CANCIONEIRO E ROMANCEIRO GERAL PORTUGUEZ FLORESTA DE VARIOS ROMANCES COLLIGIDOS POR THEOPHILO BRAGA _Transformações do romance popular do seculo XVI a XVIII--Romances com forma litteraria dos cultistas portuguezes--Romances da Historia de Portugal, tirados das Collecções hespanholas._ PORTO Typ. da Livraria Nacional 2, Rua do Laranjal, 22 -- 1869 * * * * * FLORESTA DE ROMANCES * * * * * FLORESTA DE VARIOS ROMANCES POR THEOPHILO BRAGA Vimos rir, vimos folgar, Vimos cousas de prazer, Vimos zombar e apodar, Motejar, vimos trovar Trovas que eram para lêr. GARCIA DE REZENDE. PORTO Typ. da Livraria Nacional Rua do Laranjal, 2 a 22 -- 1868 TRANSFORMAÇÕES DO ROMANCE POPULAR SECULO XVI A XVIII Os romances genuinos da tradição oral do povo foram pela primeira vez recolhidos na _Silva de varios_, em 1550, tendo sido anteriormente glosados pelos poetas cultos hespanhoes da corte de João II e Henrique IV; no seculo XVI receberam uma fórma litteraria, dada por Lope de Vega, Gongora, Fuentes, Lasso de la Vega, Juan de la Cueva e outros. O mesmo facto se deu em Portugal: Gil Vicente, Bernardim Ribeiro, Jorge Ferreira de Vasconcellos, Francisco Rodrigues Lobo, Dom Francisco Manoel de Mello e Balthazar Dias, glosam e imitam os romances populares, já cantando os feitos da nossa historia, já as façanhas da guerra de Troya e de Roma, da Tavola-Redonda e de Carlos Magno. Convinha colligir estas flores dispersas, por onde se mostra que o movimento litterario operado em Portugal no seculo XVI e XVII era analogo ao de Hespanha; sem ellas o _Cancioneiro e Romanceiro geral portuguez_ seriam uma obra truncada e imperfeita. Não se póde conhecer a litteratura portugueza ignorando as phases das litteraturas da edade media da Europa. Como a formação das linguas, do direito, da religião e das instituições sociaes, nenhum facto faz sentir mais do que a litteratura a unidade de raça dos povos neo-latinos. Quasi todas as transformações que experimentaram as litteraturas italiana, franceza, hespanhola e provençal,--quer na forma das primeiras poesias, nas novellas cavalheirescas, nas Chronicas ou nos contos decameronicos, no romance popular ou no sentimento da natureza despertado pela Renascença,--tudo, abertamente o sustentamos, se encontra, mais ou menos rudimentarmente, na litteratura portugueza. Foi a poesia dos jograes que soltou os dialectos neo-romanos da sua gaguez pelo canto; em Portugal vemos tambem que os primeiros monumentos linguisticos são em verso, essas canções dos seculos XII e XIII, que os criticos não tem sabido avaliar. Como conclusão dos estudos sobre a poesia popular portugueza, parecerá que este povo não tem uma poesia privativamente sua, filha espontanea do seu genio. As creações epicas que aí ficam nos romances colhidos da bocca do povo acham-se, é verdade, com alterações accidentaes nos Romanceiros hespanhoes. Devemo-nos desgostar com a falta de originalidade? Deveriamos abandonar a missão de recolher essas venerandas reliquias, por isso que não ha n'ellas uma feição propria? Os romances pertencem ao povo hespanhol pela fatalidade da raça e pelo estado social que os produziu. Não sômos nós do mesmo sangue, do mesmo tronco celtibero? não soffremos nós as mesmas modificações no cadinho da edade media da Europa? O facto de apparecerem os romances cavalheirescos hoje em hespanhol é devido a uma circumstancia material, á curiosidade dos livreiros de Sevilha, Saragoça e Anvers; entre nós não se curou d'isso, mas nem por isso o povo portuguez deixou de cantar e poetisar as suas tradições. A parte mais bella dos romances hespanhoes constará, quando muito, de cem romances anonymos, os quaes se não referem a factos particulares da historia; estes mesmos andaram na tradição portugueza no seculo XVI, em tempo que a mente dos dois povos os elaborava ainda. (_Leis de formação poetica_, III e XIII). Se em politica Portugal e Hespanha são duas nacionalidades, nas tradições poeticas são mais do que gemeos, são um mesmo povo. O velho Romanceiro hespanhol da ultima ametade do seculo XV, o legitimamente popular, tanto é hespanhol como portuguez; são os cantos d'esta epocha os que se repetem ainda na sua pureza nativa na Beira-Baixa, Traz-os-Montes e Açores. Que importa que não tenhamos os vultos poeticos de um Cid, de um Bernardo del Carpio, se os romances que os celebraram são na maior parte de origem litteraria, compostos por Lorenzo de Sepulveda, Juan de Leyva, Lasso de la Vega, e agrupados por Juan de Escobar? O _Romanceiro portuguez_ é pequeno; mas, ainda ha tão pouco tempo interrogada a tradição, tem dado o que ha de mais bello e mais antigo na poesia peninsular. No tempo de Dom João I, quando o povo deu pela primeira vez signal da sua existencia politica, foi ao mesmo tempo que revelou a poesia com que se alentava. Os cavalleiros cortezãos, que discreteavam com damas, pertenciam á _Ala dos Namorados_ e da _Madre-Silva_, e entretinham-se com as novellas de Cavallaria do cyclo da Tavola-Redonda: «Porque nam se nega aos Luzitanos, des ho tempo dos Romanos que fezeram memoria dos feytos heroycos, hum abalisado e raro grao de cavalaria. E em tempo del Rey dom João _de boa memoria_ sabemos que seus vassalos no cerco de Guimarães se nomearam por _cavalleyros da tavola redonda_; e elle por el rey Arthur. E de sua corte mandou treze cavalleyros Portuguezes a Londres, que se desafiaram em campo çarrado com outros tantos Ingrezes nobres e esforçados, por respeyto das damas do Duque Dalencastro. E de Santarem sayram tres cavalleyros andantes a buscar aventuras, por toda a Hespanha gaynhando muita honra: e em nossos tempos foram outros a Italia, Inglaterra e França, em que se abalisaram como gentys soldados: vindo dahi a capitães não menos que os antigos.»[1] Porem o unico documento da existencia da poesia popular portugueza mais evidente, são essas canções que os moradores de Restello e Sacavem vinham cantar sobre a sepultura do Condestavel D. Nuno Alvares Pereira. Que ingenuidade de sentir n'aquella strophe dos pobres á porta do convento do Carmo, aonde estava Nunal'vres! Recolheram-se essas trovas mais para provar a grandeza do Condestavel do que a santidade do povo. No reinado de Dom João II os costumes cortezãos tinham banido a poetica do vulgo; os cavalleiros, quasi todos heroes na conquista do Oriente, entretinham-se nos serões do paço em fazer versos ás damas sobre casos sentimentaes, imitações das coplas de Manrique, de Juan de Mena, de Juan Rodrigues del Padron, do Marquez de Villena e do de Santillana. Garcia de Resende, recolhendo todas essas coplas, seguira o exemplo do _Cancioneiro de Baena_; a poesia de um é modello da poesia do outro. Lendo a nossa vasta collecção de 1516, encontramos os filhos de Dom João I, como Dom Pedro,[2] adoptando os versos de arte maior e enlevado na admiração de Mena; seu filho, que foi Rei de Chypre, imita o gosto prevençal nas tres canções ali conservadas.[3] Na infinidade das outras composições não se descobre a minima allusão a costumes, nem a tradições populares. Existem lá composições historicas, cuja forma não lembra o romance. Não é para admirar. Don Agustin Duran affirma que nenhum Codice anterior á primeira metade do seculo XVI conserva vestigios da poesia popular; apenas o _Cancionero general_ de Hernando del Castillo, publicado em Valencia de Aragon em 1511, contêm alguns fragmentos de romances glosados. Taes são os romances sacros: _Durmiendo yva el Señor_,[4] _Terra y cielos se quexavan_,[5] e mais trinta romances com glosas, como são o de _Conde Claros_, com glosa de Francisco de Leon e uma imitação de Lope de Sosa; o romance de _Rosa fresca, rosa fresca_ com a glosa de Pinar; o de _Fonte frida, fonte frida_ com a glosa de Tapia; o de _Yo m'era mora morayna_, e outros muitos feitos pelos poetas cultos das cortes de Dom João II e Enrique IV, como Don Juan Manoel, o Comendador de Avila, Juan de Leyva, Garci Sanchez de Badajoz, o Bacharel Alonso Poza, Juan de la Ensina.[6] Estes poetas ou se serviam de fragmentos de romances populares para as suas glosas, ou os parodiavam. Quando, pela primeira vez, os romances populares foram recolhidos da tradição oral, em 1550, por Estevan de Najera, na colleção de Saragoça intitulada _Silva de varios romances_, muitos fragmentos do _Cancionero_ de Hernando del Castillo appareceram mais completos. É natural que, antes d'esta primeira collecionação, os cantos do povo andassem em _pliegos sueltos_ ou folha volante, com que mais tarde os livreiros tanto especularam. Pelo menos, os melhores romances da collecção de Najera encontram-se em folha solta de duas columnas, em typo gothico, sem logar de impressão, sem data e frontispicio: taes são os romances de _Durandarte_, de _Grimaltos_, do _Marquez de Mantua_, dos _Sete Infantes de Lara_, de _Gayfeiros_, do _Conde Claros de Montalvan_, do _Conde Dirlos_, de _Calaynos_, e outros muitos que se podem vêr no precioso trabalho do infatigavel Don Agustin Duran.[7] Os commentadores de Ticknor são de opinião, que antes das collecções os romances não andaram em _pliegos sueltos_, e fundam-se no prologo de Najera: «Eu não nego que em muitos dos romances impressos hajam casualmente erros; mas são devidos _ás copias d'onde os extraí_, copias quasi sempre alteradas, e á fraqueza da memoria das pessoas que nol-os dictavam e que se não podiam recordar perfeitamente.» D'onde concluem que o povo se servia de _cadernos manuscriptos_.[8] Ao mesmo tempo Martin Nucio imprimiu esta mesma collecção em Anvers, para uso dos soldados e do povo que se achava fóra de Hespanha nos Paizes Baixos. O gosto da época pelas trovas cultas fel-o adoptar o titulo de _Cancionero_, com que então se nobilitavam todas as collecções. Emquanto o gosto dos romances populares se vulgarisava em Hespanha, em Portugal os poetas da corte de Affonso V e Dom João II não sonham a existencia d'esse riquissimo veio de poesia, continuam nas suas trovas do _cuydar e sospirar_. Apenas Garcia de Resende, chronista de Dom João II, e collector das canções da sua corte, mostra ter conhecido esse renascimento em uma glosa que fez a um romance velho, e em algumas palavras da dedicatoria do _Cancioneiro geral_. No _Cancioneiro geral_ sómente se depáram, com forma de romance, umas trovas que fez Garcia de Resende á morte de Ignez de Castro, que principiam:[9] Eu era moça menina per nome dona Ines de Castro, e de tal doutrina e vertudes, qu'era dina de meu mal ser ho rreues. Uivia, sem me lembrar que paixan podia dar, nem dal-a ninguem a mim; foy m'o principe olhar por seu nojo e mynha fim. N'este tempo a fórma do romance popular estava despresada completamente; Garcia de Resende, traz mais um romance fragmentado, conservado a a pretexto da glosa:[10] RYMANÇE Tyempo bueno, tyempo bueno, quyen te llevo de my! Qu'en acordar-me de ti todo plazer m'es ajeno. Fue tyempo y oras ufanas, em que mys dias gozaron. Mas en elhas se sembrarom la symyente de mys canas. Quyen no lhora lo passado, vyendo qual va lo presente? Quyen busca mas açydente de lo qu'el tiempo l'a dado? Yo me vy ser byen amado, my deseo em alta çyma. Contemplar em tal estado la memorea me lastyma. Y pues todo m'es ausente, no ssé qual estremo escoja, Byen y mal, todo m'anoja: mesquyno, de quyen lo syente! Este romance parece uma imitação dos dois celebres romances conservados no _Cancionero general_ de Hernando del Castillo, _Fonte frida, Fonte frida_, e _Rosa fresca, Rosa fresca_, muitas e muitas vezes glosados pelos poetas palacianos. O romance de _Tyempo bueno_ é um trecho conservado por causa da glosa. Então o renascimento das canções provençaes distrahia os serões das principaes cortes da Europa. O romance popular era antigo e invariavel nos seus moldes; muitas das suas strophes tinham-se convertido em proverbio, como se vêem no _Don Quijote_; não se prestando a perpetuar as anecdotas palacianas, a glosa veiu mobilisal-o. O romance popular, simples de condição, franco, rude, tocava a verdade na sua espontaneidade mais divina; era narrativo, não sabia abstraír, dramatisava, accumulava as situações. Era preciso um genio superior para comprehender a sua ingenuidade profunda. Lope de Vega foi um dos primeiros que lhe deu importancia; começou por mostrar que o metro octasyllabo servia para exprimir os mais altos pensamentos e poz em forma de romance os dolorosissimos passos da Paixão. Rengifo, na _Poetica española_, reconhece a superioridade do romance.[11] Só Gil Vicente foi o unico escriptor portuguez do seculo XVI conhecedor da vida do povo, das suas superstições e dos seus cantos. Na _Comedia de Rubena_, representada em 1521, cita um grande numero de romances populares, a que allude, como a cousa que por sabida não repete. É certo que o nosso povo, apesar do despreso dos cultistas, continuou a acceitar o romance, e doutra sorte se não explica a reimpressão do _Cancionero de Anvers_ em Portugal por Manoel de Lyra em 1551; a apparição do pequeno in-12, intitulado _Ramilhete de flores: cuarta, quinta e sexta partes de romances nuevos hasta agora não impressos_, que Pedro de Flores, collector do _Romancero generale_, imprimiu em Lisboa em casa de Antonio Alvares em 1593; bem como o _Romancero del Cid_ de Juan de Escobar, em Lisboa em 1605, 1613 e em 1615, e a _Primavera y Flor de los mejores romances_ tambem em Lisboa, nos prelos de Matheus Pinheiro, em 1626. O romance de _Dom Duardos_, composto por Gil Vicente, foi recolhido no _Cancionero de Romances_ como anonymo, e assim a historia dos amores de Bernardim Ribeiro. Na _Menina e Moça_ encontra-se o solao da _Ama_ e o romance de _Avalor_, mas com a difficil alliança do artificio provençalesco com a naturalidade da alma popular. Nas novellas cavalheirescas usava-se intercalar varias composições poeticas; no _Memorial dos cavalleiros da Tavola Redonda_ de Jorge Ferreira, se lêem muitos romances do cyclo troyano, do cyclo de Arthur, da historia de Roma, como então os fazia Gabriel Lasso de la Vega e Juan de la Cueva; mas é para notar que alguns dos romances de Jorge Ferreira se parecem muito com os romances da tradição, conservados no _Cancionero de Anvers_, taes como os que tratam da morte de Policena. Quando a eschola italiana se introduziu em Portugal procurou tambem banir das composições poeticas o octosyllabo da redondilha. A eschola italiana não foi introduzida sem lucta na Peninsula; em Hespanha conhece-se bem qual foi a grandeza do combate. Em Portugal quasi nada consta, a não serem umas allusões de Sá de Miranda, de Ferreira e Bernardes. Boscan e Garcilasso davam-se por introductores em Hespanha dos novos metros italianos, fazendo uma revolução na poetica, pela qual o octasyllabo popular era expungido, substituido pelo endecasyllabo heroico. Argote de Molina nega-lhes o invento, e Lope de Vega decide-se abertamente pelo velho e despresado octasyllabo, como o metro espontaneo da lingua hespanhola. Na edição do _Conde de Lucanor_ de 1575, Gonzalo Argote de Molina, publicou um _Discurso sobre a poesia antiga castelhana_, em que diz: «Bolviendo al proposito, los Castellanos y Catalanes guardaron en esta composicion (redondilla) cierto numero de pies ligados, com cierta ley de consonantes, por la qual ligadura se llamó COPLA, compostura cierto graciosa, dulce, y de agradable facilidad, y capaz de todo el ornato que qualquer verso puede toner, _si se les persuadiesse esto a los Poetas deste tiempo, que cada dia la van olvidando, por la gravedad y artificio de las rimas Italianas_, à pesar del bueno de Castillejo, que desto graciosamente se quexa en sus coplas, el qual tiene en su favor, y de su parte el exemplo deste Principe Don Juan Manoel, y de otros cavalleros muy principales castellanos, que se pagaram mucho desta composicion, como fueron el Rey Don Alonso el Sabio, el Rey Don Juan el Segundo, el Marquez de Santillana, Don Henrique de Villena, y otros de los quales leemos coplas y canciones de muy gracioso donaire.»[12] Este documento revela-nos a reação contra a poetica estrangeira. Mas bem vistas as cousas, a questão provinha de se não ter conhecido ainda a unidade das linguas romanas. Argote de Molina, provando que os metros endecasyllabos já existiam na velha poesia castelhana, afirmava insensivelmente a unidade da poetica das linguas neo-latinas. Transcrevemos aqui a sua opinião, para uso dos que ainda attribuem a Boscan e Garcilasso essa reforma ou renascença poetica, que vulgarisou os versos grandes ou endecasyllabos: «Es grave, lleno, capaz de todo ornamento y figura, y finalmente entre todos generos de versos le podemos llamar Heroico, el qual a cabo de algunos siglos que andava desterrado de su naturaleza, ha buelto a España, donde ha sido bien recebido, y tratado como natural, y aun se puede dezir, que en nuestra lengua, por la elegancia e dulçura della, es mas liso y sonoro que en alguna vez paresce en la Italiana.--No fueron los primeros que los restituyeron a España el Boscan e Garcilasso (como algunos creen) porque ya en tiempo del Rey Don Juan el Segundo era usado, como vemos en el libro de los Sonetos y Canciones del Marquez de Santillana, que yo tengo, aunque fueron los primeros que mejor le trataron, particularmente el Garcilasso, que en la dulçura y lindeza de concetos, y en el arte y elegancia no deve nada al Petrarca, ni à los demas excelentes Poetas de Italia.»[13] A lucta contra a introducção dos versos italianos foi renhida; os buccolistas chamavam ao verso octasyllabo _humilde_ e _rasteiro_. Lope de Vega, com a auctoridade do seu grande nome, decide-se pelo verso nacional, e escreve o poema de _Santo Isidro_ para o fazer valer em um assumpto religioso: «y de ser en este genero que ya los Españoles llaman _humilde_, no doy ninguna, porque no pienso que el verso largo Italiano haga ventaja al nuestro: que si en España lo dizen, es porque no sabiendo hazer el suo, se passan al estrangero, como mas largo, y licencioso: y yo sè que algunos Italianos embidian la gracia, difficultad y sonido de nuestras redondillas, y aun han querido imitallas, como lo hizo Seraphino Aquilano... Llamando a nuestras coplas castellanas Barzeletas, ò Fretolas, que mejor las pudiera llamar sentencias, y concetos, desnudos de todo cansado y inutil artificio, que cosa iguala á una redondilla de Garci Sanches, ò Don Diego de Mendoça: perdone el divino Garcilasso, que tanta occasion dio para que se lamentasse Castillejo, festivo e ingenioso poeta castellano, a quien parecia mucho Luis Gualvez Montalvo, con cuya muerte subita se perdieron muchas floridas coplas de este genero, particularmente la traducion de la Jerusalem de Torcato Tasso, que parece que se avia ydo á Italia à escrivirlas para meterles las higas en los ojos. Maravillosas son las estancias del excelente portugues Camões: pero la mejor no yguala a sus mismas _redondilhas_, etc.» [14] O proprio Boscan, no prologo ao livro II das suas poesias, descreve os ataques que soffreu a nova eschola, e nos revela a quem foi devida a idêa para a revolução na poetica nacional. Um cavalleiro italiano, muito conhecido em Hespanha pelo seu gosto e importancia individual, Navajero, estando a conversar em cousas de letras, lembrou-lhe que experimentasse as trovas usadas pelos bons autores de Italia. Boscan cedeu ás instancias e experimentou; a final o verso endecasyllabo moldava-se á nova forma, como se fosse creado com ella. Garcilasso veiu imprimir o cunho da perfeição á nova tentativa. Aqui estão os dois modelos tão imitados em Portugal pelos poetas quinhentistas. O metro octosyllabo ficou desprezado; e as composições do povo que o preferiam, ficaram até ao principio d'este seculo desconhecidas. O metro espontaneo das linguas hespanhola e portugueza é a redondilha octosyllabica; o verso da redondilha sae falado, natural, sem se pensar. No _Discurso sobre la lengua castellana_ de Argote y de Molina, vem: «Leemos algunas coplillas Italianas antiguas en este verso, pero el es proprio e natural de España, en cuya lengua se halla mas antiguo que en alguna otra de las vulgares, y assi en ella solamente tiene toda la gracia, lindez e agudez que es mas propria del ingenio Español, que de otro alguno.--En el qual genero de verso al principio se celebravan en Castilla las hazañas y proezas antiguas de los Reys, y los trances y successos assi de la paz, como de la guerra, y los hechos notables de los Condes, Cavalleros, y Infançones, como son testimonio los _Romances antiguos castellanos_, assi como el del Rey Ramiro cuyo principio es: _Ya se assienta el Rey Ramiro._»[15] Muitas vezes a historia era fundada sobre os romances da tradição oral; Esteban de Garibay y Zamalloa traz na sua Historia varios romances vasconços. D'elles, diz Argote: «en los quales romances hasta oy dia se perpetua la memoria de los passados, y son una buena parte de las antiguas historias castellanas de quien el Rey Don Alonso se aprovechó en su historia, y en ella se conserva la antiguidad, y propriedad de nuestra lengua.»[16] Só a contar do seculo XVI é que os romances populares começaram a tomar uma natureza artificial; até aí as chronicas procuravam o subsidio da tradicção oral; d'aí por diante os poetas iam tirar d'ellas os motivos e factos para os seus romances. Sepulveda poz em verso os principaes factos da Chronica de Affonso o Sabio. O que se dava em Hespanha acontecia egualmente em Portugal; Gil Vicente cantava em romances a morte de Dom Manoel, a acclamação de João III, o casamento e partida da Infanta Dona Beatriz, o nascimento de Dom Filippe. Era a moda do tempo, como confessa o proprio Sepulveda no prologo da sua collecção: «va puesto en estyllo que vuestra merced lea. Digo en metro Castellano y en tono de _Romances viejos, que és lo que agora se usa_.»[17] Por este tempo entraram na tradição do povo muitos romances de formação litteraria. O romance de _Don Duardos_, de Gil Vicente, foi recolhido nos Romanceiros hespanhoes; o Cavalheiro de Oliveira o colligiu outra vez da versão oral, e ha pouco nos veiu da Ilha de Sam Jorge, da freguezia dos Rosaes, outra variante não menos veneranda, se não mais pura. Estes romances eram intencionalmente compostos para serem cantados, em logar dos _velhos_ e quasi perdidos da Tavola Redonda e do Cyclo carolino. Dil-o Sepulveda no prologo da sua collecção: que a fizera «para aprovechar-se los que cantarlos quisieren, en logar de otros muchos que yo he visto impressos y de muy poco fructo.»[18] Estes romances, a que allude Sepulveda com desprezo, são hoje a parte mais bella e divina dos Romanceiros da Peninsula. Portanto, pode dizer-se, que a transformação erudita do romance popular foi devida á falta de comprehensão dos cultistas litterarios. O mesmo tinha já succedido no seculo XV, quando o Marquez de Santillana, enlevado com os artificios da poetica provençal, considerava como _infimos_ e _despresiveis_ os que cultivavam a forma do romance. No seculo XVI, a imitação do classicismo e dos metros italianos fez novamente desprezar o metro octosyllabo pelo endecasyllabo heroico. Os que sustentam o combate pelo metro popular, como Lope de Vega, Argote y de Molina e Sepulveda, entregam-se ao romance como á forma mais do gosto do publico não accostumado ás canções petrarchistas. Não deixa de ser curiosa a lucta entre a eschola italiana e a nacional, em Hespanha suscitada por Boscan e Garcilasso, e em Portugal pelo Doutor Francisco de Sá de Miranda. Na sua viagem á Italia, Sá de Miranda tomou conhecimento da nova poesia; elle fala dos Provençaes, de Dante, de Petrarcha, de Ariosto, de Bembo, e quiz implantar cá esses modelos. Não foi bem acolhido o pensamento. Egual arruido ao que se fez com Boscan, suscitou a tentativa de Sá de Miranda. Ninguem fala n'essa lucta; mas nos poetas quinhentistas se acham a cada pagina rastos de uma mal ferida pugna. Sobre a introducção da eschola italiana, diz Sá de Miranda na Ecloga IV, a Dom Manoel de Portugal, _lume do Paço_, das musas mimoso: que são dignos De perdão os começos já que fiz Aberta aos bons cantares peregrinos, Fiz o que pude....[19] Riram-se dos novos metros; e Sá de Miranda quando esperava o bom acolhimento da boa obra, ouve aos sisos Medo (que assi o confesso) e a uns pontosos De rostro carregados, e de uns risos Sardonios, ou mais claro, maliciosos. Antonio Pereira de Marramaque, senhor de Basto, da familia dos Forjazes e Pereiras, offereceu a Sá de Miranda um exemplar das obras de Garcilasso, quando elle se retirára para a sua casa de campo. Agradecendo-lhe a offerta que o distrahia na solidão, ainda Sá de Miranda se lembra dos esforços que fez para implantar a nova eschola: Que el son que me aplazia Por mi hiziesse a plazer a nuestra gente.[20] E na morte de Garcilasso canta: Al tan antiguo aprisco De Lassos de La Vega Tuyo, el nuestro de Sá viste augmentado.[21] A eschola italiana, fundada por Sá de Miranda, teve por adeptos a Pero de Andrade Caminha, a Ferreira e Bernardes, que se proclamaram discipulos do poeta. Caminha envia-lhe os seus versos, para que os queiraes vêr E riscar, e emendar, porque emendados Por vós, possam andar mais confiados Do que por meus poderam merecer.[22] Dom Manoel de Portugal tambem lhe envia poesias suas para serem revistas: Por isso ante vós vão tão confiadas, Rarissimo Francisco, e excellente, A rudeza do estylo differente, E as incultas estanças desornadas. Diogo Bernardes como estreia do anno novo envia-lhe uma copia das suas Flores do Lima, como se deprehende do soneto XXIV: Neste começo do anno, em tão bom dia Tão claro, porque não faleça nada, Me foi da vossa parte appresentada Vossa composição boa á porfia. N'este mesmo soneto refere-se Sá de Miranda ás difficuldades que teve a eschola italiana ao introduzir-se em Portugal: De espanto me enche quanto ali via, E mais em parte cá tão desviada Sempre até agora da direita estrada De Clio, de Caliope e Thalia. Sá de Miranda tambem louva Jorge de Monte-Mayor, introductor da novella pastoril italiana na Peninsula. A lucta entre os poetas _velhos_, como chamavam aos partidarios da redondilha antiga, e os da eschola italiana, conhece-se que foi renhida pelas frequentes allusões dos quinhentistas; não ha porém documentos que esclareçam a historia d'essas luctas tão vulgares no dominio da litteratura. A maledicencia não era poupada de parte a parte: Em tal sasão, tempo tão avaro De louvores alheios, em tal dano Dos engenhos, que se acham sem amparo.[23] Antonio Ferreira dá a entender estas mesmas guerras, em uma Carta a Sá de Miranda: Já contra «a tyrannia do costume» Que té qui, como escravos em cadeias Os tinha, subir tentam ao alto cume Do teu sagrado monte, d'onde as veias Desse licor riquissimas assiste De que já correm mil ribeiras cheias. ................................... Mas oh tempos crueis! (sôe meu grito Por todo o mundo) mas, ah tempos duros, Em que não sôa bem o bom escripto.[24] N'esta outra Carta de Ferreira a Antonio de Sá de Menezes, descobre a malevolencia que havia contra a eschola italiana: Já esta nossa terra engenhos tem Das musas bem criados, «mas mal criados» Que sempre o mal anda abatendo o bem.[25] A final triumphou a eschola italiana, e com ella começou a decadencia da poesia nacional dos dois povos da Peninsula. Os romances populares caíram em um immenso desprezo; nos escriptores de quinhentos encontrámos bastantes allusoes a romances tradicionaes, mas citam-nos de passagem, como quem se envergonha de uma cousa baixa. Jorge Ferreira de Vasconcellos, no _Memorial dos Cavalleiros da Tavola Redonda_, (p. 348) descrevendo umas festas do tempo de Dom João III, diz: «dentro vinha assentada a Deosa Diana em meio de duas ninfas, uma que tangia uma harpa, e outra um arrabilete, e a deosa cantando uma estancia da primeira ecloga de Garcilasso que diz: Por ti el silencio de la selva umbrosa.» O gosto da Renascença classica, em quanto entre nós não baniu o romance popular, serviu-se d'essa forma para popularisar as tradições da antiguidade grega e romana. Jorge Ferreira é o unico que nos appresenta alguns romances da historia de Troya; são elles tão parecidos com os do _Cancionero de Anvers_, que suppômos até serem as suas versões em parte aproveitadas da tradição oral, como foram os colligidos por Esteban de Najera. O romance ao casto Scipião sobre a morte de Sophonisba tambem foi romanceado por Juan de la Cueva no _Coro Febeo_; porém a lição de Jorge Ferreira é mais resumida, mais filha da tradição; o mesmo se póde dizer do romance da _Batalha de Pharsalia_ do mesmo, comparado com os de Lobo Lasso de la Vega, no seu _Romancero y Tragedias_. Como poderia um poeta classico considerar a poesia popular senão com desprezo? Soropita, no seu _Prognostico do anno de 1595_, descreve as festas das _Janeiras e Reis_ de um modo grotesco: «na noute da vespera de janeiro e dos Reis, andarão cantando e tangendo pelas ruas, sem se temerem da justiça, por serem noites privilegiadas em que não correm o sino.»--Segundo elle os cantores nocturnos são «villões ruins que essas noites vos perseguem; porque, quando vos não percataes, achael-os á porta com seu pandeirinho eivado já do serão, e com mais sarro na garganta do que as cubas dos frades loios; e com tudo isso, vos põem em estado que forçosamente lhe haveis de louvar aquella musica de agua pé com chocalhada, que toda a noute vos zune nos ouvidos como bizouro, e sobre tudo isto haveis de lhe offertar os vossos quatro vintens; e quando lh'os entregues, a candeia vos descobre o feitio dos ditos musicos: um mocho com sombreiro, com mais chocas que um corredor de folha, e lança-vos baforada de dentro d'aquellas fornalhas, que parece que toda a vida estiveram de vinho e alhos, como entrecosto de marrã.» (p. 79) Este trecho lança abundante luz sobre essas festas domesticas dos nossos maiores. A reacção catholica contra o movimento da Reforma atacou barbaramente os cantos populares. Em Portugal não só as _Constituições dos Bispados_ o provam, senão até o popular Gil Vicente, que se queixa da grande tristeza em que caíra a alma do pobre povo: Em Portugal vi eu já Em cada casa pandeiro, E gaita em cada palheiro; E de vinte annos a cá Não vi gaita, nem gaiteiro. A cada porta um terreiro, Cada aldeia dez folias. Cada casa atabaqueiro; E agora Jeremias He nosso tamborileiro. Isto descobre Gil Vicente na tragi-comedia do _Triumpho do Inverno_, representada em Lisboa no parto da rainha Dona Catherina. Gil Vicente foi o primeiro que sentiu o tremendo cataclysmo que ameaçava este povo; elle não se cansou de clamar em todos os seus Autos, de desmascarar o inimigo. Mas os presentimentos d'aquella grande alma não tiveram mais valor do que as facecias de um jogral. A influencia jesuitica fez-se notar pela proscripção da poesia popular no Brazil. O padre José Anchieta compoz o _Auto da Pregação Universal_, para expungir do templo os Autos populares.[26] Na vida do padre Simão de Vasconcellos, diz o padre Anchieta, falando das crianças selvagens que educavam: «Espalhavam-se á noite pelas casas de seus parentes a cantar as cantigas pias de José (Anchieta) em propria lingua, contrapostas ás que elles _costumavam_ cantar vãs e gentilicas.»[27] Da poesia popular do Brazil nos seculos XVI e XVII, diz Varnhagem: «Das _modinhas_ poucas conhecemos; e essas insignificantes e de epoca incerta, a não ser a bahiana: Bangué, que será de ti? glosada por Gregorio de Matos: essa mesma sabemos ser antiga, mas não nos foi possivel alcançal-a completa. Não deixaremos de commemorar a do _Vitú_, que crêmos ter o sabor do primeiro seculo da colonisação, o que parece comprovar-se com ser em todas as provincias do Brazil tão conhecida. Diz assim: «Vem cá, Vitú! Vem cá, Vitú! --Não vou lá, não vou lá, não vou lá--: «Que é d'elle o teu camarada? --Agua do monte o levou. «Não foi agua, não foi nada, Foi cachaça que o matou. Igualmente antiga nos parece esta modinha paulista: Mandei fazer um balaio Para botar algodão.[28] Os livros populares da Allemanha foram publicados no bello trabalho de Göerres (_Volksbucher._) Entre nós nunca se recolheram as formulas symbolicas das jurandas, mas é certo que existiam, como se descobre pelo regimento dos officios na procissão de _Corpus_. (Extrahil-o de J. P. Ribeiro.) Os livros populares portuguezes são quasi todos de origem estrangeira; o _Bertholdo e Bertholdino_, de origem italiana, são para o Meio Dia o mesmo que o _Eulenspiegel_ para os camponios allemães. A Reforma restringiu a litteratura popular da Allemanha; no Meio Dia baniu a poesia, amaldiçoôu a cantiga do pobre. Basta abrirmos as _Constituições dos Bispados_, o _Index do Santo Officio_, para vêrmos como o catholicismo se debateu em tudo contra o receio da emancipação canonica. A novella de _Roberto do Diabo_ acha-se condemnada no _Index Expurgatorio_ de 1580, bem como a maior parte das comedias dos auctores mais populares, como Gil Vicente e Balthazar Dias, e assim os romances que andavam na tradição da Peninsula, como o do _Mouro Calaynos e todos os tirados da letra da Escriptura_. O odio do catholicismo ao movimento espontaneo da Reforma creou a perseguição dos _Lollards_, e tornou estes povos da Peninsula sombrios, melancholicos, desconfiados; matou-lhes a poesia, embruteceu-os. Os cantos populares da Peninsula, que o povo repete hoje fragmentados, são todos dos fins do seculo XV. Que seiva de genio n'esse tempo! que differença de sentimento! Comparem-se os romances de _Fonte frida_ e _Rosa fresca_, de _Mora Moraina_ com as contrafações do gosto popular das eclogas e mesmo dos romances do seculo XVII! A arte é como a consciencia pura; uma leve falsidade a perturba, e a obriga a trahir-se. O Concilio de Trento imprimiu unidade á Egreja, mas tirou-lhe a espontaneidade do sentimento, que a tinha tornado universal. Christo ficou desthronado pelo Papa. Os livros populares portuguezes de _folha volante_, que se vendiam pelas feiras, na arqueta do belfurinheiro, ou no barbante do cego, foram tambem condemnados pelos meticulosos da censura inquisitorial: «Os vendedores de _Autos_ e _Cartilhas_, não vendam, nem comprem para vender, outros livros sem primeiro os mostrarem ao Revedor: porque algumas pessoas escondidamente tem alguns livros, que elles compram e vendem, sem saber o que ha nos taes livros, e se seguem d'isso inconvenientes: e ha enformação, que nas taes tendas, se acham livros suspectos e perjudiciaes. E os sollicitadores do Santo Officio visitarão algumas vezes os ditos logares e farão saber ao Revedor, os livros que ali se vendem. O mesmo se fará dos _livros que se vendem nas feiras_.»[29] Quando Garcia de Resende, na _Miscellanea_, fala das varias dansas que se usaram nas cortes de D. Affonso V e D. João II, é já como de uma cousa que passára de moda, como reprovada: Vimos grandes judarias, Judeos, guinolas e touras, tambem mouras, mourarias, seus bailes, galantarias de muitas fermozas mouras sempre nas festas reaes s'eram os dias principaes festa de mouros avia; tambem festa se fazia que non podia ser mais. Vimos costume bem cham nos reys ter esta maneira corpo de Deos, Sam Joam aver canas, procissam, aos domingos carreira, cavalgar pela cidade com muyta solennidade, ver correr, saltar, luctar, dançar, caçar, montear em seus tempos e hidade. Como não seriam engraçadas essas danças judengas e mouriscas, das quaes diz um poeta do _Cancioneiro geral_ de 1516: Doçe baylo da Mourisca mil sentidos faz perder, e la mete huma lal trisca que é muy má de guarecer.[30] Esses jogos que se usavam na corte de Affonso V e Dom João II, que o Coudel Mór tanto recommendava a seu sobrinho Garcia de Mello de Serpa para saber tratar no paço, foram banidos mais tarde pela influencia monastica, ficando os serões da corte uma cousa sorumbatica, como d'isso se queixa o bom Sá de Miranda. Eis os jogos e passatempos que Fernão da Silveira ennumera: Item manha de louvar he jugar bem o «malham,» e o «jogo do piam» favor se lhe deve dar. Nem sey porque mays vos gabe ser gram pescador de «vasa;» mas «jogar a abadalassa» em qualquer galante cabe. Saber bem a «pega-chuna,» e o «cubre bem jugar,» sam duas para medrar galante contra fortuna. Nem saberia a hum fylho escolher mylhor conselho, se nam que jogo-o «fytelho,» «jaldeta, cunca, sarilho.»[31] Estes jogos passaram da corte para o povo; o mesmo succedeu com as antigas festas do Espirito-Santo. Costa e Silva diz dos jogos que apontámos: «sam propriedade exclusiva dos garotos, dos rapazes e dos frequentadores das tabernas e das hortas de Chelas e de Arroios.» Camões na comedia de _Philodemo_, em uma rubrica, cita varios instrumentos musicos das serenadas: «N'este passo se dá a musica com todos quatro, um tange _guitarra_, outro _pentem_, outro _telhinha_, outro _canta cantigas muito velhas_...»[32] Dos instrumentos musicos usados no seculo XVII, fala D. Francisco Manoel de Mello, no _Fidalgo Aprendiz_: MESTRE. Ha em casa algum «laúde?» AFFONSO. Não ha mais que um «birimbao.» MESTRE. «Violas?» AFFONSO. Sim, achareis Na botica. MESTRE. «Arpa?» AFFONSO. De couro. MESTRE. Nem um «sestro?» AFFONSO. Um sestro agouro. MESTRE. Nem sequer dois «cascaveis?» N'esta comedia allude tambem ás danças então usadas: GIL. Pois Mestre, que mais sabeis? MESTRE. Uma «Alta,» um «Pé de xibao,» «Galharda, Pavana rica,» E nestas novas mudanças; GIL. Tende que isso não são dansas Se não cousas de botica. Sabeís o «Sapateado?» O «Terollero?» o «Villão?» O «Mochachim?» MESTRE. Senhor, não. GIL. Pois sois Mestre mui minguado.[33] Além da eschola italiana e do Santo Officio, as influencias da corte tambem combateram a poesia popular portugueza. No tempo de Dom Manoel os romances hespanhoes eram de preferencia estimados em Portugal; Damião de Goes queixa-se da importancia que os _chocarreiros_ castelhanos gosavam na corte portugueza. El-rei queria aliviar as saudades da filha de Fernando e Isabel com os cantares da sua patria. A _letra castelhana_ era só ouvida, como diz D. Francisco Manoel; os ouvidos portuguezes estavam aforados por essas trovas, como os accusa Jorge Ferreira. Os belfurinheiros portuguezes, que iam ás cidades de Hespanha vender os productos do Oriente, tambem traziam de lá boa copia d'esses romances. Assim, ao cultismo da eschola italiana, á pressão do Santo Officio depois da Reforma, accresceu mais esta causa que não deixou florir o romance popular portuguez, e lhe imprimiu feições que lhe não eram naturaes. No _Romancero Generale_, vem um romance cujo heroe é um apaixonado portuguez victima de uma intriga amorosa; por elle se descobrem os nossos costumes antigos. No seculo XVI, os feirantes portuguezes iam levar pelas cidades de Hespanha os productos orientaes. Um d'esses, em um logar da Mancha, namorou uma mulher casada: Alabábale su tiera, Su nacion, su fidalguia, Su musica, sus regalos, Su espada en Africa limpia, Prometiendole en efecto Las especies de las Indias, Los olores de Lisboa, Y los barros de la China. De uma vez foi tocar-lhe uma serenada, cantando-lhe _em portuguez_ este romance do Cid: --Afora, afora Rodrigo, El soberbo castejano, Acordar-se-te deveras D'aquelle tempo já passado. Quando te armei cavalleiro No altar de Santiago: Minha mãe te deu las armas, Miño pae te deu el cabalo, etc. Este romance tambem se encontra citado por Camões. Continuando a historia, o vendilhão entrou em casa da dama; dentro estava escondido o marido e alguns amigos que correram a pau o aventureiro galanteador. Esta classe de feirantes desappareceu quando perdemos as nossas conquistas. N'este mesmo romance se encontra um _cantarcillo_ em portuguez, que desappareceu da tradição oral, e que talvez se refira ao tempo de D. João I: Pois que Madanella Remediou meu mal, Viva Portugal E morra Castella. Seja amor testigo De tamanho bem; Não chegue ninguem A zombar commigo. Que a espada é rodela, A forneira sal: «Viva Portugal «E morra Castella. Se o _Romanceiro hespanhol_ é mais extenso e antigo do que o portuguez deve-se isso á curiosidade dos livreiros de Saragoça, de Anvers, e de Sevilha, e não á esterilidade do genio do nosso povo. Se agrupassemos as innumeras allusões aos romances populares que se encontram nos quinhentistas, recomporíamos o Romanceiro portuguez e veriamos que não sômos menos ricos do que os nossos visinhos. Eis algumas citações passageiras, deixando de apontar muitas que ficaram já na _Historia da poesia popular portugueza_: Quando o Conde de Marialva se queixou a Dom João III da affronta do Marquez de Torres Novas, que se declarou marido da filha Dona Guiomar, Frei Luiz de Sousa põe-lhe na bocca as seguintes palavras: «Não fizeram verdadeiramente mais affronta que esta os _Infantes de Carrion_ ás filhas do Cid Ruy Dias, com quem eram casados. Porque se as deixaram no campo desamparadas, eram seus maridos; tomavam vingança de sy, e de sua honra propria, da qual podiam usar bem ou mal, como cada um faz do seu.»[34] O poema de _Alexandre_, tão popular na Europa da edade media, tem origens orientaes; conheceram-nas em Portugal por influencia das nossas relações maritimas com o Oriente. Em uma carta que Luiz Falcão escreveu de Ormuz a D. João de Castro, em 1546, vem citada uma _estorya de Allyxamdre_: «Alleyxes de carualho me dixe da parte de vosa s. que lhe mãodase _allyxamdre_ hem persyo: lla lho mãodo, haindaque has escreturas destes mouros, tenho-as por menos autemtes que has nosas. Nese llyvro vam houtras _estoryas_ hafóra has _d'allyxamdre_, has quays me parese que follguará mays com ellas etc.» A esta mesma historia allude uma carta de Garcia de la Penha: «Aleyxes carvalho pedio qua a el-rey e goazil hemires hum livro da _ystoria dalyxamdre_. Com muyto trabalho acharão hum, que lhe mandão.» Este livro, por outra allusão d'esta carta, se conhece que era novella ou tradição cavalheiresca: «Peço a vosa s. que ho livro, e a mim com ele, queyra aver por seus com aquela vomtade e desejo, que noso senhor sabe que lho eu ofreço, _cujo estado he castidade, acompanhada de tantas virtudes, como dizem que está_.»[35] A virtude da castidade era caracteristica dos heroes cavalheirescos, como se vê no _Galaaz_; os heroes eram quasi sempre _parthenios_ ou filhos de virgens. Camões nas suas obras allude a muitos romances cavalheirescos. Na Carta II,[36] vem o verso _Afuera, afuera Rodrigo_, que é o principio do romance XXVI do _Romancero do Cid_, da edição de Lisboa de 1605, (p. 42) que se intitula: _De como se quexa Doña Urraca al Cid por la embaxada que trae del Rey Don Sancho._ O verso: Afuera, afuera Rodrigo encontra-se em outros romances, como no XXV; e o verso: El sobervio castellano, que forma com o antecedente o estribilho popular, tambem se lê no V romance. Camões allude a outro romance do Cid na primeira Carta escripta da India, citando os dois versos: Riberas de Duero arriba Cavalgaran Çamoranos;[37] Na Comedia de _El rei Seleuco_, cita o romance do _Mouro Calaynos_, prohibido pelo _Index Expurgatorio_ de 1624, nos versos: Ya cavalga Calaynos A la sombra de una oliva.[38] Nos _Disparates da india_ cita os primeiros dois versos do romance do Cativo, tal como principia no _Cancionero de Romances_, de Anvers: Mi padre era de Ronda, Mi madre de l'Antequera, etc.[39] Na Comedia de _Philodemo_, allude Camões ao romance de _Bernardo del Carpio_, nos versos: Mi cama son duras peñas, Mi dormir siempre es velar. ........................... Su comer las carnes crudas, Su bever la viva sangre.[40] A romances e cantigas desconhecidas allude nos versos da comedia d'_El-rei Seleuco_: Ouviste vós cantar já: Velho malo em minha cama? e n'esta passagem: Dizei, porque não dissestes: La que yo vi por mi mal. No prologo d'esta mesma comedia Camões lembra uma cantiga desconhecida: «e tras ellas vem logo outo mundanos metidos em um covão, cantando: Quem os amores tem em Cintra.»[41] Bem como esta cantiga popular, de que se recorda: Meu bem e meu mal Lutaram um dia; Meu bem era tal Que o mal o vencia. Camões glosou uma velha cantiga que começa: De pequena tomei amor,[42] talvez a mesma a que allude Gil Vicente na Comedia de _Rubena_, que principia: De pequena matais (tomais?) amor. Todos estes factos revelam o profundo sentimento da alma popular que possuia Camões. No tempo em que os romances da tradição oral foram glosados pelos poetas cultos, como o declara a _Poetica_ de Rengifo,[43] em Portugal soffreram tambem egual modificação. Bernardim Ribeiro glosou o celebre romance de _Durandarte_, desde o verso: Oh Belerma, oh Belerma.[44] Na _Chronica de Dom Sebastião_, de Frei Bernardo da Cruz, vem citado o romance de _Don Rodrigo_: Ayer fuiste rey de España; Hoy no tienes um castillo.[45] Os romances dos _Sete Infantes de Lara_ acham-se citados por Gil Vicente nos versos iniciaes: Em Paris está Dona Alda, etc. Los hijos de Dona Sancha, etc, Mal me quieren en Castilla, etc. bem como o celebre romance da _Bella mal maridada_, que no _Cancioneiro geral_ de 1516 vem referido em uma trova de Nuno Pereira contra D. Leonor da Sylva. Assim como os romances hespanhoes eram conhecidos em Portugal, tambem muitos successos da historia portugueza foram romanceados pelos autores hespanhoes; ha porém cantigas populares castelhanas a successos particulares, como aquella canção que se refere aos amores de Dom Fernando I: «el rey Don Fernando de Portugal e la muger de Juan Lorenzo de Acuña, que este rey Don Fernando le tomó por amores que della ovo; é por esta se levantó la cancion que dice: Ay, donas! porque tristura? y por esta causa el dicho Juan Lorenzo traia unos cuernos de oro en la cabeça por estes reynos de Castilla; y el rey Don Fernando de Portugal casó con ella, fué llamada la reyna doña Isabel, que la deçian _la flor de altura_.»[46] Dom Francisco Manoel de Mello, além de ter escripto varios romances mouriscos, cita os mais celebres, como o de Dragut: Se ha dez annos que amarrado Qual forçado de Dragut.[47] No romance XXII da _Citara de Erato_, allude ao romance de _Gaifeyros_ nos versos: Perguntad allà en la Corte Por la virtud, y os diran: «Si is a Francia el cavallero Por Gayfeiros perguntad.»[48] e ao romance do Mouro Zaide: Trago a rojo lá do Minho Mais prisões que um mouro Zaide.[49] Mais loução que Don Reynaldos.[50] Na _Avena de Tersicore_, traz uma parodia da _Bella mal maridada_: Biudilha mal maridada, etc.[51] Dom Francisco Manoel de Mello cultivou com predilecção a forma do romance tal como se usava no seculo XVII; no primeiro côro das suas _Tres Musas de Melodino_, imita os romances mourisco, usados pelos cultistas castelhanos. O romance de Aben-Humea começa: Ya por la puerta de Elvira Saliendo vá de Granada Aben-Humea, el quexoso De su rey, e de su dama. Canta tambem o romance de Celidaja: Texiendo está Celidaya, La hermosa hija del Rey, Zambras de sus bellas Moras Una tarde en su vergel. Traz tambem o romance de Ali-Aben, e de Xacen y Belaja. Não os transcrevemos na _Floresta_ por serem todos em hespanhol. Na segunda jornada do _Fidalgo Aprendiz_, Dom Francisco Manoel de Mello faz-nos a historia do romance no seculo XVII, nas allusões da seguinte scena: BRITES. Entoay por meu prazer qualquer cousa. GIL. Sem guitarra? BRITES. Eylla tomay. (Dá-lhe uma viola, tange como quem quer cantar.) GIL. (Pois que não posso al fazer. BRITES. Ay que canta, e não escarra!) GIL. Ora eylo vay: (Canta Dom Gil o melhor que pode o que se segue:) «Passeava-se Silvana por um corredor um dia...» BRITES. Ay Senhor? eu não queria Senão letra castelhana. GIL. Cantarey algaravia se mandais, pois que quereis? BRITES. Huma letra nova quero. GIL. (Canta:) «A cazar vá Cavallero...» BRITES. Ay mãy! assinte o fazeis? por isso eu me desespero. GIL. Ora estay, que já entendo quereis Romances trovados: «Mis amorosos cuidados, Como se estaran durmendo.» BRITES. Isto foram meus peccados! Vos cuido que estaes zombando. Ora dizei. GIL. Já me estanco: «Gavião, gavião branco Vae ferido e vae voando.» BRITES. Huy pelo passar o manco Sabeis alguma ao Divino? GIL. Sey. BRITES. Dizei. GIL. Pois é formosa: «Andorinha gloriosa.» BRITES. Tendes cousas de menino. GIL. Sou todo Amor, minha rosa.[52] Bem se queixava Pedro de Flores, um dos editores do _Romancero generale_ de 1594, e a perros se déra se visse como este malvado de Dom Gil Alcoforado estropiava os romances populares e os deixava incompletos: «Y hize que de un discurso Se visse principio y cabo, Lo que el musico no haze, Pues medio desbarado Dexa un romance perdido Deciendo que le da enfado: Los quales conforme à la ley Merecen ser desterrados A las islas de Corfú A cantar versos mosaycos Y de tan alto auditorio Uvieran de ser echados Por quebrantadores de honras De aquellos siglos dorados.» Na citação de Dom Francisco Manoel de Mello está resumida a historia do romance; confirma-o Pedro de Flores. _O Fidalgo Aprendiz_ é uma formosa comedia de costumes, pelo gosto da velha eschola de Gil Vicente; é uma satyra aos _parvenus_ do seculo XVII. Eis o caso: Dom Gil Cogominho é o nome de um escudeiro Enfronhado em Cavalleiro Morto por ser namorado, Contrabaxo e trovador Cavalleiro, dançador: Emfim Fidalgo acabado, Valentão e caçador.[53] Affonso Mendes, seu ayo, vestido _á portugueza antiga_, tem uma comadre: Mulher para muita aquella, Anda armando-lhe esparrella Com uma filha bonitinha, Que eu fico que caia nella. É pois n'uma d'estas situações, quando Dom Gil Cogominho vae conversar de noite com Brites, filha da tal comadre Isabel, que se passa a scena que transcrevêmos. Brites pergunta-lhe se elle é poeta, se canta, que voz tem? Depois pede-lhe que cante qualquer cousa. O Fidalgo escusa-se por não ter guitarra. N'este tempo os romances, que iam tomando forma culta, eram sempre cantados a instrumento. Muitos dos romances populares do seculo XVI, já então considerados _velhos_, foram postos em musica e publicados por Milan, Pisador, Valderrabano, Fuenllana, Mudarra e Salinas. A Dom João III, em 1535, offereceu Luiz de Milan um _Libro de Musica_, em que vinham notados em musica: _Mis arreos son las armas_ etc., _Sospiraste_ etc. e _Baldovinos_. Jorge Ferreira, nos romances que traz no _Memorial das Proezas dos Cavalleiros da Tavola Redonda_, accrescenta sempre a rubrica: «Cantavam a violas de arco e doçayna mui concertadamente o romance, _que eram os cantos que então mais se usavam_.»[54] Isto era assim ainda no tempo de Dom Sebastião, porque o Fidalgo dá-se como contemporaneo do monarcha: Sey o açougue no Rocio, Os Estaus na Inquisição, Vi el-Rey Dom Sebastião. Dom Gil Cogominho a final, a instancias de Brites, venceu a repugnancia e começa a cantar o velho e popularissimo romance da _Dona Silvana_, que a rapariga já não quer ouvir, talvez para mostrar que não é de baixa extração. Pede-lhe porém que cante _letra castelhana_. De facto, depois do casamento de el-rei Dom Manoel com a filha de Fernando e Isabel, o romance popular começou a cantar-se em hespanhol. Gil Vicente compoz os seus mais bellos n'essa lingua. Damião de Goes queixa-se da importancia que tinham na corte os chocarreiros de Castella;[55] e Jorge Ferreira diz que as trovas castelhanas se tem aforado comnosco e tomado posse do nosso ouvido.[56] O gosto dos romances na corte era uma imitação dos usos hespanhoes, do que diz o citado Jorge Ferreira, fallando dos romances: « o que em Hespanha se usou muito, _e usar-se agora para estimulo de imitação não fora máo_.»[57] Continuemos na exposição da comedia: Brites era quesilenta e recusa-se a ouvir o romance de _Sylvana_, a que o Fidalgo chama _cantar algaravia_. Pede _letra castellana_, e Cogominho começa-lhe a cantar o vetustissimo romance da _Infantina_, que começa: A caçar vá el cavallero.[58] A travessa rapariga continua a enfrenesiar-se; o Fidalgo procura agradar-lhe, dá-se a tratos para adivinhar-lhe o desejo. Pergunta se ella quer _romances trovados_? Que seriam estes romances trovados? Rengifo, na _Poetica española_, diz que não havia muito tempo que os poetas tinham começado a glosar romances velhos, metendo cada dois versos na segunda das redondilhas. Esta transformação foi recebida agradavelmente pela sociedade elegante do seculo XVII.[59] Nos poetas portuguezes de quinhentos encontramos signaes d'estas transformações. Sá de Miranda allude á _Bella mal maridada_,[60] em duas voltas ou glosas; Gil Vicente cita muitas vezes este romance celebre da tradição oral: Cantarle han por alvorada «La bella mal maridada Mal goso viste de ti.[61] D'este romance centenas de vezes glosado, e parodiado por D. Francisco Manoel de Mello na _Avena de Tersicore_[62], canta Gregorio Silvestre a sorte desditosa nas mãos dos poetas: O Bella mal maridada, A que manos has venido! Mal casada e mal «glosada» De los poetas tratada Peor que de tu marido: Si ello va por mas errar Y a vós os agrada assi, Ventaja hago yo aqui: Assi que por mal glosar. Vida no dejeis a mi.[63] Gregorio Silvestre falava contra os poetas cultos, que procuravam introduzir na Peninsula a eschola italiana. A forma poetica que apontamos era o que Dom Francisco Manoel chamava o _romance trovado_. Quando Brites pediu um d'este genero a Dom Gil, elle não atinou e deu-lhe umas coplas no gosto poetico da corte de Dom João II; depois canta a seguidilha do _Gavião branco_; afinal Brites pergunta-lhe se elle sabe alguma _trova ao divino_. Esta é tambem uma transformação do romance anonymo. Quando Lope de Vega começou a introduzir uma fórma litteraria no romance, poz em verso quasi todos os passos da Paixão. Este genero pertence aos romances sacros. Sepulveda, nos _Romances sacados de varias historias_, tambem descreve a Paixão; com esta tendencia se iam romanceando quasi todas as scenas da Escriptura. O grande uso e predilecção do genero sacro se nota pela prohibição expressa que d'elle faz o _Index expurgatorio_ de 1624: prohibe o romance que começa: Com rabia está el Rey David. «_E todos os mais Romances ou contos tirados do Testamento Velho, ou Novo ao pé da letra._»--Prohibe mais: «_Romances sacados da letra del Evangelio._ El primeiro _La ressurreiçon de Lazaro_.--El segundo _El juizio de Salomão_.»[64] A celebre xacara de Quevedo, conhecida com o titulo de _Escarraman_, tambem andava convertida ao divino. Eis até aqui os factos que se deduzem da scena extractada do _Fidalgo Aprendiz_. Dom Francisco Manoel de Mello não allude ao exagerado gosto dos _romances mouriscos_, que prevaleceu no seculo XVII, se é que não significa isso a phrase--_cantar algaravia_. Outra transformação do romance popular foi a nova forma poetica, a que se chamou _Xacara_, antiga composição popular que Don Francisco de Quevedo tanto vulgarisou, e que o nosso Dom Francisco Manoel imitou tambem. O gosto popular no seculo XVII soffreu uma grande transformação; os romances iam passando de moda. Diz Quevedo: Ya passó Dona Ximena, Y fallecio Lain Calvo.[65] E do velho romance do _Conde Claros_ diz: El Conde Claros, que fue Titulo de las guitarras Se quedó en las barberias Com chaconas de la galla.[66] O velho romance do _Conde Claros_, recolhido da tradição para o _Cancionero de Anvers_, estava já banido; uma transformação profunda se operava no gosto publico. Os romances mouriscos occupavam a attenção e o enthuziasmo. «O espirito da moda influiu muito na voga que tiveram, e na cansada monotonia que impoz a muitos a necessidade de os repetir para accomodar-se ao gosto publico e fastio da epoca.»[67] Fernando Wolf é de opinião que estes romances não têm o caracter arabe, e o proprio assumpto que celebram revela a sua origem moderna. Mas é impossivel desconhecer a existencia de uma poesia da raça _mosarabe_, producto da fusão do baixo povo godo com os arabes invasores. Assim como hoje se vê que d'esta transformação social saíu um direito novo, os Foraes,[68] longo tempo atribuidos a origem romana, qual seria a poesia d'essas relações intimas, cantada na lingua, que o baixo povo chamava de _Aravias_? Sobre esta poesia pesou o mesmo desprezo, que o Marquez de Santillana descarregou sobre os velhos romances vulgares; mas no _Cancionero generale_ de Hernando de Castillo se descobre um apagado vestigio do romance _mosarabe_, em que se vê o retrato da coexistencia dos dois povos: é o romance da _Mora Moraina_, a cuja porta vêm um christão falar-lhe _algaravias_, para a enganar. Este romance ainda se encontra na tradição oral dos Açores e Beira, transformado segundo os usos da sociedade moderna.[69] O povo arabe teve uma poesia vulgar, sem o tom lyrico e artificial dos poetas cultos. O Arcipreste de Hita fala dos «_instrumentos en que convienen los cantares de arabico_, e cita um velho cantar que principia: _Caguil hallaco_. Diz mais: _arabigo no quiere biuela d'arco._[70] Argote y de Molina, o mais atilado critico dos velhos escriptores hespanhoes, como o qualifica Ticknor, fala das _zambras_ arabes, com que se celebravam os feitos publicos.[71] N'este periodo o romance mosarabe é commum a Portugal e Hespanha; a sua vulgarisação, segundo Duran, data do seculo XIV. Porém quando os arabes começam a abandonar o territorio da Peninsula, as saudades d'este paiz encantador e a vergonha da derrota inspira-lhes os cantares da despedida. N'este momento os chamados _romances mouriscos_, tem um nascimento espontaneo, sem artificio. Em 1575, Argote y de Molina fala d'esses «cantares lastimeros, que oimos cantar a los Moriscos del Reyno de Granada, sobre la perdida de su tierra a manera de endexas...» E cita o cantar: Alhambra amorosa, lloran tus castillos o Muley Vuabdeli, que se ven perdidos dadme mi cavallo, y my blanca adarga para pelear, y ganar la Alhambra. Dadme mi cavallo, y mi adarga açul para pelear, y librar mis hijos: Guadix tiene mis hijos, Gibraltar mi muger senora Mafalta, hezisteme perder en Guadix mis hijos, y yo en Gibraltar senora Mafalta, hezisteme errar.[72] Além de muitos outros documentos que provam a existencia de uma poesia popular, entre os arabes da Hespanha, ainda modernamente se ouvem cantares allusivos a Cordova e Granada, repetidos pelo povo em Tanger, Tetuão, Arzilla e em outros pontos do norte da Africa.[73] É da imitação d'estes cantares, que datam os romances granadinos dos poetas cultos. Depois da conquista de Granada, os arabes que acceitaram o jugo de Fernando e Isabel, continuaram os seus queixumes; aquelles cantos tinham um accento novo, um colorido exagerado, uma paixão de arrebatamento. Assim seduziram a imaginação dos poetas; alguns desses cantos chegaram a entrar na corrente da tradição oral, como este recolhido na Serrania de Ronda: Por las puertas de Celinda Galan se passea Zaide, Aguardando que sáliera Celindo para hablalle.[74] O fervor dos romances _mouriscos_ cultos data do fim seculo XVI a XVII; são como uma recordação gloriosa dos triumphos dos filhos de Hespanha; já não tem a quem combater, criam phantasmas na imaginação, com que se distraem. É esta a opinião do sabio Duran, quando diz: «Logo que os nossos cavalleiros e poetas viram o paiz livre de seus contrarios para de logo se apoderaram das recordações que tinham deixado, de modo que ao ler os cantos d'aquelle tempo todos creriam que os mouros ainda occupavam a Hespanha.»--«De facto antes da conquista de Granada, e talvez alguns annos depois, se acham poucos romances mouriscos novellescos, que tenham vestigios sensiveis da poesia arabe.»[75] Os romances mouriscos tem poucas referencias a personagens historicos; umas vezes é um mouro, _Galvan_, que tem uma cativa christan, _Mariana_, com quem está jogando no seu jardim, e a cada jogo que perde, perde um castello ou cidade; o mouro _Bucar_ resolve questões de amor; as aventuras e odios dos _Zegries_ e _Abencerrages_, dos _Gomeles_ e dos _Aliatares_, são o thema constante, bordado pela imaginação hespanhola. Cada personagem ideal forma um cyclo de aventuras, como _Zaide_, _Abenumeya_, _Tarfe_, _Abindarraez_, _Zegri_, _Zulema_, _Azargue_, _Arbolan_, e isto milhões de vezes romanceado até ao fastio e em formas já convencionaes, como a do verso: Mira Zaide que te aviso. Por seu turno veiu a reacção contra o gosto dos _romances mouriscos_; começou-se por parodias burlescas. No _Romancero general_ de Flores, já apparecem algumas amargas censuras contra a mania dos nomes mouriscos: Tanta Zaida y Adalifa, Tanta Draguta e Daraja, Tanto Azarque e tanto Adulce, Tanto Gazul e Abenámar. ...................... Renegaron de su ley Los romancistas de España Y offerecieron a Mahoma Las primicias de sus gracias. Dejaron los graves hechos De su vencedora patria, Y mendigan de la agena Invenciones e patrañas. Los Ordoños, los Bermudos Las Rasuras y Mudarras, Los Alfonsos, los Euricos, Los Sanchos y los de Lara, Que es de ellos? y que es del Cid? Tanto olvido á gloria tanta. Gongora tambem fez _romances mouriscos_, principalmente do cyclo turquesco, mas de um gosto bello e admiravel; cedo veiu a conhecer o enfado que já causavam os poetas granadinos, e elle proprio os ridicularisou em um romance. Os romances d'este genero, compostos por Dom Francisco Manoel de Mello e por Francisco Rodrigues Lobo, não appresentam o minimo merecimento; são em hespanhol, em um estylo cansado, e sem o esplendor da paixão oriental que os poetas hespanhoes imprimiram ás suas contrafações. Não vale apresentar especimen de composições taes; apenas servem para mostrar que o contagio litterario tambem chegou até Portugal. Do meado do seculo XVII por diante, os romances _mouriscos_ perderam-se em um subjectivismo e requinte que lhes tirou o caracter. Foi então quando os romances se tornaram _pastorís_, sendo os heroes arabes substituidos pelos Belardos, Filis, e pelas aventuras dos rufiões dos beccos, ou _xaques_. A _xacara_ era o nome dado aos romances que celebravam esses feitos dos meliantes; os nossos _Fados_ populares podem-se considerar como restos das _xacarandinas_ do seculo XVII, a que D. Francisco de Quevedo imprimiu uma forma litteraria.[76] Do que fosse este genero de poesia, procura o commentador na propria palavra _xacara_: «Y si bien à la primera noticia, que de si prometen con el nombre, parece peligra la estimacion.» Da linguagem formada pela gentalha, vadios, rufiões, goliardos e maninellos, que se chama _giria_, e em hespanhol _geringonça_ ou linguagem particular dos Ciganos, e _jargon_ no francez, e tambem _germania_, se formou esta especie de poesia. Os mesmos vadios se chamam entre si _xaques_: «Pero como quiera que elo fuese, denominacion dieron infallible à las _xacaras_ ò _xacarandinas_ aquellos _xaques_ mismos? y con legitima razon, pues de sus acontecimientos y penalidades continuas son annales las relaciones que ali se repiten: y nuestro Poeta (Quevedo) historiador suyo, ò verdadero, ò fingido, singularmente de adequado spiritu.»[77] Á vista d'esta simples noticia e da leitura de Quevedo, é facil de ver em que a _xacara_ consistia: eram as aventuras dos goliardos, a forma antiga do _Fado_, uma historia longa das suas falcatruas. Na _xacara_ de Escarraman, ha cartas entre Escarraman e Mendez, cartas entre Peralta e Lampuga. D'onde veiu D. Francisco Manoel dizer: «Começaram um dialogo á maneira de _xacara_,» isto é, na linguagem _girianta_ em que os _xaques_ faziam as relações de seus desastres e aventuras divertidas, que era na _xacarandina_. A _xacara_, como quasi toda a poesia popular, era acompanhada de musica. Do meiado do seculo XVI por diante começaram os romances populares a receber uma forma artistica, a tornarem-se descriptivos e lyricos. Fuentes, Timoneda, Sepulveda, Lasso de la Vega os foram tornando subjectivos. As _xacaras_ populares receberam tambem de Quevedo esta mesma influencia artistica, que se resentiu em Portugal, por isso que o _Index Expurgatorio_ de 1624 prohibe a leitura do _romance de Escarraman_, e de todos os que sobre elle se fizeram. Dom Francisco Manuel de Mello imitou o gosto das _xacaras_ nos seus _romances entretenidos_. Alguem teve a ridicula lembrança de dar á _xacara_ uma origem mourisca. Em que se fundariam para tal? Talvez no radical _xaque_, que quer dizer traidor. A _xacara_ á força de exagerar o natural tornava-se grosseira; o metro seguia uma tendencia artificiosa que lhe tirava a vulgarisação popular. Nos fins do seculo XVII a mania dos romances continuava; os frades escreviam-nos pelos mosteiros sobre assumptos pastorís; outros de longe em longe se lembravam do _Cid_ e de _Durandarte_. Assim o diz um poeta coevo, Antonio Peixoto de Magalhães: Algum sem que descanse Faz ás barbas do «Cid» logo um romance, Outro grave e queto Compõe a «Durandate» algum soneto. Em Hespanha o romance tinha perdido o caracter _narrativo_, absolutamente popular, tornando-se _descriptivo_ ou litterario, até se fundir em um subjectivismo que o desnaturava. Em Portugal o povo continuou na sua obscuridade, como dantes, mas o romance seguiu exactamente as mesmas transformações que em Hespanha. Por este tempo Francisco Lopes, livreiro de Lisboa, romanceava, á imitação do _Santo Isidro_ de Lope de Vega, a vida do popular Santo Antonio e dos Cinco Martyres de Marrocos; servia a causa da liberdade na revolução de 1640 com as suas _folhas volantes_ em verso, popularisando as victorias contra as armas de Castella. Propriamente a designação de _romance_ servia para qualquer composição fastienta feita a proposito de circumstancias ridiculas, em metro octosyllabo, em assonancias. O uso da lingua hespanhola era immoderado. Como composição d'este genero podem-se vêr os romances de Frei Antonio das Chagas, quando tinha no seculo o nome de Antonio da Fonseca Soares. Na vida ociosa dos claustros, os frades enchiam as suas horas com estas composições, mais insipidas do que as allegorias do paiz de _Tendre_. O Bispo do Grão Pará, nas suas _Memorias_ verbera este costume. As glosas, que se haviam apoderado dos romances, começaram a applicar-se aos Outeiros freiraticos; nos palratorios se fazia o maior consummo dos romances. Quando Frei Antonio das Chagas entrou para os Bentos, aonde estava o seu amigo e confrade em Apollo Frei Antonio Vahia, foi achar lá dentro numerosas copias dos seus romances de galanterias; quando no enthuziasmo religioso as quiz rasgar, «gracejaram com elle e meteram-no á bulha.» O melhor do tempo passava-se em palestras com freiras, do que diz o severo Bispo do Grão Pará: «Eram moços, e muita a liberdade das grades d'aquelle miseravel tempo.» As subtilesas amorosas descambavam por vezes na obscenidade; o gosto do tempo não sabia discriminar os assumptos, e adequava a mesma linguagem aos usos divinos e humanos. Quando Frei João de Sam José fez a visita ao seu bispado, entrando pelo Aracá, em uma capella ouviu uma missa no fim da qual quatro indios e mamelucos com suas vozes bem ajustadas cantaram «varias _cantatas devotas_ e de edificação, sobre o que lhe fizemos uma pequena pratica em louvor do canto honesto _e ao mesmo tempo invectiva contra o lascivo das sarabandas e modas do tempo_.» O Bispo do Grão Pará é uma especie de Saint-Simon do nosso seculo XVIII. A poesia popular á medida que ía caíndo no gosto dos cultistas, emancipava-se de novo, pela falta de espontaneidade dos que a queriam imitar. Podemos dizer que a poesia popular portugueza ficou absolutamente desconhecida até á incompleta, mas brilhante tentativa de Garrett; em Hespanha os vendedores das _folhas volantes_, romanceando os successos do tempo, continuavam obscuramente o trabalho dos Najeras, dos Nucios, dos Flores, dos Tortejadas; entre nós o povo parecia mudo, sem canto. Que symptoma mais franco de decadencia! Quando os nossos poetas quizeram imitar o que na Allemanha faziam Uhland e Bürger, trovavando os seus poemas sobre as tradições nacionaes, mostraram-se a nú, mediocres e sem alma. É vêr essa infinidade de _solaos_, xacaras de accalentar netos, balladas, e outros prenuncios do ultra-romantismo em Portugal, que se cansou de andar a tombos com uma edade media de papelão. Para que ennumerar aqui nomes odiosos, de falsos sacerdotes da arte? A poesia do povo precisa de uma extraordinaria boa-fé para ser entendida. ROMANCES COM FORMA LITTERARIA DO SECULO XVI A XVIII * * * * * ALVARO DE BRITO Trouas á morte do principe D. Affonso filho de D. João 2.º Morto he o bem d'Espanha, nosso principe rreal, chora, chora Portugal, choremos perda tamanha! E carpindo lamentemos dous em huum triste responso, rrey & prinçepe choremos dom Affonso, dom Affonso! Ho que morte tam estranha, ho que nojo, ho que mal! chore, chore Portuguall, choremos perda tamanha! Ho que queeda tam sanhosa pera chorar & carpir, ho que queeda tam danosa que nos fez todos cayr! Ho quanta nobre companha Sente tristeza mortall! chora, chora Portugall choremos perda tamanha! Choremos, que tal cayda por nossos grandes pecados nos leyxa desemparados, mata toda nossa vyda. Que pesar nos acompanha, que nunca foi visto tall; he perdido Portugual, choremos perda tamanha! Choremos huum jnoçente, huma santa creatura, que por nossa desventura morreo tam supitamente. Ho que mall, que nojo, sanha, que desemparo mortall nota todo Portugual, choremos perda tamanha! Morreo nossa defensam, & morreo nossa liança, morreo nossa esperança de nom vyr a ssogeyçam. Asy nos desacompanha nosso senhor natural; o senhor çelestrial o rreçeba em sa companha! Cancioneiro Geral de 1516, t. I, p. 221. Edição de Stuttgart. * * * * * GARCIA DE RESENDE Trovas á maneira de romance feitas á morte de Dona Inez de Castro. Eu era moça menina, per nome dona Ynes de Crasto, & de tal doutrina & vertudes, qu'era dina de meu mal ser ho rreves. Uiuia, sem me lembrar que paixam podia dar, nem da-la ninguem a mym, foy m'o prinçepe olhar por seu nojo & minha fym. Começou m'a desejar, trabalhou por me seruir, fortuna foy ordenar, dous corações conformar a huma vontade vyr. Conheçeo-me, conheçi-o, quys-me bem & eu a ele, perdeo-me, tambem perdi-o, nunca tee morte foy frio o bem que triste pus nele. Dey-lhe minha liberdade, nam senty perda de fama, pus nele minha verdade, quys fazer sua vontade sendo muy fremosa dama. Por m'estas obras paguar nunca ja mais quys casar, polo qual aconsselhado foy el rrey, qu'era forçado polo seu de me matar. Estaua muy acatada, como princesa seruida, em meus paços muy honrrada, de tudo muy abastada, de meu senhor muy querida. Estando muy de vaguar, bem fora de tal cuidar, em Coymbra d'aseseguo, polos campos de Mondeguo caualeyros vy somar. Como as cousas qu'am de ser, loguo dam no coraçam, começey entrestiçer & comiguo soo dizer: estes omẽes d'onde yram? E tanto que preguntey, soube logo que era el rrey, quando o vy tam apressado, foy, que nunca mays faley. E quando vy que deçia, sahy ha porta da sala, deuinhando o que queria, com gram choro & cortesya lhe fiz huma triste fala. Meus filhos pus derredor de mym com gram omildade, muy cortada de temor, lhe disse: avey, senhor, desta triste piadade. Nam possa mais a paixam que o que deueys fazer, metey nysso bem a mam: que'e de fraco coraçam sem porque matar molher. Quando mays a mym, que dam culpa, nam sendo rrezam, por ser mãy dos ynoçentes qu'ante vos estam presentes, os quaes vossos netos sam. E tem tam pouca ydade que, se não forem criados de mym, soo com saudade & sua gram orfyndade morreram desemparados. Olhe bem quanta crueza faraa nisto voss'alteza, & tambem, senhor, olhay, pois do prinçepe sois pay, nam lhe deis tanta tristeza. Lembre-uos o grand'amor que me uosso filho tem, e que sentiraa gram dor morrer-lhe tal seruidor, por lhe querer grande bem. Que s'algum erro fizera, fora bem que padeçera, & qu'estes filhos ficaram orfaãos tristes, & buscaram quem d'eles paixam ouuera. Mas poys eu nunca errey & sempre mereçy mais, deueys, poderoso rrey, nam quebrantar vossa ley, que, se moyro, quebrantays. Usay mays de piadade que de rrigor, nem vontade: avey doo, senhor, de mym, nam me deys tam triste fim, pois que nunca fiz maldade. El rrey, vendo como estaua, ouue de mym compaixam & vyo o, que nam oulhaua, qu'eu a ele nam erraua, nem fizera traiçam. E vendo, quam de verdade tive amor & lealdade hoo prinçepe, cuja sam, pode mais a piadade que a determinaçam, Que se n'ele defendera, c'a sseu filho nam amasse & lh'eu nam obedeçera, entam com rrezam podera dar-m'a moorte c'ordenasse. Mas vendo que nenhum'ora, desque naçy ategora, nunca nisso me falou, quando sse d'isto lembrou, foy-se pola porta fora. Com sseu rrosto lagrimoso, c'o proposito mudado, muyto triste, muy cuidoso, como rrey muy piadoso, muy Cristam & esforçado. Hum daqueles que trazia conssiguo na companhya, caualeyro desalmado, de tras d'ele, muy yrado, estas palauras dezia: Senhor vossa piadade he dina de rreprender, pois que sem necessidade mudaram vossa vontade lagrimas d'uma molher. E quereys c'abarreguado com filhos, como casado, estê senhor vosso filho; de vos mais me marauilho que d'ele, que'e namorado. Se a loguo nam matais, não sereis nunca temido, nem faram o que mandays, poys tam çedo vos mandays do consselho qu'era avido. Olhay, quam justa querela tendes, pois por amor d'ela vosso filho quer estar sem casar, & nos quer dar muyta guerra com Castela. Com sua morte escusareis muytas mortes, muytos danos, vos, senhor, descanssareis, & a vos & a nos dareis paz para duzentos anos. O prinçepe casaraa, filhos de bençam teraa seraa fora de pecado; c'aguora seja anojado, a menham lh'esqueeçeraa. E ouuyndo seu dizer, el rrey ficou muy toruado, por se em tais estremos ver, & que avya de fazer ou hum ou outro, forçado. Desejaua dar-me vida, por lhe nam ter mereçida a morte, nem nenhum mal: sentya pena mortal por ter feyto tal partida. E vendo que se lhe daua a ele tod'esta culpa, & que tanto o apertaua, disse a aquele que bradaua: mynha tençam me desculpa. Se o vos quereis fazer, fazey-o sem m'o dizer; qu'eu nisso nam mando nada, nem vejo ha essa coytada porque deva de morrer, Dous caualeyros yrosos, que tais palauras lh'ouvyram, muy crus & nam piadosos, perverssos, desamorosos, contra mym rrijo se vyram. Com as espadas na mam m'atrauessam o coraçam, a confissam me tolheram: este he o gualardam, que meus amores me deram. Cancioneiro Geral, t. III, p. 617. * * * * * FRANCISCO DE SOUSA Trovas a este vilancete: Abayx'este sserra Verey minha terra. Oo montes erguidos! Deyxay-vos cahyr, deyxay-vos somyr & ser destroydos. Poys males sentidos me dam tanta guerra, por vêr minha terra. Ribeyras do mar! que tendes mudanças, as minhas lembranças deyxay-as passar. Deyxay-m'as tornar dar nouas da terra, que daa tanta guerra. O ssol escureçe, a noyte sse uem, meus olhos, meu bem ja nam aparece. Mays çedo anoyteçe aaquem d'esta sserra que na minha terra. Cancioneiro Geral, t. III, p. 562. * * * * * GIL VICENTE Romance em memoria da partida da Infanta Dona Beatriz para Saboya, cantado no Auto das Cortes de Jupiter, que se representou nos Paços da Ribeira em 1519. Niña era la Ifanta, Dona Beatriz se decia, Nieta del buen Rey Hernando, El mejor Rey de Castilla, Hija del Rey Don Manoel Y Reyna Dona Maria, Reis de tanta bondad Que tales dos no habia. Niña la casó su padre, Muy hermosa á maravilla, Con el Duque de Saboya, Que bien le pertenecia. Señor de muchos señores, Mas que Rey es su vaalia. Ya se parte la Ifanta, La Ifanta se partia De la muy leal ciudad Que Lisbona se decia; La riqueza que llevaba Vale toda a Alejandria. Sus naves muy alterosas, Sin cuento la artilleria; Va por el mar de Levante, Tal que temblaba Turquia. Con ella va el Arzobispo Señor de la Clerezia: Van Condes y Caballeros, De muy notable osadia; Lleva damas muy hermosas, Hijas dalgo y de valia. Dios los lleve á salvamiento Como su madre querria. Obras t. II, p. 416. Edição de Hamburgo. * * * * * Romance burlesco, glosando o celebre romance de «Yo me estaba alla en Coimbra» cantado na farça dos Almocreves que se representou em Coimbra em 1526. _Yo me estaba en Coimbra_, Cidade bem assentada; Pelos campos de Mondego Não vi palha nem cevada. Quando aquillo vi mesquinho, Entendi que era cilada Contra os cavallos da côrte E minha mula pellada. Logo tive a mao sinal Tanta milhan apanhada, E a peso de dinheiro O mula desamparada. Vi vir ao longo do rio Hua batalha ordenada, Não de gente, mas de mus, Com muita raiva pisada. A carne está em Bretanha, E as couves em Biscaia. Sam capellão d'hum fidalgo Que não tem renda, nem nada; Quer ter muitos apparatos, E a casa anda esfaimada; Toma ratinhos por pagens, Anda já a cousa damnada. Quero-lhe pedir licença, Pague-me minha soldada. Obras, t. III, p. 202. * * * * * Cantiga dos Romeiros em folia no Auto do Templo d'Apollo, representado em 1526 na partida da infanta filha de D. Manoel, que casou com Carlos V. Pardeos, bem andou Castella, Pois tem Rainha tão bella. Muito bem andou Castella E todos os Castelhanos, Pois tem Rainha tão bella, Senhora de los Romanos. Pardeos, bem andou Castella Com toda sua Hespanha, Pois tem Rainha tão bella, Imperatriz d'Allemanha. Muito bem andou Castella, Navarra e Aragão, Pois tem Rainha tão bella, E Duqueza de Milão, Pardeos, bem andou Castella E Sicilia tambem, Pois tem Rainha tão bella, Conquista de Jerusalem. Muito bem andou Castella, E Navarra não lhe pesa, Pois tem Rainha tão bella, E de Frandes he Duqueza. Pardeos bem anda Castella, Napoles e sua fronteira, Pois tem Rainha tão bella, França sua prisioneira. Obr. t, II, p. 392. * * * * * Romance ao nascimento do infante Dom felipe, com que termina a tragi-comedia da Romagem de Aggravados, representada em Evora em 1533. Por Maio era por Maio Ocho dias por andar, El Ifante Don Felipe Nació en Evora ciudad. Viva el Ifante, El Rey, y la Reyna, Como las aguas del mar. No nació en noche escura, Ni tampoco por lunar, Nació quando el sol decrina Sus rayos sobre la mar. En un dia de domingo Domingo para notar, Cuando las aves cantaban Cada una su cantar. Cuando los árboles verdes Sus fructos quieren pintar, Alumbró Dios á la Reina Con su fructo natural. Viva el Ifante, el Rey y la Reyna Como las aguas do mar. Obr. t. II, p. 531. * * * * * Romance á morte de El Rei Dom Manoel. Pranto fazem em Lisboa, Dia de Santa Luzia, Por El Rei Dom Manuel, Que se finou n'esse dia. Choram Duques, Mestres, Condes, Cada um quem mais podia; Os fidalgos e donzellas Muito tristes em porfia; Os Iffantes davam gritos, A Iffanta se carpia; Seus olhos maravilhosos Fonte d'agua parecia. Bem merecem ser escriptas As lastimas que fazia: «Paço tão desamparado Derribado merecia, Pois a sua fortaleza Se tornou em terra fria. Oh minha senhora madre Rainha Dona Maria, Quem a vós levou primeiro Mui grande bem vos queria, Pois que vos livrou da pena Que passamos n'este dia.» E outras magoas, que de tristes Contar não mais ousaria. O Principe dava suspiros, Que a alma se lhe sahia; Suas lagrimas prudentes, Como a gran senhor cumpria: De dia sempre velava, De noite nunca dormia. A Rainha estrangeira Já chorar o não podia: Com rouca voz dolorosa Estas palavras dizia: «Oh Reina desamparada! Qué haré sim compañia, Pues que en esta triste vida Sola una vida tenia! Y pues me la llevó la muerte, Para qué quiero la mia? Oh sin ventura casada Tres años no mas habia, Quien tan presto fue viuda Triste para que nascia; Niña sola en tierra agena, Huérfana sin alegria!» Se uma vez acordava Outras sete esmorecia; Assi pedia a Deos morte Como quem pede alegria, Dizendo: «Llevenme luego, Que esta tierra ya no es mia: Por la mar por donde fuere Algun peligro venia, Que me matasse á mi sola Salvando la compañia.» O bom Rei em seu acordo Deste mundo se partia: Sua morte conhecendo Com muita sabedoria, Per palavras piedosas Os sacramentos pedia; Falando sempre com todos, Deu sua alma a quem devia. Morto levam o gran Rei Senhores de gran valia, Dizendo uns aos outros: Oh que triste romaria! Que grande amigo perdemos E que doce companhia! Já passada a meia noite, Tres horas antes do dia Mettido em um ataúde O qu'inda ha pouco regía, O gran senhor do Oriente Dos seus Paços se partia. Seiscentas tochas accezas, Escuras a quem as via; Triste pranto até Belem Nem passo não se esquecia. Em terra fica enterrado, Porque assi mandado havia, Conhecendo que era terra A mundanal senhoria. Disse que os vãos thezouros Á morta não pertencia. Desque ficou enterrado Cada um se despedia, Dizendo estes versos tristes Á gloriosa Maria. Etc. Obr. t. III, p. 348. * * * * * Romance á aclamação de D. João 3.º Desanove de Dezembro, Perto era do Natal, Na cidade de Lisboa Mui nobre e sempre leal, Foi levantado por Rei Dos reinos de Portugal O Principe Dom João, Principe angelical. Sahiu n'uma faca branca, Parecia de cristal, Guarnecida de maneira Que se não viu sua igual. Opa leva roçagante, Tudo fio d'ouro tal, Forrada de ricas martas, Bem parecia real; Pelote de prata fina, Prata mui oriental, Barrado de pedraria Vinha-lhe mui natural. De perlas não fazem conta Porque é baixo metal; Só um collar que levava Toda Alexandria val; Na cabeça leva preto Por seu padre natural; Sahiu com lagrimas tristes Como filho mui leal. O seu rosto tão formoso Que parece divinal, Seus olhos resplandeciam Como estrellas igual; Os cabellos da cabeça D'ouro eram que não d'al; Sua boca graciosa Com ar mui angelical, Um semblante soberano, Um olhar imperial. Não foi tal contentamento No povo todo em geral, Como ver na Rua nova Ir o seu Rei natural Com tanta graça e lindeza, Que não parece humanal. Os forasteiros diziam: Mui ditoso é Portugal. O Iffante Dom Luis Leva o estoque Real; O Iffante Dom Fernando, Outro seu irmão carnal, Ao estribo direito A pé, não lhe estava mal, Porque em tal solemnidade Tudo lhe vem natural: Todolos Grandes a pé, Quantos ha em Portugal. O Conde Priol levava A bandeira principal. Chegou assi a San Domingos, Onde estava o Cardial: Benzeu o mui alto Rei De benção pontifical, E deu logo juramento; Jurou n'um livro missal De fazer cumprir as leis Como lei imperial; Confirmou os privilegios D'esta cidade Real. Os povos muito contentes De Rei tão especial, De pequeno sempre grande, Magnifico e liberal, Que é virtude julgada Dos Principes principal. Isto tudo assi acabado, Disseram: Arraial! Arraial! Alli tocam as trombetas, Atabales outro tal: Todos lhe beijam a mao, Os senhores em geral. Obr. t. III, p. 355. * * * * * Cantiga da Natal, com que remata o Auto Pastoril, representado em Evora a D. João 3.º em 1523. Quem he a desposada? A Virgem sagrada. Quem é a que paria? A Virgem Maria. Em Bethlem, cidade Muito pequenina, Vi hua desposada E Virgem parida. Em Bethlem, cidade, Muito pequenina, Vi hua desposada E Virgem parida. Quem he a desposada? A Virgem sagrada. Quem he a que paria? A Virgem Maria. Hua pobre casa Toda reluzia, Os anjos cantavam, O mundo dizia: Quem he a desposada? A Virgem sagrada. Quem he a que paria? A Virgem Maria. Obr. t. I, p. 147. * * * * * Vilancete de Abel no Auto da Historia de Deos, representado em Almeirim em 1527. Adorae, montanhas, O Deos das alturas, Tambem as verduras; Adorae, desertos E serras floridas, O Deos dos secretos, O Senhor das vidas: Ribeiras crescidas, Louvae nas alturas Deos das criaturas. Louvae, arvoredos De fructo presado, Digam os penedos Deos seja louvado, E louve meu gado N'estas verduras O Deos das alturas. Obr. t. I, p. 317. * * * * * A serra é alta, fria e nevosa; Vi venir serrana gentil, graciosa. Cheguei-me a ella de gran cortezia, Disse-lhe:--Senhora, quereis companhia? Disse-lhe:--Senhora quereis companhia? Disse-me: «Escudeiro, segui vossa via. Obr. t. III, p. 214. * * * * * Fragmento da versão da «Bella mal maridada.» Le bella mal maruvada De linde que a mi ve, Vejo-ta triste nojada, Dize tu razão puruque. A mi cuida que doromia Quando me foram cassá; Se acordaro a mi jazia Esse nunca a mi lembrá. Le bella mal maruvada Não sei quem cassa a mi, Mia marido não vale nada, Mi sabe razão puruque. Obr. t. II, p. 333. * * * * * --D'onde vindes, filha, Branca e colorida? «De lá venho, madre De ribas de um rio; Achei meus amores N'um rosal florido. --Florido, enha filha Branca e colorida. «De la venho, madre, De ribas de um alto, Achei meus amores N'um rosal granado. --Granado, enha filha, Branca e colorida. Obr. t, III, p. 270 * * * * * Cantiga cantada em chacota de pastores na tragicomedia pastoril da Serra da Estrella, representanda em Coimbra em 1527. Não me firaes, madre, Que eu direi a verdade. Madre, hum escudeiro Da nossa Rainha Falou-me d'amores; Vereis que dizia, Eu direi a verdade. Falou-me d'amores, Vereis que dizia: Quem te me tivesse Desnuda em camisa! Eu direi a verdade. Obras. t. II, p. 445. * * * * * Cantiga consenvada no Auto da Lusitania, representado em 1532. Vanse mis amores, madre Luengas terras van morar, Yo no los puedo olvidar. Quien me los hará tornar. Yo soñara, madre, un sueño, Que me dió nel corazon, Que se iban mis amores Á las islas de la mar, Yo no los puedo olvidar. Quien me los hará tornar. Yo soñora, madre, un sueño Que me dió nel corazon, Que se iban mis amores Á las terras de Aragon: Alla se van á morar. Yo no los puedo olvidar, Quien me los hará tornar. Obr. t. III, p. 299. * * * * * Cantiga conservada na comedia de Rubena. Halcon que se atreve Con garza guerrera Peligros espera. Halcon que se vuela Con garza á profia, Cazar la queria, Y no la receia: Mas quien no se vela De garza guerrera Peligros espera. La caza de amor Es de altaneria; Trabajos de dia, De noche dolor: Halcon cazador Con garza tan fiera Peligros espera. Obr. t. II, p 49. * * * * * BERNARDIM RIBEIRO Cantar á maneira de Solao, que vem no capitulo XXI da menina e Moça. Pençando-vos estou filha, Vossa mãe me está lembrando, Enchem-se-me os olhos d'agoa Nella vos estou lavando. Nascestes filha entre magoa, Pera bem inda vos seja, Pois em vosso nascimento Fortuna vos houve inveja. Morto era o contentamento, Nenhuma alegria ouvistes, Vossa mãe era finada, Nós outros eramos tristes. Nada em dôr, em dôr criada, Não sei onde isto hade ir ter, Vejo-vos filha fermosa Com olhos verdes crescer. Não era esta graça vossa Pera nascer em desterro; Mal haja a desaventura Que poz mais nisto que o erro. Tinha aqui sua sepultura Vossa mãi, e magoa a nós; Não ereis vós filha, não, Pera morrerem por vós. Não houve em fados razão, Nem se consentem rogar; De vosso pai hei mór dôr, Que de si se hade queixar. Eu vos ouvi a vós só Primeiro que outrem ninguem; Não foreis vós, se eu não fôra, Não sei se fiz mal, se bem. Mas não póde ser, senhora, Pera mal nenhum nascerdes, Com esse riso gracioso Que tendes sob olhos verdes. Conforto mais duvidoso Me é este que tomo assi, Deos vos dê melhor ventura Do que tiveste té aqui. A dita, e a formosura Dizem patranhas antigas, Que pelejaram um dia Sendo d'antes muito amigas. Muitos hão que é fantesia; Eu que vi tempos e annos, Nenhuma cousa duvido Como ella é azo de damnos. Nem nenhum mal não é crido; O bem só é esperado: E na crença, e na esperança Em ambas ha hi cuidado; Em ambas ha hi mudança. * * * * * Romance de Avalor, que vem no capitulo XI da segunda parte das Saudades. Pola ribeira de um rio, Que leva as agoas ao mar, Vai o triste de Avalor, Não sabe se hade tornar. As agoas levam seu bem, Elle leva o seu pesar, E só vai sem companhia, Que os seus fora elle leixar. Cá quem não leva descanso, Descansa em só caminhar: Descontra donde ia a barca Se ia o Sol a baxar. Indo-se abaxando o Sol, Escurecia-se o ar: Tudo se fazia triste Quanto havia de ficar. Da barca levantam remo, E ao som do remar Começaram os remeiros Do barco este cantar: Que frias eram as agoas, Quem as haverá de passar? Dos outros barcos respondem: Quem as haverá de passar? Senão quem a vontade pôz Onde a não pode tirar, Trala barca levam olhos, Quanto o dia dá logar. Não durou muito; que o bem Não pode muito durar. Vendo o Sol posto contr'elle Soltou redeas ao cavallo Da beira do rio andar. A noite era callada Pera mais o magoar Que ao compasso dos remos Era o seu suspirar. Querer contar suas magoas Seria arêas contar, Quanto mais se alongando Se ia alongando o soar. Dos seus ouvidos aos olhos A tristeza foi egualar; Assim como ia a cavallo Foi pela agua dentro entrar. E dando um longo suspiro, Ouvia longe falar: Onde magoas levam alma Vão tambem corpo levar. Mas indo assi, por acerto, Foi c'um barco n'agua dar, Que estava amarrado á terra, E seu dono era a folgar. Saltou, assim como ia, dentro, E foi a amarra cortar, A corrente e a maré Acertaram-no a ajudar. Não sabem mais que foi d'elle, Nem novas se podem achar; Suspeitou-se que era morto, Mas não é para affirmar; Que o embarcou ventura Para só isso guardar, Mais são as magoas do mar Do que se podem curar. * * * * * Romance que vem na Ecloga 5.ª ao qual se chamou Cuidado e Desejo. Ao longo de uma ribeira, Que vae polo pé da serra, Onde me a mi fez a guerra Muito tempo o grande amor, Me levou a minha dôr; Já era tarde do dia, E a agua d'ella corria Por antre um alto arvoredo, Onde ás vezes ia quedo O rio, e ás vezes não. Entrada era do verão, Quando começam as aves, Com seus cantares suaves Fazer tudo gracioso; Ao rugido saudoso Das aguas cantavam ellas; Todalas minhas queréllas Se me pozeram diante; Ali morrer quizera ante, Que ver por onde passei; Mas eu que digo? passei! Antes inda heide passar Em quanto hi houver pezar, Que sempre o hi hade haver. As aguas, que do correr Não cessavam um momento, Me trouxeram ao pensamento, Que assim eram minhas magoas, D'onde sempre correm aguas Por estes olhos mesquinhos, Que têm abertos caminhos, Pelo meio do meu rosto. E já não tenho outro gosto Na grande desdita minha. O que eu cuidava que tinha Foi-se-me assim não sei como, D'onde eu certa crença tomo, Que pera me leixar veiu. Mas tendo-me assim alheio, De mim o que ali cuidava, Da banda d'onde a agoa estava, Vi um homem todo caã Que lhe dava pelo cham, A barba e o cabello. Ficando eu pasmado d'ello, Olhando elle para mim, Falou-me, e disse-me assim: «Tambem vae esta agoa ao Tejo.» N'isto olhei, vi meu Desejo Estar detraz triste e só, Todo cuberto de dó, Chorando, sem dizer nada, A cara em sangue lavada, Na bocca pósta uma mão, Como que a grande paixão Sua fala lhe tolhia. E o velho que tudo via, Vendo-me tambem chorar, Começou assi a falar: «Eu mesmo sou teu Cuidado, Que n'outra terra criado, N'esta primeiro nasci. E ess'outro que está aqui É o teu Desejo triste, Que má hora o tu viste, Pois nunca te esquecerá! A terra e mar passará Traspassando a magoa a ti.» Quando lhe eu aquisto ouvi, Soltei suspiros ao choro; Ali claramente o fôro Meus olhos tristes pagaram De um bem só qu'elles olharam, Que outro nunca mais tiveram, Nem o tive; nem m'o deram: Nem o esperei sómente. De só ver fui tão contente, Que pera mais esperar Nunca me deram lugar. E n'aquisto, triste estando, Com os olhos tristes olhando D'aquellas bandas d'álem, Olhei, e não vi ninguem. Dei então a caminhar Rio abaixo, até chegar Acerca de Monte-Mór. Com meus males derredor, Da banda do meio dia, Ali minha Phantasia, D'antre uns medrosos penedos, Onde aves que fazem medos De noite os dias vão ter, Me saíu a receber Com uma mulher polo braço, Que, ao parecer, de cansaço Não podia ter-se em si, Dizendo:--Vês, triste, aqui A triste Lembrança tua.-- Minha vista então na sua Puz; d'ella todo me enchi: A primeira cousa que vi, E a derradeira tambem, Que no mundo vão e vem! Seus olhos verdes rasgados, De lagrimas carregados, Logo em vendo-os, pareciam Que de lagrimas enchiam Contino as suas faces, Que eram, gram tempo, paces Antre mim e meus cuidados. Louros cabellos ondados Que um negro manto cobria: Na tristeza parecia Que lhe convinha morrer. Os seus olhos de me ver, Como furtados, tirou, Depois em cheio me olhou. Seus alvos peitos rasgando, Em voz alta se aqueixando, Disse assim mui só sentida: --Pois que mór dôr, ha na vida, Pera que houve ahi morrer?-- Calou-se sem mais dizer, E de mi gemidos dando, Fui-me pera ella chorando Pera a haver de consolar... N'isto pôz-se o sol ao mar, E fez-se noite escura, E disse mal á ventura, E á vida, que não morri... E muito longe d'ali, Ouvi de um alto outeiro Chamar: _Bernardim Ribeiro_ E dizer:--Olha onde estás.-- Olhei de ante, e de trás E vi tudo escuridão, Cerrei meus olhos então, E nunca mais os abri, Que depois que os perdi Nunca vi tão grande bem, Porém inda mal, porém! Obras. p. 351 ed. de 1852. * * * * * CHRISTOVAM FALCÃO Cantiga com suas voltas. Não posso dormir as noites, Amor, não as posso dormir. Desque meus olhos olharam Em vós seu mal e seu bem, Se algum tempo repousaram Já nenhum repouso tem. Dias vão e dias vem, Sem vos vêr, nem vos ouvir, Como as poderei dormir? Meu pensamento occupado Na causa do seu pensar, Acorda sempre o cuidado Pera nunca descuidar. As noites de repousar Dias são ao meu sentir, Noites do meu não dormir. Todo o bem que é já passado E passado em mal presente, O sentido desvelado, O coração descontente. O juizo que isto sente Como se deve sentir, Pouco deixará dormir. Como não vi o que vejo C'os olhos do coração, Não me deito sem desejo, Nem me ergo sem paixão; Os dias sem vos vêr vão, As noites sem vos ouvir, Eu não n'as posso dormir. * * * * * SÁ DE MIRANDA Cantiga. Naquella alta serra Me quero ir morar, Quem me quizer bem, Quem bem me quizer, Lá me irá buscar. VOLTAS N'estes povoados Tudo sam requestas, Deixay-me os cuidados Que em vós deixo as festas. D'aquellas florestas Verey longe o mar, Por-me-hey a cuidar. Sombras e aguas frias, Quando o sol mais arde; Despois sobre a tarde Por cá bradarias, Vês, que pressa os dias Levam sem cansar, Nunca hamde tornar. Não julgue ninguem Nunca outrem por si, Mais de um bem que ouvi A vida nam tem. Nam deixa este bem, Onde se elle achar Mais que desejar. Deixa as vaydades Que da mão á bocca O prazer se troca, Trocão-se as vontades. Essas são saudades, Armadas no ár, Que podem durar? 'Naquella espessura Me hey d'ir esconder, Venha o que vier, Achar-me-ha segura, Se tal bem não dura Ao seu trespassar Tudo hade acabar. Obras, ediç. de 1677, p. 314. * * * * * JORGE DE MONTE-MOR Canção tirada da novella pastoril intitulada «Diana.» Os tempos se mudarão, A vida se acabará; Mas a fé sempre estará Onde meus olhos estão. Os dias e os momentos, As horas com suas mudanças, Amigas são de esperanças, E amigas de pensamentos. Os pensamentos estão, A esperança acabará, A fé não me deixará Por honra do coração. É causa de muitos danos Duvidosa confiança; Que a vida sem esperança Já não teme desenganos. Os tempos se vem e vão, A vida se acabará, Mas a fé não quererá Fazer-me esta sem razão. * * * * * Outra cançoneta Suspiros, minha lembrança, Não quer, porque vos não vades, Que o mal que fazem saudades Se cura com esperanças. A esperança me vai Por causa, em que se tem, Nem prommette tanto bem Quanto a saudade faz mal. Mas, amor, desconfiança, Me deram tal qualidade, Que nem me mata a saudade, Nem me dá vida a esperança. Errarão, se se queixarem Os olhos, com que eu olhei, Porque não me queixarei Em quanto os seus me lembrarem. Nem poderá haver mudança Jamais em minha vontade, Ou me mate a saudade, Ou me deixe a esperança. * * * * * JORGE FERREIRA DE VASCONCELLOS Romance da batalha que El-Rei Arthur teve com Morderet, seu filho. Gram Bretanha desleal, Ao melhor rei que tiveste D'agora, té o fim do mundo Chora quanto bem perdeste: Jaz no campo, entregue á morte Que falsa, ingrata lhe deste, A flor da cavalleria Com que te ensoberveceste. A pena tem já da culpa Que lhe assi favoreste, Oh traidor de Mordereth, Porque um tal rei vendeste? Oh Bretanha desleal Que grande traição fizeste, A vinte quatro da Távola Que por Ginebra escolheste. Á demanda do Grial Triste remate poseste; Morto jaz de mil feridas, E tu, soberba lh'as deste, Dom Galvão tão animoso Por quem mil glorias tiveste; E matar Dom Galeazo Ingrata como podeste? Que em obras de fortaleza, Não sei se outro egual houveste! Pôde matar-te Bretanha Que tu tanto engrandeceste! Esforçado Flordemares, Que em forças mares venceste, A morte, que em defenderes Tal rei, d'ella padeceste. Oh animado Troyano, Nunca lh'o tu mereceste, Mal lhe merecias, mal O que d'ella recebeste. Palamedes, oh pagão Que nas armas floreceste: Dom Tristão de Leonis, Que por amores morreste. Em não morreres aqui Ditosa sorte tiveste, Tu, Lançarote do Lago Que as glorias de amor houveste; De damas servido, amado Da dona a quem mais quizeste, Com dano dos traydores Á morte a que te rendeste. Ficarás sem sepultura Co'a pena que mereceste Tu traidor Morderet Pois tal traição commetteste Aqui se acabou a gloria Quanta, Bretanha, tiveste: Em pago da qual a Arthur Nem a sepultura deste. Cá na Ilha de Avalom, Merlim, vergel lhe fizeste, Em que vive, e só salval-o De affronta e morte podeste. Como amigo que as más manhas De Bretanha conheceste, Mas n'algum tempo inda Arthur, Bom Rei que desmereceste, Bretanha virá a vingar-se Da traição que lhe fizeste. _Memorial das Proesas da Segunda Tavola Redonda_, cap. III. * * * * * Romance ao modo hespanhol, com gentil arte e disposição, sobre a Guerra de Troya. Naquella montanha Ydéa Que Afrodísia frequentava, Páris, aquelle pastor A quem Enone amava, Com ella de companhia As feras bravas caçava, As aves de mil maneiras Armando laços tomava. Antre murteiras, nos braços Da Nimpha a sesta passava, D'onde ter-lhe eterno amor Muitas vezes lhe jurava; E de tel-a por senhora Comsigo se vangloriava. Aquelle que por ser justo De hera os touros coroava, Embaixada de Tronante Mercurio lhe apresentava: Pera julgar antre as Deosas Que a discordia baralhava, E de cada uma dellas Promessas lhe apresentava, Riqueza uma, outra victoria, Venus formosura dava. O justo pastor se incrina Ao que os olhos contentava, E quer ver núas as Deosas Que nada vêr lhe estorvava. Oh desenho temerario, Que tal perigo intentava, Com rasão e com desejo, Por Cytherêa julgava. E a Deosa satisfeita Da palavra penhorava: Enlevado na esperança Ênone já desprezava. Lagrimas por seu amor Em satisfação lhe dava: O seu descanso amoroso Por trabalhos o trocava. Venus cumpre sua promessa, Fortuna Ênone vingava, Com a fermosa Greciana A toda a Troya abrasava. E não lhe valeu Cassandra, Que furiosa o gritava, Que estes são os galardões Que amor vingativo dava. _Memorial das Proesas, etc._ cap. VIII * * * * * Romance da morte de Achilles, e desgraça de Policena. Diante os muros de Troya Mui ufano passeava Achilles, o mui soberbo Que em seu peito a abrasava. A fermosa Policena Antre as ameyas estava; E tal era a fermosura Com que d'ellas se estremava, Que ao romper per antre as nuvens A Aurora semelhava. O cruel inimigo os olhos A tal luz alevantava. De seus raios traspassado Dentro do peito se achava, Com a dor que na alma sente A falar-lhe se chegava; Mas a troyana princeza Que em extremo o desamava, Recolheu-se com gemidos Que a deoses apresentava, Pedindo-lhes a vingança Que ella a tomar não bastava. O cavalleiro indomavel Tam preso e triste ficava, Que com suspiros ao céo Sua dor manifestava: Já d'antes a tinha visto Quando ella Hector pranteava, Des então do seu amor Sua alma presa enxergava; De como pudesse havel-a Muitas contas só lançava. Como agora, amor repouso Nem soffrimento lhe dava, Soccorreu-se á esperança Que a vida lhe sustentava; A Hecuba sua madre Tal mensagem ali mandava: Que se quer ver Troya livre Policena assegurava Que elle a fará descercar Se por senhora lhe dava. Hecuba, que mais que a vida Vingar Hector desejava, Com Páris logo da morte De Achilles cruel tratava. Respondeu-lhe que se vissem No templo em que Apollo estava. Recebera Policena, Se a fé ante elle lhe dava; E de imigo será filho, Se lhe Troya descercava. O triste amador que a via, Nem cem vidas estimava, A respeito do desejo Que Policena causava. Sem temer e sem receio, Sem cuidar que aventurava, Entregando-se á ventura E Amor que o guiava, Sem cautella e em seu conselho No templo de Apollo entrava. De giolhos posto ante elle Muitas graças a amor dava. Páris, que com arco armado Escondido o esperava, Fazendo votos a Apollo Se lhe a seta endereçava, Em o vendo de giolhos Muy prestes n'elle encarava; Pola pranta do seu pé A vida lhe atravessava, Cae o triste namorado De quem tanto o desamava; N'esta vingança de Hector Toda a Troya se alegrava Obra cit. p. 128. * * * * * Romance da morte de Policena para Vingar os manes de Achilles. No templo de Apollo, Achilles Desprovido, namorado Jaz morto n'alma do pé De uma seta trespassado. E não lhe valeu no mar Por Thetis ser encantado, Aquelle que dos Troyanos Era temor e cuidado. Dos Gregos o defensor Pouca cinza já tornado, A pequena Urna não enche Aquelle grande esforçado. Contem de sobre suas armas Todo capitão notado, A Thelamão e a Ulysses Todos o logar tem dado. Não nas leva o cavalleiro E levou-as o avisado, A Troya é toda abrasada, O Illião derrubado. Querem-se partir os Gregos Não fica Achilles vingado. Da terra sae a sua sombra, E com o seu vulto ayrado, Como quando a Agamenão Tentou matar denodado: «Quereis vos partir, (dizia) Grego exercito malvado? E fique eu na sepultura Sem vingança deshonrado.» Pede Policena a alma De Achiles d'ella engeitado. Agora Pirho o soberbo Filho, do pae o traslado, Dos braços da triste mãy Que por todos tem chorado, Traz Policena ao sepulchro Virgem de animo estremado; E vendo Pirho, o cruel, Contr'ella determinado, Com rosto seguro, honesto, Fermoso, mas descorado, Diz: «Derrama o generoso Sangue real apurado: Farte-se a grega crueza Cumpra-se meu triste fado; Seja meu pescoço ou peito D'essa espada trespassado. Livre naceu Policena, Servir outrem não lhe é dado. Não será com minha morte Algum idolo applacado, O coração só quizera Da minha mãe esforçado. O gosto da morte minha Esta dor m'o tem tirado: Deve chorar só sua vida E invejar meu estado. A filha do rei Priamo Sobre os reis afortunado, Vos roga que á triste mãe Seja seu corpo entregado; Não seja como o de Hector Por outro inda resgatado, Contentae-vos que com lagrimas A coitada o tem comprado.» Isto disse, e de um só golpe Do cruel Pirho indomado, O pescoço cristalino Do corpo lhe foi apartado; De recolher, em caindo, As fraldas, teve cuidado Por conservar o decoro Nas Virgens sempre estimado. _Memorial_, cap. XXXV. * * * * * Romance da Historia de Roma. De ti casto Scipião Sofonisba ouvi queixar, Que foste imigo de amor Por querer d'ella triumphar. Na forte cidade Cirta Masenisa fôra entrar, E por teu mandado Sifax Seu marido foi matar. Com furia e odio imigo Nos seus paços fôra dar, Mas na mór força da furia Amor o pôde amansar: Dos encontros dos seus olhos O seu coração domar. De escrava feita senhora De quem vinha cativar, De eterno amor dada fé, As almas foram trocar: Lagrimas e fermosura Tudo puderam acabar. Sabido per Cipião Que amor não pôde abrasar, Com coração deshumano, Com razoes não de acceitar, A Masenisa escrevia Que lh'a mandasse entregar, Porque era imiga de Roma Da geração de Amilcar. Em grande affronta se vê Masenisa e gram pesar, O coração não lhe leva Á Sofonisba faltar. Cuidou um mui duro meio Pera haver de a libertar! Uma cópa de peçonha Lhe mandou appresentar, Em logar da liberdade Que lhe não podia dar. Sofonisba muy contente A bebeu sem receiar, Sentindo somente a dor, Que se não pode escusar, Por amor da Masenisa Que vive pera a passar. Dizendo: «Por vós, amor, Me quero sacrificar, Não será d'outro cativa Quem toda se vos quiz dar.» Mal haja fortuna imiga Que tal amor foi cortar. _Memorial_, etc. cap. XIII. * * * * * Romance da vespera da batalha da Pharsalia De Roma sahe Pompeo, E toda Roma o seguia, Com temor de Julio Cesar Que de França já partia. O Robicão tem passado Contra Roma traz a via. Apesar do bom Metelo, Do thesouro se provia, Apoz Pompeo se vae, E Pompeo que o sabia, Em Brandusio se faz forte, E d'ali per mar fugia; Desamparando a Italia Defendel-a pertendia, De romanos e outra gente Grande exercito fazia; A Cesar dera batalha Se o seguira vencia, Por arredal-o do mar Fugir-lhe Cesar fingia: Ser arte de capitão Pompeo bem o entendia, A Cesar, contra o que entende, E a seu pesar, seguia. Já nos campos de Pharsalia Um contra o outro se via, Vendo-se chegado á summa Pompeo do que temia. Oh que grande senhorio O conjugal amor cria, Que só Cornelia é a causa Que reprime o que cumpria; É-lhe forçado apartal-a, Dilata-o de dia em dia, No seu leito sem repouso Chorando, cá não dormia. Cornelia tem a seu lado Que animal-o commetia, De lagrimas suas faces Humidas ali sentia. Dissimula, cá não ousa Tomal-o em tal agonia, Parecendo-lhe que o magno Pompeo assi se abatia. Elle que a sente e entende Taes palavras lhe dizia: «Mulher, a que eu mais que a propria Vida, ditosa queria, Não esta que me aborrece Mas quando ledo vivia, É vindo o tempo que eu triste Dilatado, e já não podia Cá Cesar está no campo E a batalha offerecia; Cumpre dar logar á guerra Mandar-te a Lesbos queria; O al tenho a mi negado, Não cures de mais porfia, Este nosso apartamento Por muito pouco seria. Do teu verdadeiro amor Confiança não teria Se vêres esta batalha O coração t'o soffria. Corro-me de estar comtigo Quando a guerra assi fervia; Mais seguro é que de longe Ouças o que succedia, Se me a fortuna fôr falsa E se me Cesar vencia! A melhor parte de mim Segurar, sequer, queria. Quero ter onde me ir possa Segurar minha agonia.» Cortada de mortal dor Cornelia, que isto ouvia, Esforçando-se com dor A triste assi respondia: --Dos deoses e da fortuna Já me queixar não podia, Pois per morte não me aparta Da conjugal companhia, Ser como vil engeitada De ti, d'isto me sentia. Cuidares que algum logar Sem ti me seguraria! E queres, se fôres morto, Que viva ainda algum dia? Já me ensinas a soffrer Dor que nem cuidar soffria: A mulher do gram Pompeo Esconder não se podia. D'onde se desbaratado Fôres, isto só pedia: Salva-te em toda outra parte E de Lesbos te desvia.» Partindo-se d'elle agora Um do outro não se espedia. A Lesbos se vae Cornelia Pompeyo logo a seguia. Vencido vae de seu sogro Tal Cornelia o recebia. «Esta é a minha fortuna Que me inda segue» dizia. _Memorial das Proezas, etc._ cap. 45. * * * * * Romance cantado a trez vozes, que se refere á morte do principe Dom Affonso, filho de El-rei Dom João II e seu unico successor. Principes e Emperadores Que o mundo a sabor mandaes, E tam pouco vos lembraes Da rota da vida eterna! A soberba que governa Vossos peitos deshumanos, Derruba os grandes tyrannos Da mais alta monarchia: Quem da fortuna se fia Não lhe sabe a condição! Soberba lançou Adão Do Parayso deleitoso, Ficando victorioso Do mundo o enganador. Aquelle edificador De Babel, que em competencia Da eterna summa potencia Presumiu d'ella isentar-se, Cahiu por alevantar-se. Apoz elle os successores Assyrios emperadores Que a fortuna sublimou, Em breve os desapossou, Sardanapalo o sentiu. Dos Medos tambem se viu Astiages, que cuidava Que a seus fados atalhava Com mandar matar o neto, Cyro animoso e discreto Que o despossou de seu estado, E foi o Imperio passado Aos Persas, onde o perdeu Dario que desconheceu Vossa humana condição. E aquelle filho de Adão Que negou a natureza, Cuja soberba altiveza Teve em pouco e desprezou O mundo que conquistou, Sua cobiça atenuada Foy com morte antecipada, Seu Imperio dividido. Cesar não menos temido Em confirmação d'este erro Foi morto dos seus a ferro. E todos quantos subiram Tyrannamente, caíram: Caíu Thebas, caíu Troya, Roma que levou a boya A toda potencia humana, Quando foi mais soberana Por si mesma se abateu, Que o mundo não concedeu Haver estado seguro: Por tanto quem quer ter muro Inexpunhavel, e um forte Que não entre humana sorte, Em Deos ponha a confiança, O fundamento, a esperança, Com verdade e com amor: D'onde tu, Rei Sagramor, No que ora vires, verás Exempro que tomarás E te fique por aviso, Que todo o mundo é riso, Sem ter Deos por padroeyro, Guia e norte verdadeiro. E verás um poderoso Rey prudente e justiçoso Liberal, manso, benigno, Que em Deos tem posto seu tino, Christianissimo, cremente, Nos desgostos paciente, Sesudo em prosperidade. Soffreu na adversidade, De David claro traslado, Que sendo de Deos tocado Per vezes, em seu louvor Converte sempre sua dor; A paciencia lhe sobeja, D'onde fortuna, de inveja, Quando mais contente o viu E descuidado o sentiu, De si mesma á traição Poz-lhe o Reyno em condição De fazer termo mortal, E acabar-se Portugal: O bom Rey, que assi o temia, A seu Deos se convertia, E com seu povo gemendo Confiança n'elle tendo, De um phenix que vivo ardeu Logo outro phenix nasceu Por Deos a Portugal dado, Pera ser mais exalçado Que Israel per Salamão. Taes pronosticos nos dão Os aspeitos celestiaes, E seus principios reaes, Como foram trabalhosos Assi hão de ser famosos Os meios e fins da vida, Que longa lhe é concedida; Cá o que se dá sopesado Dos céos sempre foi estremado, Tam beninas as estrellas Lhe serão, que suas velas No mundo sejam espanto, E elle, outro Affonso sancto Que o Reyno renovará, E os termos lhe augmentará Muyto melhor do que eu canto. _Memorial das proezas_, cap. 46. * * * * * Romance á morte do principe D. João. Soberbo está Portugal Em sua gloria enlevado, Vê-se de um rei sabedor Mimoso e bem governado. O mundo todo anda em guerras Injustas mui baralhado: Elle só estava em remanso Seguro e mui descansado, Plantando antre os infieis, Pendões do Crucificado, Por capitães animados Que os levam per seu mandado. E como Deos de taes obras Folga ver-se penhorado, C'os olhos em Portugal Está sempre occupado. E como filho mimoso De quem não perde o cuydado, Porque nam se ensoberbeça Em se vêr tão prosperado, Na força das suas glorias No tempo mais festejado, D'antre os olhos lhe tirava O seu Principe estremado. Vendo no pae paciencia Pera ser mais apurado, Dá graças ao Criador Inda que desconsolado. A menina que seu amor Em flor assi viu cortado, Vencida com soffrimento A dor do amor encortado, No peito se abrasa em magoa O rosto mostra esforçado; O coração lhe dizia O mal de que era assombrado, Entende, soffre e gemia, Padece e maldiz seu fado. A si mesmo se esforçava E fazel-o era forçado, Por dar esforço e consolo A um pae desconsolado, E pera poupar o fructo Do seu amor desejado. Oh animosa princeza, Quanto vos fica obrigado Um reino, que destruido Por vós ficou restaurado! Esforça-te, Portugal, Pois já te vês melhorado De um Rey que antre os Reys Estremo será chamado. _Memorial, etc._ cap. XLVII. * * * * * LUIZ DE CAMÕES Endechas a Barbara escrava Aquella cativa, Que me tem cativo, Porque n'ella vivo, Ja não quer que viva. Eu nunca vi rosa Em suaves mólhos, Que para meus olhos Fosse mais formosa. Nem no campo flores, Nem no céo estrellas, Me parecem bellas, Como os meus amores. Rosto singular, Olhos socegados, Pretos e cansados Mas não de matar. Uma graça viva, Que n'elles lhe mora, Para ser senhora De quem é cativa. Pretos os cabellos, Onde o povo vão, Perde opinião, Que os loucos são bellos. Pretidão de amor Tão doce a figura, Que a neve lhe jura Que trocara a côr. Léda mansidão Que o siso acompanha, Bem parece estranha, Mas barbara não. Presença serena Que a tormenta amansa: N'ella em fim descansa Toda minha pena. Esta é a cativa. Que me tem cativo; E pois n'ella vivo, É força que viva. * * * * * Mote Descalça vae para a fonte Leonor pela verdura; Vae formora, e não segura. VOLTAS Leva na cabeça o pote, O testo nas mãos de prata, Cinta de fina escarlata, Saínho de chamalote: Traz a vasquinha de cote, Mais branca que a neve pura; Vae formosa e não segura. Descobre a touca a garganta, Cabellos de ouro entrançado, Fita de côr de encarnado, Tão linda que o mundo espanta: Chove n'ella graça tanta Que dá graça á formosura; Vae formosa e não segura. * * * * * FRANCISCO RODRIGUES LOBO Cantiga Descalsa vae para a fonte Leanor pela verdura, Vae fermosa e não segura. VOLTAS A talha leva pedrada, Pucarinho de feição, Saia de côr de limão, Beatilha suqueixada: Cantando de madrugada, Pisa as flores na verdura, Vae fermosa e não segura. Leva na mão a rodilha, Feita de sua toalha, Com uma sustenta a talha, Ergue com outra a fraldilha: Mostra os pés por maravilha, Que a neve deixam escura; Vae fermosa e não segura. As flores, por onde passa, Se o pé lhe acerta de pôr, Ficam de inveja sem côr, E de vergonha com graça. Qualquer pegada que faça Faz florescer a verdura; Vae fermosa e não segura. Não na vêr o sol lhe val, Por não ter novo inimigo; Mas ella corre perigo, Se na fonte se vê tal. Descuidada d'este mal Se vae vêr na fonte pura, Vae formosa e não segura. _Obras compl._ Ecl. X, p. 651. * * * * * Cantiga Antes que o sol se levante, Vae Violante a vêr o gado; Mas não vê sol levantado Quem vê primeiro a Violante. VOLTAS He tanta a graça que tem Com uma touca mal envolta, Manga da camisa solta, Faixa pregada ao desdem; Que se o sol a vir diante, Quando vae munir o gado, Ficará como enleado Ante os olhos de Violante. Descalsa ás vezes se atreve Ir em mangas de camisa; Se entre as ervas neve pisa Não se julga qual é neve; Duvída o que está diante, Quando a vê munir o gado, Se é tudo leite amassado, Se tudo as mãos de Violante. Se acaso o braço levanta, Porque a beatilha encolhe, De qualquer parte que a olhe Leva a alma na garganta. E inda que o sol se alevante A dar graça e luz ao prado, Já Violante lh'a tem dado, Que o sol tomou de Violante. _Idem_, p. 653. * * * * * Romance do Desenganado Sobre as aguas vagarosas Que o Tejo já traz cansadas De abrandar duros penedos, E de romper serras altas: Perto d'onde o mar oceano Lhe offerece livre entrada, Dando ás crystallinas ondas Livres e douradas praias: Leva o pescador sereno Com rôtas redes a barca, Tam perseguida dos ventos Quanto de amar sustentada; E por que o leva forçado Sua virtude contraria, Desterrado do seu Lena, E de sua amada patria, Já o vento o favorece E o mar lhe mostra bonança, Porque para a desventura A ventura nunca falta. E ao som que os duros remos Fazem dividindo as aguas, Derramando-as de seus olhos, Vae dizendo estas palavras: «Fermosas aguas do Tejo, Do mundo tão celebradas, Morada de tantas nymphas, E inveja de outras tantas; Este corpo que amparaes, Que persegue a sorte ingrata, Dae-lhe vós a sepultura, Que é corpo que vae sem alma. Mil annos vivi sem tel-a, Por poder de uma esperança Enganada da ventura, Que tam facilmente engana. Causa foi da minha morte Lisêa, e melhor se acclara Que, pois tanto amei Lisêa, Eu fui de meu mal a causa, O espirito com que vivo É de um tormento que mata, Que os males aonde ha firmeza Nem com a vida se acabam. Junto então do rio Lis Meu rebanho apacentava, Fiz-me pescador do Lena Provei a sorte em mudanças. Só no mal achei firmeza, Sei do bem quam cedo passa, E sei que a quem muda a vida Se muda mas não se acaba. Sei que vive um corpo morto Por milagre de esperanças, E que o mal ainda sustenta Quando as esperanças faltam. Se em vós móra piedade 'Nessas humidas entranhas, Dae fim a meus tristes dias, E a vosso nome esta fama: --Contra o poder da ventura Empregada em um sujeito, De um fogo de amor perfeito Aguas foram sepultura.» _Romances_, 2.ª parte, p. 722. * * * * * DOM FRANCISCO DE PORTUGAL Romance pastoril. Deixou de ir Leonor á fonte, Por ver damas estrangeiras, Não para vir invejosa, Mas para matar de inveja. Mais que a vêr foi a ser vista, Que como novas estrellas, Não ha olhos que os seus levem, Alma que a sua não seja. De vinte e quatro alfinetes, Como dizem, foi a festa, Que muito que pique a muitos Quem tanto alfinete leva? Saia de palmilha azul, Que tudo são palmas n'ella, Que é bem que vista do céo O mór milagre da terra. Gibão de cannequim fino Que desconfiado confessa: Aqui jaz em neve um fogo Que o meu branco em branco deixa. Beatilha, melhor que ouro Encobre um par de madeixas, Alcaide de liberdades Que só soltando condemna. Fita verde que entre raios Com perigos lisongeia, Inda que negue esperança Quando só mortes promette. O desprezo dos cathurnos De umas sapatas vermelhas, Purpura de unido aljofar, Nacar de animadas perolas, Tantas perfeições airosas Em naturaes extranhezas, Tanto computo artificio No descuido de ser bella; Aquelles olhos rasgados, Em que amor faz por mór guerra, Cada sobrancelha um arco, Cada pestana uma setta. Aquelle engraçado riso, Que por crystaes de Veneza, Com gloria brinda as vontades, Sêde mortal que deleita. Em casa de um mercador Na rua nova á janella, Sem si Leonor estava Formosa ouvindo estas queixas: Quebrou Leonor O pote na fonte, E deitou-lhe os testinhos tão longe? Sem seu bem mais suspirado D'onde estava d'este modo A si o descuido todo, E a seu mal todo o cuidado. O peito tinha abrazado Tendo nos olhos a fonte, E deitou-lhe os testinhos Mana, tão longe. Diria quem a assim visse Que eram pedras que atirava, Porque tanto quanto amava Tanto tinha de doudice. E para que mais sentisse Seu sentido está na fonte, E deitou-lhe os testinhos, Mana, tão longe. * * * * * BALTHASAR DIAS Romance do Marquez de Mantua e do Imperador Carlos Magno. (Introducção recolhida pelo Cavalheiro de Oliveira) Na caça andava perdido De Mantua o velho Marquez, E no peito pressentido O coração traz d'envez; Mas não sabe o succedido! Farto já de caminhar Por tão fragosa montanha, Cansado assim sem companha, Sem ter onde repousar 'Nessa terra tão extranha, Vendo o mato tão cerrado, Assentou de se apear, E o seu cavallo deixar, Porque estava de cansado Que já não podia andar. Marquez: Fortunosa caça é esta Que fortuna me ha mostrado, Pois que por ser manifesta Minha pena, e gram cuidado, Me mostrou esta floresta. Nunca vi tão forte brenha Desque me acórdo de mi; Eu creio, que Margasi Fez esta serra d'Ardenha, Estes campos de Methli. Quero tocar a bosina Por vêr se alguem me ouvirá; Mas cuido, que não será, Porque minha gram mofina Commigo começou já. Todavia quero vêr Se mora alguem n'esta serra, Que me diga d'esta terra, Cuja é para saber; Que quem pergunta não erra. Por demais é o tanger Em logar deshabitado, Onde não ha povoado, Nem quem possa responder, Ao que lhe fôr perguntado. Gram mal é o caminhar Por tão fragosa montanha, Cançado assim sem companha, Nem tendo onde repousar N'esta terra tão extranha. Vejo o matto tão cerrado, Que fiz bem de me apear, E meu cavallo deixar, Porque estava tão cançado, Que já não podia andar. Agora vejo-me aqui N'esta tão grande espessura, Que nem eu me vejo a mi, Nem sei de minha ventura. Nem menos será cordura, Repousar n'este logar, Nem sei d'onde possa achar Descanço á minha tristura. Valdevinos: Oh Virgem minha senhora, Madre do rei da verdade, Por vossa gram piedade Sêde minha intercessora Em tanta necessidade. Oh summa Regina pia, Radiante luz phebêa, _Custodia animæ mea_, Pois está na terra fria A alma de pezar cheia. Pois és amparo dos teus, Consola os desconsolados, Rainha dos altos céos, Rogae a meu senhor Deos, Que perdoe meus peccados. Marquez: Não sei quem ouço chorar E gemer de quando em quando! Alguem deve aqui estar... Segundo se está queixando, Deve ter grande pesar. Valdevinos: _Domine momento mei_, Lembrae-vos de minha alma, Pois que sois da gloria Rei Nascido da flor da palma, Remedio da nossa Lei. Marquez: Segundo d'elle se espera, Aquelle homem anda perdido, Ou por ventura ferido De alguma d'estas féras. Quero vêr este mysterio, Que a fala me dá ousadia: Porque dois em companhia Tem mui grande refrigerio Para qualquer agonia. Valdevinos: Oh minha esposa e senhora, Já não tereis em poder Vosso esposo que assim chora, Pois a morte roubadora Vos roubou todo o prazer. Oh vida de meu viver, Resplandecente narcizo, Gram pena levo em saber, Que nunca vos heide ver Até o Dia de Juizo. Oh esperança, por quem Tinha victoria vencida! Oh minha gloria, meu bem; Porque não partis tambem, Pois que sois a minha vida? Se não fôr vossa vontade De haver de mim compaixão, Mandae-me meu coração, Minha fé e liberdade, Que está em vossa prisão. Madre minha muito amada, Que é do filho que paristes De quem ereis consolada? Como se ha tornado nada Quanta gloria possuistes? Já me não vereis reinar, Já me não dareis conselho; Nem eu o posso tomar, Que quebrado é o espelho, Em que vos sabeis olhar. Já nunca me haveis de vêr Fazer justas e torneios, Nem vestir nobres arreios, Nem Cavalleiros vencer, Nem tomar bandos alheios. Já não tomareis prazer Quando me virdes armado, Já vos não virão dizer A fama de meu poder, Nem louvar-me de esforçado. Oh valentes Cavalleiros, Reinaldos de Montalvão, Oh esforçado Roldão, Oh Marquez Dom Oliveiros, Dom Ricardo, Dom Dudão, Dom Gaiferos, Dom Beltrão, Oh Grão Duque de Milão, Que é da vossa companhia Duque Maime de Baviera, Que é de vosso Valdevinos? Oh esforçado Guarinos, Quem comsigo vos tivera! Meu amigo Montesinhos, Já nunca mais vos verei; Dom Alonso de Inglaterra, Já não acompanharei O Conde Dirlos na guerra. Oh esforçado Marquez De Mantua, teu senhorio, Já não me poreis arnez, Nem me vereis outra vez Gozar vosso poderio. Já não quero vosso estado, Já não quero ser pessoa, Nem mandar, nem ter reinado, Já não quero ter corôa Nem quero ser venerado. Oh Carlos Imperador, Senhor de mui alta sorte, Como sentireis grão dôr Sabendo da minha morte, E quem d'ella é causador! Bem sei, se for informado Do caso como passou, Que serei mui bem vingado, Ainda que me matou Vosso filho mui amado. Oh Principe Dom Carloto, Quem, sendo tão desigual, Te moveu a fazer mal Em um logar tão remoto A teu amigo leal? Alto Deos omnipotente, Juiz direito sem par, Sobre essa morte innocente Justiça queiraes mostrar, Pois morro tão cruelmente. Oh madre de Deos benigna, E fonte de piedade, Arca da santa Trindade, De donde o Verbo divino Trouxe sua humanidade. Oh Santa _Dómina mea_, Oh Virgem _gratia plena_. Em que a alma se recreia Dá remedio á minha pena, Pois que morro em terra alheia. Marquez: Senhor, porque vos queixaes? Quem vos tratou de tal sorte? E quem é o que tal morte Vos deu, como publicaes, Que assás é esta má sorte! Não me negueis a verdade, Contae-me vosso pezar, Que vos prometto ajudar Com toda a força e vontade. Valdevinos: Muito me agasta, amigo, Certamente teu tardar, Dize se trazes comtigo, Quem me haja de confessar? Marquez: Eu nao sou quem vós cuidaes; Nunca comi vosso pão, Mas vossos gritos e ais Me trouxeram aonde estaes Mui movido á compaixão. Dizei-me vossa agonia, Que, se remedio tiver, Eu vos prometto fazer Com que tenhaes alegria. Valdevinos: Meu senhor, muitas mercês Por vossa bôa vontade! Bem creio, que ma fareis Muito mais do que dizeis, Segundo vossa bondade. Mas minha dor é mortal, Meu remedio só é morte, Porque estou parado tal, Que nunca homem mortal Foi tratado de tal sorte. Tenho, senhor, vinte e duas Feridas todas mortaes, As entranhas rotas e nuas, E passo penas tão cruas, Que não poderão ser mais. Ha-me morto á traição O filho do Imperador, Carloto a gram sem razão; Mostrando-me todo o amor, Não o tendo no coração. Muitas vezes requeria Minha esposa com maldade, Mas ella não consentia, Pelo bem que me queria, Por sua grande bondade. Carloto com grão pezar Como mais traidor, que forte, Ordenou de me matar, Cuidando com minha morte Com ella haver de casar. Matou-me com gram falsia, Trazendo cinco comsigo, Sem eu trazer mais commigo, Que um pagem por companhia. A mim chamam Valdevinos, Sou filho de El-Rei de Dacia, E primo de El-Rei de Grecia, E do forte Montesinos Que é herdeiro de Dalmacia; Dona Hermelinda formosa Minha madre natural, Sibylla minha esposa, De graças especial, Mas com primores famosa. Esta nova contareis Á triste de minha madre, Que em Mantua achareis, E ao honrado Marquez Meu tio, irmão de meu padre. Marquez: Oh desastrado viver, Oh amargosa ventura, Oh ventura sem prazer, Prazer cheio de tristura, Tristura que não tem ser. Oh desventurada sorte, Oh sorte sem soffrimento, Desamparado tormento, Dôr muito peior que a morte, Morte de desabrimento! Oh meu sobrinho, meu bem, Minha esperança perdida! Oh gloria que me sustem, Porque vos partís de quem Sem vós não terá mais vida? Oh desventurado velho, Captivo sem liberdade! Quem me póde dar conselho, Pois perdido é o espelho De minha gram claridade. Oh minha luz verdadeira, Trevas do meu coração, Penas da minha paixão, Cuidado que me marteira, Tristeza de tal traição! Porque não queres falar A este Marquez coitado, Que tio sohieis chamar? Falae-me, sobrinho amado, Não me façaes rebentar. Valdevinos: Meu tormento tão molesto Me faz não vos conhecer, Nem na fala, nem no gesto; Nem entendo vosso dizer, Se não fôr mais manifesto. Estou tão posto no fim, Que não sei se sou alguem, Nem menos conheço a mi; Pois quem não conhece a si Mal conhecerá ninguem. Marquez: Como não me conheceis Meu sobrinho Valdevinos? Eu sou o triste Marquez, Irmão de El-Rei Dom Salinos, Que era o pae que vos fez. Eu sou o Marquez sem sorte, Que devêra rebentar Chorando a vossa morte, Por com vida não ficar N'este mundo sem de porte. Oh triste mundo coitado, Ninguem deve em ti fiar Pois és desaventurado, Que o que tens mais exaltado Mór quéda lhe fazes dar. Valdevinos: Perdoae-me, senhor tio, A minha descortezia, Que a minha grande agonia Me pôz em tanto desvio, Que já vos não conhecia. Não me queiraes mais chorar, Deveis de considerar Que para isso é o mundo; Que dobraes meu mal profundo, Para bem é mal passar: E bem sabeis que nascemos, Para ir a esta jornada, E que quanto mais vivemos, Maior offensa fazemos A quem nos criou de nada. Assim que necessidade Não tendes de me chorar, Pois que Deos me quiz levar No melhor de minha idade, Para mais me aproveitar. Mas o que haveis de fazer, É por minha alma rogar, Porque o muito chorar Á alma não dá prazer, Mas antes mui grão pesar. Quero-vos encommendar Minha esposa e minha madre, Pois que não tem outro padre, Que as haja de amparar, Senão vós, como é verdade. Mas o que me dá paixão Em esta triste partida, É morrer sem confissão, Mas se parto d'esta vida, Deos receberá a tenção. (Vem o Ermitão e o Pagem) Ermitão: A paz de Deos sempiterno Seja comvosco irmão, Lembrae-vos da sua paixão Que, por nos livrar do inferno, Padeceu quanto a varão. Valdevinos: Com cousa mais não folgára De que vêl-o aqui chegado, Padre de Deos enviado, Que se um pouco mais tardara, Não me achára n'esté estado. Pagem: Oh que desastrada sorte Meu senhor Dones Ogeiro! Olhae vosso escudo forte Olhae, senhor, vosso herdeiro, Em que extremo o pôz a morte. Oh desditoso caminho, Caça de tanto pezar, Que cuidando de caçar, A morte a vosso sobrinho Viestes, senhor, buscar. Ermitão: A gram pressa que trazia, Não me deu, senhor, logar, De conhecer, nem falar A vossa gram senhoria. N'este erro se ha culpa, Peço-lhe d'elle perdão, Ainda que a discrição Sua me dará desculpa. Marquez: Rogae a Deos Padre honrado, Que me queira dar paciencia, Que o perdão é escusado, Porque vossa diligencia Vos não deixa ser culpado. Ermitão: O filho de Deos enviado Vos mande consolação! E pois que aqui sou chegado Quero ouvir de confissão Este ferido e angustiado. Coisa é mui natural A morte a toda a pessoa, A todo o mundo em geral, Pois que a nenhum perdôa, Não a tenhamos por mais. Porque o peccado de Adão, Foi tão fero e de tal sorte, Que não só por perdição. Mas Deos, que é salvação, Quiz tambem receber morte. E por tanto, filho meu, Não se deve de espantar, Da morte que Deos lhe deu, Pois que em provimento seu, Lh'a deu o para salvar. Lembre-lhe sua paixão: Veja este mundo coitado, E não o engode o malvado, Que não dá por galardão Senão tristeza e cuidado. Em quanto, filho, tem vida, Chame a Madre do Deos, Aquella que foi nascida, Sem peccado concebida, E coroada nos céos. Esta foi santificada, E visitada dos Anjos; E em corpo e alma levada Á gloria, onde exaltada Lá está sobre os archanjos. Assim, que ao Redemptor, E a esta Virgem sem par Se hade, filho, encommendar, Depois que os santos fôr Sua vontade chamar. As mãos levante aos céos, Faça confissão geral, Confessando-se a Deos, E á Virgem celestial, E a todos os santos seus. Marquez: Oh bonancia aborrecida, Oh desastrada fortuna! De prazeres gram tribuna! Porque não desamparaes A quem sois tam importuna? Tristeza, desconfiança, Porque não desesperaes A quem não tem confiança? Contae-me, pagem Burlor, O caso como passou, Quem foi aquelle traidor Que matou vosso senhor, Ou porque causa o matou. Pagem: Seria mui mal contado Se a sua gram Senhoria Não contasse o que é passado. Eu sei certo que faria, O que não é esperado Contra quem me deu estado, E ha feito tantas mercês, Que nunca meu pae me fez, Que é meu senhor amado, E mais vós, senhor Marquez. Estando pois em Paris, O filho do Imperador, Mandou chamar meu senhor Nos paços da Imperatriz; Falaram muitos a sabor, O que falaram não sei, Senão que logo n'essa hora Sem fazerem mais demora, Com quatro detraz de si Foram da cidade fóra, Armados secretamente, Segundo depois ouvi. Partimos todos d'aí. E Dom Carloto presente, Tambem armado outrosi. E tanto que aqui chegaram, N'este valle de pezar Todos juntos se apearam, E fizeram-me ficar Com os cavallos que deixaram. E logo todos entraram Em este esquivo logar, Onde meu senhor mataram; E depois de o matar, Nos cavallos se tornaram; Como eu os vi tornar, Sentindo muito tal dôr, Temendo de lhe falar, Não usei de perguntar Onde estava meu senhor. Vendo-os assim caminhar, Porque nenhum me falava, Quiz a meu senhor buscar, Porque o coração me dava Sobresaltos de pezar. Não o podia topar, Porque a grande espessura E a noite medrosa, escura Me fazia não o achar: Do que tinha gram tristura. Buscando-o com gram paixão, N'aquelle logar remoto O achei d'esta feição. Disse como á traição O matára Dom Carloto. Perguntei porque rasão? Triste, cheio de agonias, Disse-me com afflicção: «Vae-me buscar confissão, Já se acabaram meus dias.» Como taes novas ouvi, Com grande tribulação E pezar de vêl-o assi, Me parti logo d'aqui A buscar esse Ermitão. Isto é, senhor, o que sei D'este caso desastrado, Quanto me ha perguntado, Outra cousa não direi Mais do que lhe hei contado. Marquez: Quando sua magestade Justiça me não fizer Com toda a rigoridade, Á força de meu poder Cumprirei minha vontade. Ermitão: Já, senhor, se ha confessado, E fez actos de christão; Morre com tal contricção, Que eu estou maravilhado De sua gram discrição. Muito não pode tardar, Segundo n'elle senti: Acabei de lhe falar, Porque lhe quero resar Os psalmos de el-rei David. Valdevinos: Não tomeis, tio, pezar, Que me parto de vos ver Para nunca mais tornar; Pois Deos me manda chamar E não posso mais fazer. Torno-vos a encommendar Minha esposa e minha mãe, Que as queiraes consolar, E ambas as amparar, Pois que não tem outro pae. Oração de Valdevinos: Em as tuas mãos, Senhor, Encommendo meu espirito; Pois que és Salvador meu, Meu Deos, e meu Redemptor, Não me falte favor teu; Pois, Senhor, me redemiste, Como Deos, que és de verdade, Senhor de toda a piedade, Lembra-te d'esta alma triste Cheia de toda a maldade. Salve, Senhora benigna, Madre de misericordia, Paz de nossa gram discordia, Dos peccadores mesinha; Vida doce e concordia, _Spes nostra_, a ti invocamos, Salva-nos da escura treva. A ti, Senhora, chamamos Desterrados filhos de Eva; A ti, Virgem, suspiramos A ti gemendo e chorando Em aqueste lagrimoso Valle sem nenhum repouso, Sempre Virgem, a ti chamamos, Que és nosso prazer e gôso. Ora pois, nossa advogada, Amparo da christandade, Volve os olhos de piedade A mim, Virgem consagrada, Pois que és nossa liberdade. Dá-me, Senhora, virtude Contra todos meus imigos, Pois que és a nossa saúde, Eu te rogo, que me ajudes Nos temores e perigos; Roga tu por mim, Senhora, Oh santa madre de Deos, A quem minha alma adora, Pois és rainha dos céos, E dos anjos superiora. (Aqui expira Valdevinos) Marquez: Oh triste velho coitado! Oh cãs cheias de tristura! Oh doloroso cuidado! Oh cuidado sem ventura, Sem ventura desterrado! Quebrem-se minhas entranhas Rompa-se meu coração Com minha tribulação. Chorem todas as campanhas Minha grande perdição; Escura-se o sol com dó, Caiam estrellas do céo, As trevas de Faraó Venham já sobre mim só, Pois minha luz se perdeu Na luz de mui claro dia; Claridade, sem clareza, Minha doce companhia, Onde está vossa alegria, Que me deixa tal tristeza? Oh velhice desastrada, Sem gloria e sem prazer, Para que me deixaes ser, Pois que sendo, não sou nada, Nem desejo de viver? Porque não vens, padecer, Porque não vindes, tormentos? Para que são soffrimentos, A quem os não quer já ter, Nem busca contentamentos? Para que quero rasão Para que quero prudencia, Nem saber, nem discrição? Para que é paciencia, Pois perdi consolação? Pagem: Oh meu senhor muito amado, Porque vos tornastes pó! Porque me deixastes só Em este mundo coitado Com tanta tristeza e dó? Leváreis-me em companhia, Pois sempre vos tive, vivo. Oh minha grande alegria, Porque me deixaes captivo, Mettido em tanta agonia? Meu senhor, minha alegria Dizei, porque nos deixaes Com tanta pena notoria! Lembrae-vos, tende memoria, De quantos desamparaes. Oh sem ventura Burlor! De quem serás amparado, De quem terás o favor Que tinhas do teu senhor, Pois que já te ha faltado? Ermitão: Não tomeis, filho, pezar Pois claramente sabeis, Que pelo muito chorar Não cobraes o que perdeis. Deveis, filho, de cuidar, Que nossa vida é um vento Tão ligeiro de passar, Que passa em um momento Por nós, assim como o ár. Quem viu o senhor Infante, Tão pouco ha, fazer guerra, E ser n'ella tão possante, E agora em um instante, Ser tornado escura terra, Diria com gram rasão Que este mundo coitado Não dá outro galardão, Senão tristeza e paixão, Como a vós outros foi dado. Olhae, el-rei Salomão O galardão que lhe deu: A Amão, e Absalão, E ao valente Sansão, E ao forte Macabeu. Em a Sacra Escriptura Muitos mais podia achar, Se os quizesse contar; Mas vossa grande cordura Suprirá donde faltar, E pois que não tem já cura O mal feito e o passado, Cesse a vossa tristura, E demos á sepultura Este corpo já finado. Levemol-o onde convém Para que seja enterrado; E pode bem ser guardado N'aquella ermida que vêem, Até ser embalsamado. (Aqui levam a Valdevinos á Ermida, e entra o Imperador e conde Ganalão) Imperador: Certo, Conde Ganalão, Muito gram perda perdemos, Pêza-me no coração, Porque na côrte não temos Reinaldos de Montalvão, Nem o Conde Dom Roldão, Nem o Marquez Oliveiros, Nem o Duque de Milão, Mem o Infante Gaifeiros, Nem o forte Meredião. Ganalão: Muito alto Imperador, Muito estou maravilhado Porque mostraes tal favor A quem vos ha deshonrado Com tanta ira e rigor, Que, chamando-se Almansor, Com o seu rosto mudado Aquelle falso traidor Com mui grande deshonor, Quiz deshonrar vosso estado: Porque, senhor, não sentís, Que este malvado ladrão Vos prendeu de sua mão Tomando-vos a París Com muito grande traição? Pondo-vos em Montalvão Apesar de vosso imperio, Onde com gram vituperio Estivestes em prisão, Sem ter nenhum refregerio? Imperador: Verdade é isso, cunhado, Porém deveis de saber Que em Reinaldos me prender Eu mesmo sou o culpado: Isto bem o podeis crêr. Se então me quiz offender Não é muita maravilha, Pois já me quiz guarnecer Matando el-rei Carmeser, Que me trouxe a sua filha. Ganalão: Vossa real magestade Dirá tudo o que quizer, Mas eu espero a Beltrão... Que se conheça a maldade, De quem se hade conhecer. (Aqui se vae Ganalão: e vem dois Embaixadores mandados pelo Marquez de Mantua, chamados Dom Beltrão e Duque Amão: e virão vestidos de dó) Beltrão: Gram Cezar Octaviano, Magno, augusto, forte rei, Grande imperador romano Amparo da nossa lei, Poderosa magestade, Senhor de toda a Magança, Da Gascunha e da França, Gram patrão da christande, Esteio da segurança! Pois sois senhor dos senhores, Imperador dos christãos; Somos vossos servidores, Amigos leaes e sãos. Imperador: Eu me espanto, Dom Beltrão, De vos vêr d'aquella sorte, E a vós forte Duque Amão, Não é esta disposição E trajo da nossa Côrte. Duque: Muito mais será espantado De nossa triste embaixada, E do caso desastrado, O qual lhe será contado, Se seguro nos é dado. Imperador: Bem o podeis explicar Sem ter medo, nem temor. Para que he assegurar? Pois sabeis que o embaixador Tem licença de falar. Duque: Quiz senhor, nossa mofina Que o infante Valdevinos, Primo do forte Guarinos, Filho da linda Hermelinda E do grande rei Salinos, Fosse morto á traição Na floresta sem ventura. A tão grande desventura Haverá quem não procure De vingar tal perdição? Imperador: É certa tam gram maldade, Que o sobrinho do Marquez É morto, como dizeis? Duque: Pela maior falsidade, Que nunca ninguem tal fez. Imperador: Este caso é desastrado: Saibamos como passou, E quem tão mau feito obrou; Que, o que tal senhor matou, Merece bem castigado. Duque: Saiba vossa magestade Que dez dias pôde haver Que o Marquez foi á cidade De Mantua com gram vontade Á caça, que sóe fazer. Andando assim a caçar, Da companhia perdido Foi por ventura topar Com seu sobrinho ferido, Quasi a ponto de expirar. Bem póde considerar O gram pezar que teria De se vêr sem companhia, E morrer em tal logar A coisa que mais queria. Perguntando a rasão, Sendo d'ella mui ignoto, Disse com grande paixão, Que o matára a traição Vosso filho Dom Carloto. A causa que o moveu Dar morte tão dolorosa A tão grande amigo seu, Não foi outra, senhor meu, Salvo tomar-lhe a esposa. Matou-o á falsa fé, Indo muito bem armado. Com quatro homens de pé. Quem mata tão sem porque Merece bem castigado. O marquez Danes Ogeiro Lhe manda pedir, senhor, Justiça mui por inteiro: Que ainda que perca herdeiro, Elle perde successor. Dom Beltrão: Não deve deixar passar Tão gram mal sem o prover, Porque deve de cuidar, Se seu filho nos matar, Quem nos deve defender? E mais lhe faço saber, Porque esteja aparelhado, Se justiça não fizer, Que o Marquez tem jurado De por armas a fazer. O mui valente e temido Reinaldos de Montalvão Entre todos escolhido, Está bem apercebido Como geral capitão. Dom Chrisão e Aguilante Com o forte Dom Guarinos, E o valente Montesinos Primo do morto Infante, Primo de el-rei Dom Salinos, E o mui grande Rei Jaião, De Dom Reinaldos cunhado, E o esforçado Dudão, E o gram Duque de Milão, E Dom Richarte esforçado, O Marquez Dom Oliveiros, E o famoso Durandarte, E o infante Dom Gaifeiros, E o mui forte Ricardo, E outros fortes cavalleiros, Todos tem boa vontade De ajudar ao Marquez Em essa necessidade; Porque foi gram crueldade A que vosso filho fez. Evitae, senhor, tal damno? Pois que sois juiz sem par, Não vos mostreis inhumano, Acordae-vos de Trajano, Em a justiça guardar. Assim que, alto, esclarecido, Poderoso sem egual, O que fez tão grande mal, Bem merece ser punido Por seu mandado imperial. E pois, senhor, é proposta A causa, porque viemos, E sabeis o que queremos, Mandae-nos dar a resposta, Com que ao Marquez tornemos. Imperador: Oh poderoso senhor, Que grande é o vosso mysterio: Pois para meu vituperio Me deste tal successor, Que deshonrasse este Imperio? Se o que dizeis é verdade, Como creio que será, Nunca rei na christandade, Fez tão grande crueldade, Como por mim se verá. Por minha corôa juro De cumprir e de mandar Tudo que digo e procuro. Ao Marquez podeis dizer, Que elle póde vir seguro, E todos quantos tiver, Venham de guerra ou de paz, Assim como elle quizer. E pois que justiça quer, Com ella muito me praz. (Entra Dom Carloto) D. Carloto: Bem sei, que com gram paixão Está vossa magestade Pela falsa informação Que de mim, contra rasão, Deram com gram falsidade. Porque um filho de tal home, E tão grande geração, Não deve sujar seu nome Em caso tal de traição. Por vida de minha madre, Que se tão grande deshonror Não castigar com rigor Que me será cruel padre, Não direito julgador. Imperador: Não vos queiraes desculpar; Pois que tendes tanta culpa, Que se o mundo vos desculpa, Eu não heide desculpar. E por tanto mando logo, Que estejaes posto a recado, Até ser determinado Por conselho de meu povo Se sois livre ou condemnado. Mando que sejaes levado Á minha gram fortaleza, E que lá sejaes guardado De cem homens do estado Até saber a certeza. D. Carloto: E como, senhor, não quer Vossa real magestade Saber primeiro a verdade, Senão mandar-me prender Por tão grande falsidade? Imperador: Não vos quero mais ouvir, Levem-no logo á prisão, Onde eu o mando ir; Porque tam grande traição Não é para consentir. Vós outros podeis tornar, E contar-lhe o passado A quem vos cá quiz mandar; Que o seguro que lhe hei dado Eu o torno a affirmar. (Aqui vem a Imperatriz) Imperatriz: Eu muito me maravilho De vossa grande bondade; Que sem rasão, nem verdade Trataes assim vosso filho Com tão grande crueldade. Olhe vossa magestade Que é herdeiro principal, E que toda a christandade Lh'o hade ter muito a mal. Imperador: A mim, senhora, convém Ser contra toda a traição, E se vosso filho a tem, Castigal-o-hei muito bem; E essa é a minha tenção. E mais eu vos certifico, Que com direito e rigor Heide castigar o iniquo, Ora seja pobre, ou rico, Ora servo, ou gram senhor. Imperatriz: Como quer vossa grandeza Infamar o nosso estado Sem causa, com tal crueza? Imperador: Quem me cá mandou recado Não foi senão com certeza. Imperatriz: Por tal recado, senhor, Quereis tratar de tal sorte Vosso filho e successor, Que depois de vossa morte Hade ser imperador? Imperador: Em eu o mandar prender Não cuideis que o maltrato; Mas se elle o merecer, Eu espero de fazer A justiça de Torquato; Porque pae tão poderoso, Sendo de tantos caudilho Se não fôr tão rigoroso, Nem elle será bom filho, Nem será rei justiçoso. Que agora, mal peccado! Nenhum rei, nem julgador Faz justiça do maior; Mas antes é desprezado O pequeno com rigor. Todo o mundo é affeição; Julgam com rara remissa O nobre que, sem rasão Alguma, tem opinião De lhe tocar a justiça... Que conta posso eu dar Ao Senhor dos altos céos, Se a meu filho não julgar Como outro qualquer dos meus? Assim que escusado é Buscar este intercessor; Porque Deos de Nazareth Não me fez tão gram senhor Para minha alma perder. Imperatriz: Ai triste de mim coitada! Para que quero viver, Pois que sempre heide ser Do meu filho tão penada, Como uma triste mulher? Pois tão triste heide ser Por meu filho muito amado, Nunca tomarei prazer, Senão tristeza e cuidado. Imperador: Não façaes tantos extremos, Pois dizeis que tem desculpa, Que antes que sentença démos, Primeiro todos veremos Se tem culpa ou não tem culpa. Mostrae maior soffrimento, Que o caso é desastrado, E i-vos a vosso aposento, Que elle não será culpado. (Aqui se vae a Imperatriz, e vem a mãe, e esposa de Valdevinos) Mãe: Oh coração lastimado, Mais triste que a noite escura! Oh dolorosa tristura, Cuidado desesperado, E fortunosa ventura! Oh vida da minha vida, Alma d'este corpo meu! Oh desditosa perdida, Oh sem ventura nascida, A mais que nunca nasceu! Oh filho meu muito amado, Minha doce companhia, Meu prazer, minha alegria, Minha tristeza e cuidado, Minha sab'rosa lembrança, Que serei eu sem vos vêr? Filho de minha alegria, Oh meu descanço e prazer, Porque me deixaes viver, Vida com tanta agonia? Adonde vos acharei, Consôlo de meu pezar? Onde vos irei buscar, Pois que perdido vos hei Para jámais vos cobrar! Filho d'esta alma mesquinha, Dos meus olhos claridade, Onde estás, minha mesinha? Filho de minha saudade, Meu prazer e vida minha? Esposa: Que é de vós meu coração, Que é da minha liberdade, Espelho da christandade, Quem vos matou sem razão Com tão grande crueldade? Quem vos apartou de mim, Meu querido e meu esposo? Oh meu prazer saudoso, Porque me deixaes assim Com cuidado mui penoso? Oh minha triste saudade, Oh meu esposo e senhor, Minha alegria e vontade, Escudo da christandade, Dos tristes consolador! Que farei pobre coitada, Mais que nenhuma nascida? Miseravel, angustiada, Para que quero ter vida, Pois minha alma é apartada? Oh fortuna variavel, Triste, cruel, matadora, De prazeres roubadora, Inimiga perduravel, Mata-me se queres agora. Hermelinda: Se vossa gram magestade Não dér castigo direito A quem tanto mal ha feito, Nem sustentar a verdade, Não será juiz perfeito. Não olhe vossa grandeza Sua madre dolorosa, Nem sua tanta tristeza; Mas olhe tão gram princeza Como esta sua esposa. Imperador: Faz-me tanto entristecer Este tão gram vituperio, Que mais quizera perder Juntamente meu Imperio, Que tal meu filho fazer. Mas se tal verdade é Como já sou informado, Que tal castigo lhe dê, Que seja bem castigado. Sybila: Seja justiça guardada A esta orpha sem marido, Viuva desamparada, Tão triste e desconsolada Mais que quantas têm nascido. Olhae, senhor, tão gram mal, Como vosso filho ha feito, E não queiraes ter respeito Ao amor paternal, Pois que não é por direito. Imperador: Senhora, não duvideis Que eu farei o que hei jurado, Se é verdade o que dizeis, Porque cumpre meu estado De fazer o que quereis: Que mais quero ter commigo Fama de rigoridade, Que deixar de ter castigo Quem commetteu tal maldade. Para que é ser caudilho De tanto povo e tão grado, E Imperador chamado, Se não julgasse meu filho Como qualquer estragado? Não cuidem duques, nem reis, Que por meu herdeiro ser, Que por isso hade viver; Que aquelle, que fez as Leis, É obrigado a as manter. Assim que, por bem querer, Amizade nem respeito Como agora sóem fazer, Não hei de negar direito, A quem direito tiver. E bem vos podeis tornar, Fazei certo o que dissestes, E não tomeis tal pesar, Porque o bem que perdestes, Não o cobraes com chorar. Hermelinda: Senhor, nós outras nos pomos Em mãos de vossa grandeza: Olhae bem, senhor, quem somos, E de que linhagem fomos, Pois Deos nos deu tal nobreza. Sybila: Olhae os serviços dinos, Que tanto tempo vos fez Meu esposo Valdevinos; Tambem seu tio Marquez, E como foram continos. (Aqui se vae Hermelinda e Sybila, e virá Reinaldos com uma carta, que tomaram a um Pagem de Dom Carloto) Reinaldos: O summo rei dos senhores, Que morreu crucificado Em poder dos pharizeus, Accrescente vosso estado, E vos livre dos traidores. Imperador: Mui valente e esforçado, Reinaldos de Montalvão, Vós sejaes tambem chegado, Como a sombra no verão. Muito estou maravilhado, Invencivel e mui forte, De ver-vos assim armado, Sabendo que em minha côrte, Nunca fostes mal tratado. Reinaldos: Senhor, não seja espantado De vêr-me assim d'esta sorte, Porque com todo o cuidado, Ganalão vosso cunhado Sempre me procura a morte. Bem sabeis que sem rasão Com vontade mui malina, Fez matar com gram traição, A Tiranes, e Erocina, E ao feito Salião, E a mim já quiz matar Muitas vezes com maldade; E para mais me danar, Fez á sua magestade, Mil vezes me desterrar. O grande mal que me quer De todo o mundo é sabido, E por isso quiz trazer Armas para offender, Antes que ser offendido. Mas deixando isto assim Guardado p'ra seu logar Onde se hade vingar, Vos quero, senhor, contar: Notorio a todo o christão É o pesar lastimeiro Do Marquez Danes Ogeiro, Que tem com justa rasão Pela morte do herdeiro. N'esta nobre côrte estão Muitos mui nobres senhores, Que sabem que Dom Beltrão E o nobre Duque Amão Foram seus embaixadores: Tambem este é sabedor Das respostas que lhe déstes, E mais de como prendestes Vosso filho successor. Do qual está mui contente De tel-o posto em prisão, E tem mui grande rasão, Porque na carta presente Á qual fez da sua mão, Confessa toda a traição, E um pagem a levava Para o Conde Dom Roldão, Que na cidade de Boava Faz a sua habitação. E como não ha falsia, Que se possa esconder, Tinha o Marquez espia, Porque queria saber O que Dom Roldão faria. Esse pagem embuçado, Sem suspeita, sem revez Ia mui determinado, Onde logo foi tomado, E levado ao Marquez. Lendo a carta Dom Guarinos, N'ella contava a tenção, Porque o matára á traição. Isto é, senhor, a verdade, O que vos manda dizer: Se o que digo é falsidade, (Que por isso a quiz trazer,) A letra é bom conhecer, Que é este o seu sinal. Pois, quem fez tão grande mal, Bem merece padecer Morte justa corporal. Imperador: Se tal a carta disser, Não se ha mister mais provar, Nem mais certeza fazer, Senão logo executar A pena que merecer. E por tanto sem deter, Lea-se publicamente Ante esta nobre gente; Porque todos possam ver Vossa verdade evidente. Carta de Dom Carloto a Dom Roldão. «Caudilho de gram poder, Capitão da christandade, Esta vos quiz escrever, Para vos fazer saber Minha gram necessidade. Porque o verdadeiro amigo, Hade ser no coração, Assim como fiel irmão E não hade temer p'rigo, Por salvar quem tem rasão. Porque sabereis, senhor, Que me sinto mui culpado, Como quem foi matador; E temo ser condemnado De meu padre Imperador. Eu confesso que pequei, Pois com vontade damnosa A Valdevinos matei. Amor me fez com que errei, E o primor de sua esposa. O Imperador, meu padre Me mandou prezo guardar, E nunca quiz attentar Os rogos da minha madre. A ninguem quer escutar, E o Marquez tem jurado De não vestir, nem calçar, Nem entrar em povoado, Até me vêr justiçar. Tendo por accusadores, Reinaldos de Montalvão, E seu padre o Duque Amão, E muitos grandes senhores: O Gram Duque de Milão Com o forte Montesinos, Que é primo de Valdevinos. Assim que todos me são Accusadores continos. Pois tantos contra mim são, Eu vos rogo como amigo, Que vós queiraes ser commigo; Porque tendo Dom Roldão, Não temo nenhum perigo.» Imperador: Antes que algum mal cresça, Façamos o que devemos: Pois o sinal conhecemos, E pois vemos que confessa, De mais prova não curemos, Nem vós façaes mais detença: E pois já tendes licença, Podeis dizer ao Marquez Que venha ouvir a sentença. (Ir-se-ha Dom Reinaldos, e vem a Imperatriz vestida de dó) Imperador: Senhora, já não dirão Que fui eu mal informado, Nem que o prendo sem rasão, Pois por sua confissão, Vosso filho é condemnado. Vêdes a carta presente, Que foi feita da sua mão, Para o Conde Dom Roldão; A qual muito largamente, Declara toda a traição. Imperatriz: Eu muito me maravilho Do que, senhor, me ha contado; Pois que elle ha confessado, Melhor é morrer o filho Que deshonrar o estado. Mas a dôr do coração Sempre me hade ficar... Peço-lhe com affeição, Que lhe busque salvação, E que o queira escutar. Imperador: Melhor é que o successor Padeça morte sentida, Que ficar o pae traidor, Que será trocar honor Pela deshonra nascida. Tambem eu padeço dôr, Tambem eu sinto paixão, Tambem eu lhe tenho amor, Mas antes quero rasão, Que amisade sem favor. Imperatriz: Pois que não póde escapar, Eu não consinto, nem quero, Que vós o hajaes de julgar, Porque vos podem chamar Muito mais peior que Nero. Imperador: Não vivaes em tal engano, Que tambem foram caudilhos O gram Torcato, o Trajano, E quizeram com gram dano Ambos justiçar seus filhos. Pois que menos farei eu Tendo tão grande estado? Quem é com rasão culpado Em maior caso que o seu? E por tanto eu vos rogo Que não tomeis tal pesar, Porque com vos enojar Dá-se gram tristeza ao povo. Imperatriz: Eu cumprirei seu mandado, Porque vejo que é rasão; Mas sempre meu coração Terá tristeza e cuidado E grande tribulação. (Aqui se vae a Imperatriz, e vem o Marquez de Mantua vestido de dó) Marquez: Bem parece, alto senhor, Que vos fez Deos sem segundo, E de todos superior, Dos maiores o melhor, Rei e monarcha do mundo. Porque vós, senhor, sois tal, Que com rasão e verdade Sustentaes a christandade Em justiça universal, A qual para salvação Vos é muito necessaria, Porque convem ao christão Que use mais de rasão, Que da affeição voluntaria: Como faz vossa grandeza Com seu filho successor Assim que digo, senhor, Que estima mais a nobreza Que amisade, nem favor. Imperador: Não curemos de falar Em cousa tão conhecida; Porque n'esta breve vida Havemos de procurar Pela eterna e comprida. Para sentir gram pesar, Vós tendes rasão infinda, E tambem de vos vingar, Pois foi justa vossa vinda. Bem vimos vossa embaixada, E a causa d'ella proposta Foi de nós mui bem olhada, E não menos foi mandada Mui convencivel reposta: E vimos vossa tenção, E soubemos vosso voto, E vemos tendes rasão, Pela grande informação Do principe Dom Carloto. E vimos a confissão De Dom Carloto tambem, E soubemos a traição Como na carta contém, Que mandava a Dom Roldão. De tudo certificado, Eu condemno a Dom Carloto Tudo o que hei mandado. (Vem um Pagem da Imperatriz) Pagem: A Imperatriz, senhor, Está tão amortecida De grande paixão e dôr, Que não tem pulso nem côr, Nem nenhum sinal de vida. Nenhum remedio lhe vemos; Está n'esse padecer, Sem lhe podermos valer: E segundo n'ella cremos Mui pouco hade viver. Imperador: Eu muito me maravilho De sua gram discrição; Mais sinto sua paixão, Que a morte de meu filho... Não te quero mais dizer, Quero-a ir consolar, Pois tanto lhe faz mister. Não sei porque é enojar, Por se justiça fazer. (Aqui se vae o Imperador, e virá Reinaldos com o Algoz, o qual traz a cabeça de Dom Carloto) Reinaldos: Já agora, senhor Marquez, Vos podeis chamar vingado, Porque assás é castigado O que tanto mal vos fez, Pois que morreu degolado. Fazei por vos alegrar, Dae graças ao redemptor, Pois assim vos quiz vingar, Sem nenhum de nós p'rigar, E com mais vosso valor. _Folha volante_ de 1665. * * * * * Historia da Imperatriz Porcina, mulher do Imperador Lodonio de Roma. No tempo do Imperador, Que Lodonio se dizia, Que a grã cidade de Roma, E seu Imperio regia, Casado com a Imperatriz Que Porcina nome havia, Por suas muitas virtudes, Formosura, e valia Como princeza que era Filha do grão rei da Hungria: Tinha este Imperador Comsigo em companhia Um irmão por nome Albano Que elle muito queria, Em rasão do parentesco, O melhor que ser podia. Este nobre Imperador Bem dois annos estaria Com sua amada mulher, Sem haver filho, nem filha, Certamente mui contente Pois Deos assim o queria, E d'isso era servido, Por muitos bens que fazia: As viuvas amparava, E os pobres soccorria. As orfãs todas casava, Quantas na cidade havia. As obras de misericordia Com grã vontade cumpria, Por amor de Jesus Christo, E da sagrada Maria. Tinha este Imperador Promettido em romaria, Visitar a terra santa, Que Jerusalem se dizia; E ver os santos logares, Todos os que n'ella havia, Nos quaes havia de estar Um anno que assim cumpria. Antes de sua partida Quiz fazer o que devia, Deixou por govornadores A sua nobre Porcina, E tambem a seu irmão, Que o povo assim o pedia. Como isto foi acceitado, O povo ajuntar fazia: Manifestou-lhe a partida, Que escusar-se não podia, Dizendo--que obedecessem, Sem curar de mais porfia, A sua amada mulher, Que em seu logar ficaria, E tambem a seu irmão, Pois tinha tanta valia. Todo o povo está contente Do que o Imperador queria, E acabando de comer, A horas do meio dia, Entrou em o aposento Onde a Imperatriz dormia, Viu-a estar muito chorosa, Apartada de alegria. Como quem adivinhava O mal, que ella não sabia, Com o rosto dissimulado, Encobrindo o que sentia, Disse-lhe d'esta maneira, Com pena que padecia: --Minha amada companheira, Minha doce companhia, Lume de meus claros olhos, Espelho em que eu me via; Porque estaes assim chorosa Com tão sobeja agonia? Porque de ver-vos assim, A alma se me saía? Mas se vós quereis, senhora, Deixarei a romaria, Mandarei outrem por mim, Pois não se escusa esta via. Respondendo a Imperatriz D'esta maneira dizia: «Não olheis vós, meu senhor, A fraqueza, que em mim havia, Porque eu como mulher Nunca deixar-vos queria; Nem estar de vós apartada Só um momento de um dia. Mas o que vós promettestes Outrem cumprir não podia, Que seria grão peccado, Que Deos muito extranharia. Por tanto, Nosso Senhor Seja sempre em vossa guia, Que eu vos encommendarei A elle e a santa Maria. Despediu-se o Imperador Sem cuidar de mais porfia, Abraçando a Imperatriz Que mil lagrimas vertia, Pois no coração lhe deu Que mui tarde o veria. E depois d'elle partido Para a sua romaria, Esta tão nobre senhora Quiz fazer o que devia No governo do Imperio, Com Albano em companhia, Que seu marido Lodonio Nenhuma mingua fazia. Como este Albano era Cheio de toda a falsia, Amava a Imperatriz Já de muito tempo havia; Morria por seus amores Que todo se desfazia, Pela sua honestidade D'ella não a requeria; Que como agora tivesse Tempo para o que queria, Determina entrar com ella, Pois que fazel-o podia, Que, como governador, Ella não extranharia. Em estas coisas pensando Está até o outro dia. Ás horas que a Imperatriz De sua cama se erguia, Estava quasi despida, Porque a ninguem temia: Como viu entrar o cunhado Toda se estremecia. Porque sua honestidade Tal cousa não requeria: Como dentro entrou com ella Mui contente em demazia, Foi-lhe a beijar as mãos, O que d'antes não fazia. A Imperatriz tão casta, Assombrada em demazia, Cobriu-se com um roupão De ouro e de pedraria; Com rosto mui vergonhoso Encobrindo o que sentia, Levantou-se logo em pé Descalça na pedra fria, Assombrada e mui turbada Espera o que lhe dizia. Disse-lhe o traidor cunhado, Sem olhar o que devia: --«Perdoae-me, alta Princeza, Minha grande ousadia, Que d'onde ha força de amor Não póde haver cortezia. Muitos dias ha, senhora, Claro espelho e luz do dia, Que desejo descobrir-vos O que encobrir não podia; Que por vosso grande amor Triste estou sem alegria, Se vós me não daes remedio, Sem nenhum eu ficaria. Por tanto se vós quereis, Grão prazer receberia De vos casardes commigo, Sem cuidar de mais porfia, Levantemo-nos c'o Imperio, Pois que fazer-se podia, Sendo nós Governadores Ninguem nol-o tolheria. Se vós, senhora, temeis Pelo que o povo diria, Eu irei matar meu irmão Estando na romaria. Far-lhe-hei dar tal peçonha, Que morra antes de um dia. Foi-lhe a Imperatriz á mão Do mais que dizer queria, E abrazada toda em mágoa D'esta sorte respondia: «Por certo, falso cunhado, Vós tendes grande ousadia, Vosso grande atrevimento Grão castigo merecia: Em que viva me queimassem, Nunca tal consentiria, Porque a fé e lealdade Que a meu marido devia, Em que me dessem mil mortes Eu nunca a quebrantaria! Tirae-vos diante de mim, Traidor cheio de falsia.» Vendo-a elle tão irada, A grande pressa saía Da camara, onde estava Que assim se despedia. Temendo que aos seus brados Muita gente acudiria; Determinou entrar de noite Na camara onde dormia, E que com tapar-lhe a bocca, Seu desejo cumpriria. Descobrindo isto a um pagem Que fiel lhe parecia, Porque o acompanhasse Na traição que commettia, Pareceu-lhe a este pagem, Que mui culpado seria, Se ali se deshonrasse Pessoa de tal valia; Determinou de dizer-lhe, Antes que chegasse o dia, Porque não viesse a effeito O que elle fazer queria. Como a Imperatriz o soube, Com grã pressa em demazia, O mandou logo prender Na casa d'onde dormia; Mandou-o pôr era uma torre, Que dentro do paço havia. Depois que o Imperador Acabou sua romaria, Cumprindo sua promessa Como a tal senhor cumpria, Determinou de tornar-se Com muita grande alegria; Porque esperava de vêr A quem tanto lhe queria. Mandou diante um correio Em que a saber lhe fazia, Como seria com ella Antes do oitavo dia; Com a qual a Imperatriz Foi alegre em demazia: Fel-o a saber á cidade, Porque assim fazer devia, Para fazer grandes festas A quem tanto merecia. Foi-se direita á prizão Onde o cunhado jazia, Disse-lhe: «Senhor cunhado Não tenhaes tal fantazia, Porque já vem vosso irmão, Tomemos grande alegria; Eu vos perdôo o passado, Pois que ninguem o sabia; Recebei o Imperador Com toda a cavallaria, E levareis um vestido De ouro e argenteria, Que está feito para vós, Que é de muita valia. Tirou-o da prizão fóra, Foi com elle em companhia, Porque ninguem conhecesse O mal que feito havia. Cuidava o falso cunhado Em como se vingaria De quem lhe fez tal pezar, Pois já tel-a não podia. Foi-se receber o irmão Pela pósta ao outro dia, Vestido todo de dó Que o cavallo lhe cobria; Chegando onde elle estava, Vestido assim como ia, Fez-lhe grande acatamento, Fingindo mais que sohia; Quando viu o Imperador Certo não o conhecia, Mas depois de o conhecer, Mui turbado lhe dizia: --Dizei-me por Deos, irmão, Por que assim o dó trazia, Como está a Imperatriz, Minha fiel companhia? Dizei-me se é viva ou morta? Tirae-me d'esta agonia, Que meu triste coração Grão sobresalto sentia. Respondeu o falso irmão Com mui grande ousadia: --«Eu vos direi a verdade Pela fé que vos devia, E por que sois meu irmão, A quem mentir não podia. Depois que d'aqui partistes Para ir á romaria, Deixastes a Imperatriz, E eu com ella em companhia, Para governar o Imperio De Roma e sua senhoria. Prouvera a Deos fôra eu Sepultado em terra fria, Antes de ficar com ella, Pois tal traição commettia. Estando, senhor, dormindo Fóra de tão grã falsia, Entrou de noite commigo Na camara onde dormia, E chegando á minha cama D'esta sorte me dizia: «Que por mim perdida andava Já de muito tempo havia, Que casasse eu com ella, Sem cuidar de mais porfia: E que logo Imperador N'essas horas me faria, E quando vós viesses, Que ella vos mataria Com muito forte peçonha, Que não vivesses um dia.» E porque não consenti, Disse que eu a accommettia, E fez-me logo prender, O que ella merecia. Até agora preso estive Com muito grande agonia. Esta é, senhor, a verdade, Que de mim saber querias. Quando o nobre Imperador Tam maldita nova ouvia D'aquella que tanto amava Mais que a vida, em que vivia, Caiu do cavallo em terra, Uma hora se amortecia, Fizeram-n'o tornar em si, Com lhe deitar agua fria; Cobriu-se logo de dó Com o que o irmão trazia; Todo o amor que lhe tivera, Em odio se convertia. Sem mais falar com ninguem, Que a tristeza lh'o tolhia, Determinou dar-lhe a morte, Que ella tam mal merecia. De noite secretamente, O mais quieto que podia, Entrou dentro da cidade, Á meia noite seria; Mandou tres homens dos seus Sem outra mais companhia, Que matassem a Imperatriz Antes que viesse o dia, N'uma floresta cerrada Por onde gente não ia, E vestida a enterrassem, Porque assim fazer cumpria; E se isto não fizessem, A vida lhes custaria. Mandou-lh'a logo entregar C'o vestido que trazia, Para receber aquelle Que tão mal a recebia. Vendo-se ella assim levar, Suspeitando o que seria, Como discreta, que era, Cheia de sabedoria, Levantou o rosto ao céo, D'esta maneira dizia: «Encommendo a Deos minh'alma E á virgem santa Maria, Porque me criou de nada, Por sua bondade pia. Lembrae-vos, Senhor, de mim, Pois sem culpa padecia, Não olheis os meus peceados, Nem o mal, que merecia; Mas vossa misericordia, Que todo o mundo cobria. Eu perdôo a meu cunhado Todo o mal que fazia, E tambem a meu marido, Porque enganado vivia.» Os homens que a levavam Onde padecer havia, Viram sua formosura Co'a lua, que então saía, Disseram uns aos outros: ==Mal empregada seria A morte a esta senhora, Pois que tem tanta valia; Gozemos primeiro d'ella Que a coma a terra fria. N'isto se determinaram, Sem cuidar de mais porfia. Respondeu a Imperatriz: (Bem vereis o que diria.) «Fazei o que vos mandaram, Não cureis de fantazia; Deixae a minha limpeza Para quem a merecia, Que se tocasses em mim, A vida vos custaria.» Não cuidaram os algozes No que a senhora dizia, Antes remetteram a ella Com muito grande ousadia. A innocente cordeira, Vendo que a gente a despia, Começou a dar taes gritos, Que a floresta retinia; E como ainda era noite Em grande parte se ouvia. Acertou de ouvil-a um Conde Que muita gente trazia, Que vinha de Jerusalem, Onde muita gente ía. Quiz Deos que aquella noite Por ali fizesse via, Para livrar a Princeza Da pena que padecia. Como taes gritos ouviu Do cavallo se descia, E com muita grande pressa Na floresta se mettia; Seguiram-no seus criados, Cada um como podia, Ao som dos tristes gritos A gente toda o seguia; Foram dar n'aquella parte, Onde a coitada gemia, Que com mui grande fraqueza A força lhe fallecia, E se um pouco mais tarda Sua honra se perdia. O Conde mui piedoso, Que Clitaneo se dizia, Vendo tão grande maldade, Com grã pressa em demazia, Disse: Matae, meus criados, Quem tal traição commettia. Todos foram logo mortos Antes d'uma ave-maria; E a Imperatriz ficou livre, Porque mal não merecia. Deu-lhe a Imperatriz as graças Do bem que feito lhe havia; Quando isto aconteceu, Já era mui claro dia. E o Conde tão assombrado, Que quasi emmudecia De ver sua formosura Mais que todas quantas via, Logo suspeitou que era Senhora de grã valia, Assim por seu parecer, Como pelo que vestia. Disse-lhe d'esta maneira Com mui grande cortezia: «Não me negueis vós, senhora, Isto que agora diria, Porque não queria errar Contra vossa senhoria: Vós sois de alta linhagem, Isto eu o juraria; Se vós me dizeis quem sois, Grã prazer receberia; Quem vos trouxe a este logar Com tão falsa companhia? Dizei-me toda a verdade Sem cuidar de mais porfia. Respondeu a Imperatriz, Porque encobrir se queria: «Eu sou mal afortunada, Que não sei porque nascia, Por um falso testemunho Perdi minha grã valia; Não vos posso mais dizer, Porque escusado seria: Senão, quero vos rogar Por Deos e santa Maria, Me quereis levar comvosco O que eu não merecia; Servir-vos-hei como escrava, Sempre de noite e dia. Foi o Conde mui contente De fazer o que dizia; Deu-lhe uma cavalgadura De muitas que ali trazia. Chegaram á pousada Com muito grande alegria, Onde foi bem recebido De sua mulher Sophia; Contou-lhe o que passou Em a sua romaria; Tambem lhe apresentou A senhora que trazia; Contou-lhe como a achara, Que nada não lhe mentia. Beijou-lhe a Princeza as mãos Inda que ella não queria, Tomou-lhe mui grande amor A Condessa em demazia, Que não comia sem ella, Com ella folgava e ria; Mais que sua irmã carnal, Era o que lhe queria, Até o menino de teta, Que pouco maior seria, Lh'o deu á Imperatriz, E sempre com ella dormia. Tinha o Conde um irmão, Que Nathão por nome havia, O qual por esta senhora Graves penas padecia: Não tinha nenhum prazer O dia que a não via. Determinou descobrir-lhe Como por ella morria; E um dia, tendo logar, Quando a Condessa dormia, Disse-lhe d'esta maneira Com grande dor que sentia: --Mui resplandecente aurora, Claro sol do meio dia Que fez o Eterno Pintor, Que todas as coisas cria. Minha alma por vós padece, Minha vida se perdia; Por isso me deu o amor Esta tão grande ousadia, Que ousasse a descobrir O que o coração sentia. O que vós tendes roubado É liberdade e alegria; Essas crystalinas mãos De aljofar e pedraria Me deixae beijar, senhora, Pois que tem tanta valia. Não consintaes que padeça, Quem a vida só queria, Para vos poder servir, Como ella merecia. Querendo-lhe a mão tomar, A Imperatriz se desvia, Em ira toda abrazada, Resposta lhe não dizia: «Senão olhara, senhor, O mal que n'isto faria, Eu manifestara ás gentes Vossa louca ousadia. Tirae-vos diante de mim, Não cureis de mais porfia, Ou dil-o-hei á Condessa, Minha senhora Sophia, E tambem ao senhor Conde, Que de mim tanto se fia. Sem curar de mais palavras, Na camara se recolhia, Queixando-se da fortuna, Porque tanto a perseguia. Ficou tão triste Nathão, Quanto dizer não podia, Por tão áspera resposta Como d'ella ouvido havia. Todo o amor que lhe tivera, Em tedio se convertia; Determina de vingar-se Por qualquer maneira ou via. Como a noite foi cerrada, Que já ceado se havia, O Conde e a Condessa E toda a mais companhia, Cada um em seu aposento A dormir se recolhia, E tambem a Imperatriz Á cama d'onde dormia; Levava comsigo o menino, Como d'antes o fazia. Deixou a candeia acceza, Como de costume havia. Assim como se deitou Logo se adormecia, Com o menino nos braços, Porque muito lhe queria. Estava o falso espreitando Como a cordeira dormia, Cançada de muitos choros, Que de continuo fazia, Lembrando-lhe seu marido, E o bem que d'elle perdia; E que sendo Imperatriz De tanto estado e valia, Agora como escrava De uma vassalla se via, E que de um seu irmão Tanta affronta recebia. Como viu este malvado, Que o somno a embebia, Tirou a porta do couce, Com um engenho que trazia, E foi-se direito á cama, Onde o sobrinho dormia, Degollou-o c'um cutéllo Mui agudo em demazia. Depois que o teve morto, Que com pé nem mão bolia, Deixou o cutéllo nas mãos Da innocente que dormia, E saíu cerrando a porta, Melhor que elle podia. Era o sangue de tal sorte Que do menino corria, Que o corpo da Imperatriz, Olhos e mãos lhe enchia; Como o tinha nos braços, Toda de sangue a cobria; Entrando-lhe pela bocca, Acordar logo a fazia. Vendo na mão o cutéllo, E o menino que jazia, Começou com grandes gritos A publicar o mal que via, Dizendo; «Acudi depressa Minha senhora Sophia, Que mataram vosso filho Minha doce companhia.» Ás vozes que ella dava, A Condessa se erguia, Que ainda estava na cama, Porque era antes do dia, E seu marido com ella Mui triste em demazia. Vendo o filho como estava, Em terra logo caía, Estava tal como morta, Que com pé nem mão bolia. Á coitada da Imperatriz A alma se lhe saía, Não podia suspeitar Quem tanto mal lhe fazia; E ainda que suspeitasse, Pouco lh'aproveitaria. E n'isto chegou o irmão, Que de prazer não cabia, Porque tanto se vingara De quem tanto a offendia. Disse o irmão a Clitaneo, Chorando, demais seria: --Quem matou o meu sobrinho, Grande castigo merecia. Mandae-m'a vós queimar logo, Sem curar de mais porfia; Porque ali tem o cutelo Com que fez tão grã falsia. Estas palavras dizendo, A Condessa em si volvia, Levantando-se em pé, Com o grande pezar que havia, Viu estar a Imperatriz, Que finada parecia, Seu rosto maravilhoso Feito côr de pedra fria; Seus olhos fontes de lagrimas Com o chorar que fazia; Tinha o coração cerrado, Falar a ninguem podia, Ainda que perguntavam, A ninguém não respondia. Estava como pasmada Com estas coisas que via. A Condessa piedosa, Com o bem que lhe queria, Não podia esta senhora Crer que tal ella faria; Mas o malvado cunhado A todos os induzia, Que lhe dessem logo a morte Que ella tão bem merecia; E se matar a mandava, Que elle mesmo a mataria, Por matar a seu sobrinho, Que tanto bem lhe queria. Chorando singularmente Mostrando que se doía; E para mais a commover O cutélo lhe trazia, Todo coberto de sangue Do innocente que morria. A pomba sem fél chorava A tudo quanto ali via, Não querendo desculpar-se Porque crida não seria, E não por temor da morte, Que d'ella não se temia; Mas antes continuamente A Deos sempre a pedia, Que quem vive sempre triste A morte lhe é alegria. E mais ella, que estava Com tão sobeja agonia: Acordou fazer-se muda, Pois falar-lhe não valia. A quanto lhe perguntavam Vendo que não respondia, Cuidando então a Condessa, Que culpada não seria, E que matára seu filho Alguem que mal lhe queria; E que ella ora com pezar De tal sorte emmudecia, E dizendo a seu marido Isto que cuidado havia, Parecia-lhe bem ao Conde O que a Condessa dizia, Por não dar tão cruel morte A quem tão bem a servia. Foi determinado então, Desterral-a sem porfia, E n'uma Ilha lançal-a, Que dentro do mar jazia Quarenta leguas de terra, Onde gente não havia; E que ali de fome e sêde Sua culpa pagaria, E comida de animaes, D'isto não escaparia. Como a noite foi chegada Ás horas que anoitecia, Manda que seja levada Por dois homens de valia, Com ella duas mulheres, Para ir em companhia, Para que fosse guardada Sua honra, como devia. Em um navio veleiro A Imperatriz se mettia, Com lagrimas dos seus olhos Da terra se despedia. Chegaram á dita Ilha Á noite do outro dia, A Princeza deixam em terra Com grã choro em demazia. Tornaram-se com o navio, Porque assim fazer cumpria. Quando a nobre Imperatriz Em tal logar só se via, N'uma Ilha tão deserta, Onde ninguem não vivia, Senão bravos animaes, De que ella manjar seria, Chorando lagrimas tristes, D'esta maneira dizia: «Ó meu nobre Imperador, Meu bem e minha alegria, Que pouca é vossa lembrança De quem tanto vos queria! Que pouco tempo durou Vossa doce companhia? Sempre cuidei de vos ver Algum tempo ou algum dia; Agora por meus peccados Jámais nunca vos veria. Deos perdôe a vosso irmão, E a Virgem santa Maria, Que eu lhe perdôo aqui Todo o mal, que me fazia. Oh senhor, e só meu pae, Principe e rei de Hungria, Quão triste vida será A vossa sem alegria, Em ouvindo tão má fama, Que em Roma de mim corria? Mais sinto vosso pezar, Que minha grande agonia; Pois morrerei uma vez Vós morrereis cada dia. A vossa deshonra sinto, Que a morte não a temia, Porque mais hade temer, Quem tão sem culpa morria. Estas palavras dizendo, Mui grande ruido ouvia, Tão terrivel e espantoso, Que soffrer-se não podia; Ouvindo isto a senhora A força lhe fallecia; Como era delicada Em terra logo caía. Estes eram animaes De muitos que ali havia, Que tanto que a sentiram, Com grã pressa em demazia Correram para a comerem, Cada um qual mais podia. Antes que a ella chegassem Um resplendor apparecia. Estiveram todos quedos, Nenhum ali se movia, Com temor de uma senhora, De quem o inferno tremia; Pois vinha com magestade A Virgem santa Maria, Para guardar a limpeza De quem a ella recorria. Chegando com grande amor, Onde a Imperatriz jazia, Disse-lhe d'esta maneira Com suave melodia: «Minha Porcina, não temas, Que nenhum mal te viria; Eu sou a Madre de Deos; A quem serves cada dia, Que te venho soccorrer Em tão extrema agonia; Não temas nenhum perigo Princeza nobre e mui pia, Porque Deos será comtigo Sempre de noite e de dia, Por muitos bens que fizeste, De que elle se servia. D'esta herva colherás, Que n'este logar nascia, Sem levar outra mistura Mais que sómente agua fria, Na qual cozida será Quanto te parecia: E um unguento farás De grande preço e valia, Com o qual darás saude A quem a mister havia, Em nome do Redemptor, Rei de toda a monarchia.» E estas palavras dizendo A Virgem ao céo subia, Os animaes que ali estavam Nenhum mais apparecia. A Imperatriz ficou Mui alegre em demazia, E dando a Deos as graças, E á sagrada Maria, Colheu d'aquella herva tanta, Quanta mister lhe fazia. Acabando de colher, Um navio á vela via, Capiando-lhe com a mão, A gente á terra sahia, Mui espantados em vêl-a Perguntaram que queria, Ou quem a trouxe ali, Onde ninguem não vivia. Respondendo a Imperatriz, D'esta maneira dizia: «Que vindo com seu marido Para Roma sua via, A grã tormenta do mar Ali lançado os havia, E a Nau foi dar á costa Com a gente que trazia, E que ella escapara Sem outra mais companhia: Quero-vos rogar, irmãos, Por Deos, e por cortezia, Me leveis á terra firme, Que bem vol-o pagaria. Todos foram mui contentes, Sem curar de mais porfia. Como foi posta em terra Com mui grande alegria, Foi-se direita ao Castello, Que Alberto se dizia, Pelo nome do Senhor, Que sempre n'elle vivia, O qual tinha sua mulher, A quem elle muito queria, Doente de sangue fluxo, Que grã pena padecia. Não lhe davam cura os Mestres Que grande pezar sentia, A Imperatriz piedosa, Licença ao marido pedia, Para curar a mulher, Que tanto mister havia: E assim logo entrou dentro Adonde a mulher jazia, Untou-lhe todo o seu corpo Com unguento que trazia, Pela vontade de Deos A saude recebia. Levantou-se logo em pé, O que d'antes não fazia, Muito rija e muito inteira, E com grande melhoria, Clamando por seu marido, O qual logo lhe acudia: Disse-lhe como era sã, Do gram mal que padecia, Abraçando a Imperatriz, Tão leda, que não cabia, Tomou-lhe tão grande amor Como a razão o pedia. Muita gente a vinha vêr, Espantada do que via; Que fosse sã tão depressa Quem tanto mal padecia. Olhava a Imperatriz A quem tal bem lhe fazia, Mui espantados de a vêr Tão formosa em demasia, Sarar tal enfermidade Com sua sabedoria. Elles a isto assistindo, Um cego apparecia, E chegando ao Castello, Que já dito vos havia, Quiz elle pedir esmola Assim como antes sohia. Vendo-o a Imperatriz, Movida com a obra pia, Curou-o em nome do Padre, Que todas as coisas cria, Do filho e do Espirito Santo, Que d'entre ambos procedia; A Santissima Trindade Saude lhe concedia. Como o cego se viu são, Com grã prazer que sentia, Pôz-se ante ella de joelhos, Dando vozes de alegria. Levantou-o a Imperatriz, Que tal coisa não queria, «Irmão, dae graças a Deos, (Mui humilde lhe dizia), Que só vos deu a saude Com a sua sabedoria, E a infinita bondade, Que terra e mar enchia. A fama destes milagres, Pela terra se estendia; A Clitaneo os contaram, E a sua mulher Sophia, Os quaes foram mui alegres Pelo que agora diria. Natão aquelle malvado, Que arriba se dizia, Que matou a seu sobrinho, Do que não se arrependia, Que offendendo tanto aquella Que nenhum mal merecia, Depois de ser desterrada Antes de passar um dia, Veiu a fazer-se gafo, Que nenhum remedio havia, Senão pagar com a morte No inferno o que devia. Era tal sua doença, Que tudo aborrecia, E ninguem chegava a elle Tão fortemente fedia. Acordou pois Clitaneo (Porque muito lhe doía) De logo o levar comsigo, Adonde Alberto vivia. Pois que era seu parente, Grande amigo em demasia, Disse tambem a mulher, Que com elle ir queria. Metteram-no em umas andas Aonde só ir podia. Partiram todos de casa Quando a luz apparecia, Chegaram ao dito Castello Á meia noite seria, No qual o parente Alberto Mui alegre os recebia. Ao tempo que ali chegaram, A Imperatriz dormia, E não a poderam ver, Até que foi bem de dia; Como foi pela manhã, A recebel-o saía, Com aquelle acatamento, Que a humildade devia; Todos logo a receberam Com mui grande cortezia, E quiz nosso Senhor Deos Que ninguem a conhecia, O Conde e a Condessa, Nem a sua companhia. Todos eram espantados Do primor, que n'ella havia, Contou Clitaneo então A causa que os trazia, Pela doença do irmão, Que tal tormento sentia. Dizendo:--Pois Deos lhe dera Tal graça e tal valia, Que lh'o quizesse curar Como aos outros fazia, Que se por paga o houvesse Quanto quizesse daria. Respondeu a Imperatriz Mui contente do que via, Para se manifestar Como sem culpa vivia; Que fosse onde elle estava, Porque ella ver o queria. Foram com ella as senhoras Por lhes fazer companhia, Tambem todos os senhores, Para ver o que fazia. Chegando onde elle estava Tão fortemente fedia, Que não podia soffrel-o Toda a gente que ali ía, A Imperatriz piedosa, Com a humildade que havia, Chegando á sua cama, D'esta sorte lhe dizia: «Meu irmão, salve-o Deos, Que todas as coisas cria; E vos salve vossa alma, E ao corpo dê melhoria. Vós, irmão, quereis ser são? (Disse-lhe elle que queria.) Haveis-vos de confessar Sem cuidar de mais porfia, Diante d'estes senhores, Porque assim fazer cumpria: E se vos não confessaes, Saude vos não daria Christo nosso eterno Deos, Porque d'isto se servia, Que digaes publicamente O que a consciencia sentia. Confessou-se logo á hora Do tudo quanto sabia, Mas o que mais relevava, Calava, que não dizia. Disse-lhe a Imperatriz, Como quem o entendia: «Se tudo não confessaes, Eu curar-vos não podia, Porque um grave peccado Que a Deos muito offendia, Convem que satisfaçaes A honra que se perdia D'aquella, que vós sabeis Quão innocente vivia. Como isto ouviu Natão, Mui fortemente gemia, Dava tão grandes suspiros Que a alma se lhe sahia, Como quem do que fizera Muito se arrependia. Disse-lhe então o irmão, Vendo que tanto temia: --Como tão grande peccado, Tendes vós na fantazia, Que o não quereis confessar Pois que tanto vos cumpria, Por haverdes a saude De quem dar-vol-a podia? Respondeu logo Natão: --Senhor, não tenho ousadia, Se vós me não perdoaes, E vossa mulher Sophia. Disse elle, era contente, E ella, que lhe aprazia. Ouvindo isto Natão, Pois tal fazer não podia, Chorando lagrimas tristes Com mui grave agonia Contou logo todo o caso, De sua grande falsia: Como matára o sobrinho Na camara onde dormia, Porque ella não quizera, Fazer o que elle pedia; E de como a commettera, E o que ella respondia; Contou tudo sem deixar Nada, que assim lhe cumpria. Como isto ouviu a Condessa Em terra se amortecia, E seu marido Clitaneo O mesmo tambem fazia. Depois que tornou em si A Condessa assim dizia: --«Oh malvado! quem cuidara Tua grande hypocrisia, Porque te déra o castigo, Que tal traição merecia! A amiga maior perdi Que ninguem nunca perdia, Minha fiel companheira, Que a mim tanto me queria. Não me peza de meu filho, Em que a carne o requeria, Porque como pequenino Mui pouca mingua fazia; Mas a vós, minha senhora. Que eu matei com ousadia, Tenho tão grande pezar, Que a alma se me saía; Eu não posso perdoar Aquillo que não sabia; E se eu lhe dei perdão, Em muito me arrependia, Nem meu senhor e marido Perdoar-lhe tal devia; Porque, sendo seu irmão, Lhe fez tão grande falsia. A prudente Imperatriz Muitas coisas lhe dizia, Porém nada aproveitava, Que tanto a aborrecia. Até que esta senhora A todos se descobria, Dizendo que ella era Por quem tanto se doía. Ouvindo isto a Condessa, Pelo que em ella via No resplandor do seu rosto, E na fala a conhecia, Porque Deos lhe abriu os olhos De sua sabedoria: Foi-se c'os braços abertos, Que parecia sandia, Aos seus da Imperatriz, Que outra vez se esmorecia, Porque tambem isto faz A mui sobeja alegria. E seu marido Clitaneo De contente não cabia, Perdoára a seu irmão, Porque ella lh'o pedia; E logo quiz dar saude A quem lh'a não merecia, Untando-lhe todo o corpo, E as chagas que n'elle havia, E tambem a sua bocca D'onde máo cheiro sahia. Em nome de Jesus Christo, Saude lhe concedia, Mais são, e mais esforçado Do que antes ser podia. Como isto viu Natão, Mui contente em demazia, Foi-se a fazer penitencia, Onde mais não parecia. Toda a gente que ali estava, Tanta honra lhe fazia; Como se todos souberam Sua grande senhoria. Nunca d'ella se apartava A sua amiga Sophia, Tambem a mulher de Alberto, Que em extremo lhe queria. Vinham de todas as partes Ali enfermos cada dia, Aos quaes ella curava, Sem nenhuma fantazia, E a todos dava saude, Porque Deos o permittia. Como a fama era ligeira, Por todo o mundo corria, Disse-se ao Imperador Que em Roma residia, O qual foi mui contente, Quando taes cousas ouvia, Porque tinha seu irmão, De que acima dito havia; Doente em cama, mui gafo, Que já viver não podia, Mui peior do que Natão, Porque em taes casas fedia; Sua carne tão malvada De bichos já se comia; Ninguem o podia ver, Porque logo adoecia, Que tanto era o fedor, Que de seu corpo saía. Como lhe certificassem Ser de mui grande valia, Um Duque manda por ella, De quem muito se confia, Dizendo que lh'a trouxesse Antes do terceiro dia, Porque não viesse a morte A quem tanto lhe doía. Vendo o Duque seu mandado A grã pressa se partia, Chegando ao dito Castello Clitaneo o conhecia: Logo o foi a receber Com mui grande cortezia, Fazendo-lhe aquella honra, Que tal senhor merecia. Como tão pouca detença O Duque fazer cumpria, Perguntou pela senhora, Que tantas coisas fazia. Como lhe fosse mostrada, Grande espanto recebia, De ver sua formosura Mais que todas quanto via, Lembrando-lhe a havia visto, Mas aonde lhe esquecia, Muito fóra de cuidar, Que a Imperatriz seria. A mui nobre Imperatriz, Que mui bem o conhecia, Seu rosto maravilhoso D'elle sempre escondia, De que causa se assombram Porque a todos se encobria. O Duque sem mais deter-se, Sua vinda lhe dizia, Contando-lhe como Albano Cruel pena padecia; E que o Imperador Lhe rogava e lhe pedia Que logo o fosse curar, Pois tanto mister o havia, E que se o désse são, Que elle lhe promettia, Fazel-a tão grã senhora, Como ella bem veria. Foi a Imperatriz contente, Sem cuidar de mais porfia, Determinou ir com ella A sua amada Sophia; Tambem a mulher de Albano Disse que não ficaria, Assim que ambos os maridos Lhe fizeram companhia, Porque tambem desejavam De ir a Roma em romaria. Partiram com tanta pressa, Que chegando ao outro dia Á grã cidade de Roma, Quando o sol claro saía, Era tanta pelas ruas A gente que a seguia, Que quando chegaram ao paço Caber n'elle não podia. O Imperador Lodonio Tão alegre a recebia, Que todos se assombravam De sua grande alegria. Foi ella beijar-lhe a mão, Mas elle o não consentia; Ia c'o rosto coberto, Que pouco lhe apparecia. Como ella se viu diante De quem mais que a si queria, Não podia ter-se em pé, Do grão prazer, que sentia. O Imperador fez honra A todos quantos trazia, Maiormente a Clitaneo, Por sua grande valia; Sentou-os todos á mesa, Com todos juntos comia. Em quanto durou o comer, Os seus olhos não desvia De sua amada mulher, Que elle reconhecia; Mas o coração lhe dava Sobresaltos de alegria. A prudente Imperatriz O mesmo tambem fazia. Acabando de comer A seu marido dizia: «Clarissimo Imperador, Rei de toda a monarchia, A quem devem sujeição Todos os que a terra cria; Eu, como serva menor De quantos no mundo havia, Conhecendo o grão pesar Que tendes em demasia, Pela doença do irmão, Que tanto mal padecia, Venho aqui para o curar Como quem em Deos confia, Como elle lhe dará saude Por sua clemencia pia; Portanto eu quero vel-o Se o Senhor m'o concedia. O benigno Imperador Muito lh'o agradecia; Foram postos muitos cheiros Na cama d'onde dormia, Porque de outra maneira Ninguem lá entrar queria. Foram todos juntamente, Que ninguem ficar queria, Á camara onde estava Quem tanto mal padecia. Tinha tão grandes tormentos Que a alma se lhe saía. A humilde Imperatriz, Por fazer o que devia, A rogos do seu irmão, A quem tanto amor havia, Chegando-se á sua cama, Salvando-o como sohia, A fazer que o curava, Como quem seu mal sentia: Albano lhe torna graças, Muito alegre em demasia, Disse-lhe a Imperatriz Com mui grande cortezia; «Convém de se confessar Logo vossa senhoria, Diante do Imperador, E esta nobre companhia, De todos os seus peccados, Que contra Deos commettia, Se um só ficar por dizer, Saral-o não me atrevia. Respondeu logo Albano, Como quem já se temia: Que elle os seus peccados Ao Sacerdote os diria, E que de outra maneira Confessar-se não podia. «Será logo por demais, (A Imperatriz dizia,) Minha vinda a este logar, Pois nada aproveitaria. O Imperador agastado, A seu irmão respondia: --Quem agora vos curasse, Tam grã milagre fazia, Como resurgir um morto, Que já come a terra fria; E pois por tal vos contamos, Porque vos falta ousadia De dizer vossos peccados Ante esta tal companhia? Dizei-nos, por Deos, irmão, Não cuideis de mais porfia, Se vós não confessaes, Grã pezar receberia. Disse-lhe então Albano, Que pois isto elle queria, Que logo lhe perdoasse Um grã mal, que feito havia; O qual era de tal sorte Que perdão não merecia, E se lhe não perdoava, Que não se confessaria. Respondeu-lhe o Imperador Que mil lhe perdoaria, E pois era seu irmão, Porque d'elle se temia? Respondeu então Albano, Com grã pezar, que sentia: ==Bem sei que sereis lembrado D'aquelle tam triste dia, Quando d'aqui vós partistes Para ir á romaria? Por Governador deixastes, Como a razão pedia, A mim e á Imperatriz, Que eu matei com grã falsia. Contou-lhe todo o successo, Porque nada lhe mentia. Ouvindo o Imperador Bem vereis o que diria: --Piedoso Jesus Christo, Eterna sabedoria, Tam altos são teus mysterios, Que ninguem os entendia: Quem cuidara que um irmão Tão grã traição me faria? Eu fui mui pouco discreto, Pois fiz o que não devia, Sem primeiro me informar De quem o caso sabia. Oh minha amada mulher, Claro sol, e luz do dia, Minha saborosa lembrança, Espelho em que me via! Como partiste queixosa De uma tão penosa via, De mim mais, que do cunhado, Porque eu o merecia Em vos matar tão sem culpa, Sem olhar o que fazia. Porque devera olhar O que por razão seria, Que quem tem fiel amor, Nunca mudar se podia. Pelejem os elementos, E abra-se a terra fria, Para que consumma em si Quem tanto a Deos offendia? Escureça o sol, e a lua Que todo o mundo allumia, Porque ajudem a meu pranto, Como a razão o pedia. Estas palavras dizendo, Com a dôr se amortecia, Era por morto julgado Da gente que assim o via. Vem logo todos os Mestres, Cada um como podia, Os quaes sabendo a verdade, Com muita grande agonia, Tantas cousas lhe fizeram Com sua sabedoria, Até que em si o tornaram, Como de antes sohia. Não quiz mais a Imperatriz Encobrir o que sentia, Descobriu seu lindo rosto, E a seu marido dizia: «Oh meu bem tam desejado, Minha doce companhia, Eu sou a que com razão Devo de ter alegria; Pois Deos me deixou ver-vos Como sempre lhe pedia: Se agora viesse a morte Mui leda a receberia; Eu sou a vossa mulher Filha do grão Rei de Hungria, Que vós mandaste matar, Pelo que não merecia: Quiz-me guardar Jesus Christo E a Virgem santa Maria, Por guardar fidelidade A quem tanto me queria. Poz-se ante d'elle de joelhos Ainda que o não merecia, Por força lhe beija as mãos, Mas elle o não consentia; Antes quando a conheceu Tão grã prazer recebia, Que abraçando-a docemente Todo o sentido perdia. Não ha ninguem que escreva O que cada um dizia, Nem papel onde caber O que escrever se podia. Em extremo se assombraram Clitaneo, e mais Sophia, Vendo a Imperatriz De tão grande Senhoria, Aquella que em sua casa, Como escrava os servia; Que mandaram desterrar Por culpa que não havia, Temendo-se que agora Algum grã mal lhes viria, As mãos postas, de joelhos, Mui tristes em demazia, Chorando pedem perdão, Que logo lh'o concedia, Fazendo-os levantar Com mui grande cortezia; A ambos os dois abraçou, Chorando com alegria, Contando ao Imperador O muito que lhes devia. Que se por elles não fôra, Sua honra se perdia; E do grande agasalhado, Que cada um lhe fazia E que a vida, e a honra A elles ambos devia. O Imperador mui ledo, Quando estas cousas ouvia, A Deos dava muitas graças, E á Virgem sancta Maria, Promettendo a Clitaneo Que elle lh'o pagaria, Com fazel-o grã o Senhor De todos quantos havia. Tomou a Imperatriz A sua amada Sophia, Por sua camareira mór, Pelo bem que lhe queria. Tudo quanto ella mandava No imperio se fazia; Determinou o Imperador Por fazer o que devia, Queimar a seu irmão vivo Doente como jazia, Dizendo:--que mais merece Quem tal traição commettia? A Imperatriz piedosa De joelhos lhe pedia, Lhe quisesse dar a vida. Ainda que não merecia, Dizendo que bem bastava A pena que padecia. Outorgou o Imperador, Porque mui chorosa a via, Porque a sua nobreza, A muito mais se estendia. Levantou-se d'onde estava A que n'elle se veria, E se foi deitar á cama Em que morrendo vivia. E untando-o com ungento A saude recebia: Ficou muito forte e disposto, O qual d'antes não fazia; Conheceu o Imperador Sua virtude e valia, Que era ainda muito mais Do que elle cuidar podia. Seu irmão, por nome Albano, Que muito se arrependia, Fez mui grande penitencia, Porque bem se arrependia. O Imperador Lodonio, Mandou fazer cada dia Muitas grandes procissões A Deos e sancta Maria, Dando-lhe infinitas graças Pelos bens que lhe fazia. Fizeram por toda Roma Muitas festas de alegria, Os pobres se alegravam, E toda a gente dizia: Viva a nossa Imperatriz Que tanto bem nos fazia; Iam-na todos a ver, Como vem á romaria, A todos benignamente A Senhora recebia, Fazendo-lhes mais esmolas, Do que ella d'antes fazia. O Imperador Lodonio Tambem com vontade pia Fazia mui grandes bens, A todos grã bem fazia: Foram bemaventurados, Segundo a historia dizia. _Folha volante_, de 1660 * * * * * DOM FRANCISCO MANOEL DE MELLO Romance picaresco, intitulado «Debuxo de Pena,» Que em portuguez a retrate Me rogou Dona Breitís; Porque tem nojo das côres Dos poetas de Madril. Eil-a vae, escutae, vede, Pois logo vereis se ouvís; Que se não vae para vêr, Vae, ao menos, para ouvir. O _cabello_ é pino de ouro Tanto mais que o Potosy, Que ao pino do meio dia Faz cada dia o sol crís. Apodara-lhe eu a _testa_ A um pedaço de marfil; Mas ella diz d'esse apodo Que m'o deixa para mim. Os _olhos_ são dois soldados Da fronteira ou do Brazil; A quem amor por valentes Deu o habito de Aviz. Trez _meninas_ tem travessas Com as duas que lhe vi, Pois brincando ella com ellas São trez meninas, emfim. Porque são arcos de flores, Me jurou Maria Gil, Lhe comprára para a dança As sobrancelhas sutís. _Pestanas_ tem, não queimadas Por lhe não servir assi, Para uns olhos tão dormidos As pestanas são dormir. Ambas as _faces_ parecem De obra de agulha gentil, Bainha de ambas as faces Em lenço feito em Cochim. Não falemos no do meio Ramalhete de jasmins, Que segundo é lindo, e cheira É ramalhete ou _nariz_. O carão limpo e luzente Uma pessa é do sitim, Não picado, que picado É só quem tal carão vir. O _rostro_ livro é de caixa Cujas partidas gentís Não viu o Infante Dom Pedro Emquanto andou por ahi. As _orelhas_ fogem ás dores Porque as não querem sentir, Orelhas de mercador Vendendo mais dor assim. A _boca_ d'esta fidalga, Se não vem como se diz A pedir de boca, é boca Que nunca vem a pedir. Que pouco direi dos _dentes_. Bem que muito dizer quiz; Mas cada _dente_ tem dente Contra a musa mais subtil. Se tomal-a pelo _beiço_ Quer o cravo e o rubi, Ella pelo o beiço toma Mil cravos e mil rubis. Sem falta a moça não come Outro pão, que de ambar gris, Segundo vem perfumados Seus nãos, quanto mais seus sins. Na _garganta_ me deu susto Quando fui e quando vim; Porque co'alma na garganta Sempre a verá quem a vir. O _talho_ de muito inteiro É feito tão sobre si, Que tal me depare Deos No meu feito o meu juiz. Conforme que prende e mata Com _olhar_ e com _sorrir_, A senhora traz no gesto, Um algoz e um beleguim. Se trez foram como duas Que são duas flores de liz, Lhe tomára as _mãos_ por armas De França o mesmo Delphim. Ouvi que lhe pediu Venus Para pôr nos seus jardins Os _pés_, que postos em terra Prendem quaes pés de jasmins. Quando pisa, o cravo cheiro, D'onde já disse Merlim, Que _pés_ que assim pisam cravo São _pés_ mãos de almofariz. Senhora Breitís, agora Comvosco vos conferí; Que se este retrato é pouco Far-vos-hei d'estes cem mil; Porque só pinto o que vejo, Não lanço adiante o gis, Senão, dae-me mais que vêr Que eu vos darei mais que rir. Quando empunhando o rifão Faça crêr, como eu o crí, Que a Breitís sempre é das moças Qual das aves a perdiz. _Obras metricas_, t. II, p. 219. Edição de 1665. * * * * * M. QUINTANA DE VASCONCELLOS Romance da Claridea ao som da harpa da Torre Todas as vezes que canto Por aliviar minha pena, Segue o pensamente a voz Té chegar á causa d'ella. Lá entre mil alegrias, Que a memoria representa, Tão triste me considero, Que me converto em tristeza. Ser alivio de um mal grande Qualquer gosto, ninguem creia, Que augmente ao contrario ás forças Uma debil resistencia. Rouba o tempo ao mesmo tempo, A musica o animo alegra, E é tão querida de amor, Que amando o mais rudo adestra. Tema do seu doce effeito Prodigiosas experiencias, Nas aves de que é seguida, Nos animaes que deleita. Eu só me afflijo cantando, E todo o bem me atormenta, Que perder vida e memoria São os remedios da auzencia. Tem por mór mal o da morte Nossa fragil natureza; Mas, maior mal ha na vida Se ha memorias, o soffrel-a. Aqui só n'esta prizão, E em meu cuidado mais preza, Estam tão longe de mim, Que nada sei de mim mesma. Lagrimas me tem comsigo Quando a suspirar-me leva, Do que fui tenho saudade, E de ser quem sou me pesa. Viver co'a dôr que padeço Deve ser ventura alheia, Inda que dão desventuras Forças da nossa fraqueza. Mas quem desespera auzente Do bem que amando deseja, Já não tem dor que sentir, E embalde outra morte espera. Novella da _Paciencia Constante_. * * * * * ANTONIO SERRÃO DE CASTRO Romance da briga de um cego e um corcovado De um Cego e de um Corcovado Hoje o desafio escrevo; N'um vou á cega lagarta, N'outro vou com grande peso. N'uma palestra se acharam Os dois a um mesmo tempo, Um carregado de espaldas, Outro de colera cego. Vinha o Corcovado armado De bacias de barbeiro, Uma trazia nas costas, Outra trazia no peito. Com vir nas conchas metido Parece vinha com medo, Pois nas conchas com alongo Um cágado estava feito. No Cego vejo a razão, No Corcovado a não vejo, Porque é um homem que nunca Teve avesso nem direito. Esgrimiu o Cego um pau E andou com elle tão déstro, Que em dois angulos obtusos As pancadas deu correndo. Descarregou de pancadas No Corcovado um chuveiro, Porque os chuveiros nos montes Dão as pancadas mais cedo. Dar o Cego a bateria No Corcovado era certo, Porque duas eminencias Tinha por onde batel-o. Sem haver pé de pessoa Que a briga estivesse vendo, Foi o Cego dar com um pau Em dois vultos não pequenos. Tropeçou o Cego n'elles, Que é o tropeçar de cegos; E deu de cego pancadas Em dois mui grandes torpeços. Pôr no Corcovado o pau Não foi n'este Cego o erro; Que em casas que tem corcovas Pôr-lhe pontões é acerto. Dando na Casa dos Bicos Eram golpes tão horrendos, Que lá no Cunhal das Bolas Soando estavam seus eccos. Sempre um cego ha mister guia, Mas eu n'este Cego vejo Que não ha mister guiado Pois tanger sabe um camello. Como os cegos tangem bem, Este tangeu tão avesso, Que nas costas de um laúde Deu bordoadas aos centos. N'um mesmo tempo brigou, E acclamou o vencimento, Pois sempre na briga esteve Os atabales tangendo. O Cego teve a victoria Mas o Corcovado, é certo, Que nos despojos levou Os dous alforges bem cheios. * * * * * ANONYMO Romances e cantigas da canonisação de Sam Francisco Xavier Pérola muy bella Nos traz Oriente; Mais resplandecente Qu'hũa nova Estrella. Quanto tem valia Muito áquem lhe fica; Pérola tam rica No mar não se cria. Orvalho dos céos Gerou tal belleza, Contra a natureza Junt'os Pyreneos. Vêdes quam ditosas São nossas montanhas, Pois tem nas entranhas Pedras preciosas. Não sei se notaes Grandeza tão rara, Pedras de Navarra Vencem orientaes. Outra cantiga, que fala com o Piloto da Nau, que é o Sancto Piloto da Nau ligeira, Que corre por terra e mar! A maré é de rosas, O porto seguro, As velas mandae tomar. No meio do coração Vos darêmos gasalhado, Que por bem aventurado Se terá com tal patrão. Tendes vara de codão Pera todos cativar. A maré é de rosas, O porto seguro, etc. Enchestes o Oriente De luz e de piedade; Visitae esta cidade Qu'é senhora d'essa gente, E vereis quão diligente, Se mostr'em vos festejar. A maré é de rosas, O porto seguro, etc. De drogas celestiaes Vindes muito carregado, Vede que sois obrigado Repartir c'os naturaes: Amor quero, e nada mais Por ser pedra de bazar. A maré é de rosas, O porto seguro As velas mandai tomar. ---- Oh Nau que pera a viagem, Marinheiros não temais, Pois tal Piloto levaes, Poderá com segurança Quem tal Piloto levar, Ou pollo mar com bonança Ou por terra navegar. Espertae a confiança Que dos céos vereis o caes, Pois tal Piloto levaes. Desferi todas as velas, E botae de foz em fóra, Pera que possam enchel-as Ventos galernos emb'ora. Alegres todos a ellas, Tempestades não temaes, Pois tal Piloto levaes. Assás covarde será Quem receiar a viagem, Pois Xavier governará Que é Piloto de vantagem. Elle franquêa a passagem, Iça, iça, mais e mais, Pois tal Piloto levaes. ---- Xavier ao leme, Anjos a cantar, Larguemos a vela Pera navegar. É sabio o Patrão Que assi manda a via, Vêm ao Galeão Todos á porfia. Ledos e contentes Pera embarcar, E tudo está lestes Pera se navegar. Galeão fermoso E bem artelhado, Em tudo lustroso, Em partes dourado. Quem póde temer, Ou arreceiar? Já se faz á vela Pera navegar. Pois não teme guerra Na terra ou no mar; Por mar e por terra Pode caminhar. Vae esta Nau bella Ao Céo demandar, Larga, larga a vela Pera bolinar. Dourado pharol, Dourada bandeira, Francisco é o sol, Norte de carreira. É Nau de alto bordo, Não póde remar, Tende logo acordo Pera velejar. Xavier ao leme Anjos a cantar, Larguemos a vela, Pera navegar. Relaçam das Festas que a religiam da Companhia de Jesus fez em a Cidade de Lisboa, na beatificação do Beato S. Francisco Xavier, segundo Padroeiro da mesma Companhia, e Primeiro apostolo dos reinos de Japão, em Dezembro de 1620, recolhidas pelo Padre Diogo Marques Salgueiro, etc. Lisboa, por João Rodrigues, 1621. * * * * * Cantiga de Abel Doloroso gado De tanto primor, Dôa-te o fado Do triste pastor. Lembrae-vos, cordeiros, Da minha tristura, Ovelhas, carneiros Que pastaes verdura. Abel sem ventura De vós apartado, Meu gado amado, De mim com amor, Dôa-te o fado Do triste pastor. Doei-vos de quem De vós se doía; Lembrae-vos tambem Minha companhia, De quem ser sohia Sou outro tornado, Ficaes só deixado. Sem ter guardador Doei-vos do fado Do triste pastor. _Auto do Dia do juizo_;--Folha volante de 1659. * * * * * FRANCISCO LOPES Romance de Santo Antonio e a Princeza Estava el-rei de Leão Casado com uma princeza De portugueza nação, Devota, por portugueza, De Antonio, santo varão. Tinha morta esta rainha Uma filha já mulher; A qual não pode soffrer Que enterrem, como convinha, Pelo muito que lhe quer. El-rei e toda a mais corte Para a sepultura se ajunta, Mas era o amor tão forte, Que, tendo a filha defunta, Não crê a rainha a morte. Trez dias chegou a estar A mãe em continuo pranto E a filha sem sepultar, Com grande fé no seu santo, Que lh'a hade ressuscitar. Erguendo o rosto choroso Ao céo com fé verdadeira Ao seu Santo glorioso, Tão santo e tão poderoso, Orava d'esta maneira: «Já que sois universal Nos milagres que fazeis Por todo o mundo em geral, O remedio não negueis A esta vossa natural. E se é justo que sintaes Esta ausencia tão esquiva, Porque a vida lhe negaes, Dae-me minha filha viva, Pois tantos ressuscitaes.» Inda a rainha não tinha Dita a sua oração santa, Quando Deos ouve a rainha, E Antonio põe a mésinha, Com que a moça se levanta. Porém a infanta amada, Que tornou cá a esta vida Lá da angelica morada, Anojada e offendida Contra a mãe responde irada: --Perdôe-vos Deos, senhora, Que me tirastes dos céos, Aonde eu estava agora, Porque santo Antonio fôra O que isto pedira a Deos. E Deos como o ama tanto, Porque tanto a Deos amou, Por aplacar vosso pranto, D'entre as virgens me tirou Do côro celeste e santo. Porém a bondade immensa Que tudo move e governa, Quinze dias só dispensa Que esteja em vossa presença E que torne á vida eterna.-- Como o divino recado Deu a ditosa menina Do que Deos tinha ordenado, Sendo este tempo acabado Subiu á patria divina. _Santo Antonio_, Milagre XXXVI.--Vide Rom. Ger. n.º 44; Rom. de Aravias, n.º 72. Legitima assimilação popular, de 1620. * * * * * ROMANCES DA HISTORIA DE PORTUGAL TIRADOS DAS COLLECÇÕES HESPANHOLAS * * * * * 1 Romance del Conde Alfonso Enriquez (anonymo) Cuando el Conde Alfonso Enriquez, Primer rey de Portugal, Hijo del conde Borbon, De Borgoña natural, Despues que en campo de Ourique A muy duro pelear Venció siete reyes moros Y los trujo á su mandar, Y despues que por sus hechos Le vino Dios á premiar, Dándole sus cinco llagas Por armas y por señal; Ya que ganó á Santaren Con mucha guerra y afan, Y puso á Lisboa cerco Por la tierra y por la mar, Salió de dentro elRey d'ella, Llamado Venalmazar; Pide al Conde franca entrada, El cual se la mandó dar. --Habrás de saber, le dice, Que ha que tengo en herdad A la ciudad de Lisboa Treinta y siete años y mas; My padre cuarenta y tres En quieta y segura paz; Mi abuelo la tuvo treinta Con guerras e mucho afan. Al fin la habemos gozado En feliz securidad Desde que el-rey Don Rodrigo La perdió con Portugal; Y que aquesta noche estando En mi casa á mi folgar, Vi venir una doncella Al parecer celestial, La cual hoy me dijo Ser su entera voluntad Que sin guerra te entregasse Mi reino y esta ciudad, Y que me torne Cristiano Para mi alma salvar, Y tu que te apartes luego, Buen Conde, de mas peccar.-- El Conde quedó espantado De lo que al moro oyo hablar; Inclinadas las rodillas Comenzó de razonar: --Mil gracias le doy á Dios Por la merced que me hace, Y pues que d'esto se sirve, Cúmpla-se su voluntad.-- En esto luego se entraron Los dos dentro la ciudad, Do al moro hicieron Cristiano Y al Conde rey natural. _Romanceiro general_, de Duran, t. II, pag. 215. * * * * * 2 Romance de Don Egas Moniz (De Juan de la Cueva) La villa de Guimaraes Don Alonso habia cercado, Oitavo rey de Castilla, Conmovido y alterado Contra Don Alonso Enriquez, Su infante y su mayorazgo, Que no obedeciendo al Rey Contra su edicto y su mando, Teniéndole en menosprecio, No acudiendo á su llamado, Ni á las cortes de Castilla, Aunque era á ellas citado, Como tenia obligacion, Y debe cualquier vasallo, Cual el era de Castilla Con juramento obligado, Y no acudia á sus cosas, Ni d'ellas tenia cuidado. O fuese por querer suyo, O por mal aconsejado, Al fin estimaba en poco Ser de Castilla llamado. D'esto el Rey ardiendo en ira Contra el Infante indignado, Le comenzó á combatir Teniéndole ya cercado, Dàndole por todas partes Fieros y duros asaltos, Perseverando en su intento, Prometiendo y protestando Que hade igualar por el suelo Su muro reedificado, De donde los portuguezes Se defienden aunque en vano, Porque la porfia del Rey En un tiempo ya tan largo Los tenia tan estrechos, Tan sin fuerzas y gastados, Faltos de mantenimientos E de vituallas faltos, Costreñidos de la suerte Que estaban determinados A rendirse, pues se vian Sin remedio en tal estado, Y entregar al Rey la villa Por no recebir mas daño. Todo el pueblo en este acuerdo La ocasion anda trazando, Viendo que el Rey persevera Que su intento lleve al cabo, Sin desistir de su intento Ni alzar del cerco la mano, Y para que venga á efecto, Un dia andaba mirando El sitio, el lugar y assiento, Por uno e por otro cabo, Y por d'onde el dia siguiente Pueda el pueblo ser entrado Con mayor facilidad, Pues casi estaba arruinado. Los de dentro temerosos, El presto fin aguardando, Viendo que él solicitaba Su total miseria y daño, Un caballero animoso, Que era Egas Nuñez llamado, Viendo el peligroso apierto Del cerco en que estan cercados, Temiendo ver que se entregue El pueblo ya acobardado, Que viendo al Rey junto al muro Todos estaban temblando; Mas él con ánimo fuerte Y corazon levantado, Determina de morir O que su pueblo sea salvo; Y asi con firme braveza Armado subió á caballo Y sale á do estaba el Rey, Y ante el puesto, asi ha hablado: --¿Qué razon hay que tu Alteza Con ánimo tan airado Asi quiera destruirnos, Y en ello ponga el cuidado, Siendo razon mas urgente Que mires por tus vassallos, Que no hacerles tal guerra, En la cual no acobardados Hallarás los corazones, Que nada les pone espanto, Ni les forzará á que hagan Por fuerza tu real mandado, Pues pueden sufrir el cerco Y darte guerra diez años, Sin que les falte comida, Ni cosa para este caso? Mas una razon los vence, Y es esta quien me ha forzado Que venga á pedir que quieras Que esto acabe, el cerco alzando, Pues la fe que en ti tenemos Nos da esfuerzo en el quebranto, Que aceptarás nuestro ruego Cual te ha sido suplicado. A esto vengo como tio Del Infante, y su vasallo, Por el cual te doy la fe, Como noble hijo-dalgo, Que en todo cuanto mandares Seguirá tu real mandado; Y acabe ya esta contienda De cristianos á cristianos, Y vamos contra los moros Que nos hacen tanto daño, Entrandose por Castilla, Tu poder menospreciando; Que en lo que toca á nosotros Por la fe que ya te he dado, Juro en nombre del Infante Como deudo mas cercano, Que el y todos te obedezcan Como leales vasallos.-- Esto oido por el Rey, Luego el cerco levantando, Egas Nuñez dió la vuelta El libre, y su pueblo salvo. Fuése el Rey, ordenó Cortes, Todo aquesto ya pasado, Citan al Infante á ellas Por edicto señalado, Responde que él no hade ir A ellas, siendo forzado. Oyendo Egas Nuñez esto, Y habiendole al Rey jurado Que el Infante cumpliria Lo que dél fuese mandado, Visto que el enganó al Rey, Y que él era el obligado A cumplir el juramento Que hizo como hijo-dalgo, Con su mujer e sus hijos, Dispuesto y aparejado A lo que dél sucediese, Para el Rey siguió su paso Vestido de peregrino, Y de aquel modo llegado A la presencia del Rey, Le dice ante el humillado: --Gran senor, yo me presento Ante ti, en ti confiado, Que mirarás con clemencia La culpa en que soy culpado. Yo soy aquel caballero Con quien hablaste en tu campo, Cuando sobre Guimarães Lo tenias asentado. Fingiendo-me que era tio Del Infante, fuete dado Seguro de mi palabra Que vendria a tu llamado, Esto sin mas facultad De la que yo hube tomado, Pues no es mi deudo el Infante, Cual de mi te fue afirmado; Mas es mi rey y señor Y yo, como su vassallo Viendo el peligro y aprieto En que lo tenias cercado, Quise por aquesta via Ser remedio de su daño: Y asi pues yo me obligué, Y por mi fueste engañado, Yó, mis hijos y mujer Paguemos este peccado.-- Esto diciendo Egas Nuñez Cruzó en el pecho los brazos, Y hincado de rodillas Como estaba se ha quedado. El Rey de oir la extrañeza Aunque de ira incitado, Se admiro, y mirando á Egas Le dijo, asiendole el brazo: --Levanta, que tu lealtad Te hace libre, y tu engaño Alabo, pues me engañaste Por hacer a tu rey salvo; Y asi llevarás el premio Digno de un hecho tan alto, Mandóle dar muchos dones, Aderezos e caballos Para volver-se a su tierra, Do vuelto, fué mui loado De todos, y del Infante Conforme al hecho estimado. _Coro Febeo de romances historiades_. Ed. 1687. * * * * * 3 Romance del rey don Alfonso quando libertó del tributo al reino de Portugal. (Lorenzo Sepulveda) En Sevilla estava Alfonso Sabio por todos llamado, El rey que ganara a Murcia Antes que oviesse el reynado; El infante don Dionis A Sevilla avia llegado, Hijo del rey don Alfonso De Portugal el reynado, Del rey Alfonso era nieto El infante ya nombrado. Gran plazer tomó su abuelo Quando lo vido a su lado, De edad era pequeño, A quinze años no ha llegado, Pedio por merced al rey Cavallero lo aya armado Con otros sus cavalleros Que vienem a acompañarlo. Concedierale el buen rey Lo que le fue demandado, Cavallero era el infante A su abuelo se ha humillado, Deixole:--Rey, mi señor, Pues que soys tan señalado Entre los reyes del mundo De rey liberal y franco, Concedeme lo que os pido Seraas mucho loado, Y es que quiteys de tributo A Portugal mi reynado, Y que no vengan sus reyes A cortes siendo llamados, Ne les pidays gentes darmas Como hasta oy se os han dado. El rey respondio al infante: Quel solo por si en su cabo No podia responder Ni le dá lo demandado Hasta llamar los infantes Y los grandes de su estado, Que estavan alli con el Que a cortes se avien juntado, Y que si ellos lo han por bien El no se lo avia negado. Otro dia al rey Alfonso Sus grandes avie llegado, Declaro delante todos Lo qu'el nieto ha demandado, Pidio que le den consejo Si lo hara o sera negado. Todos callaran gran pieça, Ninguno no avia hablado, El rey se enojo de todos Por que no le han replicado, Mas contra aquesse don Nuño La saña mas ha mostrado. Don Nuño se puso en pie Con el rostro demudado Dixo: «Al rey mi señor Mi hablar fuera escusado, Estando aqui presentes Los infantes vuestros hermanos, Y don Estevan con ellos, Y don Lope Diaz de Haro, Que son mas sabios que yo Para tal consejo daros; Pero quereys mi consejo Daros lo he yo de buen grado, Y es que hagades mucha honra Mucho bien y mucho algo Al infante don Dionis Que sera bien empleado, Por el deudo que le aveys A esto soys le obligado, Y por que era cavallero Armado por vuestra mano, Y si ajuda ha manester Tenido soys a ayudarlo Como a qualquier hijo vuestro De los que teneys amado; Mas quitar de la corona De aqueste vuestro reynado El tributo que los reyes De Portugal han pagado A este reyno de Castilla Yo no os lo avre consejado.» Y en diziendo estas palabras Salido se ha del palacio. No le plugo al rey Alfonso De lo que Nuño ha hablado, El infante don Manuel Y otros han deliberado Haga lo que don Dionis Le pidio y a suplicado Pues el tributo era poco Que no se lo aya negado. El rey que lo ha en voluntad Otorgolo de buen grado, Sus cartas le dio de quito Y a Portugal se ha tornado Muy pagado de su abuelo Que su reyno ha libertado. _Romances sacados de historias_, fl. 203.--Anvers, 1551. * * * * * 4 Romances de D. Pedro 1.º de Portugal y Dona Inez de Castro.--I (De Gabriel Lobo Laso de la Vega) El valeroso Don Pedro, Gran principe lusitano, Hijo del Rey Don Alonso, Sucesor en sus estados, De una doncella en Galicia, Dicha Doña Inez de Castro Y Valladares, fue preso De su hermosura forzado, Cuya recta descendencia Fue del tronco claro y alto De los antiguos de Lémos Que resplandecen hoy tanto, Hija bastarda que fué De Pedro Hernandez de Castro, Un valiente caballero Del Principe primo hermano. Digo pues que como fuese Este Principe casado Dió grandes muestras de estar D'esta Doña Inez prendado, A quien con sola la vista Iba su mal declarando, No gozando aun toda veces D'esto, que a nadie es negado. Que de amor cualquier afecto Ofende a un intento casto. Hizo muchas diligencias De hablarla, y todas en vano, Que la bella Doña Inez Da a su pretension de mano, Viendo que el mejor suceso Tiene de ser en su daño; Mas como és vispera el bien Del acaecimiento malo, Sucedio pués que murió La Princeza en esto estado. Hallóse Don Pedro libre, Ya su mal medio buscando, Se caso con Doña Inez En Berganza con recato; En la cual tuvo trez hijos, De que fue el Rey avisado, A quien peso por extremo; Y de trez malos vasallos Fué inducido con instancia A hacer un hecho villano, Que prosiguiendo adelanto Se dirá el suceso infausto. _Romancero y tragedias_, etc. * * * * * 5 Don Pedro 1.º de Portugal y Dona Inez de Castro.--II (De Gabriel Lobo Laso de la Vega) Contento con Doña Inez Está Don Pedro en Coimbra: No en tanto el futuro cetro Como el poseerla estima, Y le paga Doña Inez Con esta voluntad misma; Y como en el buen estado La constancia está abscondida, Ofreciosele a Don Pedro Una ausencia hacer precisa, Cosa que el que bien amare Sabra bien cuanto lastima. Sabiendo el Rey Don Alonso De su hijo la partida, Con lo trez crueles vasallos Que al mal, mal le persuadian Do está Doña Inez de Castro Con gran secreto camina, Confuso atemorisado Porque los trez le decian Que seria el casamiento Del reino total ruina, Y que el morir Doña Inez Era lo que convenia, Hirosele duro al Rey Su inocente culpa vista De que los trez indignados, Con suprema justicia Que eran del reyno, tomaron Sobre si aquesta malicia, Finalmente, Doña Ines Rindió a sus dagas la vida Cuya lastimosa muerte Por el Principe sabida Mueve guerra contra el padre, El cual morio en pocos dias De pesadumbre, y los trez Se huyeron para Castilla. Coronose el Portuguez, Segun su fuero en Coimbra, Coronando juntamente Por reina e mujer legitima Los huesos de Doña Ines, Que desenterrar hacia, Funestas bodas y exequias Celebrando un mismo dia; Y de los trez, dós cogiendo Hizo d'ellos cruel justicia. _Romancero y tragedias_, etc. * * * * * 6 Don Pedro e Dona Ines de Castro.--III (ANONYMO.) Don Pedro, a quien los crueles Llaman sin razon Cruel Desde Coimbra a Alcobaza Cien mil hachas hizo arder. Todas arden, mas que todas Arde el corazon del Rey, Lo que va de amôr á luces Y de cera al querer bien. Sentose a su lado y luego Los fidalgos y la plee Y el reino besó en cenizas La mano que nieve fué. Para obrar tan gran fineza No le falto a Amor ser rey, Sin juntarse con las armas Del monarca portuguez. El sol desconose el dia Cuando por tierra la vê En la noche de sus luces Todo el firmamiento en pié. La muerte que solo es fenix, Este bodes supo hacer, Donde en la vida e la muerte Reinan marido y mujer. Los clarines y clamores Dan pésame y parabien, Al vivo de su firmeza, Y al cadaver, de su fé. Lo que sobro del sepulcro Cubre funesto dosel; Tálamo y tumulo cubren A Don Pedro y Doña Ines. _Romances de varios e differentes auctores._ * * * * * 7 Dona Inez de Castro, Cuello de Garsa, de Portugal.--IV (ANONYMO) A la Reina de los cielos Que con excelencias tantas Se coronó de laureles Para llevar-se la palma; A aquella que ave divina Se remontó bella garza A lo mas alto del cielo, Adonde está colocada, Le suplico que me preste Una pluma de sus alas Para que escriba mi ingenio La crueldad mas inhumana, Y la lastima que lloran De bronce y marmol estatuas. En ese lucido reino De la gente lusitana Nació un principe famoso, A quien dió nombre la fama De cruel, aunque para serlo Le dieron bastante causa. Por gusto del rey su padre Con una infanta de España Casó el Principe famoso Con grandeza soberana, Y á Portugal, con su reina, Pasó por dama, una dama, Cuya hermosura por grande Se igualó con su desgracia. Era Doña Ines de Castro, Ya lo he dicho, que esto basta. Murió luego en Portugal La princesa castellana; Sintió Portugal su muerte Tanto como le tocaba, Y el Principe se portó Con grandeza para honrarla; Y sosegada la pena, Que el tiempo todo lo acaba, Salió para divertirse Al jardin, como estilaba, Donde dió vista á una fuente De una fabrica tan rara, Que era toda de alabastro, Com una taza de plata, Y alli poniendo sus ojos Vió reclinada una dama, Que en los frigidos cristales Al espejo se miraba. Llegó el Principe á la fuente, Porque el fuego busca al agua Y mirando su hermosura, Quedó su vista abrasada. Y á su cariñoso estilo Volvió Doña Ines la cara. Quedóse el Principe helado, Y Doña Ines quedó helada, Bebiendo se los alientos Por los ojos, hasta el alma. El fuego venció á la nieve, Y derritiendo la causa Que aprisionaba su lengua, Rendido el Principe habia. Palabra le dió de esposo Prometiendo coronarla Por reina de Portugal; Y la dama cortesana Con juxto agradecimiento Su candido jazmin saca. Dióle la mano de esposa, Y en fe de mano y palabra Se casaron en secreto Con union muy voluntaria; Y temiendo que su padre Esta accion les estorbara, Para que mas se ocultase Del real palacio la saca, Aposentando su hechizo En una quinta que estaba Convecina del Mondego. Y su padre, que ignoraba Los lances que he referido, Trató luego con Navarra, Atribuyéndolo á dicha, El casarle con su Infanta. Concediólo el Rey navarro, Y la infanta Doña Blanca, Acompañada de grandes De su corte y de su casa, Pasó á Lisboa, causando Mil penas eslaboñadas. Visitó el Principe al Rey, El cual le ordena y le manda Que pues ha de ser su esposo, Visitase á Doña Blanca. Obedecióle Don Pedro, Y recibióle la Infanta Con cariñosos cortejos, Y el Principe asi le habla: --Ilustrissima Señora, Cierto me holgara en el alma Excusar vuestro disgusto Y el mio, por ser yo causa De los presentes desaires En que os miro estimulada; Mas supuesto que es preciso Vuestra pena declarada, Rompa mi voz el silencio, Pues ya no puedo occultarla. Casé, Señora, en Castilla Primera vez con la Infanta Por el gusto de mi padre; Pero pues no está ignorada La dicha de estos principios, Pasemos á la sustancia. Cuando mi querida esposa Pasó á Portugal, de España Vino assistiendola entónces Una bellisima dama, Una hermosura, un prodigio, Perdóneme el alabarla Vuestra Alteza en su presencia: De su belleza informarla Mi importa, porque disculpe Temeridades osadas, Cuando advertida conozca De estos extremos la causa. Es, en fin, por abreviar, Doña Inês, Cuello de Garza, Tan garza, que su hermosura Y discrecion remontada, Por ser un cielo, es el centro De la gloria de mi alma. Vióla mi vista, y perdila, Pues me la robó su gracia; Solicité su hermosura, Y favoreció mis ansias Tanto, que logré la dicha De gozar premios por paga. Ya Doña Ines es mi esposa Que está conmigo casada, Su esposo soy tan gustoso Que á mi dicha no se iguala La mayor dicha del mundo, Porque es mi dicha tan alta: Y asi podrá vuestra Alteza Volverse luego á Navarra, Que solo Ines hade ser En Portugal coronada.-- Fuese el Principe, y quedó En blanco la triste Blanca, Dando á los ojos licencia Para que tristes lloraran La pena que padecia; Y el noble rey de Navarra Sintió con grandes extremos El desaire de su hermana, Mandó que al arma tocasen Las trompetas y las cajas, Y los fuertes capitanes Se pusiesen en campaña Con ejercitos valientes Bien prevenidos de armas, Hasta ver de Portugal La corona derribada; Que para recuperar El agravio de su hermana Solo pretende ponerla Por alfombra de sus plantas. Sonó el clarin belicoso, Crujió el parche de las cajas, Poblóse el campo de picas, De mosquetes y alabardas, Y con fieros estandartes, Y banderas tremoladas, Le puso sitio á Lisboa; Y temiendo su arrogancia El portuguez, pidió treguas Y á sus consejeros llama: Y puesto en el trono altivo Su consejo les demanda. Era el uno Egas Coello, Y Alvar Gonzalez llamaban Al segundo consejero, Y el consejo que le daban Fué que Dona Ines de Castro Muriese, que era la causa De las guerras, que su muerte Era de mucha importancia. El Rey replico que no, Que era tirania ingrata. Replicaron los traidores Que perderia su fama, Y que junto con su vida Su corona peligraba Y en fin, tiranos, aleves, Tantos riesgos alegaban, Que bajó desde su trono El Rey, dejando firmada De Doña Ines la sentencia De que muera degollada. Al Principe aseguraron En la prizon de un alcázar, Y partieron á Coimbra, Donde Doña Ines estaba. Aqui la mano me tiembla, Aqui la pluma se pára, Aqui el pulso titubea, Y la lengua aprisionada Entre penas y tormentos, No pronuncia lo que habla, Le leyeron la sentencia A aquella cordera mansa, A aquella que imitó á Abel Entre el furor y la saña De tan ingratos Caines; Y vestida de mil ansias, Rociaron sus auroras Perlas, que en la filigrana De sus hermosas mejillas Se miraron esmaltadas; Y sentada en una silla Las manos atras atadas, Llegó el tirano homicida, Cubrió su cielo una banda, Cortó el ingrato cuchillo Su bellisima garganta. Quedó aquella nieve, roja, Aquella luna, eclipsada, Aquel sol, todo nublado, Aquella luz, apagada, Aquella estrella, sin rayos Aquel lucero, sin alba, Sin purpura, aquella rosa, Aquel clavel, sin fragrancia, Aquel jazmin, deshojado, Y sin cuello aquella garza, Abatidos ya sus vuelos, Y remontada su fama. Murió Doña Ines de Castro, Dios le dé gloria á su alma, Y entre hermozos paraninfos S'eternice colocada; Y el Principe mas amante Cuando supo la desgracia, Sus amorosos extremos Digalos por mi la fama; Y desmintiendo la noche Con la luz de cien mil hachas, Le hizo un entierro solemne. Desde Coimbra á Alcobaza, Donde sobre su cabeza Puso la corona sacra, Y luego todos sus grandes Besaron la mano blanca. Hizo que todo su reino Por su reina la jurara, Y á los ingratos traidores Por las traidoras espaldas Arrancó los corazones, Porque su culpa pagaran. Emplazado murió el Rey Para dar cuanta tan larga: Quedó Doña Ines sim vida, Y los traidores sin alma; Y cuando supo el suceso Levantó el sitio Navarra, Y el Principe sin consuelo Quedó llorando mil ansias. Rendido pide el ingenio Perdon de sus muchas faltas. _Pliego suelto._ * * * * * 8 Romance de Dona Isabel --De cómo Dona Isabel quiso en vano ser reina de Castilla.-- (ANONYMO) Yo me estando en Tordesillas Por mi placer y holgar, Vinome al pensamiento, Vinome a la voluntad De ser reina de Castilla, Infanta de Portugal. Mandé hacer unas andas De plata, que non de al Cubiertas con terciopelo Forradas en tafetan. Pase las aguas del Duero, Paselas yo por mi mal En los brazos a Don Pedro Y por la mano a Don Juan, Fuerame para Coimbra, Coimbra de Portugal: Coimbra desque lo supo Las puertas mando cerrar. Yo triste, que aquesto vi, Rescibiera gran pezar: Fuerame a un monasterio Qu'estaba en el arrabal, Casa es de religion Y de grande santidade; Las monjas estan comiendo, Yá que querian acabar Luego yo cuando lo supe Envie con mi mandar A decir á la Abadesa Que no se tarde en bajar Que espera Doña Isabel Para con ella hablar. La Abadesa que lo supo, Muy poco tardo en bajar: Tomarame de la mano, A lo alto me fué a llevar Hizome poner la meza Para haber de yantar. Despues que hube yantado Comenzome a preguntar Como vine a la su casa Como no entré en la ciudad? Yó le respondi:--Señora, Eso es largo de contar: Otro die hablaremos, Cuando tengamos lugar. _Cancionero de Romances_, fol. 176 v. * * * * * 9 Romances de Dona Isabel de Liar Cómo, porque el Rey tenia hijos de ella, la reina la mando matar.--I (ANONYMO) Yó me estando en Giromena Por mi placer y holgare, Subierame a un mirador Por mas descanso tomare: Por los campos de Monvela Caballeros vi asomare: Ellos de guerra no vienem, Ni menos vienen de paz, Vienem en buenos caballos, Lansas y adargas traen: Desque yó lo vi, mezquina, Peremelos a mirare, Conociera a uno d'ellos En el cuerpo y cabalgare, Don Rodrigo de Chavella Que llaman del Marechale, Primo hermano de la Reina Mi inemigo era mortale. Desque yó, triste, le viera, Luego vi malo señale. Tomé mis hijos conmigo Y subime al homenaje; Yó que yo iba a subir, Ellos en mi casa estane: Don Rodrigo és el primero, Y los otros traz el vane. --Salveos Diós, Doña Isabel. «Caballeros bien vengades. --Conoscedesnos, señora, Pues asi vais a hablare? «¡Yá os conozco, Don Rodrigo! Yá os conozco por mi male! ¿A qu'era vuestra venida? ¿Quien vos ha enviado acae? --Perdonemedes, señora, Porque lo que os quiero hablare, Sabed que la Reina, mi prima Aca enviado me hae, Porque ella es muy mal casada, Y esta culpa en vos estae, Porque el Rey tiene en vos hijos Y en ella nunca los hae, Siendo, como sois, su amiga, Y ella mujer naturale: Manda que murais, señora Paciencia querais prestar.-- Respondió Doña Isabel Con muy grande honestidade: «Siempre fuistes, Don Rodrigo, Todo em mi contrariedade: Si vos queredes, señor, Ben sabedes la verdade Qu'el Rey me pedio mi amôr, Yo no se lo quiso dare, Teniendo en mas a mi honra Que no sus reinos mandare; Cuando vió que no queria Mis padres fuera a mandare, Ellos tan poco quisieron Por la su honra guardare Desque todo aquesto vido, Por fuerza me fué a tomare; Trujome a este fortaleza, Do estoy en este lugare; Trez años he estado en ella Fuera de mi voluntade, Y si el Rey tiene en mi hijos Plugo a Diós y a su bondade, Y si no los ha en la Reina És asi su voluntade. ¿Porque me habeis de dar muerte Pues no merezco mal? Merced os pido, señores, No me la querais negare: Desterreisme d'estes reinos, Qu'en ellos no estaré mares Irme he yo para Castilla, O a Aragon mas adelante, Y si no bastare aquesto A Francia me iré a morare. --Perdonedenos, señora, Que no se puede hacer mas. Aqui está el Duque de Bavia Y el Marquez de Villareale, Y está el Obispo de Oporto Que os viene a confesare. Cabe vos está el verdugo Que os habia de degollare, Y aun aquesto pajecico La cabeza ha de llevare.-- Respondió Doña Isabel, Con muy grande honestidade: «Bien paresce que soy sola, No tengo quien me guardare, Ni madre ni padre tengo, Pues no me dejan hablare; Y el Rey no está en este tierra, Qu'ere ido allende el mare; Mas de qu'el sea venido La mi muerte vengarae. --Acabedes yá, señora, Acabedes de hablare. Tomalda señor Obispo, Y metedla a confesare.-- Mientras en la confesion, Todos trez hablando estane, Si era bien hecho o mal hecho Esta dama degollare: Los dos dicen que no muera, Qu'en ella culpa no hae; Don Rodrigo, qu'es muy cruel, Dice que la ha de matare. Sale de la confesion Con sus trez hijos delante, El uno dos años tiene, Elle otro para ellos vae, Y el otro, qu'era de teta, Dandole sale a mamare, Toda cubierta de negro, Lástima es de la mirare: «Adiós, adiós, hijos mios; Hoy os quedareis sim madre: De alta sangre caballeros, Por ellos querais mirare, Que al fin son hijos de rey, Aunque son de baja madre.» Tiendenla en un repostero Para habella degollare: Asi murio esta Señora Sin merecer ningun male. _Cancionero de Romances._ * * * * * 10 Al mismo asumto.--II (ANONYMO) En Ceute estava el buen Rey, Ese Rey de Portugal, Cuando le dieron aviso De tristeza y de pesar, Diciendole que habian muerto A Doña Isabel de Liar Y que lo mandó la Reina Por su mala voluntad. Don Rodrigo fué el cruel, El que llaman del Marchal. Y ese Duque de Salinas, Y el Marquez de Villareal, Con el o bispo de Oporto, Que la fuera a confesar. Cuando aquesto supo el Rey, No hace sino llorar; Juraba por su corona Que le habia de vengar. Mandó tocar sus trompetes, El real mandara alzar, Vistiose todo de luto Luego se quizo embarcar Con solo diez caballeros Que no le quieren dejar. No quiso aguardar la flota, Por no se tanto tardar, Y dentro de siete dias A Sevilla fué á llegar Y de alli a pocos dias Es llegado a Portugal. Fuese derecho a palacio, Do salia reposar. La reina cuando lo supo Vinose a lo visitar; Mas el Rey con mucha saña D'esta suerte le fue a hablar: --Mal vengades vos, la Reina, Malo sea vuestro llegar.-- En diciendo estas razones, La mandó presto tomar, Y en el mismo repostero Do su amiga fué a finar, Mandó degolar la Reina, Don Rodrigo cuartear, Y a ese Duque de Salinas, Y al marquez de Villareal, Y al buen Obispo de Oporto Le mandó descabezar. Hizo sacar a su amiga Para con ella casar, Y por heredar sus hijos, A Don Pedro y a Don Juan. Y despues con mucha honra La mando luego enterrar; D'este modo vengo el Rey A Dona Isabel de Liar. Timoneda, _Rosa Espanola._--It. _Rosa de Romances._ * * * * * 11 Romances del Duque de Guimarans.--I Don Juan II de Portugal hace decapitar al Duque de Guimarans, y mata por su mano al joven Duque de Viseo, su primo y cuñado. (ANONYMO) Los grandes de Portugal Se muestran muy enojados, Con gran queja de su rey Muy gran odio le han tomado. Y el Duque de Guimarans Es el que mas le ha mostrado, El cual con sus trez hermanos Se siente mui agraviado. Por muy aspero le acusan Y de no bien enseñado, Porque mui mal los tratava No haciendo d'ellos caso, Siendo de su misma sangre, Y sus deudos muy cercanos, Fuera de lo que su padre Siempre los habia tratado, Y de la humana llaneza Con que era communicado; Agravando el mal presente, Mirando en el bien pasado, Y con este descontento Estando muy indignados Publicaban que era el Rey Avariento en sumo grado, Injusto, incapaz que el reino Fuese por el gobernado; Lo cual por el Rey sabido, Mostrando-se muy airado, Dicen que les levantó, O que fué de ello informado, Que el Duque y sus trez hermanos Que se habian conjurado De matar a su persona, Y de tomarle su estado Y darlo a su primo el Duque De Viseo, su cuñado, Y por esto los prendió Tomandolos descuidados Y procedio contra ellos; Y el processo sentenciado, Fué el Duque de Guimarans En publico degollado: Esotros sus trez hermanos Fueron todos desterrados, Y al Duque de Viseo Perdonó por ser muchacho. Y no dende a mucho tiempo En que aquesto hubo passado, Publicó que aquesto Duque, Su primo, queria matarlo, Y con otros caballeros, Que estaba yá conjurado: Envió a llamar al Duque El cual vino a su mandado De un pequeño luga suyo, Donde estaba aposentado, En la cámara del Rey Entró el Duque descuidado. Viendole el Rey ante si, Que le maten ha mandado; Pero teniendo respeto Nadie quiso ejecutallo Por ser su primo del Rey, Y ser tambien su cuñado. El Rey sacando un puñal, Fué contra el muy airado Diciendole:--¡Oh traidor!-- Y el Duque muy fatigado, Viendose llamar traidor Respondió muy denodado: «Vos sois traidor y mentis En eso que habeis hablado.» Dijole el Rey:--Tu pensabas Levantarte con mi Estado Y matarme a mi primero; Pues mal te se ha ordenado, Que si mi brazo me ayuda, No verás lo que has pensado. Y abrazandose con el Dos puñalados le ha dado, Y dejandole alli muerto Entró dentro en su palacio, Y preguntole a la Reina Con rostro disimulado: --A quien quisiese matarme Y alzarseme con mi Estado ¿Que os parece que merece En pago de su pecado?-- La Reina le respondió: «El que tal caso ha pensado Muy cruel muerte merece Como traidor y malvado.» Dijo El Rey:--Tened paciencia, Que asi he hecho a vuestro hermano. Fuentes, _Libro de los Cuarenta cantos_, etc. * * * * * 12 La Duqueza de Guimarans se queja al Rey por la muerte que hizo dar a su esposo.--II (ANONYMO) --Quejome de vos, el Rey, Por haber credito dado Del buen Duque, mi marido, Do que le fue levantado. Mandastemelo prender No siendo en nada culpado. ¡Mal lo hicistes, mi Señor! ¡Mal fuistes aconsejado! Que nunca os hizo aleve Para ser tan maltratado; Antes os servió, ¡mezquino! Poniendo por vos su Estado: Siempre vino a vuestras cortes Por cumplir vuestro mandado. No lo hiciera asi, señor, Si en algo os hubiera errado, Que gentes y armas tenia Para darse a buen recaudo; Mas vino, como inocente Que estaba de aquel pecado. Vos no mirando justicia, Habeismelo degollado. No lloro tanto su muerte Como vello deshonrado, Con un pregon que decia Lo por el nunca pensado. Murió por culpas ajenas Injustamente juzgado: El ganó por ello gloria, Yó para siempre cuidado, Agora vivo en prisiones En que vos me habeis hechado, Con una hija que tengo Que otro bien no me ha quedado, Que trez hijos que tenia Habeismelos apartado: El uno és muerto en Castilla, El otro desheredado, El otro tiene su ama, No espero verle criado: Por el cual pueden decir Inocente, desdichado. Y pido de vos enmienda, Rey, señor, primo hermano, A la justicia de Diós De hecho tan mal mirado, Por verme a mi con venganza Y a el sin culpa, culpado. _Cancionero de Romances._ * * * * * 13 Romance del Duque de Braganza, Don Jayme (ANONYMO) Lunes se decia lunes, Trez horas antes del dia, Cuando el Duque de Braganza Con la Duqueza reñia. El Duque con grande enojo Estas palabras decia: --Traidora me sois, Duquesa, Traidora, falsa, malina, Porque pienso que traicion Me haceis y aleivosía. «No te soy traidora, Duque, Ni en mi linaje lo habia.» Echo la mano a la espada, Viendo que asi respondia: La Duqueza con esfuerzo Con las manos la tenia. --Dejes la espada, Duqueza, Las manos te cortaria. «Por mas cortadas, el Duque A mi nada se daria, Si no, vedlo por la sangre Que mi camíza teñia. ¡Socorred, mis caballeros, Socorred por cortesia!» No hay ninguno alli de aquellos A quien la favor pedia, Que eran todos portuguezes Y ninguno la entendia, Sino era un pajecico Que a la mesa la servia: ==Dejes la Duquesa, el Duque, Que nada te merecia.== El Duque muy enojado Detrás del paje corria Y cortole la cabeza Aunque no lo merecia, Vuelve el Duque a la Duquesa Antes que viniese el dia. «En tus manos estoy, Duque, Haz de mi a tu fantasia, Que padre y hermanos tengo Que te lo demandarian, Y aun que estos estan en España, Allá mui bien se sabria. --No me amenaceis, Duqueza, Con ellos yo me avernia. «Confessar me dejes, Duque, Y mi alma ordenaria. --Confesaos con Diós, Duqueza, Con Diós y Santa Maria. «Mirad, Duque, esos hijicos Que entre vos y mi había. --No los lloreis mas, Duqueza, Que yó me los criaria.-- Revolvio el Duque su espada, A la Duquesa heria: Diole sobre su cabeza, Y a sus pies muerta caia. Cuando ya la vido muerta Y la cabeza volvia, Vido estar sus dos hijicos En la cama do dormia, Que reian y jugaban Con sus juegos a porfia. Cuando asi jugar los vido, Mui tristes llantos hacia: Con lagrimas de sus ojos Les hablaba y les decia: --Hijos ¡cual quedais sin madre, A la cual yo muerto habia! Matela sin merecerllo, Con enojo que tenia. ¿Donde irás, el triste Duque? De tu vida ¿que seria? ¿Como tan grande pecado Diós te lo perdonaria? Cancionero llamado--_Flor de Enamorados._ * * * * * 14 Á la muerte del principe de Portugal (De Fray Ambrosio de Montesino) Hablando estaba la Reina, En cosas bien de notar, Con la infanta de Castilla, Princesa de Portugal: A grandes voces oyeron Un caballero llorar, La ropa hecha pedazos, Sin dejar de se mesar, Diciendo:--Nuevas os traigo Para mil vidas matar: No son de reinos estraños, De aqui son d'este lugar: Desgreñad vuestros cabellos, Collares ricos dejad, Derrubad vuestras coronas Y de jerga os enlatad; Por pedraria y brocado Vestid disforme sayal; Despedios de vida alegre; Con la muerte os remediad.-- Entreambos á dos dijeron Con dolor muy cordial, Con semblante de mortales, Bien con voz para espirar: «Acabadnos, caballero, De hablar y de matar, Decid: qué nuevas son estas De tan triste lamentar? Los grandes reys de España Son varios, ó vales mal? Que tienen cerco en Granada Con triumfo imperial. A qué causa dais los gritos Que al cielo quieren llegar? Hablad ya, que nos morimos Sin podernos remediar. --Sabed, dijo el caballero, Muy rouco de voces dar, Que fortuna os es crueldad, Y el peligro de su rueda Por vos hubo de pasar. Yo lloro porque se muere Vuestro Principe real, Aquel solo que paristes, Reina de dolor sin par, Y el que mereció con vós, Real Princesa, casar: De los principes del mundo Al mayor el mas igual, Esforzado, lindo, cuerdo, Y el que mas os pudo amar, Que cayó de un mal caballo Corriendo en un arenal, Do yace casi defuncto Sin remedio de sanar. Si lo quiéres ver morrir, Andad, señoras, andad, Que ya ni ve, ni oye, Ni menos puede hablar, Suspira por vos, Princesa, Por señas de lastimar, Con la candela en la mano No os ha podido olvidar. Con el está el Rey su padre Que quiere desesperar: Dios os consuele, señoras, Si es possible conhortar; Qu'el remedio destes males Es a la muerte llamar. _Cancionero de diversas obras._ * * * * * 15 Romance de la muerte del enamorado Don Bernaldino. (ANONYMO) Ya piensa don Bernaldino Ir su amiga visitar, Da voces á los sus pages Que vestir le queiran dar; Dábanle calzas de grana, Borceguis de cordoban, Un jubon rico broslado, Que en la corte no hay su par; Dábanle uma rica gorra, Que no se podria apreciar, Con una letra que dice: «Mi gloria por bien amar.» La riqueza de su manto No os la sabria yo contar, Sayo de oro de mastillo, Que nunca se vió su igual, Una blanca hacanea Mando luego ataviar, Con quince mosos de espuelas Que le van compañar, Ocho pages van con él, Los otros mandó tornar; De morado y amarillo Es su vestir y calzar. Allegado han á las puertas Do su amiga solia estar; Hallan las puertas cerradas, Empieson de preguntar: --¿Donde está doña Leonor, La que aqui solía morar? Respondió un maldito viejo, Que el luego mandó matar: «Su padre se la llevó Lejas tierras a habitar.» El rasga sus vestiduras Con enojo y gran pezar, Y volvióse á los palacios Donde solía repozar: Puso una espada á sus pechos Por sus dias acabar. Un su amigo que lo supo Venialo á consolar, Y en entrando por la puerta Vidolo tendido estar. Empiesa á dar tales voces Que al cielo quieren llegar; Vienem todos sus vassallos, Procurar de lo enterrar En un rico monumento Todo echo de cristal, En torno del cual se puso Un letrero singular: «Aqui esta don Bernaldino Que morio por bien amar.» _Cancionero de Romances._ * * * * * 16 Romances del Rey Don Sebastian--I (ANONYMO) Una bella lusitana, Dama ilustre y de valia, Haciendo sus ojos fuentes, Con llanto estiende la vista A la poderosa armada, Que de Lisboa salia, La vuelta el mar de Levanto, Por Sebastiano regida. Y como vido que el norte Sopla furioso y aprísa Dijo con un ¡ai! del alma, Triste, turbada, afligida: «Que no hay quien baste Contra gallardo rey, moro arrogante.» Esta mirando por tierra La mucha gente lucida, Diferenciados en traje Y en diferentes divisas, Porque aunque Cristo llevan La cruz en medio tendida, El galan y enamorado Conforme a su intento pinta; Pero la afligida dama, Que vido una roja insignia En una alta popa puesta, Desde un balcon que partia Digo: «No hay quien baste «Contra un gallardo rey, moro arrogante.» Mira las lucidas armas Que lleva la fidalguia, Y de telas de oro y plata Costosas ropas vestidas; Y las medallas compuestas De muy rica pedreria, Cadenas de oro pendientes, Tantas que la vista admiran; Considerando de muchos La dolorosa partida, Y que ve entre los que parten El bien de su alma y vida, Dijo:--«No hay quien baste, etc.» Tocan las trompas à leva, Y las cajas resonantes Con los pifaros parleros Dicen que todos se embarquen. Los marineros dan voces Para que el ferro se alce, Y los lijeros grumetes Al viento velas esparcen, Cuando la dama hermosa, Procurando consolarse, Dice:--«Plega, Diós que vuelvas Victorioso y muy pujante, «Y habra quien baste Contra un gallardo rey, moro arrogante.» _Romancero generale._ * * * * * 17 El Rey Don Sebastian--II (ANONYMO.) De la sangrienta batalla Que tuvo el rey Sebastiano Con los africanos moros, Rompido y desbaratado Se ha escapado un español De los que Felipe ha enviado Al socorro y obediencia Del bando del lusitano. Despedazadas las armas, Sin aliento y sin caballo, En roja sangre teñido, Por muchas partes llagado, Arrimose el español A un arbol espeso y bajo, De donde vido en su gente Aquel mortifero estrago; Y aunque lacio y macilento, Dijo, que lo oyó un soldado: --No me pesa de mi muerte, Pues con una vida pago La deuda que a Diós le debe El catolico cristiano; Mas ¿porque ha de morir Un rey mancebo y lozano Y con el todos los suyos Por ser mal aconsejado?-- Estas razones diciendo Llegó el Rey alborotado, Y dijo: «¿Como, español, En tal priesa, tanto espacio?» --Inclito Rey, le responde, Oyeme bien lo que hablo, Y és que te guardes, señor, Y retires todo el campo, Y no des al enemigo Tan abierta y larga mano, Y que los tuyos perezcan, Sin que se escape un cristiano. Mira que una retirada, Cuando és con acuerdo sano, Vale mas que un vencimiento, Si el tal se alcanza con daño. El Rey atento le ha oido Y dijole: «Castellano, Toma para ti el consejo Que me dás, nó todo sano Mas con pecho de cobarde, Que no de diestro soldado.» El capitan que se vió Ser del Rey abaldonado, Cobró el aliento perdido Y tomó presto un caballo, Y con la espada desnuda Parte al sarraceno campo, Y dijole:--Excelso Rey, Porque entiendas que mi brazo No te ha de echar en afrenta, Ten cuenta con lo que hago.-- Trez alcaides tiene muertos En una hora de espacio, Y mas de diez corredores De los que andan en el campo. El Rey, que atencion le tuvo Aunque no estaba parado, Dijo a los suyos: «Sin duda El español es honrado; Haced lo mismo vosotros Los que vos preciais de hidalgos, Y ninguno vuelva atras, Mientras no vuelve mi brazo.» Pero la parca cruel Que tiene el cuchillo alzado, A Sebastiano dió muerte, Y a su reino eterno llanto. _Romancero generale._ * * * * * 18 El Rey Don Sebastiano.--III (ANONYMO) Discurriendo en la batalla El Rey Sebastiano bravo, Bañado en sangre enemiga Toda la espada y el brazo, Herida su real persona, Pero no de herir cansado; Que en tal valeroso pecho No pudo caber cansacio, A todas partes acude, Do el peligro está mas claro, Poniendo en orden su gente Y temor en el contrario, Entre los alarbes fieros, Haciendo en ellos estrago Con la prisa y peso de armas Sale cansado el caballo. A remediar su peligro Venir vió un valiente hidalgo; Las armas traia sangrientas, Por muchas partes pasado, En un caballo lijero Contra moros peleando, Y sacando de flaqueza La voz, dice suspirando: --D'este caballo te sirve, Inclito Rey Sebastiano Y salvarás en salvarte Lo que queda de tu campo: Mira el destrozo sangriento, De tu pueblo lusitano, Cuya lastimosa sangre Hace lastimoso lago; Sin orden tu infanteria, Rompidos los de a caballo, Senal de triste suceso Favorable en el contrario. Que te apartes d'esa furia Te suplican tus vasallos Llenos de sangre los pechos, Puestas las vidas al caso: Pon los ojos en tu fé, Y recibe mi caballo; Prefierase el bien comun A la vida de un hidalgo: No abaldones mi deseo, Huye las manos del daño.-- De cuyos ruegos movido, Respondió el Rey acetando: «A tel estrecho he venido, Que tengo de ser forzado A receber con tu muerte La vida que yá desamo; Pero poca es la ventaja Que me llevaras, hidalgo, Que aqui do quiere fortuna, No está mal morir temprano.» Decende, le dice el Rey; Pero no puede el vasallo, Que mil honrosas heridas Le traian en tal estado: Ayudale a decender El Rey con sus proprios brazos, Echandoselos al cuello, Y subiendo en el caballo. «Adiós, dice, caballero: Que a buscar venganza parto En los fieros enemigos Y a morir con mis vasallos.» _Romancero generale_, fl. 73 v. FIM ADDIÇÕES Á PAG. XXXII Nos _Livros de Linhagens_, dos fins do seculo XIV, já lá se fala nas façanhas dos Doze Pares, do cyclo de Carlos Magno: «muitos rricos homeens que hiam pera lhes acorrerem disseram a el-rey dom Fernando que numca virom cavalleiros nem ouviram falar que tam sofredores fossem, _e poseram-nos em par dos doze pares_:» _Mon. Hist. Scriptores._ Vol. I, fasciculo III, p. 283. Dos romances populares feitos á morte de Dona Inez de Castro, cantados pelo povo em Coimbra, fala o Pe. Dom Marcos de Sam Lourenço, no manuscripto dos Lusiadas commentados, cujo autographo existe na Bibliotheca das Necessidades: «As filhas de Mondego, diz Camões que, longo tempo fizeram memoria d'esta morte de Dona Inez, _o que se entende nas cantigas_ que logo saem e se compõem quando algum caso notavel acontece, como quando mataram D. Alvaro de Luna, em Castella. Estas cantigas e romances duraram mais na bocca das moças de cantaro e lavandeiras, principalmente onde a gente é alegre e prezenteira como a de Coimbra, onde esta historia aconteceu[78].» Este commento foi escripto depois de 1633, e é natural que andassem ainda na tradição os cantos que agora vão apparecendo em cadernos de uso popular. Entre os peccados de bocca, el-rei Dom Duarte ennumera, no _Leal Conselheiro_ (p. 357), o cantar «_cantigas sagraes_.» N'esta passagem refere-se aos romances da paixão que começaram no principio do seculo XV, os quaes foram prohibidos no tempo da Reforma, e condemnados nos _Index Expurgatorios_ de Portugal e Hespanha no seculo XVI. Sá de Miranda na ecloga VIII, allude a um romance antigo: o baboso da aldeia Que traz sempre a bocca cheia Das _Filhas de Dom Beltrane_.[79] Gil Vicente tambem allude á morte de Roland, do cyclo de Carlos Magno: É o precioso terçado Qoe foi no campo tomado Depois de morto Roldão.[80] Seropita faz allusão ao romance dos _Sete Infantes de Lara_, quando fala dos namorados que aos domingos galanteiam do canto das travessas, «os quaes, pela maior parte, não sahem de obreiros de official que para este passo se almofaçam de maneira que vos pareceram uns _Sete infantes de Lara_.» (p. 109 das _Poesias e Prosas ineditas_). No tempo de Dom Constantino de Bragança, vice rei da India, o povo, ao vel-o mandar construir uma Nau, vinha cantar-lhe injustamente debaixo da janella uma parodia do romance hespanhol: Mira Nero de Tarpeia A Roma como ardia, d'esta forma: Mira Nero da janella La nave como se hacia.[81] INDICE TRANSFORMAÇÕES DO ROMANCE POPULAR DO SECULO XVI A XVIII Os romances populares soffrem a mesma transformação que em Hespanha receberam no seculo XVI. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . V Originalidade dos romances portuguezes. . . . . . . . . . . . . . . . VI O cyclo da _Tavola Redonda_ em Portugal, o tempo de D. João I. . . VII A poesia palaciana exclue os romances populares. . . . . . . . . . VIII As glossas do romance popular. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IX _Pliegos sueltos_ e cadernos de uso popular. . . . . . . . . . . . . X O _Cancioneiro_ de Resende não allude a romances populares. . . . . XI Gil Vicente e a Comedia de _Rubena_. . . . . . . . . . . . . . . . XIII Edições portuguezas de Romanceiros hespanhoes. . . . . . . . . . . XIII Luctas da _Escóla italiana_ em Portugal. . . . . . . . . . . . . . . XIV O metro encadecasyllabo e octosyllabo. . . . . . . . . . . . . . . . XV Reacção do metro popular. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XVIII Lucta de Sá de Miranda. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XX Os poetas classicos desprezam a poesia do povo. . . . . . . . . . XXIII A reacção contra a _Reforma_ extingue em Portugal a poesia popular. XXIV Influencia jesuitica nos cantos do povo. . . . . . . . . . . . . . . XXV Condemnação dos _Livros de cordel_. . . . . . . . . . . . . . . . . XXVI O _Index Expurgatorio_. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XXVII Extinção de varias festas populares. . . . . . . . . . . . . . . XXVIII Instrumentos musicos do seculo XVII. . . . . . . . . . . . . . . . XXIX Introducção dos romances hespanhoes em Portugal. . . . . . . . . . . XXX Romances portuguezes em Hespanha. . . . . . . . . . . . . . . . . . XXXI Causa da extensão do Romanceiro hespanhol. . . . . . . . . . . . . XXXII Romances conhecidos em Portugal hoje obliterados na tradição. . . XXXII Addições a pag. XXXII. Vid p. 211 e 212. A comedia do _Fidalgo Aprendiz_ encerra a historia do romance em Portugal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XXXIII Os romances populares postos em musica. . . . . . . . . . . . . . . XLI Letra castelhana em moda. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XLII Romances trovados ou glosados. . . . . . . . . . . . . . . . . . . XLIII Romances ao divino. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XLIV As Xacarandinas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XLV O que era o cantar de algaravia en aravia. . . . . . . . . . . . . XLVI Os romances mouriscos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XLVIII Forma lyrica dos romances. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . LI Os romances amorosos dos Mosteiros. . . . . . . . . . . . . . . . LII Estado actual da poesia popular. . . . . . . . . . . . . . . . . . LIII ROMANCES COM FORMA LITTERARIA, DO SECULO XVI A XVII Alvaro de Brito--Trovas á morte do principe Dom Affonso, filho de D. João II. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 Garcia de Resende--Trovas á maneira de romance feitas á morte de Dona Inez de Castro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3 Francisco de Sousa--Trovas a um Vilancete. . . . . . . . . . . . . . 8 Gil Vicente--Romance em memoria da partida da Infanta Dona Beatriz. 9 --Romance burlesco, glosando o celebre romance _Yo me estaba en Coimbra_. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 --Cantiga dos romeiros. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12 --Romance ao nascimento do Infante Dom Felipe. . . . . . . . . . . . 13 --Romance á morte de Dom Manuel. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14 --Romance á acclamação de Dom João III. . . . . . . . . . . . . . . 16 --Cantiga do Natal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 --Vilancete de Abel. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20 --Fragmento da _Bella mal maridada_. . . . . . . . . . . . . . . . . 21 --Cantiga cantada em Chacota. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22 --Cantiga do _Auto da Luzitania_. . . . . . . . . . . . . . . . . . 22 --Cantiga da Comedia de _Rubena_. . . . . . . . . . . . . . . . . . 23 Bernardim Ribeiro--Cantar a maneira de Soláo. . . . . . . . . . . . 24 --Romance de Avalor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25 --Romance de Cuidado e Desejo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27 Christovam Falcam--Cantiga com suas voltas. . . . . . . . . . . . . 33 Sá de Miranda--Cantiga. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32 Jorge de Monte-Mór--Canção. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34 --Outra cançoneta. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35 Jorge Ferreira de Vasconcellos--Romance da batalha de El-rei Arthur com Morderet. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36 --Romance sobre a Guerra de Troya. . . . . . . . . . . . . . . . . 38 --Romance da morte de Achilles. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39 --Romance da morte de Policena. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42 --Romance da Historia de Roma. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44 --Romance da Batalha da Pharsalia. . . . . . . . . . . . . . . . . . 46 --Romance á morte do principe D. Affonso. . . . . . . . . . . . . . 49 --Romance á morte do Principe D. João. . . . . . . . . . . . . . . . 52 Luiz de Camões--Endechas a Barbara escrava. . . . . . . . . . . . . 54 --Mote com sua volta. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55 Francisco Rodrigues Lobo--Cantiga. . . . . . . . . . . . . . . . . . 56 --Outra. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57 --Romance do Desenganado. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58 Dom Francisco de Portugal--Romance pastoril. . . . . . . . . . . . . 60 Balthazar Dias--Romance do Marquez de Mantua e do Imperador Carlos Magno. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62 --Historia da Imperatriz Porcina (tirada do _Speculum historiale_). 104 Dom Francisco Manoel de Mello--Romance picaresco. . . . . . . . . . 149 Quintana de Vasconcellos--Romance de Claridea. . . . . . . . . . . . 152 Antonio Serrão de Castro--Romance da Briga de um Cego com um Corcovado. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 154 Anonymo(1620)--Romances e cantigas da canonisação de S. Francisco Xavier. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 156 --Cantiga de Abel (1659). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159 Francisco Lopes--Romance de Santo Antonio e a Princeza. . . . . . . 160 ROMANCES DA HISTORIA DE PORTUCAL, TIRADOS DAS COLLECÇÕES HESPANHOLAS 1--Romance del Conde Don Henrique. . . . . . . . . . . . . . . . . . 163 2--Romance de Egas Moniz. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165 3--Romance del Rey Don Affonso, quando libertó Portugal del tributo. 171 4--Romances de Don Pedro I de Portugal y Dona Inez de Castro--I. . . 174 5--Don Pedro I y Dona Inez--II. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 175 6--Don Pedro I y Dona Inez--III. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 177 7--Dona Inez de Castro, Cuello de Garsa de Portugal--IV. . . . . . . 178 8--Romance de Dona Isabel. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185 9--Romance de Dona Isabel de Liar--I. . . . . . . . . . . . . . . . 187 10--Al mismo asunto--II. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191 11--Romances del Duque de Guimarans, I. . . . . . . . . . . . . . . 193 12--La Duqueza de Guimarans se queja al Rey por la muerte que hizo dar a su esposo--II. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 196 13--Romance del Duque de Bragança Don Jayme. . . . . . . . . . . . . 197 14--A la muerte del Principe de Portugal. . . . . . . . . . . . . . 200 15--Romance de la muerte del enamorado Bernaldino. . . . . . . . . . 202 16--Romances del Rey Don Sebastiano, I. . . . . . . . . . . . . . . 204 17--El-Rey Don Sebastiano--II. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 206 18--El-Rey Don Sebastiano--III. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 208 FIM DO INDICE. [1] Memorial das proezas da Segunda Tavola Redonda, por Jorge Ferreira de Vasconcellos, cap. XLVI, de accordo com Fernão Lopes, na Chronica, Parte II, p. 190, cap. 76; e com a Chronica do Condestabre, p. 12. [2] Cancioneiro geral de 1516, fol. lxxiij: «sobre o menospreço do mundo». [3] Idem, fol. lxxij: «Del rrey don Pedro quatro cantigas» erradamente attribuidas a Don Pedro I. [4] Fol. xxvij. Edição de Anvers de 1557, em casa de Martin Nuncio. [5] Fol. xxvj. verso. [6] Da fol. cci a ccxvj. São ao todo 38. [7] Catalogo por ordem alfabetica de varios pliegos sueltos que contienem romances, vilancicos, canciones, etc. «Romancero generale,» t. I, pag. LXXVII. [8] Durante o meu trabalho de collecionação, encontrei cadernos de uso do povo, cheios de emblemas pittorescos, e mais ainda de gordura. De um d'esses tirei a «Conversa de Namorados». [9] Cancioneiro geral, fol. 221. [10] Idem, fol. 217. [11] «No ay cosa mas facil que hazer un Romance, ni cosa mas difficultosa, si hade ser qual conviene. O que causa la facilidad es la composicion del metro, que toda es de uma Redondilla multiplicada. La difficuldad está en que la materia sea tal, y se trate por tales terminos, que levante, mueva y suspenda los animos. Y se esto falta, como la assonancia de suyo no lleba el oydo tras si, no sè que bondad puede tener el Romance. Descrievese en los Romances hechos hazañosos, casos tristes y lastimeros, acontecimentos raros, nuevos, singulares.» Edição de 1592, p. 38, cap. XXXIII. [12] Conde de Lucanor, fol. 128. Edição de 1624. [13] Idem, fol. 130, V. [14] Santo Isidro, Barcelona, 1608. Prologo, p. 3 mihi. [15] Conde de Lucanor, edição de 1642, fol. 127. [16] Ibid. fol. 128. [17] Sepulveda, Romances nuevamente sacados de historias antiguas, Anvers, 1551, fol. 2 verso. [18] Idem, ibid. fol. 3. [19] Pag. 67, edição de 1677. [20] Pag. 87. [21] Pag. 102. [22] Soneto xxviij. [23] Pag. 132 da ed. 1614. [24] Poemas Lusitanos, T. II, p. 98. [25] Idem, p. 46. [26] Pereira da Silva, Varões illustres, t. I. p. 15 e 16. [27] Wolf, Brésil litteraire, cap. I, p. 8. [28] Varnhagen, Florilegio, t. I, p. XXII--XXIII. [29] Index de 1581, fol. 41. [30] Fol. 57. [31] Canc. fol. 20. [32] Acto V, scena II. [33] Fidalgo Aprendiz, ed. de Leon de Francia de 1665, p. 242-243. [34] Annaes de Dom João III, por Fr. Luiz de Sousa, publicados pelo sr. Herculano, cap. VIII, p. 35. [35] Vida de D. João de Castro, publicada por Fr. Francisco de S. Luiz, Doc. 60, 61, pag. 509. Lisboa, 1835. [36] Pag. 361 das Rimas, edição de Franco Barreto, 1666. [37] Romance XXII da colleção de Escobar, ed. de 1605, pag. 46, V. [38] Rimas, p. 173, ed. 1666. [39] Idem. p. 284. [40] Comedias p. 349. Estes versos são um fragmento do velho romance que vem no Cancioneiro de Anvers: Mis arreos son las armas Mi descanso es pelear. Mi cama las duras peñas, Mi dormir siempre velar. Las manidas son escuras, Los caminos por usar, El cielo con sus mudanzas Ha por bien de me dañar, Andando de sierra en sierra Por as illas de la mar, Por probar si en mi ventura Hay logar donde avadar; Pero por vos mi señora Todo se hade comportar. [41] El-rei Seleuco, p. 153 da Segunda parte das Rimas. [42] Obras, p. 316, ed. 1666. [43] Poetica española, de 1592; cap. XXXVIII. [44] Obras de Bernardim Ribeiro, p. 356, ed. 1852. Este romance acha-se na sua integra na «Floresta de Varios,» de 1642. [45] Ochoa, «Tesoro de los Romanceros» aonde se lê a pag. 86. [46] «Compendio historial» de Llaguno y Amirola, ap. Amador de los Rios, Hist. critica de la litteratura hespanola, t. VII, p. 437, not. 2. [47] Obr. t. II, 215. [48] Obras metr. t. II, p. 97. [49] Çanfonha d'Eut. p. 99. [50] Id. p. 116. [51] Pag. 71. [52] Obras metricas de Dom Francisco Manoel, p. 247--8, t. II, Viola de Thalia. Leon de Francia, 1665. [53] Primeira jornada, p. 159. [54] Edição de 1867, p. 215. [55] Chr. de D. Manoel, Parte IV, c. 84. [56] Historia da Poesia popular portugueza, p. 22 [57] Id. pag. 137. [58] Romanceiro geral portuguez, p. 26--28. [59] «No ha muchos anos, que començaron nuestros Poetas a glossar «Romances viejos,» metiendo cada dos versos en la segunda de las Redondillas. Y han sido tan bien recebidas estas cosas, que los han dado los musicos muchas sonadas, y se cantan y oien con particular gusto.» Poetica española, cap. XXXVIII, Salamanca, 1592. [60] Obras, p. 312, edição de Lisboa de 1677. [61] Obras, t. III, p. 294, e outros logares. [62] Obras metricas, ed. de Leon de Francia de 1665, p. 71. [63] Tesoro de los Romanceros, p. 359. [64] Index scriptorum damnatae memoriae, p. 175. Transcrevemos para amostra do genero este bello romance de Gil Vicente: OS CATIVOS DO PECCADO Voces daban prisoneros, Luengo tiempo estan llorando, En el triste cárcel escuro Padeciendo y suspirando, Con palabras dolorosas Sus prisiones quebrantando: --Que es de ti, Virgen y Madre, Que á ti estamos esperando? Despierta el Señor del mundo, No estemos mas penando.-- Oyendo sus voces tristes, La Virgem estaba orando Cuando vino la embajada Por el ángel saludando; «Ave rosa gracia plena,» Su prenez anunciando. Suelta los encarcelados, Que por ti estan suspirando; Por la muerte de tu hijo Á su padre estan rogando. Cresca el nino glorioso, Que la cruz está esperando. Su muerte será cuchillo, Tu anima trespassando. Sufre su muerte, Senora, Nuestra vida deseando. Obras t. I, p. 233. [65] Musa VI, p. 464. ed. de Lisboa de 1652. [66] Musa VI, p. 455. [67] «Romancero generale», prologo, p. XIV, t. I (Collec. Ribadaneira t. X.) [68] Historia do Direito portuguez, cap. I e IV. [69] Vid. Cantos populares do Archipelago açoriano [70] Citações dos annotadores de Ticknor, ao cap. VII. [71] Conde de Lucanor, de 1642, fol. 128. [72] Conde de Lucanor, fl. 129, V. [73] Opinião dos snrs. D. Pascual de Gayangos o D. Henrique Vedia nos Commentarios a Ticknor, cap. VII. [74] Duran, «Romancero generale», t. I, p. 26, n.º 54. [75] Duran, Romancero, t. I, p. X, not. 8. [76] Sobre a existencia das «xacaras» populares diz o seu annotador: «Muchas xacaras rudas y desabridas le avian precedido entre la tropeça del vulgo: pero las ingeniosas, y de donayrosa propriedad y capricho el fue el primero descobridor sin duda.» Musa V, p. 221, ediç. de Lisboa de 1652. [77] Edição de Madrid, 1724, pag. 248. [78] O Visconde de Juromenha, na sua edição de Camões, fala n'este manuscripto, t. I, p. 323--328. [79] Ed. de 1677, p. 177. [80] _Obr._ t. II, p. 416. [81] Juromenha, «Vida de Camões,» t. I, pag. 82.--Vid. egualmente t. I, p. 45. * * * * * CANCIONEIRO E ROMANCEIRO GERAL PORTUGUEZ 5 volumes in-8.º VOLUME I--HISTORIA DA POESIA POPULAR PORTUGUESA.--_Primeira parte_: Vestigios da primitiva poesia popular portugueza.--_Segunda parte_: Unidade dos romances populares do Meio Dia da Europa. VIII, 221 pag. Porto, 1867. VOLUME II--CANCIONEIRO POPULAR, colligido da tradição oral. Reliquias da poesia portugueza do seculo XIV a XVI. Sylva de cantigas soltas, Fados e Canções da rua, Orações, Prophecias nacionaes, Proverbial de aphorismos poeticos da lavoura. VII, 223 pag. Coimbra, 1867. VOLUME III--ROMANCEIRO GERAL, contendo a Flor dos romances anonymos dos cyclos Bretão e Carlingiano; e um Vergel de Romances mouriscos, Contos de cativos, Lendas piedosas e Xacaras, com sessenta e uma notas extensas sobre as origens de cada romance, VIII, 224 pag. Coimbra, 1867. VOLUME IV--CANTOS POPULARES DO ARCHIPELAGO AÇORIANO, _Cancioneiro das Ilhas_: Rosal de Enamorados, Serenadas do luar, Doutrinal de Orações. _Romanceiro de Aravias_: Enselada de Romances novelescos, Primavera de Romances maritimos, Rosa de Romances mouriscos, Silva de Romances historicos, Coro de Romances sacros, Enseladilha de romances entretenidos. Com oitenta e cinco notas sobre as origens e paradigmas das varias cantigas e romances, XVI, 478 pag. Porto, 1869. VOLUME V--FLORESTA DE VARIOS ROMANCES com forma litteraria. Estudo sobre as transformações do romance popular do seculo XVI a XVIII.--Romances com forma litteraria doseculo XVI e XVII--Romances da Historia de Portugal, tirados das Colleções hespanholas. LIII, 218 pag. Porto, 1869. Desde 1867 até 1869 entrou em curso de publicaçäo o livro dos cantos populares da nação portugueza; eis finalmente completo o quadro das antigas tradições epicas da edade media, ainda hoje repetidas pelo nosso povo com esse colorido de _maravilhoso_ e da aventura do genio celtico. Todas as provincias do reino e ilhas dos Açores contribuiram para o monumento do seu _Cancioneiro e Romanceiro geral_; a Beira Baixa, interrogada por differentes collectores, apresentou as velhas rhapsodias, em um grande estado de perfeição, rivalisando com os mais velhos romances hespanhoes, e ás vezes completando-os, como se vê pelo romance de conde _Grifos Lombardo_; logo depois, Traz-os-Montes, é a mais rica de lendas cavalheirescas, introduzindo principalmente em cada romance o elemento do maravilhoso e do milagre, como se vê no romance da _Justiça de Deos_ e do _Conde Ninho_. O Algarve deu as lendas religiosas dos primeiros seculos da monarchia, e as _zambras_ mouriscas, similhantes á aventura do mouro Galvan. A provincia do Minho contribuiu com as lendas piedosas dos santos e da hospitalidade. Coimbra, a terra das serenadas e das cantigas, deu a mais vasta collecção da _Sylva_, verdadeiro colar de perolas, a que o povo prendeu a historia dos seus amores. Sobre tudo, a genuina poesia popular portugueza foi encontrada no estado da inteireza e rudeza primitiva, nas Ilhas dos Açores; ali a tradição está pura e simples, como nos fins de seculo XIV, quando começou a elaboração poetica do Romanceiro da Peninsula; a linguagem d'ella é esse portuguez archaico do tempo do _Cancioneiro de Resende_; conserva ainda a designação de _aravias_, que revela o segredo da sua origem mosarabica; n'ella se encontram allusões sem numero aos costumes juridicos das Cartas de Foral, por onde se determina a epoca da sua formação, por isso que nas ilhas dos Açores nunca existiram foraes com o caracter politico e revolucionario que tiveram no seculo XII e XIII. Todos estes diversos cantos epicos da tradição portugueza foram estudados e comparados com a totalidade dos cantos epicos dos romanceiros do Meio Dia da Europa, descobrindo-se ás vezes debaixo de forma novellesca os factos historicos que tem passado até hoje como desapercebidos; acham-se classificados com o maior rigor, adoptando como base os trabalhos de Jacob Grimm, Lafuente y Alcantara e Don Agustin Duran. No ultimo volume recentemente publicado, a _Floresta de Romances_, se mostra como o romance rude do povo foi imitado pelos nossos quinhentistas e seiscentistas e como lhe imprimiram uma fórma culta e litteraria, substituindo aos grandes e profundos traços dramaticos a expressão subjectiva e um exagerado lyrismo. O quadro termina no principio do seculo XVIII, justamente quando o romance caiu outra vez em desuso, ficando privativamente das classes baixas. O _Cancioneiro e Romanceiro geral portuguez_ é tão vasto, como a gigante collecção hespanhola, se attendermos a que n'este o numero dos romances anonymos, ou perfeitamente do povo, não se eleva a mais de cem, que outros tantos repete a tradição portugueza. Este trabalho lento, completado com mais de dez annos consecutivos de esforços, e com sacrificios pecuniarios, tem encontrado em Vienna, em Paris e em Madrid um acolhimento, que compensa o collector da indifferença que a imprensa e o publico portuguez, por malevolencia ou por incapacidade tem manifestado. No momento em que um povo se extingue ai ficam recolhidos os seus cantos; praza a Deos que o que se recolhe como um despojo da ruina, seja um incentivo de renovaçao. A obra está á venda em todas as livrarias; avisam-se os senhores subscriptores, para virem receber o ultimo volume da collecção. Preço da obra completa 2$500 --- Provided by LoyalBooks.com ---