elementos tão dispares resultaria o mau estar reciproco da Egreja e do Estado durante os sessenta e sete annos do regimen monarchico. Os esforços dos defensores do Catholicismo por manterem puro o dogma; a reivindicação constante do poder publico de seu direito de superintender e regulamentar o exercicio do culto no que tivesse de commum com as necessidades correntes da vida civil, traducção empirica do conceito, confusamente sentido embora, da discriminação necessaria das provincias da actividade espiritual e da actividade civil; os reclamos de mais em mais energicos desta ultima, manifestados em movimentos, como a maçonaria, ás vezes injustissimos em sua propaganda, por excesso de espirito sectario em seus juizos sôbre Roma; todas essas correntes desencontradas feriam-se e abalroavam, levando profundamente agitado o país. Culminou a desordem de 1871 a 1875, quando incandesceu a famosa lucta que se chamou a questão religiosa. Serenou a atmosphera com o advento da Republica. A separação das duas competencias, desde logo feita por acto de 7 de Janeiro de 1890, permittiu a livre expansão das exigencias espirituaes dos crentes. Nesse ambiente de paz viviam e evoluiam os credos religiosos, quando actos do passado Govêrno da Republica, procurando impedir o desembarque em nossos portos de membros da Companhia de Jesus, expulsos de Portugal, vieram pôr novamente em destaque um dos problemas mais serios, mais graves, mais urgentes e mais descurados de quantos devem occupar as cogitações dos homens publicos de nossa terra: a obra collaboradora da Egreja no desenvolvimento progressivo do Brasil. A medida, em si, era indefensavel, de ridicula, iniqua e revoltante. Ridicula, por não haver como fazê-la respeitar, tantos e tão faceis os meios de illudir a argucia policial dos incumbidos de reconhecer os jesuitas entre os centenares de passageiros transatlanticos. Iniqua e revoltante, por vir crear, contra o agnosticismo firmado na Constituição Federal, uma forma nova de delicto, crime de crenças e de idéas, causa de perseguição e de desrespeito ás garantias asseguradas a todos os habitantes dêste país e a quantos lhe procuram as plagas. Dobradamente iniqua, si nos lembrarmos de quanto o Brasil deve aos filhos de Inigo de Loyola, e de que á fundação da nacionalidade presidiram, em épochas varias, os vultos augustos de Manoel da Nobrega, Anchieta e Antonio Vieira. Não basta, entretanto, para condemnar a iniciativa infeliz, allegar sua inconstitucionalidade. Satisfaria tal processo, apenas, aos espiritos afeitos ao judiciarismo estreito, enxergando somente o caso concreto e sua conformidade com as normas vigentes. Mais alta deve ser a indagação, para que seus fructos provem proficuos. O aspecto social do phenomeno deve sobrepujar ás demais caracteristicas, o _fieri_ de que resulta, os antecedentes que o geraram, as consequencias possiveis. Não é um facto esporadico, de geração espontanea. É um producto de factores seculares, causa, a seu turno, de novos phenomenos universaes, que cumpre analysar. Como isolar o _attimo fuggente_, e fixá-lo, especimen de museu, em categorias predeterminadas? Como immobilisar o essencialmente transitorio e passageiro, o que nunca é, e sempre evolve? Seria reproduzir as photographias dos movimentos, dos quaes cada placa revela uma phase e não o conjuncto. Fôra verdadeira libertinagem de espirito, nunca o exame sincero que inspira pensadores. Na analyse das tendencias, das series a que pertencem os problemas inquiridos, das relações mutuas que originaram; no evoluir dos conceitos; nas necessidades antigas a satisfazer; nos reclamos das exigencias de hoje; nos rumos previsiveis da sociedade de amanhã; nesse complexo de noções, experimentaes ou ideaes, se encontra a decifração, quiçá nem siquer entrevista, do enigma, insoluvel aos olhos de muitos, da vida, tomada em seu conjuncto intrinseco e nas suas relações com o cosmos. Incomprehensivel e sem remedios se afigura a desordem nas provincias do dominio espiritual onde concorrem, é de esperar que transitoriamente, as confissões religiosas e o Estado: o ensino e, em alguns casos, as convicções determinadoras da direcção politica. Tal estado de duvida só se manifesta, entretanto, em se encarando os factos isoladamente, sem nexo causal no tempo e no espaço. Cessa a confusão, e aclara-se o horizonte, se os examinarmos do ponto de vista relativo, restabelecida a perspectiva historica na evolução das idéas, das doutrinas e das aspirações. É, pois, no passado, tambem, que devemos haurir as lições que explicam o facies actual do problema: na antiga constituição das ordens religiosas; nas regras firmadas pelos Concilios; nas luctas do regalismo e do espirito gallicano contra a universalidade da Egreja Catholica, luctas que repercutiram em nossa Constituição Imperial; nos corollarios da separação da Egreja e do Estado, decorrente da proclamação da Republica; no aspecto novo que apresenta desde ahi a formação intellectual e moral das gerações que surgem. Não se poderia imaginar, em país christão, constrangimento maior para as Egrejas derivadas das lições admiraveis do Nazareno, do que o ambiente creado pêlo Estatuto de 25 de Março 1824. Aos acatholicos era apenas tolerado o culto, contanto que suas reuniões se fizessem em edificios sem signal exterior, capaz de os distinguir dos demais, designando-os como templos. Era a medo, por tolerancia, que se exerciam os actos solennisadores das mais importantes occupações humanas para todos os idealistas, os reclamos da fé. Em Roma, nos tempos do Imperio fundado pelos Cesares, tão latitudinaria em assumptos religiosos, mesmo nos periodos das perseguições, as confrarias funerarias, em que se tinham transformado as pequenas colonias christãs, encontravam sossêgo e inteira liberdade de celebrar os ritos em seus cemeterios, as catacumbas, protegidas contra qualquer invasão pêlo respeito sagrado da propriedade que caracterisa a lei romana. Menos tolerante, a Constituição imperial do Brasil fazia do exercicio do culto, para os acatholicos, uma occupação furtiva, sequestrada á ampla luz da publicidade, cercada de precauções contra olhares indiscretos. Felizmente, o bom senso dos governantes e a diffusão generalisada de normas mais razoaveis de pensar sôbre opiniões alheias divergentes, vieram corrigir na pratica o que tinha de intransigente o duro texto da lei. Mais grave, do ponto de vista dogmatico, era a situação dos catholicos, membros da religião adoptada pêlo Estado. Instituição divina, extranha ás regras e aos modos de resolver das potencias temporaes, haurindo sua fôrça na revelação e suas leis nas deliberações conciliarias e na acção ininterrupta dos seus papas, a Egreja Catholica não pode negar sua origem, acceitando a collaboração dos governos, como potencias temporaes, para os actos reguladores de sua vida interna, quer quanto ao dogma, quer quanto á disciplina e hierarchia ecclesiastica. Por isso, inteira e indiscutivel razão assiste aos redactores do Syllabus, condemnando _in limine_ todos esses compromissos com o Seculo. É, por parte delles e de seu ponto de vista, uma altissima affirmação de lealdade e de fé. Comprehende-se, portanto, quanto foi deleterio á pureza do Catholicismo no Brasil o influxo official, imbuido de gallicanismo e inflexivel em suas descabidas exigencias regalistas. Foi a lucta de todos os dias, o conflicto perenne entre duas concepções antagonicas, em que a Egreja, desarmada, cedia á imposição do mais forte, mal resalvando os principios eternos de sua acção. O caso iniquo da prisão dos bispos não foi sinão um accidente escandaloso nessa sequencia de choques entre Roma e o Brasil. O clero tornou-se um ramo do funccionalismo publico. As determinações de ordem espiritual só chegavam aos ministros do culto, incumbidos de as applicar, após a depuração pelos orgãos administrativos prepostos á superintendencia governamental dos negocios ecclesiasticos. Dessa passagem, por vezes verdadeira filtração de actos que deveram escapar á analyse do poder temporal, não raro saíam deturpadas, do ponto de vista dogmatico e disciplinar, as deliberações da Curia. A idéa fixa de constituir uma egreja nacional mutilara a vida conventual, cerceando-a em sua origem--pêla extincção do noviciado--e ferindo-a nos seus recursos--pêlas leis de amortisação. Extinguia-se por tal forma o clero regular. Nos seminarios rareavam cada vez mais as vocações religiosas. Nas freguesias, insuficientes quanto ao numero de fiéis, o parocho, desinteressado muita vez de sua missão divina, como funccionario publico retribuido, ia alheiando de si a alma de suas ovelhas e nos seus ensinamentos transformava o estudo do catecismo em mero exercicio mnemonico formal, em vez de salutar investigação de essencia. Era o amesquinhamento systematico. Sobrepunha-se o govêrno regalista do Imperio á auctoridade com que, em assumptos de fé, devera falar a Egreja. Como ficar sorpreso si, em circumstancias tão adversas, ia aos poucos amortecendo o espirito apostolico de que deve estar inspirado todo pastor d'almas? O proprio ambiente social anesthesiava as virtudes heroicas daquelles que, com sacrificio da propria commodidade, iriam curar das alheias exigencias eternas. E eram consequencia damninha de tal situação as vacancias das sédes parochiaes, a invasão de clero famelico vindo de além-mar, pouco afeito ás necessidades da alma brasileira, principalmente nas zonas pobres do país, nas quaes a deserção dos sacerdotes creara um estado de vago deismo, profundamente impregnado de crenças e praticas fetichistas trazidas pêla escravidão negra. Que o digam, até hoje, os clerigos incumbidos das missões interiores!... Cessou, como por encanto, tal desconforto, desde o momento em que, proclamada a Republica, se tornou lei um dos principios fundamentaes propugnados durante a propaganda: a inteira liberdade de cultos. Esse foi um dos inesqueciveis serviços politicos do Govêrno Provisorio. Comprehendendo que, nos primeiros tempos do triumpho, a fôrça e o prestigio dos vencedores não encontrariam contraste, assentaram em solver definitivamente varios problemas capitaes que vinham dividindo a Nação. Alguns, como a federação das provincias e a secularisação de varios actos, dantes reservados ás auctoridades religiosas, já eram triumphantes na opinião, e figuravam até no programma de um dos partidos monarchicos. Outros, como a plena liberdade de pensamento, embora menos divulgados, reuniam o assentimento de quasi todos os pensadores, em ambos os arraiaes da politica imperial. Permittiram os actos do Provisorio apressar o advento de soluções pêlas quaes anseiava a grande maioria dos dirigentes, sem choques, sem protestos, antes com o applauso de todos. Várias eram, entretanto, as formas possiveis de applicação do preceito novo. Sabiamente, ainda, o Govêrno escolheu a mais lata, a mais generosa, a mais desprendida, a mais respeitosa dos escrupulos da immensa maioria dos catholicos brasileiros. E, ao publicar-se o decreto da separação, divulgada a forma por que seria entendido, pôde a Pastoral collectiva do Episcopado brasileiro saudá-lo como um acto de redempção da Egreja. A Constituinte sanccionou e completou as medidas tomadas pêlo Govêrno revolucionario: manteve a inteira liberdade de pensar e prohibiu quaesquer relações de alliança ou dependencia entre o Estado e a Egreja, fundando assim o agnosticismo, que deve reinar nas espheras officiaes, agindo como orgãos da collectividade. Verificado que as estipulações do Estatuto de 24 de Fevereiro eram applicadas na letra e no espirito, teve inicio um progresso notavel na organisação religiosa do país. Incrementaram-se as missões acatholicas; abriram-se numerosos collegios regidos por discipulos desta ou daquella variação protestante; erigiram-se templos e casas de oração em logares reconditos do sertão e nas capitaes; a propaganda continua, incessante, ampliou seu circulo de prédica, e não ha exaggero em affirmar que constituem um nucleo respeitavel os fiéis dos credos divergentes do Catholicismo. Egualmente notavel foi o impulso dado á grande massa de crentes da religião dominante. Nenhuma, quanto esta, soube valer-se das liberdades concedidas pêlo regimen que acabara de se instituir. Abriu-se nova era para o clero regular. Repovoaram-se os cenobios: pelos noviços, que se admittiram de novo, e pêla acceitação de frades naturalisados. Outras congregações fundaram casas no Brasil. Procurou-se, com segurança de vistas e alta intuição psychologica, estreitar o contacto entre os fiéis e seus directores, pêla multiplicação das parochias e pêla divisão das dioceses demasiado extensas. Os ministros do culto, não sendo mais pensionistas do Thesouro, foram obrigados, tanto pêla sua vocação, como pêlas exigencias de sua vida, a apertar os laços que os prendiam a seus fregueses, enobrecendo o influxo reciproco de ambos, custeiado o culto pelos seus religionarios, mantido e elevado o prestigio do sacerdote pêla supremacia moral de sua missão e pêlo desassombro e abnegação com que a desempenhasse. Mais tarde, si não desde já, se fará justiça ao grande progresso que tal medida representa na elevação da vida interior do homem, na honestidade com que a vida interior dirige e superintende aos actos da vida de relação. Pouco tempo depois, começou em França a agitação de que provieram as leis sôbre as congregações, o rompimento da Concordata de 1801, os inventarios e as expulsões _manu militari_ dos que protestavam, ainda que pacificamente, contra as usurpações do poder civil. O Brasil foi um dos refugios dêsses exilados pêla intolerancia sectaria, e, em breve, casas de congregados dos dous sexos foram fundadas em pontos varios do territorio nacional. Ordens pura e exclusivamente contemplativas não se estabeleceram aqui. Numerosas foram as que se dedicaram á educação, especialmente no grau secundario. Os trappistas crearam verdadeira escola agricola em Tremembé. Os benedictinos mantiveram cursos primarios e secundarios frequentadissimos. Os salesianos fundaram missões e especialisaram-se no ensino profissional e no ensino secundario. Os lazaristas, velhos hospedes do Brasil, conservaram suas antigas casas. Os jesuitas continuaram em seus velhos collegios e installaram novos sem o menor protesto. Em toda a parte, notou-se o mesmo empenho de organisar a obra admiravel da conquista moral do país pêla educação, emprehendimento altissimo, que attesta a vivacidade, a pujança, a sinceridade da fé, motriz de tão alto escopo. Mas esta immensa tarefa pedagogica nunca despertou a attenção dos governos republicanos, como devera ter acontecido, não para a reprimir ou perseguir, mas para a estudar e lhe seguir o exemplo, afim de dar com a escola leiga o contrapêso necessario, indispensavel, mesmo, á escola confissional. Inerte quanto ao desenvolvimento desta ultima, o Estado cuidava apenas de manter e estreitar suas relações extra-officiaes com os representantes do culto. Em algumas circumscripções politicas, mal se velam os subsidios indirectos fornecidos a determinadas egrejas. Em outras, o acôrdo se manifesta no terreno partidario e politico, trazendo verdadeiras allianças. Era geral, portanto, o ambiente de concordia reinante entre o poder temporal civil e o poder espiritual ecclesiastico. Neste meio, de paz e de collaboração sympathica, estalou a ordem impedindo o desembarque dos jesuitas expulsos de Lisboa. Si bem as noticias de Portugal tenham sido, nestes ultimos tempos, de uma nebulosidade extranha, e seja difficil conhecer a verdade entre tanta versão contradictoria, quiseram applicar a essa congregação o conceito de _moines ligueurs_, que os echos repetiam em França no periodo de lucta das leis Waldeck-Rousseau e Combes. Mesmo si a accusação procedesse além-Atlantico, na vigencia de uma religião de Estado, como generalisá-la e acceitá-la no Brasil, com o regimen confissional separatista, com relações mutuas inteiramente outras? Jesuitas ha na America portuguesa desde os primeiros annos da fundação da Ordem, e sem elles é inexplicavel nossa propria historia. Nunca impediram, e constantemente auxiliaram a marcha progressiva de nossa terra. E como olvidar tal passado, que nos põe em debito de gratidão para com a Companhia, a pretexto de ser um elemento de desordem, e ter uma politica obscurantista que nos levaria ao regresso social? Investiguemos o caso. Postos de lado exaggeros e inexactidões creados sôbre os jesuitas pêlo desconhecimento de sua historia e pêla hostilidade, nem sempre escrupulosa, de seus desaffectos, tem sua pedagogia, tem seus methodos de ensino, seu escopo na preparação mental dos discipulos, que, já agora, fornecem a base mais segura para julgar de sua valia na collaboração prestada ao progresso de um país. Não fôra a situação social que atravessamos, de plena transição entre um passado que se desfez e uma méta futura ainda desconhecida, e por certo a solução do caso quedaria entregue ao livre debate, á concurrencia entre as doutrinas que aspiram reger a universalidade das consciencias. Problema essencialmente espiritual, ao Estado ficaria vedado intervir no pleito. Em países de opinião publica forte, organisada, consciente, tal disputa é possivel, e não se justifica a intervenção do poder temporal no dominio das convicções. Outra a feição do problema em países de meia-cultura, nos quaes o desequilibrio ethnico, mantido e que convém por emquanto manter, pêlo affluxo de immigrantes, crea uma instabilidade mental facil de ser explorada; onde o analphabetismo domina e as heranças de longo passado fetichista ainda se manifestam nas crendices, polluindo a pureza do alto espiritualismo verdadeiramente religioso, enfraquecendo ou mesmo annullando a intensidade da vida interior. Ahi, a missão do Estado é preparar a elevação progressiva do ensino popular, até o ponto em que, attingida a maioridade mental, possa ficar entregue ao livre confronto das confissões o preparo espiritual das novas gerações. Dêsse dever decorre a obrigação moral por parte do Estado de não esmagar crença alguma, de assegurar a todos o ambiente de paz e da tolerancia a que tem direito. Ao mesmo tempo, a deficiencia intrinseca do meio onde a competição vae exercer-se; a differença de elementos de vida dos varios credos; a longa posse exclusiva do Catholicismo e sua preponderancia esmagadora na massa nacional aconselham aos espiritos reflectidos a não dar a protecção indirecta, que consistiria em entregar a lucta pêlo predominio a adversarios, nús e desarmados, uns, contra outro, munido de todos os apetrechos forjados na multisecular situação privilegiada de que gosou. O meio unico de resguardar a solução definitiva do problema espiritual é o ensino provisoriamente entregue ao Estado com o correctivo da concurrencia crescente por parte das instituições, religiosas ou leigas, analogas ás officiaes, mas com a differença essencial seguinte: o Estado ministrando um ensino rigorosamente agnostico, as escolas livres seguindo sua orientação propria, acautelada apenas do Codigo Penal. E no caso de, ainda em periodo de transição, se exigir uma prova publica de habilitação, seja esta dada publicamente, sem indagar da proveniencia dos candidatos, perante o mesmo jury avaliador dos meritos. Não se conseguiria tal resultado, si, desde já, fosse enfraquecida a intervenção official nos varios graus do ensino, e, principalmente, no primario e no secundario. Dahi resultaria o predominio dos mais bem apparelhados no momento actual, as escolas inspiradas nos conceitos pedagogicos da Companhia. E isto, do ponto de vista social, seria franco regresso a periodo de intolerancia e de desrespeito ás crenças alheias, regresso que se não poderia hoje em dia admittir. Nem ha neste asserto a menor sombra de injuria: é a consequencia honesta e inevitavel de toda convicção profunda e exclusiva, e, por isso mesmo, operante. É, pois, do ponto de vista do ensino, e dêste tão somente, que cabe apreciar o influxo da Sociedade de Jesus, examinar seus methodos e seu alvo, em confronto com os conceitos modernos sôbre a educação, com as normas de liberdade espiritual instituidas pêlo direito constitucional de nossa épocha. Cumpre ainda comparar a mentalidade oriunda das escolas leigas com a que se forma nas escolas confissionaes, especialmente as da Companhia. Finalmente, é mister investigar si se acham em presença systemas antagonicos, si o conflicto eventual se pode evitar. IV _Sobrevivencia das tradições do regimen imperial._ _Agnosticismo da Constituição republicana_ Limitando o exame aos orgãos incumbidos de executar a lei e dar realidade tangivel a seu pensamento, talvez se possa sem pessimismo tornar patente que a comprehensão official do problema do ensino por muito tempo se resumiu: no grau primario, em vulgarisar a leitura, a escripta e os rudimentos de arithmetica; no grau secundario, abandonar o curso de humanidades á concurrencia privada, modelada por poucos institutos officiaes; no grau superior, onde predominam os estabelecimentos officiaes, acceitar a collaboração da iniciativa individual. Nesses dous ultimos estadios, a admissão nas escolas só se regula pêlas facilidades financeiras dos paes; não é absolutamente uma como que promoção seleccionada dos melhores elementos revelados nas escolas primarias. Forma-se, dest'arte, nos niveis superiores, uma aristocracia culta, fundada na riqueza mais do que no talento. As proprias excepções confirmam o asserto, e provam quanto o systema fere os principios basicos de uma sociedade verdadeiramente democratica. Claro que existem numerosas excepções nesse modo de encarar o problema, e os esforços feitos em S. Paulo, com grande exito, no Rio, e em alguns outros Estados, bem mostram que o assumpto preoccupa os governos e lhes inspira progressos paulatinos, si bem que, infelizmente, por demais desconnexos. No circulo dos pensadores, dos sociologos, dos theoristas em geral, tal conceito, fundamente erroneo, não encontra guarida; mas á formal condemnação intellectual não se segue a repulsa pratica ou a instituição de processos pedagogicos mais acordes com as normas hoje geralmente preconisadas para formar a mentalidade da juventude. E, nesses termos, continua a predominar o habito rotineiro das administrações publicas, não raro mal preparadas para a comprehensão integral do delicado problema e para a direcção dos meios de prover ás exigencias indeclinaveis da cultura progressiva da mocidade, que se resumem no indispensavel advento de uma educação fundamentalmente nacional, no que tem de mais alto. E, entretanto, encontram certa justificativa ou, antes, certa explicação para a sua norma de agir os mantenedores de um ideal pedagogico que, rapido, levaria á estagnação mental e social os educandos, a sociedade de amanhã, portanto. A inercia perpetuou regras, talvez comprehensiveis no regimen monarchico de religião official, mas inteiramente descabidas no regimen separatista inaugurado pêla Republica. Ao proclamar-se esta, nenhuma doutrina lograva acceitação universal nos arraiaes dos vencedores. Talvez, mesmo, poucos dos novos governantes tivessem cogitado do novo aspecto da questão educacional, uma vez firmada a liberdade de pensamento, e se julgassem aptos a solver um dos problemas mais arduos da psychologia humana, formar homens de bem, obedientes ás regras da moral, sem ferir o agnosticismo que o Estado devia honestamente respeitar, por honra propria e para dar livre expansão ás confissões religiosas. Benjamin Constant, espirito afeito ás altas indagações moraes, sentiu o vacuo deixado pêla abolição da disciplina confissional no que ella pudesse ter tido de activo, de creador na mente das creanças, embora não houvesse a Egreja catholica dominante sufficientemente exercido sua acção neste rumo, talvez embalada pêla falsa certeza da perennidade de uma situação privilegiada, a que o progresso do Brasil veio pôr termo, equiparando perante o Estado leigo os credos divergentes. A fundação das cathedras de moral nos institutos de ensino superior obedeceu a essa preoccupação. Fortemente combatida, sua creação pouca vida teve, e deveria resultar ephemera como aconteceu, pois á disciplina visada cumpriria tomar conta da creança no periodo em que se formam sentimentos, idéas, habitos, afim de constituir aos poucos o ambiente em que viesse a mover-se o homem, crear o complexo de regras, com sancções interiores, directoras de sua vida. Na escola primaria--como disciplina despertada no animo infantil, mais do que preleccionada--; nas escolas normaes--como estudo theorico e pratico, collimando fins pedagogicos--; nas escolas de philosophia--sciencia investigada em um conjuncto de altas indagações mentaes--; em todos esses institutos, a moral se achava em seu logar proprio, ora ministrando regras de vida, ora apurada em analyse e aulas dos docentes. Mas em cursos profissionaes, no sentido estricto da palavra, escolas de engenharia, de medicina, de arte militar, a cadeira de moral sairia menos util, por encontrar o ambiente moral do alumno já formado na edade de entrar para taes estabelecimentos, por destoar do genero peculiar de raciocinio proprio ás especialisações, por visar pontos de detalhe, e não o complexo das noções basilares da existencia, entre as quaes a moral deve figurar. O combate contra o plano de Benjamin Constant, embora alvejasse o ensino superior, repercutiu nos graus inferiores. Nada se fez para preencher na escola primaria, onde se formaria a _psyche_ commum dos brasileiros, a tarefa de suscitar sentimentos communs, aspirações generalisadas, esforços de progresso interior ininterrupto, gravitação incessante para o bem, missão que, em regimen unitario, caberia á Egreja, e que, na vigencia da liberdade de pensamento, deveria recair sôbre o professor elementar, fôrça insubstituivel para a formação dos laços unionaes decorrentes da communhão de ideal, de aspirações e de processos. A estagnação foi facilitada pêlo elemento politico, que, receando augmentar o acervo de difficuldades da phase inicial da Republica, manteve com o maior zêlo o pessoal director de todos os serviços. Permanecendo inalteradas as auctoridades superiores prepostas ao ensino, triumphou o predominio quasi invencivel da rotina e dos habitos burocraticos, que dão tanto peso ás opiniões peculiares, aos meios administrativos sôbre quantas iniciativas buscam innovar, isto é perturbar habitos adquiridos, exigir novos esforços materiaes e mentaes, violar a placidez da applicação, quasi mecanica, de leis e regulamentos aos casos occurentes, pouco variaveis e já estudados uma vez por todas. A hostilidade da entrosagem administrativa ao esfôrço novo, despertado pêlo problema educacional, que se vinha impor á solução dos governantes, tinha como collaboradora a norma legada pêlo Imperio em materia de ensino. Como extranhar que, fortes pêla tradição que representavam, pêlo manuseio das leis que applicavam, as auctoridades literarias tivessem conseguido manter a orientação anterior á quéda do antigo regimen? Por outro lado, como levar-lhes a mal desconhecerem um problema novo, que os proprios triumphadores mal lobrigavam, e que, ainda insolvido hoje, constitue um labéo para as instituições republicanas de nosso país?!... Era natural, pois, se mantivesse ao mecanismo antigo o mesmo funccionamento, já inadequado aos phenomenos posteriores. Como attenuante, pode ser allegado o analphabetismo geral do sertão. As estatisticas offerecem base pouca segura, por não estarem assimiladas, por sua notoria deficiencia. Qualquer algarismo que se cite, vem, portanto, viciado desde a origem. Seria optimismo, em todo caso, acreditar superior a 20% o numero dos que sabem ler e escrever. Em taes condições, pouco valeria incitar as almas a vôos mais altos, quando chumbadas inseparavelmente ao solo pêla ignorancia absoluta. Melhor e mais util seria, de resultados immediatos e mais efficazes, dar a taes espiritos adormecidos o impulso inicial da instrucção rudimentar. Ficaria perdido todo esfôrço gasto em tentativas de sublimar intelligencias, amodorradas na treva do abandono mental secular. Das proprias disciplinas ensinadas na escola, quantas se gravariam permanentemente nos cerebros incultos de taes desvalidos intellectuaes, e quantos exemplos ainda hoje se citariam de regresso ao desconhecimento primitivo? As difficuldades immensas offerecidas pêla ausencia de meios de communicação vinham complicar o caso. Admittido se tivesse formado uma doutrina pedagogica, geralmente acceita, de nivel mais alto do que a craveira adoptada até então, si continuassem os professores os mesmos, o unico meio de os iniciar em sua nova tarefa seria a inspecção amiudada das escolas, o contacto intimo com funccionarios convenientemente preparados, que ministrassem os elementos do programma preconisado, lhes guiassem os passos vacillantes na nova rota, abrissem horizontes novos no campo da educação infantil. A vinda por turmas dos professores ruraes á séde da circumscripção literaria, ou á capital do Estado, lhes daria o viatico indispensavel á estrada que se lhes apontava para o desempenho de suas funcções. Remedios faceis em zonas providas de meios rapidos de locomoção, cortadas de vias-ferreas, ou em centros populosos. Mas essas eram excepções, relativamente muito raras, no vasto territorio nacional, ainda hoje, vinte annos depois, com menos de 22.000 kilometros de estradas de ferro para seus 8 1/2 milhões de kilometros quadrados de superfície, sem estradas de rodagem, dignas do nome, tendo apenas os máos trilhos abertos nas serranias e nos chapadões pêlas tropas sertanejas e pêlo tradicional carro de bois. É preciso não ter viajado o interior do Brasil, não ter visto escolas, tristes casebres sem soalho nem forro, destituidas de tudo quanto hoje se exige para a mais modesta habitação, quanto mais para uma escola; não ter percorrido as distancias immensas de freguesia a freguesia, e dellas aos pontos centraes, onde se poderiam haurir recursos, intellectuaes e materiaes; é preciso o desconhecimento do meio, para acreditar na possibilidade de generalisar taes reformas e melhoramentos por occasião da quéda da Monarchia. O sertão as inutilisaria sem lucta, por simples inercia. E ainda para que tal reorganisação se pudesse dar, fôra mister houvesse uma norma a propagar, uma nova doutrina a evangelisar, um novo codigo pedagogico a pôr em effectividade. Nenhuma dessas condições iniciaes existia. O escopo das auctoridades literarias não variara, e os methodos rotineiros continuavam em plena voga. Nenhuma esperança, pois, desabrochava quanto á formação de uma camada professoral, com ideaes mais altos, mais proximos do alvo de todos os esforços no ensino. E quanto ao elemento antigo, o corpo de docentes ruraes, raras eram as excepções ás quaes se pudesse pedir a méra tentativa de comprehender que, em pedagogia, alguma cousa ha acima da cartilha de A. B. C., decorada nas aulas e cantada cadenciadamente pêlas creanças, os classicos exercicios graphicos dos pauzinhos, debuxados a principio e copiados a mão livre mais tarde, como preliminar aos segredos da escripta corrida e do bastardinho, as quatro operações fundamentaes da arithmetica. Uma renovação do ensino primario importava, pois, na renovação do professorado, na creação de um corpo docente imbuido do novo credo e de suas praticas, na constituição de um escol que pudesse e soubesse contribuir para o preparo intellectual dos professores das escolas normaes, na reforma destas e no exito de uma escola normal primaria superior, da qual saissem os professores das escolas normaes communs, os inspectores do ensino primario, as auctoridades literarias, em summa. Nada disso existia. E como conspirassem contra tal revolução do ensino (o termo não é excessivo) as commodidades da rotina, as asperezas do meio, a ausencia de um novo codigo pedagogico, a deficiencia do elemento docente, como taes fôssem os obices ao esfôrço salvador, de nada se cuidou. Continuou a pratica antiga a amadornar os cerebros, impedindo o surto mental da mocidade. Um que outro pensador, consciente da gravidade do problema, procurava, por si, dar as soluções que o caso comportasse, com a evidente inferioridade systematica do desequilibrio caracteristico do autodidacta. E, entretanto, o agnosticismo do Estado estava impondo o abandono do carreiro antigo e a escolha de nova trilha para a obra escolar republicana. Ao envés de uma religião official, quisera a Republica dar egual tratamento a todas as confissões, e para isto separara das provincias da fé a orbita das acções humanas, na qual a razão é conselheira unica, e neste terreno estabelecera sua competencia e actividade, vedado o intervir na elaboração das convicções espiritualistas. Certo, a palavra «razão» deve ser interpretada _latissimo sensu_, abrangendo a intelligencia, a consciencia, o sentimento, a successão verificada dos factos. Ainda assim, deixa larga zona intacta, na qual somente a crença pode imperar. Como observa Renouvier[2], por maiores sejam os esforços officiaes no sentido de augmentar o valor instructivo e educativo do ensino, é fôrça reconhecer não haver uma doutrina leiga capaz de preencher o vacuo moral dos espiritos e dos corações. Dahi a falta de coordenação; a como que incoherencia dos principios formulados pala razão pura; os conflictos continuos entre o interesse immediato e os reclamos de um ideal superior; a imposição do util prevalecendo muita vez sôbre a exigencia do bem. Dahi, ainda, a observação tão funda do mesmo philosopho: «De dia para dia augmenta a convicção de que a instrucção, instrumento do raciocinio, não é o que constitue ou o que realmente informa a razão, menos ainda o que gera os sentimentos motores do coração humano. Nega-se que os conhecimentos scientificos possam jamais supplementar as crenças moraes ou destrui-las». De facto, para o sentimento se devem dirigir todos os esforços educativos, pois esse é o motor principal das acções humanas. Por isso, ao cessar o ensino religioso, houve em realidade uma diminuição no valor dos processos pedagogicos, onde tal ensino fôra feito segundo o espirito dos evangelhos, sem se ater á letra arida do catecismo. Falava o expositor em nome de um dogma revelado, traduzindo a Verdade Eterna, com a auctoridade do Infinito Poder e da Suprema Bondade. Sempre que tal orientação foi seguida, e sem analysar as premissas em que se fundava, a educação do sentimento se revelava mais intensa, reagindo com mais vigor na vida interior de que decorre a actividade externa do homem. Essa não foi, porém, e por mal nosso, a regra mais geralmente adoptada, que reduzira a explanação da doutrina, na maior parte dos casos, a méro exercicio mnemonico. Era obvia a inviabilidade da semente, já morta, lançada no cerebro infantil. Que o não fôsse, entretanto, e, ainda assim, como poderia o Estado prender-se na auctoridade de um dogma, sem desrespeitar outros credos igualmente dignos de reverencia? E como, por tal forma, manifestar sua preferencia em circulo de actividade vedado á sua intervenção normal, e no qual era claramente incompetente? A solução unica possivel e acceitavel seria: nas regras de viver que fatalmente teria de pregar aos educandos, pêlo exemplo, pêla palavra, pelos actos, adoptar como norma ensinar o melhor de quanto se pensa, diz ou fez, com espirito eclectico, sem exclusivismo em suas conclusões. Para isso, agir sôbre todos os moveis incitadores da acção: o dever, a honra, os sentimentos affectivos, o interesse bem entendido, o amor-proprio, o receio da critica dos homens de bem, as noções de um ideal mais nobre. Para dar a taes lições o pêso, a auctoridade e o poder persuasivo de que tanto hão mistér, varios obices teriam de superar. Insufficiente experiencia psychologica, porque a materia a preleccionar é de data recente; ainda sem a auréola que o tempo sóe dar ás verdades longamente ouvidas e transmittidas; porque o assumpto inquirido, a moral, é por demais vasto, evolutivo e contingente. Resistencia intrinseca á divulgação, porque o modo de a fazer, de docente a discipulo, não obedece a um methodo já scientificamente preciso, por falta de auctoridade decorrente da escassez de pontos de referencia verificados; da variabilidade dos conceitos; dos conflictos essenciaes, conforme o ponto de vista adoptado; das controversias originadas na subordinação acceita para os conceitos elementares. Fraqueza dos professores, notadamente nos países catholicos, porque a longa separação do dominio temporal do dominio espiritual mantida pêla Egreja nas cousas da consciencia, mal preparara os representantes do primeiro a tratarem de assumptos que dizem respeito directamente á formação psychica da creança. Dahi a inferioridade da prédica da escola. Falta de unidade, por se tratar do problema do _eu_ analysado experimentalmente pelo proprio interessado, sujeito, pois, á multiplice causa de erro da observação imperfeita, da parcialidade do observador, dos conflictos interiores entre a conveniencia e o ideal; falta, em resumo, do nexo capaz de equiparar-se ao forte liame que une, prende e enfeixa em um todo unico o conjuncto de preceitos oriundos da revelação, no ensino sacerdotal. Raridade dos professores, dignos dêsse nome, aptos a fazerem do desempenho de sua missão um verdadeiro trato de almas, depurando, aos poucos e com amor, da ganga que os envolve os elementos sãos e brilhantes, que se encontram na mente infantil; educadores proprios a formar almas vivas e palpitantes e não méras cópias de um typo official, exemplar fundido por decreto. Coefficientes peculiares á infancia: inattenção e incapacidade de se concentrar ante o interesse despertado por phenomenos externos; frivolidade; leviandade de pensamento; esquivança a questões mais arduas, mais sêccas, de aspecto menos sorridente. Certo, o preparo da sociedade leiga para dirigir a formação das consciencias muito deixa a desejar. Consequencia do tradicional exclusivismo com que o Catholicismo dominava esta provincia, vedando aos leigos intervir nas cousas da alma, ainda perturbado e aggravado pêla crise profunda reinante em todos os cerebros quanto ás crenças em geral, aos proprios elementos alicerçaes da sociedade, ás mesmas bases da vida humana no que ella se distingue dos animaes. E é necessario esforço immenso para, gradativamente, ir constituindo o corpo de observações, o conjuncto de noções, os principios de sã relatividade, as ordens imperativas do ideal superior, que deve ministrar essa regra de vida, interna e externa, que é a moral. Acima de tudo, o ensino não pode nem deve ser questão de palavras, gymnastica verbal onde a memoria tenha o unico papel. Quer-se que taes ensinamentos não sejam somente retidos pêlo cerebro, mas lhe penetrem a substancia, até se tornarem estados permanentes da consciencia; mais até, que valham por principios activos, formem o ambiente do individuo, e presidam á elaboração obscura de todos os actos humanos, feitas assim taes normas o coordenador e o inspirador das causas motrizes ultimas do coração, dest'arte fortalecidas e disciplinadas. Por que forma obter taes resultados, entretanto, sinão pêla pratica e pêla exposição diuturna das regras correspondentes, até que a repetição do gesto cree o habito, e este se incorpore na consciencia juvenil como relação normal e sã? Bastaria tal ponderação para justificar o ensino leigo da moral, sem preconceitos, sem pretenções a invadir os páramos da fé revelada, antes collaborador natural e efficaz do ensino religioso, como _substratum_ commum a todos os credos, e, ainda no sentido philosophico do termo, por estabelecer a unidade entre a regra, o dogma, os sentimentos e os actos. Mas, para ahi chegar, que thesouros de paciencia, de bondade, de intuição superior será preciso prodigalisar!... Que situação extraordinaria ahi se crea para o Mestre, quanto se exige delle para o collocar, quando não em contraposição, em confronto com o Sacerdote que até hoje monopolisou tal disciplina nos países catholicos! E só por êste preço, entretanto, poderá o ensino leigo ser uma sorgente de vida. É, pois, pela cultura intellectual, intensivamente feita, que as idéas novas corrigirão, depurarão ou levarão cada vez mais alto os conceitos anteriores á conquista das normas essenciaes da actividade espiritual e, como consequencia, da actividade que nos fere os sentidos. Pêla sublimação da vida interior, virão a crescente dignidade, elevação e utilidade social da vida exterior. Entregar-se a seu sacerdocio com dedicação absoluta; dar a propria alma ás creanças que educa; penetrar-lhes a alma e deixar-se penetrar pêla mentalidade infantil, tal o conjuncto de condições que devem presidir á obra do professor, que queira mostrar-se á altura de tão melindrosa e nobre incumbencia. Felizmente os ha, e a elles se deve, em todos os países, o que já hoje se pode considerar firmado nos dominios do ensino da moral. Assim, conseguiram pôr em relevo, de modo a crear estados mentaes permanentes, militantes por vezes, certas noções basilares sôbre a justiça, o direito e dever social, a dignidade essencial e suprema do homem e seu destino moral. Souberam mostrar que elle é chamado a construir livremente sua propria sorte, para isso normalisando e dando regras ao chaos interior das tendencias desencontradas, dos impulsos cegos, dos instinctos obscuros e das nobres aspirações generosas; ou ainda, citando sempre o egregio Pécaut, extrahindo do individuo apparente e natural o homem verdadeiro e occulto, unico digno dêsse nome augusto, e fim de todos os esforços educativos, egualmente distanciado do determinismo absoluto e do naturalismo sceptico e indulgente de Montaigne. Foi-lhes dado expor convincentemente que a regra moral é secular, opposta ao ascetismo, curando da sanidade da alma de forma a penetrar, como espirito, a materia da vida, exalçando-a sôbre a animalidade. A elles, ainda, se deve o alto predominio dado hoje em dia ás noções de responsabilidade pessoal e de solidariedade fraterna de todos os homens, que tornam interdependentes todos os seres, no progresso como na decadencia, na ascensão para a luz como no mergulhar em trevas, e que fazem menos arduas as tentativas collectivas, visando fins eternos, mau grado o estreito ambito das existencias individuaes. Graças a taes educadores pôde o ensino nortear-se por um ideal sito no futuro, abrindo illimitado campo ás esperanças humanas, ao envés do rumo seguido na direcção ecclesiastica do espirito da mocidade, direcção que proclama a perfeição suprema o passado, devendo, pois, a educação ser um longo esforço para um alvo circumscripto. É sempre devido a esses excellentes obreiros, philosophos, homens de Estado e docentes, que pôde o conceito moderno do ensino elevar-se acima da simples questão de execução de programmas didacticos, e valer mais pêlo espirito, pêla alma que o impregna e vivifica, do que pêlo cuidado e esmiuçado das disciplinas transmittidas. Em nossas sociedades progressivamente democraticas, o suffragio universal impunha, correlatamente, a instrucção primaria universal, gratuita, portanto. Dahi a ineluctavel necessidade do ensino normal e leigo da moral, como remedio unico para respeitar todos os cultos. Já representaria grande progresso obter que todos pudessem conhecer, de modo a utilisá-las, as materias preleccionadas na escola primaria. Seria ainda insufficiente, entretanto, si, pêla ausencia de um nexo central coordenador, todas as disciplinas não viessem concorrer, além do serviço prestado particularmente ao individuo, para a evolução ascensional do homem, pêla altura cada vez maior que alcançam dominar no mundo da ethica. Esse, o intuito da escola primaria: preparar uma democracia intelligente, justa, e fraternal, unida por uma cultura commum, guiada por sentimentos progressistas communs, essencialmente unos, extremes de intolerancia ou de sectarismo. O sentimento da dignidade unido ao da responsabilidade moral, dentro em pouco fariam da multidão anonyma, inconsciente e impulsiva, um povo capaz de inquirir, de analysar, de escolher, de se governar. É sempre a bella phrase lembrada por Pécaut: «pêla alma da escola, ir ao encontro da propria alma do país». Dessa forma se constituirá em todos os graus da hierarchia social uma escol de caracteres fortes, de espiritos sãos, capazes de iniciativas, de governar a si proprios e de preparar as soluções para os problemas novos que surgem todos os dias. Trata-se, portanto, de descobrir as caracteristicas individuaes, onde existam, de favorecer as iniciativas, de animar o esfôrço singular, de promover a cultura intensiva da originalidade digna, de procurar na maxima diversidade de manifestações servir a unidade de rumo collectivo, de fazer convergir para o bem do país o labor intellectual e moral de seus filhos. É, portanto, a educação nacional que a escola leiga, em todos os seus graus, procura instituir. V _Missão do Estado_ E foi a educação nacional o fundamento do legislador constituinte ao estabelecer a laicidade em todos os institutos de ensino publicos. Mais do que a qualquer outro, ao grau primario interessava sobremodo a regra constitucional, por se applicar á generalidade dos jovens brasileiros, emquanto somente um numero limitado cursaria escolas secundarias e superiores. Nestas, o systema de aquilatar o preparo do alumno, pelos exames publicos perante commissões especiaes, exigia confronto de doutrinas, cotêjo de opiniões, que obrigava a fugir do exclusivismo confissional. Das proprias materias dos cursos, muitas obrigavam por sua natureza a raciocinar mediante processos estrictamente logicos, fortalecendo assim o poder de analyse do educando. A edade era outro coefficiente favoravel á eclosão de processos mentaes sãos, pois o cerebro do adulto já viria com o cunho da escola primaria e com mais facilidade para julgar por si. Finalmente, a escolha dêste ou daquelle methodo de ensino, orientado por essa ou aquella philosophia, racionalista ou espiritualista, puramente irreligiosa ou christã em sua essencia, a escolha seria revelação das crenças e obra do livre arbitrio do interessado, e, em nome da liberdade de pensamento, inaccessivel como tal á intervenção externa, em todo Estado sincera e honestamente agnostico. Socialmente, o lado interessante e grave da questão é que neste meio culto se recrutam os directores da evolução do país, e na direcção se reflecte o feitio especial da mentalidade formada nas diversas escolas. Por isso mesmo, das confissões militantes, animadas de espirito de proselytismo, as mais ardentes visam exactamente o chamado ensino secundario e o ensino superior para ahi assentarem sua tenda de combate ao que coherentemente apontam como êrro e germen mortal para a sociedade, de acôrdo com o dogma que lhes motiva a fé. Este aspecto cumpre observado pelos homens de Estado, afim de saberem a norma mais acertada de agir em bem dos interesses collectivos, respeitando todos os credos, e, para isso, impedindo o advento de situações que permitiam ser violado o principio essencial--a liberdade de pensar. Para dar ás noções que diffunde a auctoridade indiscutivel da verdade provada, a escola moderna limita-se a ensinar segundo a razão. Seria o sensualismo, inexoravel e duro, si lhe não viesse attenuar a crueza dos contornos a moral com seus vôos para as mais altas regiões do altruismo. Em todo caso, as exigencias intrinsecas do roteiro, adoptado pêlo Estado para sua obra escolar, impõem o agnosticismo como regra, afim de dar o cunho das chamadas verdades scientificas ás affirmações feitas nos institutos docentes. É o reconhecimento publico de que são inaccessiveis á razão humana os debates e indagações sôbre as causas primeiras, que somente as relações e nunca o absoluto se tornam sensiveis. Mas, por mais que se tente limitar a analyse ao verificavel e demonstravel, é innata a tendencia do espirito a ir além. Bastaria para justificá-lo a angustia das eternas interrogações sôbre o porquê da vida, sôbre o cosmos, o logar do homem na natureza, a finalidade de seu destino. Abrir os olhos, já é ver-se assediado pêlo mysterio. E, embora se proclame a inutilidade da cogitação sôbre o incognoscivel, não ha cerebro que se detenha perante o enigma perpetuo que domina a existencia e hesite em transpor o limiar da região defesa. Ninguem se satisfaz com uma simples negativa, tão metaphysica e expressão de arbitrariedade mental como a affirmativa contraria. A temporalidade da missão do Estado não lhe permitte ir além de seu papel de mantenedor da ordem, dispensador de justiça e despertador de energias. Cabe-lhe instituir mais equitativa distribuição das vantagens da vida collectiva; dar felicidade commum a todos os homens; repartir imparcialmente os encargos; promover, finalmente, a verdadeira egualdade e a fraternidade humana, fazendo desapparecer a injustissima e feroz distincção vigente de classes, privilegiadas pêla artificial repartição das riquezas e das commodidades, materiaes e espirituaes, que as acompanham; manter o ambiente de liberdade absoluta. Taes incumbencias, porém, por mais que se inspirem no altruismo, na moral mais pura e elevada, movem-se no circulo das acções terrenas, das verdades demonstraveis, das conveniencias bem entendidas, das exigencias de um idealismo tangivel e relativo. Muito longe estão do mundo reservado á fé, que as confissões porfiam por conquistar. A falta de competencia do Estado é, portanto, evidente, e para intervir em assumptos de fé teria de sair dos limites de sua tarefa e exercer um acto de fôrça, escolhendo sem criterio proprio uma doutrina entre as varias theses em presença. Si, individualmente, um homem pode exercer esse direito, genuinamente pessoal, que auctoridade para proceder por forma egual assistiria ao Estado, representante de um conjuncto de opiniões, desencontradas nesse terreno, e que só se podem manter unidas em associação cohesa, eliminadas as causas de dissidio e, entre estas, a que mais avulta, o credo espiritualista? A natureza das cousas, portanto; a divergencia das confissões contendoras; a mesma reverencia merecida por ellas, indistinctamente; os conflictos e violencias possiveis contra as demais, decorrentes da supremacia artificialmente creada para uma dellas; esse complexo de considerações, já sanccionadas pelos annaes das guerras de religião e pêlas controversias dos tempos modernos, proporcionou o triumpho mais completo do espirito relativo: a instituição da liberdade de crenças, afastadas todas da tutella official, vivendo e prosperando de acôrdo com suas virtudes intrinsecas, com sua faculdade de satisfazer ás aspirações ansiosas das almas na sua sêde do Bem, da Justiça e da Felicidade. Sendo o agnosticismo do Estado uma das maiores conquistas do espirito liberal, merece estudado com particular interesse tudo quanto possa perturbar a posse em que já se acha a sociedade de tão alto bem. Entre os factores de maior importancia na constituição do ambiente em que taes problemas se discutem e solvem, está seguramente o ensino. Poderá sobrevir algum conflicto entre os elementos sociaes formados na escola confissional e os que saírem da escola leiga, conflicto em que possa perigar o principio superior da liberdade de pensamento? Cumpre preliminarmente notar que não é esta uma questão a solver pêla maioria de pareceres: um divergente, que exista entre milhões de correligionarios, terá tanto direito a ser respeitado em sua crença quanto os membros da seita dominante. Examinemos, pois, a orientação educadora, de confronto com as exigencias dos principaes grupos religiosos, e tambem com aquellas dos partidarios da negação pura e simples, quasi sempre systematicamente hostil, de toda actividade supra-sensivel. Não insistamos sôbre esta ultima. Exemplos recentes provaram que, em nome de mal entendida e desvirtuada liberdade de pensar, os pseudo-livres pensadores entendiam admiravelmente o modo de organisar os processos de perseguição. A estreiteza sectaria renovou em nossos dias, no dominio das idéas, sem a mesma escusa de alta espiritualidade--a salvação das almas--os rigores da Egreja catholica nos seculos de heresia. Existe afinidade sentimental e intellectual estreita entre os autos-da-fé e as leis francesas sôbre as congregações, as violencias dos inventarios processados _manu militari_ e as expulsões em massa por motivos de crenças. Pertencem á mesma familia espiritual os algozes calvinistas de Servet, os inquisidores que mandaram Giordano Bruno ao supplicio e Galileu á retractação da verdade, os delatores leigos da questão das _fiches_ e os anti-clericaes exaltados que hoje multiplicam os obices á livre prédica confissional. São, aqui como lá, manifestações de intolerancia e de sectarismo. Si viessem a triumphar seus methodos na orientação leiga do Estado, nova éra de perseguição se abriria, e a liberdade de pensamento só existiria para quem pensasse e instruisse de acordo com os dominadores do dia. Valeria por uma inquisição leiga, as _dragonnades_ do atheismo em delirio. Nenhuma intelligencia normal poderia tolerar similhante estado de cousas. Nenhum Estado, digno do nome, acoroçoaria a livre propaganda dêsse evangelho de odio. A preponderancia da Sociedade de Jesus no seio do Catholicismo é de tal ordem, que não será exaggêro nem injustiça considerar o ensino ministrado por ella como caracteristico da pedagogia ecclesiastica. As tendencias que favorece são as que deveriam prevalecer definitivamente na sociedade theocratica sonhada pêla Egreja universal. Ora é exactamente na immutabilidade dos conceitos desta, no ensino, como em todo o mais, que ella se tem collocado em crescente hostilidade aos reclamos dos contemporaneos. Todos os esforços educadores inspiram-se intensamente no objectivo de fazer da formação mental da mocidade uma obra viva de sinceridade, de boa fé para comsigo e para com os outros, de labor collectivo para o melhoramento do individuo e da humanidade, pondo no futuro, sem limites, o alvo ideal alentador da acção, obra de tolerancia, de respeito mutuo, de sacrificio, de abnegação, procurando comprehender o êrro alheio para perdoar e corrigir, persuadindo. Só se desenvolve, pois, nas auras da liberdade. No pensamento pedagogico e moral dos jesuitas, a liberdade só se tolera para exercer uma vez unica o acto que a deve aniquilar: a submissão absoluta á regra, ao superior, ao dogma, ás conveniencias da Ordem, pautada, cumpre acrescentar, por uma elevadissima noção de seu dever para com Deus e a Egreja, mas intolerante, exclusiva, combatente e incapaz de infringir seu ideal primitivo de obediencia passiva. Que auxilio poderia, pois, prestar a uma sociedade voltada para o futuro, prenhe das admiraveis realizações das utopias de hoje, em que auxiliaria a tão formidavel evolução o influxo de um homem que deu sua alma, no conceito de Michelet? E, como consequencia de seus methodos abafadores de toda originalidade, accrescenta o grande historiador: «todos tiveram merito, instrucção; alguns foram heroes, de admiravel persistencia e coragem, mas, em meio de tanto valor, nenhum talento superior». Educadores admiraveis da vontade, ensinaram-lhe somente a obedecer. Sua moral deixou de ser a disciplina vivificante, fortalecedora das energias da alma, para se tornar uma acrobacia esteril entre os textos e as opiniões dos doutores em theologia. Deslocaram, da consciencia para a auctoridade, o ponto nodal de sua ethica; a obediencia, em vez da responsabilidade, tornou-se o extracto essencial de sua pedagogia; seu formalismo matou no brôto todas as iniciativas. Assim conseguiram discipulos excepcionalmente preparados para o grau secundario do esforço mental, que se caracterisa pêlo exito em descobrir consequencias formaes, pêla capacidade de achar os corollarios de um asserto qualquer, pêla explanação de theses alheias; esfôrço, enfim, subordinado á existencia dos grandes actos de creação mental, que assignala indelevelmente a obra dos pensadores egregios. Ainda ahi, a obediencia e o respeito ao preestabelecido suppririam o aniquilamento da fôrça creadora individual. Com esta grande deficiencia, o ensino jesuita não permittiu a originalidade, a iniciativa benefica, e só preparou reproducções de um certo feitio mental, de valor social infimo, si olharmos para o impulso motor da humanidade na sua evolução ascensional. Essa mesma obediencia á Regra apresenta graves perigos politicos. Não se acha o Estado em face de uma simples congregação docente, com programmas mais ou menos perfeitos: a propria Egreja, universal em sua essencia e nas suas tendencias, ergue-se deante delle, com um programma politico, além de suas normas moraes e divinas. E no programma politico, que os Syllabus concretisaram e as recentes encyclicas sôbre o modernismo e sôbre S. Carlos Borromeu vieram relembrar aos catholicos, são profligadas numerosas conquistas liberaes, que não foram, entretanto, obra de perseguição contra a Egreja, sim prova de reverencia aos demais cultos e, acima de tudo, á liberdade humana. É, portanto, perfeitamente admissivel que o proselytismo, digna e honesta consequencia de toda convicção operante, se transforme nas escolas regidas pêla Companhia, que sempre se salientou na vanguarda, em lucta aberta contra os principios de que se gloriam todos os espiritos emancipados: o respeito ás crenças alheias, a protecção a toda actividade lealmente inspirada por uma convicção, a sinceridade e a fé no progresso social. Nem ha nisto simples hypothese formulada sôbre plausibilidades. A historia dessa milicia do Papa incarna um longo esfôrço por fazer predominar seus pontos de vista dogmaticos, educacionaes e politicos. A recente lucta em França contra as Congregações, sejam quaes forem os excessos sectarios, foi provocada pêla acção politica do espirito jesuita, e não seria tarefa difficil balisar pêlos periodos de maior actividade da Sociedade os actos de reacção do poder civil, sem apreciar até que ponto estes ultimos desobedeceram aos principios moraes, que a laicidade proclama, nem analysar o passado de rancores accumulados que explodiram no combate levado ao Catholicismo pêlo gabinete Waldeck-Rousseau, e sobretudo pêlo de Combes. Ainda hontem divulgou-se nas Côrtes hespanholas a correspondencia do Cardeal Cascajares, preconisando a fusão dos dous ramos dynasticos rivaes daquelle país, com o fito de formar um grande partido catholico monarchico, projecto favoneado por Leão XIII, o Cardeal Rampolla e o Imperador da Austria. A historia de nossos dias archiva a formação de partidos catholicos nacionaes, com intuitos mais ou menos claramente inspirados pêlo programma politico da Egreja oecumenica. Não é, pois, visionario quem alludir ao grande problema politico interno creado pêla separação da Egreja do Estado e oriundo do conflicto possivel entre o conceito theologico do homem e da sociedade, e a mentalidade que presidiu á organisação republicana, e até hoje se mantém nas suas leis organicas; conflicto que pode romper, na lucta pêla victoria entre os dous ideaes, quando das escolas, leigas umas, confissionaes outras, sairem e pelejarem os directores da politica nacional de amanhã, reflectindo a contenda mais funda entre essas duas concepções da propria vida. E é licito indagar si se trata mesmo de previsão, ou de simples indicação de tendencias já hoje manifestas e que tem posto á prova a fidelidade do Estado agnostico ás suas affirmações de neutralidade confissional. Tal divergencia não é de se receiar quanto ás escolas filiadas ás innumeras variações protestantes. Schisma aberto em nome da liberdade individual na interpretação dos textos sagrados, seu principio essencial age continua e perpetuamente como fermento para, sem cessar, favorecer e alentar novas correntes religiosas e auctorisar a mutabilidade do dogma. Não permitte, portanto, a grande centralisação confissional, que dá ao Catholicismo e seus orgãos de acção o poder e a preponderancia que tem na vida espiritual dos povos. Além disso, a tendencia analytica do Protestantismo e a austeridade de seus habitos mentaes coincidem por demais com os caracteristicos do espirito de investigação scientifica para que se não deem entre os dous allianças tacitas e comprehensão reciproca. Ao dogma sempre aberto á corrigenda individual, corresponde o conceito moral em via de constante melhoramento progressivo. É geral, hoje em dia, a coexistencia sympathica da laicidade com as confissões derivadas da Reforma. De dous pontos do horizonte, portanto, podem sobrevir as tempestades: do espirito sectario, systematicamente hostil ao Catholicismo e pedindo medidas repressoras; da propaganda dos artigos politicos do Syllabus, pelos fiéis da religião romana. Ao primeiro, deve o Estado oppor, com brandura, mas inexoravelmente, sua tarefa de protector equanime de todos os modos de pensar, de orgão alheio ás disputas espirituaes e, por isso mesmo, egual respeitador de todas as divergencias. Não o deve fazer, entretanto, do ponto de vista erroneo de uma ironia superior. Nos varios credos não lhe é licito enxergar susperstições que cumpra extirpar. Em nome de que principio o faria, si representa a inteira liberdade de pensamento? E como eliminá-las todas, o que seria escolha de um credo tambem--o atheismo--, si proclama não possuir o criterio da verdade absoluta e age na esphera essencialmente relativa dos phenomenos, das manifestações sensiveis, portanto? Mas seria insufficiente uma attitude puramente negativa. Para libertar as crenças, como convém á plenitude da vida social, com o homem, digam o que disserem, e mau grado as excepções individuaes, um idealista impenitente, cumpre considerá-las a todas com sympathia e agradecer-lhes o alto serviço que prestam á mentalidade humana, á dignidade crescente da existencia, á moralidade cada vez superior do individuo e da aggremiação, ao aperfeiçoamento da vida collectiva, pêlo desenvolvimento e intensificação da vida interior do homem. Outra e mais ardua é a missão do Estado quanto ao ataque sempre renascente dos restauradores do conceito antigo, exalçado pêlo Catholicismo nas condemnações de 1864 e de 1907, ao formular a lista dos dizeres fulminados pêla Egreja. Mas, para ser proficua, a acção do Estado deve, serena, evitar armas e processos utilisados por seus adversarios, o que valeria por uma abdicação e por uma confissão do nenhum valor do agnosticismo, prégado como fórmula definidora da separação de poderes. É, portanto, tratando os catholicos com a mesma profunda sympathia devida a todas as demais convicções, e ainda com a maior gratidão pelos immensos serviços prestados á humanidade, que o Estado deverá organisar a defesa da obra leiga; não para aggredir a êste ou áquelle dogma; sim para manter o ambiente de neutralidade espiritual mais propicio para a livre concurrencia de todas as confissões, assegurando assim o triumpho áquellas que mais dignas se mostrarem da direcção das consciencias. É, pois, na organisação leiga de um ensino, forte em seus varios graus, e accurado nos meios postos em acção para augmentar o valor moral e social do homem, que se encontra a defesa do agnosticismo contra as investidas dos partidarios do exclusivismo religioso e da suppressão de conquistas, que o espirito liberal de todos os cerebros politicamente emancipados consideram definitivamente incorporadas no patrimonio da Sociedade. Como organisá-lo, entretanto? VI _Laicidade e ensino_ O inicio da sabedoria está em conhecer o êrro. Confessemos, lisamente, que não existe ainda a obra escolar destinada a formar, sem liames confissionaes, mas tambem sem sectarismo anti-religioso, as camadas de jovens, progressivamente mais poderosos pêla instrucção e pêla educação, fortes por seu valor intellectual e por seu descortino moral, mocidade com que a democracia tem o direito de contar para construir aos poucos, na cidade futura, seu ideal de justiça e de bondade por que anseiam os pobres e os soffredores. Esboçam-se, apenas, em alguns Estados, as linhas da empresa leiga, andaimes dum edificio ainda por erigir. E essas mesmas tentativas, sem coordenação de região a região, ameaçam quebrar mais um dos laços que prendem as circumscripções federadas. Em algumas, o descaso é quasi absoluto. Cumpre, pois, a bem da permanencia e do progresso do instituto republicano, enfeixar os esforços dispersos em um esforço collectivo, synergico, fortemente inspirado pêlo indispensavel advento de um ambiente, intellectual e moral a um tempo, commum ao Brasil inteiro, sem embargo das particularisações inevitaveis, para que, em cada zona, o ensino corresponda ás exigencias peculiares della. Esta obra pedagogica nacional é mister encetar, desde já, com intuitos nacionaes e não locaes, elo e não fermento dispersivo entre os brasileiros. A vastidão do escopo, o serviço que visa, o dever nacional do fortalecimento dos laços federaes, tudo está a indicar que a execução de ministerio tão alto não pode ficar somente á mercé dos apertos financeiros dos Estados. Esta missão deve estar assegurada e garantida, sejam quaes forem as deficiencias regionaes, e isso não como um auxilio prestado á circumscripção deficitaria, sim como cumprimento simples de indeclinavel necessidade collectiva. Tanto vale dizer que á União não pode ser indifferente a forma por que a tarefa é posta em pratica nas varias zonas do Brasil, nem lhe é licito nesse rumo permittir attenuação na intensidade, na sequencia e no caracter nacional da actividade escolar. Felizmente, as duvidas existentes a principio sôbre a possibilidade de intervenção do Govêrno Federal nos dominios da escola primaria já estão dissipadas por actos do Congresso, affirmando a competencia cumulativa da União e dos Estados na quadra inicial do ensino. Bastaria para justificá-la attentar nas consequencias da forma politica adoptada pêlo Brasil. Constituida pêla união perpetua e indissoluvel das antigas provincias, a Republica desde logo teve de attender ás necessidades vitaes das circumscripções, asphyxiadas por uma centralisação demasiada. A federação surgiu como formula solvedora do problema. Como sóe acontecer em todas as crises, a reacção foi além da acção que a provocara, e, fructo da guerra excessiva movida ao principio unitario, commetteu o êrro de disjungir o processo da essencia na actividade juridica, e permittir a formação de vinte e um codigos differentes, para um país acostumado á salutar unidade do direito. Somente agora, a interpretação judiciaria, pêlo crescente numero de casos nos quaes o Supremo Tribunal tem reivindicado a competencia federal, está alargando a orbita da lei geral por um processo constructivo analogo ao que soffreu o direito constitucional norte-americano. Feliz do Brasil, si dêsse rumo surgir a volta do país á primitiva unidade de seu codigo formal. Entretanto, no estado actual, um dos mais fortes elementos do nexo unional, a base da vida processual, foi substituido por uma fragmentação de competencias, que enfraquecem as relações e a intimidade do commercio juridico entre brasileiros. O maior numero de reclamos das populações sertanejas encontra solução junto aos poderes regionaes, ficando completo o cyclo administrativo dentro no proprio Estado: outro factor poderosissimo de afastamento do centro governativo geral do país. Esse centro, como expressão do conjuncto nacional, exerce sôbre os membros federados sua acção onerosa mais do que seu concurso benefico, isso na forma mais directamente percebida pêla população. O imposto é mais sensivel do que o complexo de serviços indispensaveis á dignidade nacional, prestados, portanto, aos Estados, mas de modo indirecto, sem que lhes saibam apreciar a valia--taes a defesa do territorio, a diplomacia, a faina legislativa, o fomento economico, o ensino superior. Tudo, portanto, na legitima satisfacção das exigencias primaciaes das antigas provincias, tanto quanto o modo por que se faz sentir a intervenção federal, tudo concorre para afrouxar os laços de unidade nacional estreitando a noção regionalista. Em taes condições, fôra o mais grave dos erros politicos da União, por inercia ou descaso impedir a formação natural dum ambiente commum de sentimentos, de aspirações, de processos mentaes, de progresso moral. De norte a sul, em vasto amplexo, experimentariam todos os brasileiros a sensação de constituirem uma familia unica, que influiria na mentalidade individual e na mentalidade collectiva como uma fôrça nacional activa, operante, corroborando, pêla unidade de consciencia moral e communhão de destino, para cada vez mais avultar êste Brasil uno e grande que almejam todos os patriotas sinceros. E o meio mais efficaz, mais elevado e mais seguro é organisar o ensino primario, no qual, mais do que nos outros graus, se forma a _psyche_ da nacionalidade. Esse, um dos motivos que levam a affirmar que a crise da mentalidade brasileira é a crise da escola primaria. Certo, a acção nem será facil nem prompta. Não seria justificavel que a União custeasse os gastos da instrucção publica por todo o territorio. Bastaria, para realisar sua grande obra educadora, ter em cada Estado--ou, nos Estados pequenos, grupando-os--uma escola normal primaria superior, com o fito de formar os professores das escolas normaes communs, os directores de escolas primarias grupadas e os inspectores de ensino. Utilissima instituição, esta ultima, orgão essencial para manter a unidade doutrinaria entre os docentes isolados e conservar-lhes sempre acceso o animo apostolico em que se inspira o verdadeiro educador; instituição ainda por ser creada, pois o arremêdo de inspecção ora existente em alguns Estados é prejudicial mais do que util, por terem recaído as nomeações em pessoal pedagogicamente inapto a desempenhar tão ardua missão, meros burocratas que falseam o espirito do professorado, limitando sua tarefa á regularidade das funcções administrativas, deixando no olvido, por a desconhecerem, a elevada incumbencia de que estão investidos no preparo do campo espiritual, onde devem germinar as searas de amanhã. Complementarmente, para que os institutos primarios superiores continuassem animados do mesmo espirito nacional, impedindo a immobilidade mental e moral pêla constante competição entre os lentes, premiando os mais dignos no sacerdocio docente; para dar esse caracter geral á formação do corpo de educadores, cumpriria crear na Capital da Republica um instituto superior de pedagogia, theorico e experimental, no qual se preparassem os candidatos ás cadeiras das escolas normaes primarias superiores. Ficaria assim fechada a cupola do ensino elementar, lançando sôbre o Brasil todo a rede dos estabelecimentos de educação nacional. Seu nobilissimo fim de elevar o nivel moral e intellectual das massas, collimando a estricta solidariedade de todas as regiões do país, instituindo um ideal sublimado de liberdade e de responsabilidade, de fraternidade humana, e de destino social de todos os esforços; tal fim dentro em breve se resumiria no culto á Patria, e della faria a grande religião nacional. A acção governamental no chamado ensino secundario é, a um tempo, menos ampla, mais facil, egualmente urgente e de resultados mais promptos. O modo pêlo qual se recrutam os discentes nos estabelecimentos secundarios tem por base quasi unica o grau de fortuna dos paes, e as mensalidades exigidas pelos collegios não estão ao alcance da immensa maioria daquelles que mandam seus filhos á escola primaria. Existe ahi, portanto, um vicio de principio a corrigir, afim de facilitar ao proletariado a possibilidade e os meios de aperfeiçoar a instrucção de seus filhos, nos casos em que estes revelem aptidões especiaes. Quer pêla creação de logares inteiramente gratuitos conferidos aos alumnos, que mais distinctos se tiverem revelado nos exames finaes das escolas primarias; quer pêla gratuidade absoluta concedida como regra aos filhos de operarios; de qualquer forma é indispensavel permittir o accesso dos lyceus aos desvalidos da fortuna, afim de não ser privilegio da riqueza o adito á instrucção secundaria e superior. Claramente, não ha vantagem social em multiplicar, com a viciosa organisação vigente, o numero dos bachareis em letras. E o meio pratico de diminuir a concurrencia é organisar fortemente o ensino primario, realisando programmas estudados de forma a ministrarem aos alumnos as noções efficientes indispensaveis para que saibam reger a si e as suas relações com seus similhantes. Aqui, é menos difficil agir, pois com a pessima estructura adoptada pelos codigos, a maior parte dos collegios são equiparados aos institutos officiaes, exigindo portanto fiscalisação e tendo de obedecer ás normas editadas pêlo Ministerio do Interior. Ha o que não existe no grau primario: materia sôbre a qual actuar, quadros para a execução das ordens, auctoridade coordenadora superior, doutrina a pôr em pratica. Sem discutir as virtudes isoladas de cada um dêsses elementos, meios de acção existem. Seria banal repetir aqui o que vale a fiscalisação official, inventada, salvo excepções rarissimas, para crear renda certa paga pelos fiscalisados aos felizes fiscaes. Não ha, pois, fiscalisação, ou, antes, ella serve apenas para dar a co-responsabilidade official nos abusos innumeros que se praticam em taes collegios, que mais vendem approvações do que espargem luzes. O modêlo de instrucção secundaria é, legalmente, o instituto official; modêlo fraco, é certo, mas, inda assim, o que menos dista do verdadeiro estabelecimento secundario. Infelizmente, apesar de lamurias officiaes e de trechos rhetoricos dos documentos apresentados ao Congresso Nacional, nada ha feito no rumo do reerguimento do ensino, quer nos modelos officiaes, quer nas casas equiparadas. Manteve-se o mercado de pouco recommendaveis fabricantes de diplomas, e o prurido inqualificavel de grangear sympathias continuou por largo tempo a instituir a mais deploravel anarchia e a mais criminosa tambem, nos cursos dos lyceus. Foi norma o desamor dos Governos da Republica, desapercebidos da noção elevada de quanto, em regimen agnostico, era melindrosa a tarefada formação mental da mocidade. A preoccupação dos programmas substituiu o cuidado no ensino. Um doentio amor á exhibição levou docentes e congregações a organisarem pomposas listas de materias a preleccionar, triumphando, em cada materia, a cogitação pueril e inintelligente de exgottar o assumpto, como si tal cousa fosse simplesmente possivel. Mas a receptividade do educando, o trato psychico entre o lente e o discipulo, a impressão nos cerebros juvenis das disciplinas expostas, de modo a se tornarem estados de consciencia permanentes e motores da vida--tudo isso, detalhes de que não usam curar os responsaveis pêlo ensino. Insinceridade e libertinagem de espirito campeiam infrenes. Ainda ahi, falta de ambiente moral, creado pêlo estagio educativo, onde se formam as crenças basilares, impulsionadoras e directoras de toda existencia humana: a escola primaria. Além dêsses graves defeitos organicos, vicios de methodo, deficiencias intellectuaes, superficialidade nas provas de obediencia e respeito ás regras officiaes, tidas por modelares. Ensino, exames, provas de sufficiencia, verificação da madureza do alumno, tudo se faz no interior do collegio com a assistencia do fiscal. Si êste nenhuma confiança profissional pode inspirar, dado o modo por que geralmente se fazem as nomeações; si os examinadores são os proprios professores, interessados no augmento dos discentes do estabelecimento e por isso mesmo tolerantes, afim de não perderem a frequencia; como podem merecer fé os actos probatorios de maioridade intellectual? Não é ensino similhante estado de cousas: é a comedia do ensino é a fraude e infelizmente legalisada com a estampilha official. E quanto se comprehende que os paes fujam da praga dos equiparados leigos, onde se perverte intellectualmente a mentalidade dos jovens, e prefiram os equiparados confissionaes! Entregues á competencia indiscutivel de educadores de primeira ordem, primeiros do ponto de vista especial em que se collocaram de acordo com os conceitos da religião, as casas de ensino confissionaes obedecem á norma, já velha para as egrejas, já estudada e applicada por ellas em prazos seculares, para a qual se apparelharam por incessante actividade: a conquista das almas pêla escola. E por isso mesmo que o alvo é altissimo, mais se cuida nos meios de triumpho e se multiplicam os sacrificios para vencer. A perduradoura preferencia assim manifestada será a morte da laicidade, si o Estado si não precaver, reorganisando seus methodos didacticos e fazendo surgir no professorado o animo apostolico que creará a alma da escola. Para tomar uma providencia immediata, que influa desde logo na seriedade do preparo dos alumnos, por que se não subtrairia aos collegios a averiguação de madureza dos seus educandos? Devidamente comprehendidas as provas de madureza, que não representam uma recapitulação de materias, mas um meio de evidenciar até que ponto se incorporaram e tornaram principios activos na mente e na consciencia dos moços; porque não sujeitar seu julgamento ao criterio de commissões nomeadas pelo Govêrno Federal, extranhas a todos os collegios, perante as quaes os candidatos se apresentariam e exhibiriam suas aptidões? Assim se estabeleceria a unidade de criterio no julgamento do preparo dos interessados; ficaria eliminada a suspeição de lentes, julgando e approvando seus proprios alumnos; despertaria a emulação entre os institutos congeneres. Seria, para o exame de madureza, a applicação da nossa velha usança dos exames parcellados de preparatorios, tão anti-scientificos quão prejudiciaes, mas que apresentavam o merito da insuspeição dos juizes, além da unidade do criterio julgador. Dahi proviria ainda a desnecessidade da fiscalisação continua dos collegios com funccionarios por elles retribuidos, sem a precisa auctoridade moral, portanto. Abertas, a quem quisesse se inscrever, as bancas de madureza, nenhuma vantagem adviria da equiparação e cessaria tal industria, que tanta vez especula indignamente á sombra de um malfadado texto legal e da desidia dos Governos. Outro ponto merecedor de intervenção immediata seria a simplificação dos programmas. Porque sobrecarregá-los com materias das quaes, quando muito, noções deficientissimas poderão ser esboçadas? Porque fingir desenvolvimentos, que não comportam nem o tempo, nem a capacidade receptiva de cerebros de 16 annos, nem o preparo mental obtido no grau inferior, nem as exigencias ulteriores da vida? É verdadeira improbidade intellectual e moral a falta de correspondencia entre o pomposo programma e o curso realmente leccionado, entre os pincaros collimados e a modestissima restinga em que se installa a aula. Tem por fim o ensino fundamental, não formar sabios, sim somente jovens munidos das noções precisas para regular a existencia, luctar contra os obstaculos, comprehender seu meio, ser util a si, e a seus similhantes. Porque, pois, fingir nos programmas, ou mesmo na pratica, rudimentos de questões de pura erudição, ou improprias ao destino social, collectivo da média? É obvio o egoismo professoral em casos taes: a ostentação da propria cultura, a par do deleixo da missão espiritual juncto aos educandos. Observações analogas poderiam ser feitas sôbre o ensino superior, menos opportunas, entretanto, do que as que ficaram notadas sôbre os graus preliminares. Por ora, a lucta intellectual entre o espirito leigo e as normas confissionaes ainda não teve por theatro as faculdades que formam as nossas chamadas profissões liberaes. Taes observações, tambem, poderiam ser resumidas na falta dêsse pendor especialissimo da alma, que estabelece as correntes de reacção reciproca entre a cathedra e o estudante, esse fluido peculiar, cordial, generoso que sagra educador o expositor da doutrina. Aqui, como no estagio secundario, encontrariamos elementos probantes para, de modo comprehensivo e generico, affirmar mais uma vez que a crise do ensino no Brasil é uma crise moral, a crise da escola primaria. Do cimo á base do edificio, o que se requer são professores dignos de exercer o altissimo sacerdocio, capazes de pôr em jogo todas as energias occultas da alma, que possuam o fervor communicativo dos apostolos, que não reduzam sua missão a uma simples exigencia do espirito, porventura apenas tarefa mnemonica, e sim uma obra evocadora dos recursos proprios do individuo, uma chamada a postos de suas melhores faculdades, uma lenta mas incessante ascensão ás mais puras regiões do bem, do bello e do consciente. Obra de longo folego, não dispensa a collaboração do tempo. Exige paciente e cuidado preparo anterior. Impõe uma coordenação prévia de esforços, só possivel com antecedencia notavel, antes de colligir resultados. Pouco importa: sobra auctoridade moral, e pode esperar serenamente a eclosão dêsse espirito novo quem fala e age em nome dos interesses de um país, permanentes por seculos porvindouros. Mas, tambem, só pode germinar e dar fructos num ambiente de inteira liberdade, de respeito verdadeiro por todas as opiniões, neutralidade sympathica para com todos os systemas que buscam elevar a vida interior e tornar mais intenso seu influxo regedor nas acções humanas. Da neutralidade leiga sairá fortalecido o animo verdadeiramente religioso. Grata missão para os espiritos sinceramente liberaes, lembrados de que todas as grandes conquistas moraes tiveram inicio no sonho--na utopia ou na demencia, diriam pessimistas--do pensador solitario, em cuja meditação desabrocharam. Por ellas padeceram, martyres da fé, os precursores que as haviam prégado, irradiando sôbre os homens o deslumbramento da Verdade que lhes illuminava a alma. Para todos os crentes no progresso humano, missão grata e dulcissima, por lhes passar pêla mente a esperança de que, no conflicto contemporaneo de sentimentos e de idéas, em meio de tantas syntheses que aspiram a reger as consciencias, astros de grandeza vária no ceu da espiritualidade, alguma claridade se encontra--brilhando em puro azul, ou scentelha que mal se divisa abaixo do horizonte, nas brumas do vindouro--, luz em ambos os casos, á qual talvez caiba renovar o milagre da Galiléa, e, fulgurante das scintillações da evidencia, guiar as gentes ao berço de novo Messias, perante o qual se dissiparão, nevoas ao clarão da aurora, as duvidas e incertezas sôbre os graves problema dos Homem, da Vida, do Mundo. 5447--Rio de Janeiro--Imprensa Nacional--1911 [1] Introdução ao estudo de Boehmer sôbre os jesuitas. Nessa obra colhemos quasi todos os nossos apontamentos sôbre a Companhia, muitas das considerações que damos a seguir. [2] As opiniões dêste philosopho são extrahidas das citações do livro de Pécaut sôbre _L'éducation publique et la vie nationale_. Desta obra admiravel, extrahimos numerosissimos excerptos de que nos utilisamos no correr de nosso trabalho. --- Provided by LoyalBooks.com ---