OBRAS DE CAMILLO CASTELLO BRANCO EDIÇÃO POPULAR XXIII O OLHO DE VIDRO TYPOGRAPHIA DA PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA --RUA AUGUSTA, 44, 46 E 48-- LISBOA OBRAS DE CAMILLO CASTELLO BRANCO Edição popular das suas principaes obras em 80 volumes in-8.º, de 200 a 300 paginas Impressa em bom papel, typo elzevir 250 réis em brochura e 400 réis encadernado 1--Coisas espantosas. 2--As tres irmans. 3--A engeitada. 4--Doze casamentos felizes. 5--O esqueleto. 6--O bem e o mal. 7--O senhor do Paço de Ninães. 8--Anathema. 9--A mulher fatal. 10--Cavar em ruinas. 11 e 12--Correspondencia epistolar. 13--Divindade de Jesus. 14--A doida do Candal. 15--Duas horas de leitura. 16--Fanny. 17, 18 e 19--Novellas do Minho. 20 e 21--Horas de paz. 22--Agulha em palheiro. 23--O olho de vidro. 24--Annos de prosa. 25--Os brilhantes do brasileiro. 26--A bruxa do Monte-Cordova. 27--Carlota Angela. 28--Quatro horas innocentes. 29--As virtudes antigas. 30--A filha do Doutor Negro. 31--Estrellas propicias. 32--A filha do regicida. 33 e 34--O demonio do ouro. 35--O regicida. 36--A filha do arcediago. 37--A neta do arcediago. 38--Delictos da mocidade. 39--Onde está a felicidade? 40--Um homem de brios. 41--Memorias de Guilherme do Amaral. 42, 43 e 44--Mysterios de Lisboa. 45 e 46--Livro negro do padre Dinis. 47 e 48--O judeu. 49--Duas épocas da vida. 50--Estrellas funestas. 51--Lagrimas abençoadas. 52--Lucta de gigantes. 53 e 54--Memorias do carcere. 55--Mysterios de Fafe. 56--Coração, cabeça e estomago. 57--O que fazem mulheres. 58--O retrato de Ricardina. 59--O sangue. 60--O santo da montanha. 61--Vingança. 62--Vinte horas de liteira. 63--A queda d'um anjo. 64--Scenas da Foz. 65--Scenas contemporaneas. 66--O romance d'um rapaz pobre. 67--Aventuras de Bazilio Fernandes Enxertado. 68--Noites de Lamego. 69--Scenas innocentes da comedia humana. 70 e 71--Os Martyres. 72--Um livro. 73--A Sereia. 74--Esboços de apreciações litterarias. 75--Cousas leves e pesadas. 76--THEATRO: I--Agostinho de Ceuta.--O marquez de Torres-Novas. 77--THEATRO: II--Poesia ou dinheiro?--Justiça.--Espinhos e flôres.--Purgatorio e Paraizo. 78--THEATRO: III--O Morgado de Fafe em Lisboa.--O Morgado de Fafe amoroso.--O ultimo acto.--Abençoadas lagrimas! 79--THEATRO: IV--O condemnado.--Como os anjos se vingam.--Entre a flauta e a viola. 80--THEATRO: V--O Lobis-Homem.--A Morgadinha de Val-d'Amores. _CAMILLO CASTELLO BRANCO_ O OLHO DE VIDRO ROMANCE HISTORICO 4.ª edição, conforme a 1.ª, unica revista pelo auctor 1918 PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA LIVRARIA EDITORA _Rua Augusta, 44 a 54_ LISBOA O OLHO DE VIDRO Nota das edições que tem tido este romance até á presente 1.ª edição--Lisboa--1866--Livraria de Campos Junior--1 vol. in-8.º de 199 pags. 2.ª edição--Lisboa--(Sem data)--(É a 1.ª edição com a reimpressão da 1.ª folha.) 3.ª edição--Lisboa--1904--Vol. 23.º da nossa Collecção, da qual se fez uma tiragem especial de 100 exemplares em papel de linho nacional para bibliophilos. 4.ª edição--Lisboa--1917--que é a presente. PROLOGO (DA 1.ª EDIÇÃO) O eminente bibliographo e meu prezado amigo Innocencio Francisco da Silva, historiando em breves linhas a vida quasi obscura de Braz Luiz d'Abreu, conclue com estas palavras: _Se algum dos nossos romancistas actuaes se resolvesse a tratar o assumpto, affigura-se-me que a vida d'este nosso medico, com os curiosissimos incidentes que ficam apontados, lhe dariam sobeja materia para a fabrica de uma composição, onde mediante a lição dos escriptos, que nos restam de Braz Luiz, poderiam fundir-se habilmente especies mui interessantes para d'ahi resultar obra de cunho verdadeiramente nacional_. Os termos em que o convite é feito animam e ao mesmo tempo assustam. Comecei temerariamente a composição d'este romance: máo foi principial-o, que eu sou tão pouco cioso de aprimorar escriptos d'esta ordem, que não me fórro ao perigo de concluil-os e imprimil-os, ainda quando me desagradam. Não direi o que penso d'este: assevero, porém, que não está de certo realisada a esperança do meu amigo Innocencio Francisco da Silva. Se a biographia do author do _Portugal-medico_ é mina para locupletar romancistas, vão lá todos, que eu não toquei nos veios mais ricos. Porto, 3 de março de 1866. _Camillo Castello Branco._ INTRODUCÇÃO Francisco Luiz d'Abreu, estudante do segundo anno medico na universidade de Coimbra, estava, por volta das onze horas da noite de 28 de janeiro de 1692, estudando, no seu _Vila Corta_, as theorias de Galeno ácerca das purgas--_de purgatione_.--Embebecido e pasmado nas virtudes drasticas dos olhos de caranguejo, apenas tinha um todo-nada de espanto para celebrar os não menos miraculosos effeitos da pelle de cobra, quando, tão a deshoras, duas aldrabadas na porta o roubaram ao seu enlevo. Francisco encapuzou-se no gabão, e abriu as portadas da janella que dava sobre o _Becco das Flores_, becco assim denominado por antiphrase, figura de rethorica tolerantissima que permitte denominar-se flores o adubo de que ellas tiram a seiva putrida, mais tarde evaporada em aromas. --Quem é--perguntou o estudante, apertando as azas nasaes, com ingrato despreso das boninas da sua rua.--Quem é o vadio? --Sou eu!--respondeu quem quer que era, abrindo pequeno respiraculo por sobre o ferragoulo, que lhe envolvia todo rosto. --Tu!...--exclamou Abreu com alvoroço.--Vou abrir! Pois és tu?! Algum motivo mysterioso tinha o academico para descer ás escuras a precipitosa escada, contando as escaleiras e raspando com o pé cauteloso sobre cada degrau. Aberta a porta recebeu nos braços com ardente vehemencia o interruptor de seus estudos, e tão alheado ficou das suas considerações therapeuticas sobre a pelle de cobra, que nem já os olhos de caranguejo lhe lembravam. --Tu aqui, Antonio de Sá!--tornou Francisco.--Eu fazia-te na India!... Sobe, meu desventurado rapaz, que não ha ainda duas horas que os teus condiscipulos te lamentaram, especialmente José de Barredo se arrepellava por ter sido teu confidente n'esses funestissimos amores que te perderam... --Com razão!...--murmurou o outro--com razão me lamentaste, que eu sou desgraçado, quanto póde sel-o n'este mundo um rapaz de vinte annos. --E que magro estás!... atalhou Francisco Luiz, achegando-lhe do rosto a candeia de lata, que despregou do velador.--Como estás acabado!... --Se te parece!... um anno quasi sem ar, nem sol; passado de terrores... Como não queres que eu esteja pallido e descarnado?! São assim todos os rostos que se lavam com lagrimas... --Pobre Antonio!...--atalhou o outro muito consternado--Se, ao menos, tivesses fugido de Portugal, como nós suppunhamos, terias céo e ar... Senta-te, homem!... Queres tu comer? --Quero. --Ainda bem! A desgraça não te quebrantou o antigo estomago... Aqui tens queijos, figos e bolos de Santa Clara... Olha que ainda duram os amores da freira... Aqui tens o coração da freira n'estas trouxas d'ovos. Carne não na ha, e não sei onde vá procural-a a esta hora... Queres tu uma sôrda? Essa faço-t'a eu: estão alli os alhos; e, á mingoa de azeite, cosinha-se com o da candeia, e depois conversaremos ás escuras. --Isto basta para quem anda faminto de bons bocados--disse Antonio, com desusado atticismo, devorando o queijo e os figos, e as trouxas allegoricas do coração da franciscana, não já como desgraçadissimo entre os homens, mas certamente como de entre os estudantes o mais faminto. O hospedeiro academico enfreou sua curiosidade emquanto o amigo não pôde dispor da lingua, empenhada na soffrega lida da deglutição. No entretanto, andava elle rebuscando na gaveta alguma vitualha, como se em gaveta de estudante alguma vez se operasse o milagre de que alguns raros anachoretas se gosaram na Palestina, quando os anjos do céo lhes cosinhavam os fricassés. --Que andas tu procurando?--perguntou Antonio de Sá Mourão. --Um boi que te mate essa fome! Hei medo que me devores, rapaz. --Nem manjar branco me dês que já me cá não cabe. Estou alimentado para tres dias, se fôr necessario. Queres agora a minha historia de treze mezes? Deita-te ahi na tua cama; escuta e adormece quando quizeres. Que sabes tu da minha vida? --Sei o que todos sabem: que fugiste de Bragança com uma moça, filha unica de pae rico e feroz, que te fez procurar aqui em Coimbra, e me quiz metter no aljube para lhe dar conta de ti, allegando que eu devia forçosamente ser teu confidente, por que sou christão novo como tu. --Não sabia--interrompeu Antonio--que os meus infortunios implicaram comtigo... --Mais do que eu te sei dizer... Os trabalhos, que me ameaçavam, affligiam-me muitissimo menos que a idéa da inexoravel perseguição que te fariam por toda a parte. Esperava eu, a cada hora, a noticia da tua prisão, com todas as probabilidades de que morrerias na forca, se não morresses na fogueira. Ninguem dava novas tuas, que não fossem horrorosas. Uns diziam que tinhas sido morto a tiro; diziam outros que te havias suicidado. Ao cabo de seis mezes, espalhou-se a boa nova de que tinhas embarcado para a India, favorecido por teus parentes ricos de Lisboa, e tambem corria que a moça te acompanhára vestida de rapaz. Ora, como nunca mais se fallou de ti, acreditámos que estavas salvo... Como te vejo aqui, Antonio?! Que é isto?! Onde tens estado? Como pudeste fugir á justiça, se não foi n'algum subterraneo? --Eu te conto, respondeu Antonio. Aquella temporada de ferias que fui passar com meus tios em Bragança foi a morte da mocidade, das esperanças, e de tudo em que eu fundamentára a felicidade das minhas modestas ambições. O prazer exclusivo da minha vida tinha sido o estudo, a gloria da sciencia, desvanecimento louco de poder ainda, mediante a sciencia, avisinhar-me do throno, como os antigos da nação[1] e desopprimir nossos irmãos, quanto coubesse na alçada do juizo, e no prestigio que a posição de medico do rei me désse. Era um sonho talvez desatinado; mas o despertar-me d'elle foi atroz!... Amei aquella mulher; referi-te o nascer d'aquelle funesto amor. Sabes que os teus conselhos e vaticinios, ainda mal que realisados, não poderam reduzir-me ao dever, á honra, e propriamente ao discreto egoismo, que tantas vezes nos arreda de abysmos cavados pela excessiva sensibilidade. O peior, meu amigo, já não era vencer-me eu; era vencer a compaixão que me fazia a pobre menina, cujas alegrias dos dezoito annos eu fôra converter em amargura de toda a vida. --Combati essa opinião--interrompeu Francisco Luiz--por cuidar que era grande parte n'ella a tua vaidade, a vaidade do homem que se julga necessario á vida da mulher... --É verdade; combateste a insensata opinião; mas... não sei se cedo se tarde o fizeste; o certo é que as tuas razões me pareceram sophisticas e glaciaes. Vi em ti o philosopho que sempre foste; e em mim vi o homem duplicado em sua existencia pelo amor, os dois homens que se combatem e forcejam por despedaçar-se, até que um triumpha, e... fica senhor das ruínas do coração... Já agora não discutamos como medicos em volta de um cadaver. Saibamos que está morto o homem, e ouve tu singelamente a historia das delirantes febres que o acabaram. De antemão sabia eu já que a filha de Fernão Cabral me seria negada e que os lacaios do christianissimo fidalgo, por ordem de seu senhor, me ameaçariam com os seus tagantes. Isto não embargou que eu timidamente me fosse apresentar ao nobre morgado de Carrazedo, e lhe pedisse a filha. Fernão ouviu-me em pé, e respondeu-me n'estes termos: «Olhe para estes retratos»--e apontou para uma duzia de figuras pendentes das paredes--«olhe para estes retratos, e veja se ahi está algum com a estrella vermelha das seis pontas cosida sobre a garnacha ou sobre o arnez[2]» dito isto apontou-me a porta da escada. Não sei se odio, se lagrimas, se tudo a um tempo, me enchia o coração! Já então não tive animo para te escrever! Ha desgraças tamanhas que um homem parece envergonhar-se de contal-as aos seus amigos mais do intimo d'alma. Fechei-me com o segredo da minha ignominia. Deixei Bragança e fui para a Guarda, resolvido a entregar-me inertemente ao devorar silencioso da minha saudade. Fugi dos carinhos da familia, e ferrolhei-me n'uma casa agreste e erma na quebrada da Serra da Estrella. A desesperação alli foi-me consoladora, por que a morte era inevitavel n'aquelle desamparo. Nem ainda então pude escrever-te, meu amigo! Assim que tentava fazel-o, não sei exprimir que desalento me esvaía a cabeça. «Que vale queixar-me?! dizia eu entre mim--O que Deus não dá não m'o podem dar amigos. Deixal-os gosar, deixal-os ignorar estas obscuras angustias.» Uma noite, faz agora onze mezes, estava eu passeiando nos quasi pardieiros da minha vivenda, quando ouvi tropel de cavalgaduras no barrocal que descia da serra ao alpestre casalejo de meus avós, os quaes alli se tinham homisiado no tempo das grandes perseguições do rei D. Manuel. Accudi á janella e ouvi uma voz de homem dizer: «É aqui.» Não sei que outras palavras se disseram: eram a voz d'ella: era Maria. Quando dei tento de mim, e cobrei conhecimento da minha situação, tinha, nos braços a filha de Fernão Cabral, e á beira d'ella vi uma criada sua, que nos fôra medianeira, e um criado da casa de meu pae. Contou Maria, a intercadencias anciadas, que fugira de Bragança, logo que o pae se ausentou por alguns dias, no proposito de negociar o casamento d'ella com um fidalgo de Vizeu. Como não tinha mãe, e costumava passar muitas horas reclusa no seu quarto, os domesticos não deram logo conta da fuga, nem a suspeitariam tão cedo, se a sua aia não faltasse tambem. Fugiu caminho da Guarda, e procurou-me alta noite, em casa de meus paes, que tentaram restituil-a á casa paterna, temerosos dos resultados. Como ella, porém, os assustasse ainda mais com o proposito de se matar, encaminharam-na ao meu deserto, com todo o segredo. Imagina tu que hospedagem daria eu á filha do gentil-homem, alli, n'aquellas ruinas, onde todas as alfaias eram um catre de bancos, uma arca, dois tamboretes de páo, e alguma loiça vermelha do uso dos caseiros, pobre gente de nossa raça, que para alli ficára grangeando e usofruindo as pouquinhas e inferteis terras!... A Maria e á sua criada grave dei o meu leito; e com o meu criado me fui ao palheiro, e me agazalhei nas mantas que os caseiros nos emprestaram. De madrugada, chegou meu pae a indagar do meu destino, e a dar-me alguns recursos para fugirmos até onde passassemos insuspeitos. O velho chorava, e eu, digo-t'o com pejo, queria que elle se alegrasse de me ver feliz! Deferi a minha saida para o dia seguinte, sem saber que rumo tomasse. Meu pae mandava-me fugir por Hespanha e embarcar para Hollanda. Maria, esperançada na commiseração do pae e na protecção dos seus santos advogados, queria que eu e ella fossemos ajoelhar aos pés d'elle. Por mais que m'o dissesse em tom de anjo quando revela os decretos do céo, não pude sequer imaginar possivel o perdão do soberbo fidalgo. Saimos para Celorico, a quatro leguas de distancia. N'uma aldeia dos arrabaldes, moravam irmãos do meu caseiro, grangeando um casal. Alli deliberei repousar alguns dias, porque Maria já tão sem forças ia da jornada por serras n'um dia de rigoroso inverno, que mal podia ter-se nas andilhas. Desde aqui avisei meu pae, pedindo-lhe novas do que soubesse. Respondeu-me que, horas antes, tinha sido cercada nossa casa, e que elle, com todos os nossos, estavam arriscados a ser presos. E foram, no dia seguinte, presos e fechados em masmorras. As immediatas noticias que tive foram cruelissimas. Todos os nossos bens tinham sido inventariados como para entrarem no sequestro feito a bens de judeus. Eu não devia já esperar recursos alguns de minha casa, e o dinheiro que eu possuia pouquissimo era para me transportar para fóra do reino. Sobrepõe tu, Francisco, a estes lances, o medo da prisão, e escutar a cada instante nos menores rumores o estrepito dos quadrilheiros! E, se estes são poucos supplicios para conceberes muito em sombra a minha vida, ajunta a isto uma cama de enxerga n'um quarto de vigamento por onde a ventania esfuziava, e sobre essa enxerga a pobre menina a tremer os frios das sesões, e eu de mãos postas a contemplal-a assim! Para que ninguem da aldeia nos visse, os dias para nós eram a continuação das noites. Aquelles pobrinhos fazendeiros, de portas a dentro, melhoraram quanto poderam a nossa situação. Eu, por minhas mãos, carpintijei o tabique para aconchegar o nosso quarto; e, com todas as cautellas, consegui que viessem de longe bragaes e roupas com que tirei á alcova de Maria as tristezas da indigencia. Melhorou a minha pobre amiga e desenvolveu espantosa energia na lucta. O sorriso d'ella dava-me alentos; mas não podia espancar da minha alma a imagem de meu pae, mãe e irmãos encarcerados, perseguidos pelo rancor vingativo de Fernão Cabral, e mais que muito sujeitos á extremidade de pagarem com a vida o meu delicto. Com que traças e trabalhos eu conseguia incertas noticias d'elles! Para mim era já consolativa a nova de que os não tinham mandado para os carceres da inquisição de Coimbra. Logo que elles aqui entrassem, perdidos os considerava eu. E assim vão decorridos treze mezes, Francisco Luiz! Comprehendes tu que infernos eu tenho apagado com as minhas lagrimas para poder viver ainda!... Lagrimas escondidas d'aquella martyr, para que ella, conhecedora do meu desalento, não desanime!... --E choras assim, Antonio! Coragem!--exclamou Abreu, tomando contra o seio o anciadissimo moço. --Ai! deixa-me chorar, que não o pude ainda fazer tanto ás largas. Deixa-me chorar, que isto é veneno mortal que me sáe aos olhos! É preciso que vejamos alma compadecida para sabermos a doçura d'este desafogo das lagrimas! Passados momentos, Antonio apertou, de golpe e convulsamente, as mãos do condiscipulo, levou-as aos labios, e exclamou soluçante: --Sabes ao que vim? --Diz, meu querido amigo. --Venho pedir-te dinheiro para fugir de Portugal. --Tel-o-has. Minha mãe já não vive, e eu tenho uma legitima. Conta com ella. --Bem hajas! bem hajas, meu Francisco! Mas venho pedir-te mais alguma coisa. --Diz. --Eu tenho um filho de quinze dias. Não posso fugir com a creancinha. Aceitas-m'a no regaço da tua caridade? Ficas com o meu filhinho, para m'o restituir, quando a felicidade me bafejar? --Ficarei como teu filhinho, Antonio. Dar-lhe-hei o coração que te dou a ti. Se Deus o não tiver levado, quando voltares, achal-o-has. Não lhe direi o teu nome de pae, sem que tu lh'o possas dar. Ninguem saberá que é teu filho, sem que tu possas dizel-o ao mundo. --É assim que t'o roga a minha alma attribulada... a ti e a Deus, que me está fallando no teu coração. Porque não hei de eu ajoelhar a teus pés, se creio que em ti está o Senhor da compaixão e da misericordia?! Francisco Luiz de Abreu levantou nos braços o arquejante moço; e, não menos commovido, ratificou as promessas feitas. * * * * * Ás dez horas da noite seguinte, Francisco Luiz e o seu amigo sairam de Coimbra, cada qual por diversa porta. O bemfeitor foi para Ourem, sua terra; o judeu da Guarda, por desvios escusos, entrou, decorridas duas noites de jornada, na abegoaria onde o esperava a mãe da creancinha, que bebia um leite aguado de lagrimas. Dez dias volvidos, por noite alta, entrava no mesmo casalejo Francisco Luiz de Abreu, com uma ama de leite, e com a sua legitima materna n'um saco de moedas de ouro. Contemplou a formosura da peccadora, e a formosura do innocente nos braços d'ella. Saudou-os, chorando, e tomou a creancinha muito aconchegada do seio. --Como se chama o anjinho?--perguntou o academico. --Tu o dirás--respondeu Antonio.--É teu afilhado. --Seja Francisco--disse a mãe. --Muito desejaria eu baptisal-o, e dar-lhe o meu nome--observou o academico;--mas tu sabes, Antonio, o resguardo que convém ter comvosco, com este menino e comigo. O meu parecer é que se esconda quanto ser possa a influencia que eu hei de ter na creação de teu filho. Melhor é que as suspeitas do mundo, se ellas vingarem descobrir ligações d'esta creança comigo, me julguem a mim, que não a ti, pae d'ella. O meu intento é alugar uma casinha em Coimbra onde a ama viva com elle. Não irei ser padrinho, para não dar corte á desconfiança de que elle seja meu filho. Assim se irá creando, até que eu conclua a formatura. N'este meio tempo, quererá Deus que tu voltes a Portugal. --Voltarei eu?!--exclamou Antonio, apertando no mesmo braço o amigo, o filho, e a mãe, que estava lavando com lagrimas o rosto da creancinha, deitada nos braços do estudante.--Ver-vos-hei eu mais?--balbuciou, intallado de gemidos. Que futuros melhores posso esperar eu!? Como crês tu possivel o termo da perseguição?... --Não sei--disse Abreu, fingindo esperanças.--Não sei... mas as voltas do mundo são tão espantosas... Todavia...--continuou elle com o alvoroço de uma já sincera esperança--não te lembraste ainda d'uma felicidade muitissimo possivel? --Qual?--conclamaram os dois, para quem um raio de esperança era já cousa de estontear como a luz do sol aos exhumados das trevas de longo encarceramento.--Qual? que felicidade nos promettes, meu amigo? --A mais obvia e facil. O que me espanta é que ella vos não haja sorrido primeiro do que a mim. Ides para Hespanha, não é assim? --Vamos. --De lá passaes a Hollanda, onde achareis o abrigo que os nossos irmãos deparam a quantos infelizes vão de cá acossados pelas tochas do auto da fé. Tu, Antonio, és novo e robusto. Se não quizeres continuar os teus estudos medicos lá fora, voltas a tua actividade para outra ordem de trabalhos: fazes-te mercador, ganhas dinheiro, esqueces a patria, como se nunca a tivesses, como em verdade não temos; depois, mandas ir o teu filhinho, como complemento da tua felicidade na vida tranquilla. --Que sonho!--clamou alegremente a filha de Fernão Cabral.--E eu nunca pensára n'isso... --Nem eu...--ajuntou Antonio.--Ha umas desgraças que esterilisam a mais pensadora e expeditiva alma! Eu não via senão escuridade... Agora, bem hajas tu, meu irmão, que me restitues á serenidade de homem inquebrantavel por affrontas da sorte... E a ti, a ti, meu amigo? Não hei de eu mais vêr-te? --Porque não, se eu hei de ser propriamente quem te vá levar o filho? --Oh! então já sei que ha o antever da perfeita felicidade, cá mesmo d'este grande abysmo em que me lancei com esta infeliz menina... E, abraçando-se n'ella, choravam ambos lagrimas já de jubilo, como as de quantos naufragos que apegam sobre ponta de rocha, ainda quando ao despegarem-se, para ganhar terra, voragens novas se lhes anteponham. N'este dia, como se a adversidade cançasse de cruciar os dois fugitivos, boa nova lhes chegou a sobredoirar os prazeres da esperança. Sem embargo da raivosa perseguição do fidalgo de Bragança á inculpada familia do hebreu, as leis não se dobraram a sentenciar a perdição dos innocentes. Apoz dez mezes de masmorra na cidade da Guarda, os dois velhos e seus filhos sairam livres, sob a bandeira misericordiosa dos dignitarios da Sé, conjurados todos em deporem sobre a pura christandade dos presos, e sua irresponsabilidade nas desordens do máo membro de sua familia. Redobrada a exultação de Antonio com esta nova, queria já elle dispensar-se de receber o emprestimo de Francisco de Abreu, como quem contava com sobejo dinheiro de sua casa resgatada do sequestro. O amigo, porém, não condescendeu nem o desquitou da obrigação de devedor, instando na immediata saida de Portugal, porque a raiva do fidalgo redobraria de vigilancia, depois da soltura dos presos em quem não podéra assentar em cheio a mão rancorosa. Prevaleceram as judiciosas previsões de Francisco Luiz. Áquella hora, de feito, já Fernão Cabral, esporeado pelo odio, apertava novas diligencias para descobrir o rasto dos fugitivos, e, mediante disfarçados espias que na Guarda lh'os andavam furoando, não estava já longe de lhes descobrir o rasto. Ao outro dia, depois de muito chorar da mãe, a cujo seio arrancaram a creancinha, Francisco Luiz, sem saber como se estancavam lagrimas de tão puro sangue de alma, fugiu para assim dizer com o menino, sem esperar as ultimas despedidas. Ao anoitecer d'este dia, os consternados paes, por serranias não trilhadas endireitaram ás fronteiras e vingaram entrar em Hespanha. Contemplavam-se a espaços, e viam nos olhos um do outro o desconforto, a desesperança, o convencimento de que sua desgraça ia crescendo. --E o nosso filhinho?...--dizia ella em gemidos, que pareciam um arrancar da vida. E elle cobria o rosto com as mãos, arquejava, engulia as lagrimas e não respondia. --Que mal fizemos em deixar a creancinha!--voltava ella, cruzando os braços sobre os seios, que lhe doiam entumecidos do leite.--Que ruim mãe eu fui!... Meu Deus, perdoae-me que eu sómente agora considero a grandeza do meu crime! --Não chores assim!--atalhava o attribulado moço. Pois como andarias tu fugitiva com um filhinho de tres semanas! Ó Maria, por Deus te peço que nos não atormentemos! Ajuda-me a ser homem! Ampara-me, pela boa sorte do nosso filho te rogo que me ampares! Volta ao futuro os olhos de tua alma! Esperemos... luctemos, sejamos fortes, não nos deixemos acabar aos golpes d'esta saudade. I Informações Corria o anno de 1697. Francisco Luiz d'Abreu, doutor em medicina, mudára sua residencia para Coimbra, esperançado em entrar no magisterio, conforme lh'o promettiam sua capacidade, vasto saber e creditos. Tinha casado, quatro annos antes, com Francisca Rodrigues de Oliveira, filha de abastados judeus de Ourem. Não tinham filhos; mas dos braços de um ao outro saltava um menino de cinco annos, chamado Braz, acariciado com blandicias de filho. A creança tratava de padrinho o doutor, e á senhora chamava mãe. A esposa do medico, privada do goso de se ver assim amimada nos labios de anjo desentranhado de seu seio, jubilava de lhe ouvir aquelle doce nome de mãe, e toda se estremecia de maternal ternura chamando-lhe seu filho. Grande numero de pessoas relacionadas com Francisco Luiz, presumia que o pequenino Braz era filho natural d'elle, e que Francisca de Oliveira, bem que israelita e perfida ao sacramento do baptismo, alojava no peito entranhas tão christãs que levara para sua companhia o menino, e lhe queria até á extremidade de lhe chamar filho, e consentir que elle lhe chamasse mãe. Exceptuada a amoravel esposa do doutor, ninguem sabia em Portugal quem fossem os paes d'aquella creança. A ama, que a tinha amamentado, morrêra; e a pobre gente, que lhe assistira ao nascimento, ignorava o destino d'elle. Um dia, como a creança, antes de ir-se á cama, entrasse a beijar a mão do padrinho, Francisca beijou-a nas faces, e disse-lhe: --Não tornes a chamar padrinho ao teu amigo; chama-lhe pae, sim, Braz? --Pois sim, mãesinha--disse a creança, e saiu pela mão da creada. Francisca proseguiu: --Pois não é assim melhor?! Acabamos de nos convencer que elle é nosso filho. --Ó menina, respondeu o marido--esse convencimento parece-me difficil... --Nosso filho gerado no coração...--tornou ella. --Isso lá, sim; d'esse modo já eu o perfilhei; mas o peior é que ámanhã podem apparecer ahi umas entranhas menos phantasticas do que a tua maternidade de coração a reclamarem o que é seu legitimamente. --Pois tu cuidas que elles voltam cá?! Podes ainda imaginar que elles vivem? Ha tres annos que não temos uma carta d'elles! --Mas tambem não recebemos a certidão de obito. --Pois sim,--redarguiu Francisca--mas, se elles vivessem, as pessoas de Hollanda, a quem tu tens pedido tantas vezes novas d'elles; não t'as dariam, ainda mesmo que lhe não soubessem os verdadeiros nomes?! --Acho-te razão; porém, custa-me a crer que elles tenham morrido ambos. O mais certo é o que eu tantas vezes te tenho dito... --Que Fernão Cabral tem recebido as cartas que elles te escrevem? --Sim. --Não creio. Tu recebes cartas de Amsterdam, de Londres e de toda a parte. Se te subtrahissem umas, iam todas, homem. Cá, ninguem me tira a mim da cabeça, que elles morreram em naufragio, ou os sicarios do fidalgo os mataram lá por fóra, ou... quem sabe?... a tamanho apuro de desgraça chegariam, que se dessem a si a morte, como no seculo passado succedeu com tantos irmãos nossos. --Póde ser--obtemperou Francisco Luiz;--mas teriam coragem de matar-se uns paes que deixavam esta creança?!... Não é possivel! A ultima carta, que recebi de Antonio, aqui está--disse elle, tirando-a do segredo de uma gaveta--é de 4 de outubro de 1694. Escreve-me de Marselha. Não se queixa de mingua de recursos. Revela uma certa seguridade de espirito, que é signal de boas avenças com as miserias da vida. Diz que está em arranjos com alguns hebreus, filhos e netos de portuguezes, para se trasladarem com suas familias para uma colonia franceza, que, diz elle, talvez seja a de S. Domingos. Promette escrever-me quando se houver definitivamente resolvido, e depois... --Mais nada--atalhou Francisca--Ora, no Canadá, já sabemos que elles não estão. N'outras colonias, tambem tu já sabes que ninguem os viu. Que havemos de pensar d'isto? Que se ha de suppor depois do silencio de tres annos? --Que as cartas me são roubadas--insistiu o doutor. --E tu a teimar, homem!... Oxalá que eu me engane; mas, se adivinho, Deus sabe que o menino está amparado, e que ha de ser sempre meu filho, ainda que o senhor me dê muitos filhos. --Suicidarem-se!--proseguiu Francisco de Abreu, que parecia, de absorvido em suas cogitações, não ouvir a esposa--Suicidarem-se não póde ser... Antonio Mourão graduou-se em medicina em Paris ha quatro annos, e de lá passou para Hollanda. Um medico não chega a encarar com tão feia miseria que lhe quebre o animo, ao extremo de o anniquilar. Antonio em qualquer parte acharia pão, ainda que fosse máo physico; porém, com os talentos d'elle, não posso conceber máo medico. Seja o que fôr, Francisca. Eu espero ainda haver novas por alguns hebreus de Marselha. Hei de perguntar em que época e em que navios sairam colonos, e para onde sairam. Não o fiz até agora por medo que as minhas cartas andem espiadas, e vão dar ás mãos de Fernão Cabral. Mas vou escrever ao nosso amigo Francisco de Moraes Taveira, que está em Lisboa de viagem para França, e pedir-lhe que indague quanto poder dos nossos irmãos de Marselha o destino dos colonos, com os quaes saiu Antonio de Sá Mourão. Francisca entrou á alcova do menino, e sentou-se-lhe á beira do catre a contemplal-o adormecido em sonhos, que lhe sorriam, a espaços, na rosa entre-aberta dos labios. Francisco Luiz de Abreu ficou escrevendo largas paginas ao seu amigo Francisco de Moraes, hebreu abastadissimo de Villa Flor, commerciante de pedras preciosas, que traficava nas principaes cidades de Europa e Asia. Na volta do correio, Francisco de Moraes asseverou ao doutor que chegado a França, iria indagar pessoalmente a Marselha, e não pouparia despezas com os informadores que o satisfizessem. E, por esta occasião, lhe noticiava que fazia conta de trazer de Hollanda seu filho Heitor, que lá se estava educando em humanidades com seus tios, para estudar medicina em Coimbra; e, a tal respeito, accrescentava: «Não sei se érro em trazer o rapaz para Portugal; mas a mãe insta, chora, e definha-se a termos que receio que me ella morra. Seja o que Deus quizer. Aconselhar-lhe-hei o que lhe cumpre fazer, e espero que elle, por obediencia e desejo da vida, me attenda.» Francisco Luiz deu-se logo pressa em pedir ao hebreu que não trouxesse para Portugal, como victima amarrada para o açougue, o pobre rapaz que lá fóra vivia sem receio da polé e da fogueira. Pintava-lhe, sem encarecimento, os perigos que ameaçavam em Portugal um rapaz creado e educado entre israelitas doutos, e com elles affeito a dizer alto e destemidamente o seu pensar em coisas de religião. Recordava-lhe as numerosas victimas da inquisição, que preferiram morrer a desconfessar sua fé, antepondo a gloria do martyrio da idéa herdada de avós á hypocrisia de aceitarem apparentemente a religião dos carniceiros filhos de Domingos de Gusmão. Lembrava-lhe a sublime coragem de Manuel Fernandes Villa Real, consul portuguez em Paris, e, não obstante, garrotado e queimado na praça da Ribeira em Lisboa no anno de 1652. Lembrava-lhe o lente de Coimbra Antonio Homem, queimado em 1624, e o advogado Miguel Henriques da Fonseca, Pedro Serrão[3] e outros, cuja inflexibilidade de caracter, comquanto perpetuasse honrada memoria, lhes custou affrontosissima morte, e deixou aberta por muito tempo amarga torrente de lagrimas. As reflexões do medico abalaram o judeu; mas não lhe demudaram a tenção. Era Heitor, filho unico, herdeiro de grandes haveres; queria voltar á patria, onde o chamavam saudades de menino; tinha por si as lagrimas e instancias da mãe; promettia ser discreto e hypocrita; queixava-se do clima de Hollanda e de febres quartans. O pae era sósinho a querel-o afastado de Portugal, e assim mesmo andava em lucta comsigo mesmo, até que deliberou trazel-o de volta da sua excursão mercantil a França e outras nações. De Marselha escreveu Francisco de Moraes informando o seu amigo Abreu. Dizia que Antonio de Sá Mourão, convidado com grandes lucros a ir estabelecer-se como medico no Canadá, ou Nova França, aceitara a proposta, e embarcara com sua mulher, resolvido a enriquecer-se no prosperado trafico dos pellames. Ajuntava que um dos tres navios, carregados de colonos, batido pela tormenta, se esgarrara do rumo, e fôra a pique na costa de S. Domingos, a tempo que duas galeotas de flibusteiros, conhecidos como _demonios do mar_, na linguagem da peninsula britannica, faziam aguada n'uma bahia d'aquella infamada costa, onde poucos annos antes haviam naufragado tres naus francezas, capitaneadas pelo audacissimo colonisador Robert Cavalier de la Salle. Ajuntava o informador que n'aquelle navio perdido iam fatalmente o medico e sua mulher, com muitas pessoas das mais graudas da colonia, algumas das quaes se presumia que tinham caido nas mãos dos flibusteiros segundo informações de um galeão hespanhol, que das pessoas embarcadas no navio perdido, até áquella hora, não viera noticia a França. Francisco d'Abreu, lendo a carta, disse á esposa. --Tinhas adivinhado desgraçadamente! O nosso Braz já não tem pae nem mãe. Agora podemos dispor do futuro d'esta creança. Vê tu que funesto remate houveram aquelles amores do meu pobre Antonio! Já não ha duvidar... Estão mortos! Batam as mãos os gallileos, e folguem de ver que vingaram as ondas o que as lavaredas não poderam! Oh!... que vontade eu tenho de banhar o rosto d'este menino com as minhas lagrimas, e contar-lhe as desgraças de seus paes. --Não--atalhou Francisca--não lhe digas nada; não digas! Que lucra elle em saber isso?... Vaes semear-lhe no coração odios e paixões que, no futuro, lhe podem ser a sua perdição. Nem se quer lhe digas em tempo algum que seu pae era judeu. Quebremos-lhe, se podermos, este condão funesto! II Não era mãe!... No seguinte anno de 1698, o doutor Abreu, que nunca se descuidava de ter o ouvido fito aos rumores surdos da inquisição, recebeu mui secreto aviso de algum condiscipulo, que devia ser familiar do santo officio, qualidade com que o maior numero de medicos d'aquelle tempo se nobilitava; e tanto assim era, que algum medico, privado d'ella, dava a entender que pertencia mais ou menos á seita maldita; ou, como diziam, tinha uma, duas ou tres partes de judeu. O aviso mandava-o aperceber-se para trabalhos grandes. Alvoroçado com a pavorosa nova, o doutor quiz logo sair da patria, e refugiar-se em Damasco, onde tinha um tio que exercitara em Portugal a profissão de boticario, no Fundão, até ao anno de 1652, em que fôra queimado o capitão Manuel Fernandes Villa-Real. Chamava-se o fugitivo Pedro Lopes. Impediram-lhe ao doutor a precipitada fuga alguns parentes e amigos, que podiam bastante com os promotores do santo officio; recommendando-lhe, porém, que visitasse as egrejas com frequencia, e désse bem publicas demonstrações de sua piedade. Assim o cumpriu o doutor Francisco Luiz, bem que sua mulher mui violentada se prestasse a uma ostentação hypocrita, da qual a credula israelita se penitenciava com muitos jejuns e orações. Decorridos mezes, fez-se auto da fé, e n'elle saiu condemnado a prisão illimitada um Fernão Vaz Lucena, parente do doutor. A maxima culpa d'este christão novo era o ter-se descaminhado e caido nas mãos dos inquisidores uma carta em verso, que Pedro Lopes, tio de Francisco Luiz d'Abreu, lhe escrevêra de Damasco. Esta carta indirectamente ameaçava a tranquillidade do lente de Coimbra; e, por amor d'ella, se formara a tempestade em que os amigos do lente viam ao longe o raio, o qual urgia conjurar com visitas aos templos e tregeitos bem publicos de piedade. Que perversa e impia carta seria aquella, em que os inquisidores acharam motivo para condemnarem Fernão Vaz Lucena a carcere perpetuo? N'um velho manuscripto que possuimos, chamado _Memorias de Francisco Soares Nogueira_, encontramos trasladada a carta, cuja copia não vem descabida ao ponto; e, se mais não vale, tem por si o merito de nos dizer como os boticarios hebreus conciliavam as letras amenas com a manipulação dos ingentes xaropes d'aquelle tempo, posto que nem sempre conciliassem a inspiração com a contagem das syllabas, segundo a arte poetica. Dizia assim a carta: Oh Fernando, oh Fernando, até quando ha de durar teu descudo, entre o povo torpe e rudo? Que serve estar aguardando? Sabes a banda d'além... e o que convem. Quem se agarra, quem se afferra, deixa o monte, deixa a serra, e ao valle seguro vem. Não vês como arde esse matto, mentecato, que pouco a industria val? Antes que chegue ao casal, levanta cabana e fato! Não sejas aventureiro, que o toureiro _sim_ (?), morre em seu officio. Mais val ter outro exercicio, que fundar em ser ligeiro. Por que não queres ser forro? Eu morro, por não haver quem te arranque! Se pódes vêr de palanque por que queres andar no corro? Tambem eu estive lá, e sei o que ha; tudo passei, tudo vi. Não se incerra o mundo ahi; melhor mundo vae por cá; o pão é cá mais ensôsso, e a carne sem chambão; tambem cá se ganha pão, e não com tanto sobr'ôsso. A gente é cá sem reima, de menos teima; a terra fructos produz, e o sol dá cá mais luz, posto que tanto não queima. Digo-te verdade mera: considera; e, se queres ter descanço, vem buscar o rio manso, foge do mar que se altera; foge do lago e da cova, cousa nova, e só n'isto me obedece. Mova-te o proprio interesse, quando o grão Deus te não mova; que os lobos como rodeiam sempre pream. Divulgou-se a carta, depois do auto da fé. O doutor Abreu, assim que a viu, afervorou-se na frequencia de egrejas, batia nos peitos estrondosas punhadas, e ingranzava as contas das camaldulas, de modo que os ouvidos dos devotos podessem contar-lhe os quinze mysterios do rozario. Porém, como se a hypocrisia lhe não désse caução bastante segura, o lente de medicina, emquanto escoava os sonoros bogalhos, scismava no modo de fugir, sem dar ansa aos espias. Apezar das camaldulas e dos protectores, a inquisição cada vez mais desconfiava da sinceridade do doutor; e o doutor, não menos vigilante que ella, cada hora, habilmente negociava a transferencia dos seus haveres ao estrangeiro. O pequeno Braz era-lhe empêço. Não sabia elle se devia levar comsigo a creança. O perigo e o medo, concentrando-o no cogitar em salvar-se, tornava-o mais egoista em cuidados de si, e menos pensativo do futuro do pequeno. Francisca de Oliveira, por sua parte, queria muito á creança; mas não era bem o querer e amar maternal: faltava-lhe aquelle sentir-se viver, estremecer e morrer nas arterias do filho. Então lhe seria a ella bom de comprehender que sómente é mãe aquella que sentiu as dôres da maternidade. --Que ha de fazer-se ao pequeno? onde o deixaremos?--perguntava Francisco Luiz á mulher. --Se o podessemos levar sem difficuldade... --Não podemos, por que eu já desconfio que nos será negado o passaporte. Temos de fugir; e escapar com uma creança desembaraçadamente ninguem o faz. Bem sabes que nossos avós matavam os filhos que lhes retardavam e denunciavam a fuga. --Deixa-se em casa dos nossos parentes--tornava ella. --Isso é sacrificar os nossos parentes; porque o rapaz é considerado meu filho--observou o doutor. --Tenho uma boa idéa--ajuntou elle--entreguemol-o a Francisco de Moraes, de Villa Flor, que sabe a historia d'esta creança, e lhe ha de servir de pae com os sobejos da sua riqueza. Não ha tempo a perder. Vou escrever-lhe para Lisboa, e pedir-lhe que me espere por estes quinze dias. Francisco de Moraes Taveira aceitou gratamente o encargo, tanto por lhe ser offerecido pelo doutor Abreu, como por ser o orphãosinho filho do desventurado israelita, que perdêra provavelmente a vida, quando cuidava ganhal-a com honra. Desde que a resposta chegou, Francisca, olhando a face carinhosa da creança, chorava sempre. Quanto mais o estreitava ao peito, mais o menino lhe sorria, como se com afagos quizesse mitigar as angustias desconhecidas, que via no rosto lagrimoso de sua mãe. Já ella pedia ao marido que não deixasse o menino; vacillava já tambem o doutor; e, muito instado da esposa e do coração, que a si mesmo se reprehendia, deliberou resolver-se em Lisboa, segundo se lhe figurasse facil ou difficil a passagem para outro reino. Nas ferias d'aquelle anno, o lente simulou uma jornada a Ourem, sua patria, e foi em direitura a Lisboa. O santo officio de Coimbra reparou na saida, e lançou pesquizas. Informaram-no de alguns processos de liquidação de patrimonios e venda de bens, que o doutor Abreu rapidamente negociára na terra de sua mulher. D'isto foi avisado o inquisidor geral, de modo que já em Lisboa o promotor instaurava processo, quando o lente alli chegou. Avisado pelo medico mais convisinho dos segredos da inquisição, Francisco Luiz deu-se pressa em sair de Lisboa com destino a Inglaterra. Negaram-lhe passaporte. Aterrado d'esta contrariedade, significativa de maiores violencias, mudou de residencia para casa segura, que lhe dispoz o hebreu de Villa Flor. A vigilancia dos esbirros estava attenta sobre os navios hollandezes principalmente, e pouco menos sobre quaesquer outros de commercio com portos estrangeiros. Francisco de Moraes, avassalando com ouro a piedade do piloto de uma nau portugueza destinada á India, introduziu no navio o doutor e sua mulher, considerados mercadores e proximos parentes do piloto. As arcas de suas preciosidades entraram com os passageiros; tudo que mais e menos caro lhes era foi com elles, exceptuado o pequenino Braz, que dormia á hora em que elles partiram, e nem acordou ao cair-lhe nas faces as lagrimas dos seus bemfeitores. Ao amanhecer-lhe o dia seguinte, Braz perguntou pela mãe. Ai! se ella o fosse, não perguntaria o desamparadinho por sua mãe. Respondeu-lhe um moço de vinte annos, que os seus amigos tinham ido fóra de Lisboa, e voltariam passados alguns dias. A creança chorou em silencio, como quem conhecia que o prantear-se seria desagradecer as caricias que lhe fazia o filho de Francisco de Moraes. Era elle o mancebo que o hebreu de Villa Flor fôra buscar a Amsterdam. Heitor Dias da Paz distrahia a creança de seis annos com brinquedos proprios da meninice. Parecia que um ao outro se estavam divertindo. Heitor quiz instituir-se mestre do _a b c_ do pequeno; mas as graças infantis do discipulo encantavam-no por maneira, que era coisa de muito rir vêl-os ambos despegarem do alphabeto para se andarem correndo pela casa no jogo dos esconderêlos. Dentro em pouco, as lembranças dos fugitivos hebreus eram apenas brevissima tristeza de saudade na memoria de Braz. Heitor, desejoso de ver a terra do seu nascimento, foi para Villa Flor, e levou comsigo o menino. Francisco de Moraes, por mêdo de que, n'alguma hora, a inquisição lhe quizesse galardoar a astucia no escape do sobrinho de Pedro Lopes, accendendo em honra d'elle as santas rezinas da fé, tratou de sumir-se na sua provincia, dando-se por cançado de amontoar riquezas. Assim se reuniram em felicidade ainda não experimentada, os paes de Heitor, contando como elemento de sua boa sorte a posse do orphão, que, de muito amado que era, não sentia falta dos seus primeiros amparadores. III O faro das bestas-feras Por espaço de quatro annos se gosou Heitor Dias das doces reminiscencias de infancia, sem querer saber de estudos nem do destino. Os paes não o incitavam a empregar seu tempo em letras que lhe abrissem carreira de gloria. Fechada sabiam elles que ella estava aos hebreus, salvo a das sciencias; folgariam de o ver luzir entre os famigerados Zacutos; mas muito mais se compraziam de o ter entre si a recado de toda a suspeita de inimigos e do perigo de se relacionar com imprudentes amigos. Decorridos, porém, quatro annos, em 1703, Heitor Dias da Paz pediu ao pae que o deixasse ir estudar medicina a Coimbra, porque lhe era já pesada a ociosidade e desvalia de sua vida. Francisco de Moraes, confiado na discrição do moço, concedeu-lhe licença. Heitor pediu que o deixasse levar com elle o seu irmãosinho Braz Luiz, para, desde os dez annos, o ir encaminhando nos estudos conducentes á carreira da medicina. A generosa lembrança foi applaudida pelos velhos, e o pequeno agradeceu-a com lagrimas de alegria. Do pupilo ou, segundo as presumpções do vulgo de Coimbra, filho do doutor Abreu, já ninguem se lembrava quando, corridos cinco annos, lá voltou. Heitor a ninguem disse de quem fosse aquelle menino. Apresentava-o como orphão pobrinho, cuja educação elle tomára a seu cargo. O pequeno já tambem mal se recordava dos seus bemfeitores, e quando fallava de algum d'elles, chamando-lhes pae ou mãe, o filho de Francisco de Moraes recommendava-lhe que a pessoas estranhas não dissesse nada do pouco de que ainda se lembrava. Heitor entrou no primeiro anno da faculdade em artes, depois de ter sido examinado em humanidades. N'este exame, em coisas de grammatica, sciencia que então reunia muitas especies hoje distinctas, o hebreu de Villa Flôr, mais descuidada que intencionalmente, defendeu proposições que destoaram asperrimamente nas orelhas orthodoxas dos examinadores. Sem embargo, deram-n'o como apto, reservando mentalmente o espiarem-lhe os actos com a vigilancia propria de quem quer salvar uma alma em risco de perder-se. Braz Luiz entrou no collegio de S. Paulo a estudar latinidade com precoce e admiravel entendimento. Causou certo assombro nos frades que liam no collegio a ignorancia do moço em doutrina christã, interrogaram-n'o minudenciosamente sobre o viver da familia que o educara. Braz respondia que os seus bemfeitores resavam, e elle tambem resava por um livrinho de orações. Apresentaram-lhe diversos livros de piedade para que d'entre elles escolhesse o da sua resa. O pequeno sentiu um bate no coração, comprehendeu instantaneamente o perigoso d'aquelle interrogatorio, e saíu-se bem do aperto, indicando o cathecismo de fr. Bartholomeu dos Martyres. Poucos dias volvidos, Braz Luiz papagueava toda a doutrina, dando a entender que apenas lhe fôra necessario recordar o que sabia desde a primeira infancia. Esta esperteza não enganou os mestres. Os primeiros fios da teia entraram logo em urdidura; e já as inquietas consciencias dos frades não levavam as noites d'um somno. No entanto, Heitor levou a cabo, com muita applicação e extremado engenho o seu primeiro anno. Foi a ferias, levou comsigo Braz Luiz, e contou ao pae a inquirição porque passára o menino sobre o cathecismo christão. Francisco de Moraes agourou mal d'este exame, e pediu ao filho que, em vez de voltar a Coimbra, se passasse a Hollanda. Heitor Dias engenhou razões para combater os sustos do pae, e voltou ao segundo anno de medicina, levando Braz ao segundo anno de latim. Os de S. Paulo repetiram o inquerito com ardilosos rodeios. Braz, já cabalmente instruido, cortava-lhes as voltas com respostas por demasia atiladas; de modo que deu força ás suspeitas, mostrando estar apercebido para destruil-as. A este tempo sobejamente sabia o conselho da inquisição que os christãos novos de Villa Flôr, se não eram sinceros judeus, tambem não eram sinceros catholicos. Qualquer das coisas, no entender dos theologos, era egual á outra como affrontamento á verdadeira religião. Heitor Dias da Paz andava espreitado. Seus condiscipulos propriamente o provocavam a questões theologicas, das quaes elle se desembaraçava, dando-se como ignorante de subtilezas e aceitando os dogmas sem discussão. O conceito dos espiões de sua consciencia não melhorava por isso; quando muito, concediam-lhe a boa qualidade de judeu discreto. Assim correu o segundo anno da sua formatura, sem acontecimento que o precatasse contra alguma violencia. Voltou Heitor ao terceiro anno, com o coração retalhado de saudades de sua mãe que ficava morta. Levou comsigo para Coimbra o pae que se queria deixar morrer na alcova d'onde lhe levaram o cadaver da esposa. A convivencia do filho deu-lhe alma, e esperança de peito onde inclinar a cabeça na velhice. Não obstante, a saudade levou-o ás portas da morte. Aquella ida do velho a Coimbra foi desgraça para Heitor. Francisco de Moraes, em risco de vida resistira a receber os sacramentos, porque o seu morrer, sem ritual de religião alguma, queria elle que fosse um como adormecer inclinado ao respaldo da cadeira. Estrondeou o escandalo nas abobadas dos conventos. Heitor, com o rosto coberto de lagrimas, quando sua alma estava a mendigar palavras de consolação, porque via alli o pae moribundo, tinha de explicar ás cataduras severas dos frades e visinhos a turvação de seu pae, e a, por isso, involuntaria privação de sacramentos. Redarguido nas satisfações que dava, replicou talvez com descomedimento, quando já seu pae se tinha passado a Villa Flôr. Da replica, provavelmente, foi lavrada acta no gabinete do procurador fiscal do santo officio. O certo foi que, vinte dias depois, Heitor Duarte da Paz, ao entrar nos geraes da universidade, foi acercado de tres familiares, que o conduziram ao carcere da inquisição. Bemdita a mão da Providencia, que já tinha fechadas as palpebras da mãe d'aquelle moço! Braz Luiz, comquanto desde o momento em que o seu protector foi preso ficasse privado de recursos para continuar como pensionario em S. Paulo, não foi despedido. Os frades paulistanos consideravam-no optimo estudante, e alma nova para se deixar fecundar em proveito da santa religião. Além de que o orphão, esquecido do nome de seus paes, senão engeitado d'elles, não tinha culpa minima do hebraismo de quem o protegia. N'este mesmo parecer assentaram os frades dominicanos: honra lhes seja. E, portanto, Braz Luiz conservou-se no collegio a expensas da casa, sem licença do reitor[4], e por largo tempo ignorante do destino de seu bemfeitor, até que, no fim d'aquelle anno de 1704, os mestres lhe disseram que Heitor Dias da Paz se estava purificando de peccados gravissimos, para remedio dos quaes lhe acudira a vigilancia misericordiosa do santo tribunal da inquisição. Braz chorou muito, e caíu febril na cama. O chorar e o adoecer do moço mereceu compaixão dos mestres, que o consolaram com esperanças seguras de que o seu protector havia de sair limpo e absolto d'entre as mãos dos filhos de S. Domingos. Recobrou o estudante saude, a tempo que Heitor Dias da Paz era transferido á inquisição de Lisboa, por motivos mais ou menos extraordinarios, que não vingámos averiguar. O que a toda luz evidenciámos é que o hebreu esteve preso desde 10 de janeiro de 1704 até 12 de setembro de 1706. E como saiu elle do carcere? Absolto? Penitenciado? As feras das cavernas da santa casa esphacellaram-lhe as carnes? Deixaram-lhe ao menos o coração com algum sangue, aquelle coração de vinte e oito annos, para ainda se restaurar de encontro ao seio reparador d'uma esposa, que o anjo dos desamparados lhe houvesse entreluzido nas trevas da sua masmorra de seiscentos dias e seiscentas noites? IV Resposta Abrira-se em ondas de luz o céo da manhã d'aquelle dia 12 de setembro de 1706. Dobraram os sinos de S. Domingos. Apuzeram-se os folheiros cavallos das reaes cavallariças ás berlindas cosidas em oiro. As variegadas librés dos aulicos e ministros enfileiravam-se processionalmente depóz os coches do filho de D. João IV. Ia grande movimento e alvoroço nos mosteiros. Serpejavam innoveladas as multidões que desciam da cidade alta para o escampado do Rocio. O tanger dos sinos era de morte; mas o dia era de festa, festa da egreja triumphante, festa d'um auto da fé. D. Pedro II e seus filhos apearam no alpendre do templo de S. Domingos; e em meio de filas de fidalgos, de frades, de desembargadores, caminharam mesuradamente por entre as naves, até se assentarem na sua alterosa tribuna, a tudo sobranceira, salvo á tribuna dos inquisidores, que era a primaz n'aquelle espectaculo satanico da piedade. Para que tudo fosse egregio, até o prégador no auto da fé de 1706 era um dos mais doutos e famigerados interpretes dos evangelhos, sobre ser um dos mais abalisados escriptores de seu tempo. Nem mais nem menos que o reverendissimo padre mestre, geral da congregação de S. João Evangelista, chronista-mór de sua ordem, qualificador da inquisição, examinador das ordens militares, e, para em breve o dizer, sacerdote de tantas partes que, nem solicitado por D. Pedro II, aceitára o bispado de Macau. Já sabe o leitor curioso que se trata do padre Francisco de Santa Maria, author do _Ceu aberto na terra_, da _Aguia do Empireo_, da _Saphyra veneziana e Jacintho portuguez_, do _Anno historico_, de muitos volumes de sermões, todos esplendidos, todos laureados, todos christianissimos; mas nenhum tão esplendido, tão laureado, tão christão, como este que sua reverendissima vae hoje prégar no auto da fé, em presença de Suas Magestades e Altezas. Este episodio da festa explica as tumultuosas enchurradas do povo, que confluem da cidade alta á praça do Rocio: aquillo é gente que, a um tempo, fareja com delicias o fartum dos corpos que vão ser queimados, e aponta as orelhas pias para não deixar perder minima palavra da ungida oração de padre Francisco. A procissão dos condemnados é longa. São mais de cincoenta, homens e mulheres, os que vão padecer ou galés, ou desterro, ou prisão perpetua, ou garrote e fogueira, ou a fogueira em vida. D'estes ultimos ha cinco, tres homens e duas mulheres, _relaxados em carne_, como rezam as sentenças. Dois homens e as duas mulheres dão visos de já levarem obliterada a memoria da vida que deixam. Vão amparados nos braços dos officiaes do santo officio agonisando a espaços ancias soluçantes que lhes ressumbram á fronte um suor glacial. Entre elles, porém, caminha firme, direito, altivo, com a sua tocha de cêra verde na mão, e a samarra e a carocha pintalgadas de demonios e fogueiras, um moço de vinte e oito annos, gentil de sua pessoa, sem embargo da lividez cadaverosa de dois annos de carcere. É Heitor Dias da Paz. O promotor da inquisição subiu á sua tribuna. Ao fim de quatro horas de leitura de cincoenta e tantas sentenças, indigitou o hebreu de Villa-Flôr. Dois esbirros com o alcaide do santo officio ladearam o moço, e conduziram-n'o a ajoelhar-se em frente da mesa sobposta á tribuna. E o promotor leu o seguinte: «Accordam os inquisidores, ordinario e deputados da santa inquisição[5] que, vistos estes autos, culpas, confissões e declarações de Heitor dias da Paz, christão novo, estudante de medicina, filho de Francisco Moraes Taveira, mercador, natural de Villa-Flôr, reu preso que presente está, porque se mostra que sendo christão baptisado, e como tal obrigado a ter e crer tudo o que tem, crê, e ensina a santa madre egreja de Roma, elle o fez pelo contrario vivendo apartado da nossa fé catholica, tendo crença na lei de Moisés, e fazendo em observancia da dita lei jejuns judaicos, estando nos dias d'elles sem comer nem beber, senão á noite depois de sair a estrella, ceando então coisas que não eram de carne, e deixando de comer a de porco, lebre, coelho, gordura e peixe sem escama, e guardando os sabbados de trabalho, vestindo n'elles camizas lavadas, e os melhores vestidos, começando a guarda d'elles da sexta feira á tarde. «Pelas quaes culpas, sendo o reu preso nos carceres do santo officio, e com caridade admoestado as quizesse confessar para descargo de sua consciencia e bom despacho da sua causa, disse que o que tinha que dizer e declarar (sem o ter por culpa, antes por bom e necessario á sua salvação) era crêr firmemente em Adonai, Deus de Abraham, Isac e Jacob, assim e da maneira que o manda a lei de Moisés. «E vendo-se na mesa do santo officio a cega e obstinada determinação do reu, lhe foi dito que considerasse bem a resolução que tomava em se não querer apartar da crença da lei que seguia, e como ia mal encaminhado em querer persistir na lei de Moisés, por que já n'ella não havia nem podia haver salvação, por ser acabada pela vinda de Christo, Jesus, senhor nosso e verdadeiro. E foi de novo admoestado tornasse sobre si; e, conhecendo seus erros, se apartasse d'elles, e se convertesse á fé catholica que tem, crê e ensina a santa madre egreja de Roma, cujo filho elle era e professára no baptismo, e confessasse inteiramente suas culpas, pois isso era o que lhe convinha para salvação de sua alma, e para se poder usar com elle da misericordia que a santa egreja costuma conceder aos bons e verdadeiros confitentes. «E por tornar a dizer e affirmar com animo endurecido e obstinado, não só n'aquella sessão, mas em outras muitas que com elle se tiveram, afim de sua reducção, que não se queria apartar da crença da lei de Moisés, que seguia, antes estava prompto para dar a vida por ella: «Veiu o promotor fiscal do santo officio com libello criminal e accusatorio contra elle, que lhe foi recebido; e se lhe disse que pois perseverava ainda na crença de seus erros com obstinação e contumacia, estivesse com seu procurador e lhe désse conta do estado de sua causa, e lhe pedisse o aconselhasse no que mais lhe convinha, e por elle respondesse ao libello da justiça, para que, guardados os termos de direito, se podesse continuar sua causa. «Estando com o dito procurador, contestou o libello pela materia de suas declarações, e não quiz usar de defesa, pelo que foi lançado da com que podia vir, e ratificadas as testemunhas da justiça, se lhe fez publicação de seus depoimentos, conforme ao estylo do santo officio, a que não veiu com contraditas, pelo que foi lançado d'ellas. E estando outra vez com seu procurador para lhe formar os interrogatorios que quizesse, para serem reperguntadas as testemunhas que tinha contra si não veiu com ellas, dizendo que era desnecessaria diligencia, pois elle estava declarado e affirmativo profitente da lei de Moisés; e, como a não negava, não havia para que impugnar os depoimentos das testemunhas. E n'este acto escreveu um papel que declarou ser o assento que tomava em sua causa, e começava pelas palavras seguintes:--_Perditio tua, Israel, tantu modo in me auxilium tuum, inquit Dominus_. «E logo continuava dizendo que elle reu não só não deixava a crença da lei de Moisés; mas se declarava crente e professor d'ella pelo theor dos termos dos autos, e queria ficar em juizo com a crença da lei de Moisés, na fórma seguinte, declarando: Que cria em um só Deus verdadeiro, e que este era o de Israel, o Deus dos patriarchas e prophetas, que fez o céo e a terra, e fez pacto com Abrahão, e deu lei a Moisés, e poz por primeiro preceito d'ella: _Non habebis alios Deos preter me_. E, como tal, tinha por damnada crença o christianismo, e por tal a excluia, abjurava e renunciava, e ainda qualquer signal e caracter d'ella. E assim elle reu, sem mais processo, queria ser julgado por apartado da fé e por passado á crença da lei de Moisés, mostrando que a differença que havia entre uma e outra coisa era adorarem os judeus sómente a Deus verdadeiro, e adorarem os catholicos o demonio; dizendo tambem e accrescentando ás ditas declarações algumas subtilezas e subterfugios cavilosos, com os quaes se colhia ser o reu verdadeiro judeu e professor da lei de Moisés. «E sendo o reu chamado á mesa do santo officio, e n'ella perguntado se o dito papel em que se continham as ditas declarações era por elle escripto e assignado, e, se o que n'elle se continha era o que elle reu entendia e cria, e por elle queria se estivesse em juizo: respondeu que sim, e por aquellas declarações queria ser julgado; e sendo, advertido que fizesse genuflexão, e reverencia á imagem de Jesus Christo crucificado, que se lhe mostrou, e o inquisidor que o processava repetidas vezes lhe apontou, nunca o reu quiz ajoelhar nem olhar para a sagrada imagem, mostrando grande rebeldia e dureza de animo; e sendo de outras vezes mandado jurar pelos Santos Evangelhos nunca o quiz fazer, nem assignou mais papel algum onde visse escriptas as palavras _santa inquisição_. «E pelo reu foi dito que não queria mais procurador nem mais interrogatorios; por serem desnecessarias mais diligencias, visto que elle já de si dissera ainda mais do que as testemunhas contra si tinham deposto. «E continuando-se o processo da sua causa, se procurou em todo o discurso d'ella mostrar ao reu o caminho da sua salvação e engano dos seus erros, persuadindo-o á obrigação que tinha pelo baptismo a ter e crer na fé catholica, captivando o entendimento em obsequio da mesma fé, e dar credito nas materias de consciencia e religião ás pessoas que lhe foram dadas para o encaminharem; porque ainda que elle reu tinha algumas letras, não havia professado as divinas, e como tal não podia explicar as escripturas sagradas, nem entendel-as como entendiam os religiosos letrados com quem havia estado, fiando elle mais do seu proprio entendimento que dos outros, sendo elle n'esta materia ignorante e os ditos religiosos letrados, de quem se havia de haver por convencido, pois não tinha fundamento algum para permanecer na crença da lei de Moisés, que seguia, e por tornar a dizer que se reportava ás protestações de sua crença contheudas nos papeis que havia escripto.[6] «E lhe foi dito que ainda estava em tempo de melhorar sua causa, se sem embargo da obstinação de que até alli tinha usado, desistisse d'ella, e, arrependido de seus erros, os confessasse com taes mostras e signaes de arrependimento que se podesse entender que elle reu, de puro e verdadeiro coração, se reduzia á nossa santa fé catholica, de que tão cega e obstinadamente vivia apartado, para se poder usar com elle da misericordia que a santa madre egreja costuma conceder aos bons e verdadeiros confitentes; que de contrario se seguia infallivelmente o risco de ver sua pessoa no mais perigoso e miseravel estado que se podia imaginar, e o que mais era para sentir, a certeza de condemnar sua alma ás irremissiveis e eternas penas do inferno. «E pelo reu foi dito que das sessões, que lhe foram feitas na inquisição e dos conselhos que lhe deram as pessoas que por ordem da mesma inquisição haviam estado com elle reu, afim de o reduzirem á crença dos christãos, tinha entendido o perigoso estado de sua causa, e o risco a que estava exposta sua vida; porém que, sem embargo da perda d'esta, não podia largar a crença que seguia, emquanto lhe não propunham razões mais concludentes para se persuadir e apartar-se da lei de Moisés. «E visto como o reu se não quiz haver por convencido de seus erros, havendo-se dado solução verdadeira ás duvidas que propunha, sendo por tão repetidas vezes admoestado na mesa do santo officio com summa caridade, paciencia e brandura; e, sendo visto seu processo na mesa do santo officio, se assentou que o reu pela prova da justiça e sua mesma confissão e declaração estava convencido no crime de heresia e apostasia, e como herege apostata de nossa santa fé catholica convicto, confesso affirmativo e profitente da lei de Moisés, pertinaz e impenitente foi julgado e pronunciado, e finalmente citado para ouvir sua sentença, pela qual estava relaxado á justiça secular. O que tudo visto e bem examinado: «_Christi Jesu nomine invocato._ Julgam, pronunciam e declaram o reu Heitor Dias da Paz por convicto, confesso variante, e affirmativo profitente da lei de Moisés, pertinaz e impenitente, e que incorreu em sentença de excommunhão maior, em confiscação dos seus bens para o fisco e camara real, e nas mais penas em direito contra similhantes estabelecidas, e como herege apostata de nossa santa fé catholica, convicto, confesso affirmativo, publico profitente da lei de Moisés, pertinaz e impenitente o condemnam e relaxam á justiça secular, a quem pedem com muita instancia se haja com elle benigna e piedosamente, e não proceda a pena de morte e effusão de sangue.» * * * * * Heitor Dias da Paz, lida aquella ultima clausula da sentença, fitou penetrantemente o semblante do promotor e riu-se. Os esbirros mandaram-no levantar-se, e beijar um dos doze missaes que decoravam a ampla mesa sotoposta ao estandarte de S. Domingos. O hebreu levantou a fronte com arrogante desprezo, e disse em voz que se fez ouvir na tribuna real: --Não quero! Fez-se um borborinho de piedosa ira na egreja. Esta agitação foi de subito applacada pelo apparecimento de fr. Francisco de Santa Maria no pulpito. Reinava já sagrado silencio, quando o geral dos loyos, e venerado author do _Anno historico_, trovejou estas palavras do texto: _De malo ad malum eggressi sant, et me non cognoverunt, dicit Dominus_[7]. V A piedosa eloquencia do frade O leitor, que veio tarde a este mundo para poder gosar o espectaculo de um auto da fé, póde ser que não faça cabal juizo da peça chamada o discurso da festa, e entenda que vem aqui opportuno o ensejo de se lhe dar alguma noticia do sermão de 1706, por ser elle do ascetico e sapientissimo auctor da _Aguia do Empyreo_. Póde ser que ainda a muitos curiosos d'estas christãs leituras o sermão de fr. Francisco de Santa Maria seja desconhecido, por que é já rarissimo. A meu vêr, a maior parte da edição arrebataram-n'a da terra os anjos, como coisa do céo! Dos exemplares que escaparam tenho eu um, que é a minha vaidade de bibliomano e a minha edificação de devoto. O prégador, no exordio, propõe-se demonstrar tres pontos: primeiro, que o Messias veio; segundo, que o Messias é homem e juntamente Deus; terceiro, que o Messias, homem e Deus, é Jesus de Nazareth, crucificado por aquelles, ou pelos antepassados dos judeus que estão presentes. Depois do que, implora a intercessão da sacratissima Virgem, e começa. Eis-aqui um lanço que nos move a favor do geral da congregação dos Evangelistas: «Comvosco fallo, ó infelizes filhos de Israel, e tomo para testemunha a Deus todo poderoso, que não é o meu intento insultar-vos, ou affrontar-vos em coisa alguma, nem tenho ou levo outro fim n'esta acção, mais que a maior gloria de Deus, a defensa da verdade, o triumpho da fé, o remedio da vossa cegueira, a salvação da vossa alma; e, se acaso com a força do dizer, proferir alguma palavra que vos offenda, desde aqui vos peço perdão d'ella pelas entranhas da misericordia do verdadeiro e altissimo Deus.» Heitor Dias da Paz levantou de sobre as pinturas diabolicas do san-benito os olhos serenos ao rosto do padre Francisco de Santa Maria. Esteve-se quêdo alguns segundos n'aquella contemplação, e sorriu-se, a tempo que o orador, compungido em fervores de caridade, balbuciava aquellas expressões, que o leitor pio leu commovido. Varias pessoas honestas, que viram o sorriso do hebreu, disseram umas ás outras: --Veremos á tardinha se o marrano se ri na fogueira... O orador, no emtanto, ia proseguindo na demonstração dos seus tres pontos, que foi completissima, sem deixar brecha á mais especiosa contestação. Heitor, a cada conclusão triumphante do padre, sorria; e, por pouco não desfechava uma casquinada provavelmente sandia, quando o orador, repulsando a pecha de idolatras com que os hebreus malsinam os catholicos, argumentou d'esta sorte: «E como é possivel que, sendo nós idolatras ha tantos seculos, e sendo vós ha tantos seculos cultores do verdadeiro Deus; sobre vós ha tantos seculos que chovam os castigos, e sobre nós os favores? Sobre vós os castigos! Bem o vêdes, pois vos vêdes ha tantos seculos sem patria, sem honra, sem rei, sem patriarchas, sem prophetas, sem capitães, sem juizes, sem sacerdotes, sem templo, sem altar, sem sacrificio, sem liberdade. Nós os christãos tudo isto temos. Pois que? favorece Deus tanto aos idolatras, e castiga tão rigorosamente aos fieis?» O impulso de riso do judeu, a meu vêr, procedeu da respeitavel ignorancia do padre quanto ás regalias de que os sectarios de Mafoma se estavam saboreando em porção do mundo sublunar muito mais larga e comprida que a porção alumiada pelo christianismo. Quereria, talvez, o israelita, sem embargo de se lhe estarem alcatroando as achas da fogueira, perguntar ao loyo se os mahometanos, apezar da bruteza e crassa estupidez de sua fé, eram menos felizes terrealmente fallando que os nazarenos. Ora, como o goso de questionar lhe seria amordaçado, se elle abrisse a bocca indignada, o judeu desafogou-se n'aquelle rir parvamente heretico. O caso, porém, não fez levemente titubar o impassivel prégador. Ia discorrendo o padre Francisco pelas provas dos milagres; e veio ao ponto de asseverar que Deus não obrara milagre algum em confirmação da lei de Moysés. D'isto a prova mais insinuante que o douto prégador desfechou dos labios inspirados está no seguinte argumento: «Todos, ou quasi todos os annos vão muitos de vós ao patibulo, e sendo diante dos nossos olhos pasto á voracidade do fogo, nunca se viu em algum de vós algum prodigio. Que é isto? Assim deixa Deus a verdade escurecida e humilhada?... Agora já o fogo vos não tem respeito? Já a chamma lavra em vós como em madeira secca?» Heitor Dias não sorriu então: caiu-lhe mortalmente angustiado o rosto para sobre o peito. As palavras do sacerdote de Christo levaram-lhe ás carnes o calefrio horrendo das dôres que o aguardavam para o fim d'aquelle dia: como que sentiu as linguas de fogo a tocarem-lhe o peito, e a suffocação da fumarada da fogueira. Demonstrados os tres pontos da oração com quanta lucidez se esperava de tão conspicuo sujeito, o author do _Céo aberto na terra_ apostrophou primeiro os confessos, depois os relapsos, e por derradeiro o unico profitente que era Heitor. Aos confessos dava os emboras, e pedia-lhes pelas entranhas de Nosso Senhor que perseverassem. Aos relapsos disse: «É verdade que já não podeis livrar a vida temporal; mas é certo que podeis assegurar a eterna... Morrer é natural: morrer affrontosa e violentamente é desgraça; mas sobre tudo isto, salvar a alma, é a maior ventura. Oh, que felizes sois, digo outra vez, se sabeis emendar com os acertos da morte os desconcertos da vida, e se vos dispondes com verdadeira fé e verdadeira contrição para a ultima hora!» Que bom homem aquelle! O garrote e a fogueira eram indispensaveis á caridade e misericordia do Senhor; mas que montava isso? _Morrer é natureza_; morrer em colchão flacido ou em cama de brazas vivas é uma e a mesma coisa: é natureza; mas o importante alli para o caso já não era o ir-se um homem de este mundo ao outro por effeito d'um feroz homicidio: a questão era segurar a vida eternal, e essa estava arranjada, logo que os relapsos, á ultima hora, se entendessem com Deus uno e trino. Em seguida, padre Francisco de Santa Maria poz os olhos sobre o confitente Heitor Dias da Paz, e exclamou, tanto ou quanto commovido: «E vós, que n'este tremendo cadafalso sois o réo do maior delicto, olhae que em vós n'esse infeliz estado se verifica com propriedade lastimosa o que dizem as palavras do meu thema: _De malo ad malum egressi sunt_. Saireis de seres condemnado no juizo dos homens, e entrareis a ser condemnado no juizo de Deus. Saireis da morte temporal e entrareis na eterna. Saireis de um fogo que brevemente acaba, e entrareis em outro fogo, que para sempre dura. Oh filho da minha alma, é possivel que assim vos deixeis guiar só da vossa imaginação, e vos ateis tão fortemente á vossa teima em um negocio da tanta importancia? Tão pouco vae em salvar ou condemnar para sempre? Quero crer de vós que em qualquer negocio d'esta vida não havieis de obrar sem conselho, sem reflexão, sem madureza; e em um negocio, em que vae a vida eterna, assim vos resolveis, assim vos precipitaes? Nos pontos da medicina (que estudaveis) é sem duvida que havieis de estar pelo que vos diziam vossos mestres. Pois, se nos pontos de medicina, vos guiaveis pelo que vos diziam os doutores medicos, nos pontos da fé porque vos não guiaes pelos doutores theologos, que tantas vezes e com tanto zelo e espirito se empenharam em vos reduzir ao caminho da verdade? «Dizei-me de que mestres aprendestes essa lei que seguis já tão antiquada e esquecida no mundo? Sem duvida de dois homens ignorantes, que talvez nunca abriram a escriptura, e talvez não saibam a lingua latina, e muito menos a hebrea. Não o tomeis por injuria--ajuntou o orador, certamente improvisando, como visse um gesto de repugnancia desdenhosa e despeitosa no aspecto do confitente--não o tomeis por injuria...; porque, fundado nas vossas mesmas escripturas, affirmo que na vossa nação falta ha muitos seculos, por justo castigo de Deus, o dom da sabedoria, e dominam as trevas da ignorancia.»[8] Estende-se diffusamente o padre, cathequisando o judeu, com a mira posta em resgatar-lhe a alma, que o corpo esse já não ha eloquencia nem perdão divino ou humano que possa salval-o do fogo. Finalmente, remata a apostrophe n'estas branduras: «Ora filho do meu coração, _convertere, convertere ad Dominum Deum tuum_. Convertei-vos para o vosso Deus, convertei-vos para o vosso Senhor, que, abertos os braços, e com o coração aberto, vos espera para vos metter n'elle como amigo, se do coração vos converteis a elle. Dae este gosto ao céo, dae este gosto á terra, dae este gosto aos coros angelicos e dae este gosto aos espiritos bem aventurados, dae este gosto a todo este numerosissimo e luzidissimo auditorio, que todo deseja com muitas veras a vossa vida e a vossa salvação. Na vossa mão tendes a vida e a morte, a salvação e a condemnação: vêde o que escolheis. E, se todavia persistis na vossa teima, e na vossa contumacia, da parte de Deus vos digo, que dentro em breve tempo apparecereis diante do mesmo Deus em juizo, do qual, sem desculpa do vosso erro, saireis condemnado para o fogo eterno.» E com pouco mais terminou o monumental discurso, de que ficou muitissimo agradado o senhor rei D. Pedro II, e seus filhos; e bem assim o eminentissimo senhor cardeal D. Miguel Angelo Conti, arcebispo de Garzo, e nuncio apostolico n'estes reinos, ao qual o padre Francisco dedicou o seu sermão impresso. D. Pedro II não mais saboreou outro sermão identico; porque, tres mezes e sete dias depois d'aquella explendida ovação da santa egreja, morreu. O padre Francisco de Santa Maria, comquanto só passados sete annos fosse coroar-se ao capitolio dos anjos, como piamente crêmos que foi, tambem não voltou a regalar o publico nos autos da fé. * * * * * Cheguemo-nos ao assumpto. Os relaxados á justiça secular foram conduzidos a uma das salas da santa casa, em que estava junta a relação para os sentenciar. A sentença de Heitor Dias da Paz, e dos outros já estava lavrada, embora fingissem lavral-a depois de um banal interrogatorio. Com ella na mão, perguntou o presidente ao judeu, ajoelhado:[9] --Sois o relaxado Heitor Dias da Paz? --Sou. --D'onde sois? --De Villa Flor. --Credes--tornou o presidente--na Santissima Trindade, Padre, Filho, Espirito Santo, tres pessoas e um só Deus verdadeiro? --Não creio. E levantou-se sem que o presidente lh'o ordenasse. O escrivão, que estivera autoando a sentença, ergueu-se e disse ao condemnado: --Ajoelhe para ouvir ler a sentença. --Ouvil-a-hei em pé--respondeu Heitor. --Leia--disse o presidente ao escrivão. O escrivão leu o seguinte: «Acordam em relação, etc. Vista a sentença junta dos inquisidores, ordinario, e deputados da inquisição, e como por ella se mostra o réo preso, Heitor Dias da Paz ser hereje apostata da nossa santa fé catholica convencido no crime de judaismo, e por tal relaxado á justiça secular, e sendo perguntado n'este senado persistir no seu erro, e declarar que não cria em nossa santa fé catholica, senão na lei de Moisés; o que assim visto, e disposição de direito em tal caso, condemnam ao reu que com baraço e pregão pelas ruas publicas e costumadas seja levado á ribeira d'esta cidade, e ahi seja levantado em um poste alto, e queimado vivo, e feito por fogo em pó, de maneira que nunca de seu corpo e sepultura possa haver memoria; e o condemnam outrosim em perdimento dos seus bens para o fisco e camara real, posto que ascendentes ou descendentes tenha, os quaes declaram por incapazes, inhabeis, e infames na fórma de direito e ordenação. E pague as custas d'estes autos. Lisboa, 12 de setembro de 1706.» A procissão dos condemnados saiu do pateo da santa casa, caminho da Ribeira. As duas judias relaxadas em carne, dizia-se que já iam mortas. Os dois hebreus, que tinham assistido ás leituras de suas sentenças em anciados gritos, iam desacordados nos braços dos quadrilheiros do santo officio. Heitor caminhava sem amparo, placidamente, olhando a um lado e ao outro as damas que exornavam as janellas do transito. Ao embocar o prestito á rua da Padaria, um ancião mal coberto de andrajos, com tregeitos de louco enfurecido, rompeu a mó compacta do povo, e os soldados que ladeavam os condemnados. Heitor Dias reparou n'aquelle velho que os arcabuzeiros afastavam a repellões. Fitou-o com horrivel estremecimento; ia a proferir uma palavra, e suffocou-a. Debalde. O grito do coração já tinha ecoado no seio do ancião, que exclamou: --Adeus, meu filho! Adeus, meu filho, eu vou antes de ti avisar tua mãe que por instantes estarás comnosco no seio de Abrahão! E, ao proferir a ultima palavra, sorveu de um vidro um trago de peçonha, ao qual se seguiram medonhas convulsões. --Abençoada seja a sua coragem, meu pae!--exclamou Heitor--Até logo, até á eternidade! As agonias do velho terminaram dentro em quinze minutos. As do filho principiavam pouco depois, e não foram mais longas. Antes de sentir o queimar das lavaredas nas entranhas, expirára afogado no fumo. E o sol d'aquelle dia era ainda formoso ao intardecer. As auras do mar bafejavam tepidas. El-rei passeava nas barandas do paço da Ribeira, aspirando o aroma dos laranjaes; e os frades de S. Domingos resavam vesperas. VI Braz Luiz N'este tempo, Braz Luiz, o collegial de S. Paulo, ia nos quatorze annos. A noticia da desastrosa morte dos seus bemfeitores, revelada pelos condiscipulos, pungiu-o, tirou-lhe d'alma sinceras lagrimas; porém, n'aquellas edades a sensibilidade é para pouco; as saudades das pessoas queridas que morreram não se prendem á previsão angustiosa das desgraças porvindouras. O filho de Antonio de Sá Mourão estava de todo esquecido do doutor Abreu, e não longe de esquecer-se de Heitor Dias da Paz. Os mestres do collegio, cuja dilecção pelo engenho do moço se manifestava no affago com que o divertiam de pensar no hebreu queimado e no outro que se dera a si desesperada morte, receosos de que o santo officio fosse ainda contender com o estudante por suppor que elle fosse irmão de Heitor, zelosamente informaram os inquisidores dos piedosos sentimentos de Braz Luiz, e da docilidade e devoção com que elle se entregava aos exercicios espirituaes. O santo officio, inteirado d'isto, deixou em paz e por conta da religiosidade dos paulistas o menino. Como elle se alimentava e educava a expensas do collegio, o parecer dos mestres era encaminhal-o para frade paulistano. Este intento, quando o moço tinha quinze annos, foi contraditado pela companhia de Jesus, que enviára delegados a recensear nas universidades e collegios de Evora e Coimbra estudantes esperançosos, garfos de boa seiva, que se fossem enxertando nos troncos envelhecidos, para que alguma hora não soffresse quebra o predominio intellectual dos filhos de Santo Ignacio. Os paulistanos offenderam-se do sequestro que os jesuitas arbitrariamente fizeram nos seus mais grados alumnos; e, por vindicta, entraram a despersuadir o moço de aceitar a roupeta. Facilmente o moveram á repugnancia da vida sacerdotal, e assim se privaram tambem de o conquistarem para si. A companhia de Jesus cathequisava, mas não violentava. Tamsómente as vocações liberrimas e muito espontaneas lhe serviam. Logo pois que Braz Luiz manifestou indisposição para a vida sacerdotal, abriram mão d'elle os jesuitas, offerecendo-lhe, se necessarios fossem, recursos com que podesse seguir a carreira para onde pendessem os seus talentos. Quer generosidade, quer astucia com que os padres ardilosamente grangeavam a estima quasi universal, o certo é que Braz Luiz teria a protecção d'elles, se não tivesse a dos paulistas. Deram-lhe a opção de modo de vida. Braz escolheu a medicina. Aos quinze annos matriculou-se no primeiro do curso depois de ter estudado artes, e logo deu de si tão lisongeira conta, que se estremou entre os condiscipulos, ganhando as distincções das escolas, a estima dos mestres, e especialmente de D. Manuel dos Reis e Sousa, a quem o discipulo dos seus futuros escriptos se mostrará agradecido. Ao correr do terceiro anno, a indole do academico passou por inesperada revolução. Sem faltar ás obrigações escolares, deu-se á tunantaria dos estudantes malcomportados. Fez-se arruador nocturno, bulhento, femieiro e pimpão. Os paulistas ameaçaram-no de o deixarem entregue aos seus desatinos. Braz Luiz respondia ás ameaças dando optimas lições nas aulas, e ganhando os louvores dos lentes, sem desistir de tomar o primeiro posto nas algazarras e assuadas nocturnas. Em uma d'essas escaramuças á cidade baixa, travou-se uma refesta ensanguentada entre a gente miuda de Coimbra e os estudantes. Braz, depois de muitas proezas, caíu ferido de uma choupada, que lhe vasou o olho direito. Alguns condiscipulos levaram-no em braços para sua casa, e lhe assistiram affectuosamente á cura. Salvaram-no da morte: mas não poderam salvar-lhe o olho. Depois de dois mezes de cama, o estudante recebeu a má nova de ter perdido o amparo dos frades. Accudiram logo os condiscipulos fintando-se para supprirem a esmola do collegio, Braz proseguiu na formatura, e não mais foi visto nas sortidas bellicosas, como quem já não tinha mais que um olho para sacrificar. Os paulistanos, contentes da reforma do seu protegido, voltaram a soccorrel-o; porém, o pundonoroso academico, reunindo os seus condiscipulos favorecedores, expoz a reluctancia com que aceitaria a esmola dos frades, e a satisfação com que continuaria a recebel-a de estudantes. Applaudiram-lhe o brio, e animaram-no a regeitar o pão vilipendioso dos paulistas. Em 1714, tomou Braz Luiz d'Abreu gráo de licenciado em medicina. A razão que elle teve para assignar-se _Abreu_ funda n'uma casualidade de que resultou enganar-se Barbosa na sua _Bibliotheca Lusitana_, dando Braz Luiz como filho de Francisco Luiz d'Abreu e Francisca Rodrigues d'Oliveira. Foi o caso, que folheando elle o abcedario por onde começára a soletrar, muito na primeira puericia, em companhia do seu primeiro protector, encontrou o seu nome assim posto no alto da primeira pagina do alphabeto: _Braz Luiz de Abreu_. Assim o escrevêra a esposa do doutor, n'uma d'aquellas horas de ternura, em que ella encarava no menino como em filho propriamente seu. Ahi está onde ao medico se deparou um apellido, que elle não sabia d'onde lhe havia de vir, por mais que discorresse sobre o modo de rastrear seu nascimento. N'este investigavel mysterio o que a si mais provavel se figurava era que seu pae devia de ser um homem apellidado _Abreu_; mas como esquadrinhar-lhe a naturalidade, as aventuras da vida ou da morte? Em Coimbra não havia para que indagal-o; porque elle não tinha sequer vaga lembrança de ter estado em Coimbra nos primeiros annos. Todas as suas lembranças esboçavam-se dos sete annos para áquem. Terra que não fosse Coimbra só escassamente se recordava de Villa Flor; e imagens de pessoas, duas sómente lhe viviam meio delidas na lembrança: eram Francisco de Moraes e Heitor Dias da Paz. Um condiscipulo de Mirandella encarregou-se de averiguar-lhe algumas noticias de seu nascimento em Villa Flor. As tradições encontradas alli eram que uma creança apparecêra em casa do hebreu Moraes, ao tempo que seu filho voltou da Hollanda. Parentes ainda vivos d'aquelles israelitas não sabiam dizer nada a tal respeito. O que o condiscipulo informador accrescentou foi que dos muitos haveres do hebreu suicidado não havia palmo de terra que a inquisição não confiscasse. Habilitado para exercitar a medicina, comquanto lhe sobrassem creditos de grande estudante, faltavam-lhe doentes. Á mingua de recursos, pensou em estabelecer-se n'alguma terra desprovida de medicos. Um seu contemporaneo da faculdade juridica convidou-o para Vizeu, onde o encontrámos curando com muita voga e felicidade em 1715 até 1718[10]. No fim d'este anno, como a sua fama o atraia e a cobiça o impulsava para terras de mais gloria e lucros, passou a residir em Lisboa. Aqui e n'este mesmo anno começou elle a olhar tristemente para a deformidade que lhe deixára no rosto a choupada, e achou-se não só feio, se não repugnante a olhos de damas, que se engulhavam de lhe verem a orbita direita vasia e coberta pela palpebra amortecida. Cogitou o medico em arranjar um olho artificial, com que encher a orbita nauseenta e dar contractibilidade apparente á palpebra. Investigou a sciencia e encontrou que os gregos e egypcios fabricavam olhos artificiaes, formando-os de uma casquinha metalica, pintada ou esmaltada, similhante a uma metade de ovo pequeno, dividido longitudinalmente. Este primitivo e pouco engenhoso olho não agradava ao nosso joven medico. Indagou no estrangeiro, e de Hollanda o informaram que estava em Amsterdam um hebreu inventor d'olhos artificiaes de esmalte, com a qual materia substituira vantajosamente os metalicos. Entendeu-se Braz Luiz de Abreu com o inventor hollandez, e ajustou na orbita um olho, menos mal imitado, mediante o qual a palpebra voltou á sua elasticidade. Este olho de esmalte era immovel: bastava encarar na cara do medico para logo se conhecer que a orbita direita estava envidraçada. D'ahi seguiu-se chamarem-lhe o _doutor Olho de Vidro_, alcunha que lhe ficou até á morte, e longos annos depois serviu de celebrar-lhe a memoria, a magnitude dos talentos medicos e os seus não menores infortunios. Como quer que fosse, a physionomia do doutor Braz Luiz, não obstante a pouca illusão que embahia o falso olho, melhorou bastantemente. O restante do carão, como diziam os coevos d'elle, era senão gentil, mui symetricamente ageitado. Vestia com apontado primor, e cuidava com esmero das melenas negras e lustrosas, que não polvilhava. A razão d'este proceder, tão inverso dos costumes do seu tempo, é elle quem propriamente a escreve d'este modo: «... Emquanto aos polvilhos, tão longe estão de parecerem ornato na cabeça do medico, que antes são presagios lethaes da vida do doente. Porque se a egreja com pós na cabeça nos adverte da morte que vem, como o medico com pós no cabello nos ha de recuperar a vida que se vae? Eu, quanto a mim, antes creio que, os pós são significativos da morte, emquanto a egreja nol-o diz, do que hierogliphicos de saude respeitando ao medico que os traz. Os verdadeiros ministros d'Apollo só usam de polvilhos cephalicos na região animal; de polvilhos cordeaes na região vital; e de polvilhos estomachicos na região natural. Isto é uso modesto; o mais, estava para dizer que era abuso ridiculo.»[11] Não curemos de ponderar a justiça das razões que o doutor allega contra os polvilhos. Imaginando que os collegas de Braz Luiz se riram muito d'ellas, faço justiça aos contemporaneos do auctor do _Portugal medico_. Tambem desadorava os perfumes o nosso doutor, n'aquelle tempo em que o peralta de bom cunho recendia como caçoula de camarim de odalisca. Outra razão efficientissima do seu enojo de perfumes: «Sou de parecer que (o medico) evite os cheiros, e que se negue a todo genero de perfumes, porque ainda que Hyppocrates no seu tempo permittia os que não eram suspeitos aos achaques, comtudo n'este seculo mais escrupuloso por mais prevertido, nenhum genero de perfumes cheira bem... Deixemos esses esmeros para os que vivem á moda, e não excedamos a moda, que nem porque um medico cheira bem, cura melhor.»[12] Em adornos capillares aceitava o doutor meramente os naturaes: usava simplesmente a sua opulenta grenha, nua de artificios e emprestimos; porque dizia elle: «Seja tambem modesto o medico nos adornos da cabeça, tão introduzidos n'este miseravel seculo, que não ha já encontrar solicitador sem cabelleira nem belleguim sem perruca.» E acrescentava: «Quantos desprezam e cortam hoje o honesto cabello de christãos e collocam sobre a cabeça as melenas de um herege!»[13] O vivo desejo que Braz Luiz de Abreu alimentava de reformar as demasias luxuosas e derisorias dos medicos, tornou-se em justa indignação, e a indignação porventura fel-o poeta como ao satyrico latino. Um dos mais intelligiveis sonetos que elle escreveu em tom apostolico salvou-se do olvidio, graças ao acertado cabimento que lhe elle deu n'um seu livro de medicina. Resa d'esta sorte: Oh, medico! se és medico com effeito Procura mundo[14] ser, mas não mundano; Que de Apollo o caracter soberano Não anima nos vicios o respeito. Bebe o cão, bebe tu; mas com tal geito Que o crocodilo do rumor profano Quando vás a beber do Nilo humano Não possa devorar teu bom conceito. Em teu ornato a modestia nunca falte, Um pouco mais ao grave do que ao lindo; Que assim obra quem douto assim discorre. E porque a tua fama mais se exalte, Visita a modo de quem vae fugindo, Como do Nilo o cão, que bebe e corre.[15] O desgracioso da musa do Olho de Vidro está delatando que o poeta, se não era menos de pedestre, poetava violentando sua indole. O natural d'elle era outro. A meu juizo, tanta prudencia e bom conselho no mais verde da mocidade, argue um aliás louvavel cuidado de se fazer bemquisto aos homens graves do seu tempo. É, de mais d'isso, muito provavel que o medico se temesse de que os rafeiros do santo officio lhe andassem farejando o sangue; e elle, a contas com a consciencia propria, duvidava da pureza de seus incognitos paes, ao lembrar-se do ritho hebraico dos bemfeitores de Villa Flor. Se os elle não conhecia, quem lhe asseverava que a inquisição os não conhecesse? Se lhe pedissem a certidão do baptismo, onde iria elle esquadrinhal-a? VII Exemplo de honestidade aos medicos Quer fosse sisudeza, quer hypocrisia, Braz Luiz de Abreu, que então contava vinte e cinco annos, assim que o amor lhe abriu o peito com seus magicos dedos, sacudiu a canga do artificio e mostrou-se homem genuino. Deu elle tento de que os seus collegas todos eram familiares do santo officio, e todavia amavam a rosto descoberto; e, nas casas onde entravam, contra a prescripção do soneto, não procediam exactamente Como do Nilo o cão, que bebe e corre. Ora, como elle, de espaço, fosse vendo que a inquisição vivia despreoccupada d'aquelles cães do Tejo que bebiam muito devagar, bandeou-se com elles, e atirou o coração ás tempestades dos vinte e cinco annos, resalvadas as apparencias. A primeira dama que se quiz senhorear da alma do seu medico, era uma fidalga quarentona, ainda vistosa, affeita a ser beijada na face por bons galans que se ajoelharam diante d'ella até aos trinta annos, e se purificaram da idolatria, desde que as flores do rosto, desbotadas pelo caio, e os cabellos ressequidos pelo ferro se foram despegando d'aquella cabeça rica de formosas tradições. Estava literalmente calva. D. Claudia da Silveira, logo que se julgou encarada voluptuariamente pelo olho unico do seu medico, levou a mão ao peito e sentiu-se arder. Desde essa hora os achaques eram tantos e tamanhos que Braz Luiz escassamente se podia desobrigar de acudir-lhe tres vezes por dia com agua de Inglaterra, com pedra cordeal de Gaspar Antonio, ou com agua de lingua de vacca, antidotos de sua predilecção contra os estherismos e enchaquecas da senhora D. Claudia da Silveira. A dama, cada vez mais enfermissa, tornára-se a desesperação da medicina gallenica. Dos linimentos á chaga interna que lhe cancerava as entranhas, um sómente dera satisfatorio resultado: era a presença do medico, o tatear d'elle no pulso arreado de manilhas, o apalpal-a nas costellas sobre e sub-jacentes ao coração. No coração nomeadamente é que ella dizia ter a morte, o morder e repuchar de dentes e garras do que quer que fosse. Resolveu o doutor que lhe dessem uma untura anodyna sobre a parte magoada. Resistiu a dama, quando viu a aia arremangar-se para o acto, e exclamou, repellindo a criada: --Não consinto mãos estranhas no meu corpo! Antes a morte! Braz Luiz de Abreu empenhou calorosas razões a persuadil-a, cuidando sinceramente que a dama soffria dolorosissimas palpitações. Da austeridade de medico passou ás branduras de amigo que muito lhe devia, porque a paga era mais que prodiga, e chegou a pedir-lhe consentimento para ser elle quem lhe friccionasse o seio. Muito rogada e como incendida em pudor virginal, consentiu D. Claudia, referindo a sua condescendencia não tanto ao amor da vida, como ao horror de morte assim atribulada. O leitor conhece decerto aquella passagem de um livro do padre Manuel Bernardes, em que se conta o caso de S. Effrem estar com uma das mãos untando o peito de uma formosissima mulher, que tinha parte de demonio tentador do santo, emquanto assentava a outra mão sobre um brazeiro para ir assim com as dores quebrantando os ímpetos da materia bruta, as _fervenças da carne_, como n'outro caso diz o mesmo padre oratoriano. D. Claudia da Silveira verdadeiramente não tinha parte de demonio; porque o medico lhe deu a untura anodyna com tanta serenidade e quietação de corpo e alma, que só isso lhe bastaria a ganhar o céo, se a mulher fosse documento para merecel-o e argumento para pedil-o. Operou o linimento muito devagar, segundo o medico ia entendendo da brandura dos ais e alquebramento da enferma. Afinal, cessaram de todo os gemidos por um suspirar descançado que parecia descair em dormir restaurador das forças extenuadas. Braz Luiz de Abreu ficou vaidoso do seu triumpho, e despediu-se da dama, que lhe acenou de mão e cabeça tão levemente como quem a custo o fazia, vencida do turpor do somno. Assim que elle voltou costas, D. Claudia sentou-se na cama, bracejou enraivecida, e despregou a murros phreneticos uma cortina adamascada que lhe ondeava por sobre o espaldar do leito. Accudiu a aia a querer continuar a untura. A fidalga quiz atirar-lhe á cara com a taça do anodyno, e sentiu-se sinceramente febril. A aia avisou o fidalgo, cunhado de sua ama, d'aquellas furias em que estava a senhora. O fidalgo, avesado a taes manhas, respondeu com magnanimidade indicativa da probidade austera d'aquella familia: --Manda-lhe chamar o Olho de Vidro. --Mas elle ainda agora saiu, senhor! --Não importa: que torne a entrar, que torne a sair, que entre de novo, que faça o que ella quizer, comtanto que eu não ature minha cunhada Claudia. Assim se fez. Braz Luiz acabava de entrar no seu gabinete, para escrever no caderno de observações a rapida cura das convulsões de coração de D. Claudia com unturas de enxundia de pato e oleo de assucenas, quando um lacaio dos Silveiras o chamou a toda a pressa para a fidalga. O medico praguejou mentalmente contra a sua dadivosa doente; mas foi. Encontrou-a convulsiva e escarlate, debatendo-se n'uma poltrona. Era ainda a dôr do coração que lhe estava destroçando o peito. Fallou o doutor em ventosas sarjadas. A dama expediu in continente (sem calemburgo) tres gritos estridulos contra as ventosas. --Pois não, minha senhora!--accudiu o medico--não faremos uso das ventosas, até mesmo porque a convulsão se vae distendendo aos membros, e receio que se torne geral. Eu vou receitar; mas requer tempo o preparado do remedio. Senhora Anacleta--continuou o doutor voltando-se para a criada grave--mande procurar um pato gordo; ordene que o matem, depennem, e limpem das entranhas; e depois remetta-se o pato ao boticario com a receita que vou escrever[16]. RECIPE. Recheie o pato com salva, mangerona an. Manip. j. gomma amoniaco e Bedelio an unc j. Calamo aromatico, noz moscada, flôr da mesma, e cravinhos da India an. unc. semiss. o que tudo primeiro se pize em almofariz, e se amasse com oleo de minhocas, e assim se introduza no ventre do pato, que se coserá com linha, se ponha a assar, e o que destilar se receba em um vaso meio de vinagre, com cujo pingo e gordura se unte o coração. ABREU. Depois, sentando-se ao pé da doente algum tanto melhorada das convulsões, ajuntou: --Se este admiravel remedio não produzir o almejado effeito, asseguro a vossa senhoria que em casos analogos me tenho dado excellentemente com os banhos de azeite puro, e melhor será se antes se tiver cozido n'elle uma raposa[17]. --Uma raposa, doutor!--exclamou a dama engulhosa--uma raposa! Que immunda coisa!... Onde hei de eu ir buscar a raposa? --Que desejará vossa senhoria que não appareça, minha senhora! Qualquer caseiro das suas terras do Alemtejo ou Beira, com ordem de vossa senhoria, caçará raposas, que são mirificamente medicinaes. --Anjo bento! raposas medicinaes!...--volveu D. Claudia, e abriu um sorriso jovial, á volta com um gemido, como se o picar subito da dôr a não deixasse rir francamente. --Parece-me que está mais alliviada...--disse o medico. --Um poucachinho... --Pois as virtudes da raposa são miraculosas, minha senhora--proseguiu elle, confiado na efficacia da distracção.--A lingua da raposa trazida ao pescoço reforça a vista. As mãos d'ella trazidas ao pescoço preservam do quebranto.[18] --Do quebranto!...--murmurou D. Claudia da Silveira--Ai! doutor, ha quebrantos sem cura! Ha arêjos que em pegando da gente o remedio é morrer. --Feitiçarias, quer dizer vossa senhoria? Não é tanto assim. Contra esses temos os prodigiosos alexipharmacos da santa egreja catholica. --Bem sei, bem sei--balbuciou a dama, com piedoso gesto.--Não é d'esses que eu tenho medo. O meu santo Antonio me defenderá... Ha coisas peiores do que isso n'este mundo... coisas que fazem perder a cabeça á creatura mais ajuizada. Tenções e protestos não montam nada. Que me faz a mim dizer: não hei de pensar mais n'isto ou n'aquillo? Apega-se a gente com todos os santos. Fazem-se rezas e promessas. Lembra-se tudo quanto ha de máo... E, chegada a occasião, tanto faz como nada! Ai!--suspirou ella, pondo as mãos ambas sobre o coração.--Ai!... pobres mulheres!... Só vós sois as fracas... as peccadoras... não é assim doutor? Braz Luiz de Abreu, que n'este lanço estava espreitando de soslaio uns olhos que o espreitavam por entre o reposteiro--os olhos da engraçada e trigueira aia de D. Claudia--por pouco não é surprehendido pelo relance da fidalga, que o fitou muito no rosto, com ar interrogador. --É assim, minha senhora, é assim--balbuciou elle. --É assim, é--tornou ella--E que remedio sabe vossemecê para estes quebrantos, doutor? --É conforme...--tornou Braz Luiz, sem atinar com a resposta conveniente, porque só n'aquelle instante percebera, com despeito de sua vaidade de medico, a enfermidade da fidalga. --É conforme, disse vossemecê doutor...--volveu ella, anciosa de entender as reticencias. --Sim, minha senhora... Ha varios modos de possessão, além dos conhecidos nas demoographias... --Mão entendo isso--atalhou a fidalga--Pois a paixão d'alma tambem é feitiço? --Se não é...--balbuciou o doutor. --Leva as mesmas voltas--accudiu prestes D. Claudia, e proseguiu expondo com pouquissimo resguardo de sua honestidade as diabruras que o amor tinha feito em senhoras de sua amizade, não poupando na relação das taes diabruras secretas as suas mais proximas consanguinaes, e algumas impudicicias muito reconditas da côrte da primeira mulher de D. Pedro II, com a qual vivera nos primeiros annos de sua mocidade. Ao correr d'esta narrativa, D. Claudia reparou no abstrahimento do medico, cujo olho, de instante a instante, punha fito ao reposteiro, e como que procurava pascer-se deleitosamente em qualquer cousa de fóra. Assim prevenida e desconfiada, esperou azo, voltou a cabeça ao lado opposto da porta, retorceu-a rapidamente de novo olhando ao local suspeito, e entreviu a cabeça da sua criada grave Anacleta, por quem doidejavam quantos fidalgos novos e encanecidos a visitavam. --Olé!--exclamou ella, erguendo-se de salto--Agora entendo!--E, correndo ao reposteiro, afastou-o de repellão, e disse iracunda: --Anacleta! já hoje não dormes n'esta casa. Rua! Não quero testemunhas nem espiões do que se diz no meu quarto. Rua! E, tornando com solemne passo para junto de Braz Luiz de Abreu, que assistia corrido áquelle conflicto, disse-lhe: --E a hypocrisia de vossemecê, senhor doutor!... A feitiçaria da minha criada tambem se cura com os prodigiosos _não sei que_ (o doutor tinha dito «alexipharmacos») da santa egreja catholica? Que hypocritas são estes medicos!... E cacarejou uma risada secca. --Pois que?!--tartamudeou o doutor, enleado até á irrisão. --Eu logo vi!...--disse a fidalga, como em praticas de soliloquio comsigo mesma.--A promptidão das visitas... está explicada... Assim devia ser. Lé com lé, não falha o dictado. Cuidei que as minhas criadas serviam sómente aos meus criados. Bons tempos, em que os medicos se não sujavam com amores de servilhetas... --Oh! senhora D. Claudia!--atalhou o pundonoroso doutor--vossa senhoria está-me insultando... perdoe-me dizer-lh'o, porque nunca cuidei de dizer isto a pessoa de sangue tão illustre... E, de mais, cavalheiro que tal diz a uma dama, não deve mais voltar á presença d'ella. E, tomando o chapéo e bengala, fez uma arqueada cortezia. --Faça o que quizer, doutor!--disse ella abespinhada, com o nó esterico nos gorgomilos--Faça o que quizer que vossemecê se arrependerá... Braz Luiz de Abreu saiu offegante de despeito e tedio de D. Claudia da Silveira. --Que tal está a pellada!--dizia elle de si para comsigo--A impudica!... E eu dar-lhe as unturas com a boa fé do mais soez enfermeiro! Chibata é que ella precisava nos lombos ociosos!... VIII Má sina de poetas Passados alguns dias, differentes pessoas da intimidade do doutor lhe segredavam que D. Claudia fazia correr que elle fôra expulso da casa dos Silveiras, porque andava cortejando a aia grave da fidalga, sem respeito ao que devia á illustre enferma, e ao que devia á sua dignidade de medico. Os amigos aconselhavam-n'o, se queria ser recebido em casas de primeira plana, abster-se de galantear criadas, principalmente se as amas, como D. Claudia, queriam ser antepostas ás suas servas. A calumnia era toleravel, porque em verdade, a frescalhona Anacleta era uma das sete criadas graves, para as quaes o doutor olhava com a fixidez de quem só tem um olho. Assanhou-o, porém, o susto de ver-se banido das casas, onde tinha os seus prezadissimos, bem que faceis amores, afóra as doentes mais rendosas. O ciume de Claudia mais o exasperou ainda; por que a historia, em que elle figurava ridiculo, era contada entre as familias ás gargalhadas. Enraivecido, cogitou na imprudencia de fazer rir os amigos á custa da fidalga. Figurou-se-lhe que o mais contundente látego era a satyra em verso. Não teve amigo que lhe aconselhasse juizo e discrição, como convinha á gravidade do seu officio, e ao melindre da poderosa parentela de D. Claudia. Escreveu, e deu copias a diversos amigos das seguintes quadras: A UMA PELLADA Mulher, n'esse teu desgarro... Convém saber, antes de ir ávante, que D. Claudia, como se quizesse attrahir aos pés a attenção das pessoas, que lhe reparavam na cabeça, costumava estar sempre calçada de sapatos bordados a fio de ouro. As mais fidalgas chanceavam-n'a, na ausencia, por causa dos sapatos, e propalavam que o Olho de Vidro se deixára algum tempo fascinar dos aureos chapins da escalvada dama. Sabido isto, não ha já commentarios que aditar á poesia. Mulher, n'esse teu desgarro, Um Nabuco ás vessas és; Porque, tendo d'ouro os pés, Tens a cabeça de barro. Se alguma pedra traveça Te quizesse derrubar Era preciso acertar Mais que nos pés na cabeça Por que, se pelo mais fraco Estalla a corda mais grossa, Quem quizer que estalles, _moça_, Ha de cascar-te no caco. Mais flammantes do que um ouro, Mais liza do que uma ostra, A cabeça a coura mostra, Os pés vão mostrando o couro. Dize-me com que destino, Mesclas n'essa estatua van Entre affectos de christan Heresias de _Calvino_? Sem monho, e com cara alva Sahes a toda a occasião; E vejo que tens rasão, Porque a occasião é calva. Sendo mal encabellada, Para que andas, dize, á pella, Se ninguem por ti se pella Por mais que venhas pellada? Vae-te, e pede a Deus, ó louca, Que te dê com toda a pressa, Cabellos para a cabeça Em vez de pão para a boca. Ao padre nosso á porfia Pede que te encabellise; E em vez de _pão nosso_, dize: _Cabellos de cada dia_[19]. Multiplicaram-se as copias e as gargalhadas; não tardou, porém, que sobreviessem os despeitos, por que muitas familias, que tinham rido, estavam aparentadas com D. Claudia. Chegou á noticia da dama a zombaria. Foi tanto mais funda a punhalada quanto ella amava ainda o doutor. Odiou-o de morte; não relevava, porém, a soberba da fidalga que ella se désse por ultrajada. Conjuraram, de repente as familias de melhor lote contra Braz Luiz. Os amigos evitavam-no com subterfugios. Os inimigos, collegas d'elle, deploravam que um seu consocio no sagrado mister da medicina os desdourasse. A tempo conheceu o doutor que tinha caido em descredito: e mêdo tambem de cair trespassado por algum fidalgo estoque não lhe faltou. Fez logo conta de sair de Lisboa, cortando por fibras muito sensiveis do peito. Do plano á execução mediou algum pouco tempo, em que Braz Luiz, recolhendo alta noite, esteve a pique de ser assassinado por uma arcabuzada, cujos pelouros lhe crestaram os bofes da camisa. Desappareceu o Olho de Vidro de Lisboa, e estanceou alguma temporada por Coimbra, onde assistiu á impressão de um seu livro em castelhano, intitulado _Aguilas hijas del sol, que buelan sobre la luna. Representacion comica, tragica, triumphal de la inmorable victoria gloriosamente alcançada por las aguilas impiriales contra las nocturnas aves ottomanas en el campo de Peter-Varadin, dia 5 de agosto año 1716._[20] A mim contentou-me a leitura do titulo, e dispensei-me de ver o restante para ir jurar que deve ser sobre-excellente um livro que se chama _Aguias filhas do sol, que voam sobre a lua_. E, como se isto não fosse já recommendação á obra, acresce-lhe o merecimento de ser _representação comica, tragica e triumphante_. Um livro assim, e os applausos com que a peninsula provavelmente o victoriou, deviam ser para o doutor larga compensação dos dissabores com que saira de Lisboa. Não ha ahi chaga em peito de homem illustrado que resista ao balsamo do talento. Passou Braz Luiz de Abreu ao Porto, fazendo tenção de estabelecer-se na segunda cidade do reino. Deteve-se em Aveiro alguns dias; e passeando scientificamente pelos arrabaldes da villa, descobriu a planta do chá, nascida em barda por aquelles maninhos. Consta-me que os aveirenses, de certo ignorantes do descobrimento do medico, ainda agora compram para seu uso o chá da China, como se não tivessem alli á mão a erva de que elle se faz. Aqui lhe transcrevo as palavras de Braz Luiz, e muito faço em prova do meu desprendimento de bens de fortuna, se não iria eu propriamente colher a erva, comprar os maninhos, e senhorear-me de Aveiro em poucos annos. Aqui está a noticia: «Na villa de Aveiro, e em todas as suas visinhanças nasce uma erva, a que os naturaes chamam _erva formigueira_, porque pisada tem o cheiro como de formigas pisadas; e a ha em tanta quantidade que podem carregar-se navios d'ella. Esta tal (ao meu entender) é o verdadeiro _chá_ que vem da China e do Japão; não só porque a experiencia descobre n'ella as mesmas virtudes do _chá_; mas tambem porque mandando-se da India a Gonçalo de Sousa de Menezes, morador na sua quinta de Salreo, a semente do legitimo chá, elle a mandou semear com todo o cuidado, e nasceu a mesma erva de que aqui se acham revestidos os campos e os comaros.»[21] Não ha duvida nenhuma: o chá da India é a _erva formigueira de Aveiro_. E dizem que nós, os portuguezes, não somos gente para descobrimentos! O que nós somos é uns prodigos e despreciadores dos mananciaes de riqueza que a Providencia nos offerece como a filhos seus dilectissimos. Se alguma companhia entrasse em exploração d'aquella mina, quem sabe se, fechados os portos á erva indiatica, poderiamos ainda com o nosso chá amortisar a divida externa, e metter a Europa n'uma infusão de erva formigueira? Razão tinha o patriota doutor Olho de Vidro, quando em seguida á noticia, que os coevos menosprezaram, ajuntou: «Quem quizer indagar-lhe os prestimos, com facilidade o póde fazer, se acaso não fôr do genio d'aquelles que fazem eterno capricho de preferir sempre as coisas estrangeiras ás nacionaes e domesticas.» Transferiu-se Braz Luiz para o Porto, ao começar o anno de 1718. Estreiou-se auspiciosamente. Açambarcou a clinica dos mais acreditados, e manteve-se com recato e honra no tocante ás venialidades do coração, tomando em conta o muito que lhe importava desmentir a má fama grangeada em Lisboa. No fim de seis mezes, offereciam-se-lhe vantajosos enlaces com raparigas bonitas de sua pessoa, rubras e sadias d'aquelle antigo sangue e pojante saude do Porto, e demais a mais, ricas, das mais ricas das ruas dos Pellames, Congostas e Mercadores. Não se atrigou com a felicidade das propostas. Sobrava-lhe dinheiro, estipendio das suas curas estupendas com inxundia de pata, olhos de minhocas, agua benedicta de Rulando, olhos de caranguejo e esterco de rato fresco.[22] O coração cedia á freima com que elle trazia empunhada a cabeça em estudos medicos, estudos poeticos, toda a casta de sciencia, como sujeito que tinha em vista a immortalidade, de que a sua memoria, se está gosando e gosará, emquanto o seu _Portugal Medico_, e a sua _Vida de Santo Antonio_ e este meu romance forem livros conspicuos. Em outubro de 1718, chegou ao Porto uma senhora da Beira Alta, muito adoentada, trazendo em sua companhia uma filha. A enferma, desenganada pelos medicos na sua terra, ia procurar, como em ultima estancia, a sua cura na milagrosa reputação de Braz Luiz de Abreu. Chamava-se a doente D. Antonia da Piedade, e a filha D. Josepha Maria de Castro. Aquella senhora tinha visto muito mundo, queria contar ao seu medico extraordinarios lances da sua vida; mas as dores incessantes apenas lhe davam tempo para gemer, não obstante os esmerados disvelos do doutor. Os padecimentos recrudeciam, quando á pobre senhora lhe acudia a lembrança de que deixava n'este mundo sua filha desamparada, sem parentes, bem que ella os tivesse ricos. Bem quizera Braz Luiz, com a alma poetica e affectuosa que tinha, entrar no segredo d'aquellas duas vidas; mas as reservas das senhoras impunham respeito e calavam-lhe de prompto as investigações indelicadas. D. Josepha Maria tinha vinte e três annos; era formosa, extraordinariamente instruida, fallava a muito custo a lingua portugueza, e com sua mãe expressava-se sempre na lingua franceza. Braz Luiz de Abreu não se deteve a perguntar ao seu espirito se lhe convinha amal-a; amou-a impetuosamente, desde que a viu; amou-a perdidamente desde que a ouviu. D. Antonia falleceu no principio de novembro. As suas ultimas palavras á filha foram estas: «Perdoa-me ter-te eu dado o nascimento, desgraçada menina. Agora, que vae morrer a mulher maldita dos seus, vae tu procurar os teus parentes, e diz-lhes que não és culpada dos delictos de tua mãe.» Braz ouvira estas palavras, e disse, ajoelhando ao pé da filha: --Abençoae a nossa união. --Eu vos abençôo, meus filhos--murmurou a moribunda. IX Poeta e moralista Casaram. As delicias do noivado agoiravam santos prazeres de toda a vida. O esposo entrou nos segredos d'aquella familia, imperfeitamente referidos por sua mulher, que os não sabia bem contar. O essencial da historia era ter ella sangue judaico, e ter nascido no desterro, onde se finou seu pae. Lances d'estes eram vulgarissimos n'aquelle tempo. Declarou ella que sua mãe não se chamava Antonia, nem o seu appelido era Castro. O mysterio, a perseguição, a formosura, a indole meiga, tudo cooperou a robustecer o amor de Braz Luiz, que, desde a hora de marido, começou a contar os seus dias de vida. Tinha vinte e seis annos elle. Mais que nunca lhe inundaram alma enchentes de poesia. Os sonetos rompiam como lavas e aos pares. Um conservou elle no seu livro de medicina. E que engenhosa maneira de mandal-o á posteridade! Como não era coisa bem cabida um soneto de amores conjugaes entre duas receitas para conservar os cabellos, attribuiu como feito aos cabellos de Maria Santissima o soneto com que eternisára as madeixas de sua mulher. Vejam como elle o diz, querendo encarecer a formosura de um opulento cabello: «Temos um heroico exemplo na Magdalena, que ainda dos mesmos cabellos, que lhe cresciam, formou toalha para enxugar os pés de Christo lavados com suas lagrimas... Veneremos a profunda humildade de Maria Santissima mysticamente figurada n'aquelle cabello admiravel, em o humilde discurso d'este SONETO «Teus cabellos, teus olhos basta vel-os, Compondo o rosto teu, que ao sol prefere, Ó minha esposa, porque a fé venere A amorosa ambição de pretendel-os. «Nem porque muitos são chego a querel-os, Antes por qualquer um amor requere, Um dos olhos o coração me fere, Prende-me a alma um só d'esses cabellos. «N'um dos olhos por pura te comprehendes, N'um cabello a humildade sem refolhos, Dás a entender em symbolos bemquistos: «Por isso humilde e pura tu me prendes; Que se um dos olhos me entra pelos olhos Um dos cabellos me ata a olhos vistos.»[23] O soneto, para ser feito a Nossa Senhora, não é bom modelo para mysticos; porém, como brinde á estremecida Josepha, é o melhor de que eu tenho noticia, e ella, a meu ver, devia lisongear-se notavelmente. O que ella lhe deu melhor ainda do que o soneto foi uma filhinha, que chamaram Anna Maria, e no anno seguinte outra filhinha, que chamaram Maria da Natividade, e depois outra que se chamou Thereza de Jesus, e depois Antonia Maria, e depois Sebastiana Ignacia, e depois Agostinho Luiz, e depois Pedro José, e ultimamente Raphael, que morreu ao segundo mez de nascido. Ora aqui tem, leitor sensivel, um quadro perfeito de felicidade terreal: cinco filhas e dois filhos, vivos e robustos, em nove annos. Dito isto, por mais que me eu aprimorasse em recamos do estylo e maviosidades de sentimento no descrever as venturas d'aquella familia, tudo me sairia froixo e muito em sombra. As creancinhas são os anjos que pintam os quadros da vida intima com côres e instincto do céo. Quem quer dizer «suprema e indisivel felicidade» não tem mais que pôr: «eram dois paes amando-se muito com sete filhinhos entre elles a beijarem-n'os, a beijarem-se, e a chilrearem como avesinhas implumes em volta do ninho que lhes dá o aconchego da plumagem e do cibo.» Sem impedimento de sete filhos, fartos e aceiados, o doutor ia enriquecendo, e repartia seu tempo, roubado ás caricias da familia, entre os trabalhos de gabinete e visitas ás pessoas mais illustres e pecuniosas da terra. A fama dos seus bons costumes e religiosidade fallou por elle no tribunal da inquisição, quando lá chegou o requerimento documentado pedindo as honras de familiar do santo officio. Concederam-lh'as sem hesitação, porque os medicos, como senhores do arcano intimo das familias, eram os mais importantes sentinellas da pureza da fé. Não só os sãos costumes, que tambem um livro de summa piedade e vasta erudição, lhe ganharam as honras e privilegios de familiar. Este livro, publicado em 1725, e ainda hoje relido com devotos fervores por quem sabe gastar com acerto e bom juro o seu tempo, intitula-se «Sol nascido no occidente e posto ao nascer do sol. Santo Antonio portuguez. Epitome historico e panegyrico da sua admiravel vida e prodigiosas acções.» N'aquelle tempo, não houve livro que ousasse medir-se com as elegancias e pompas d'aquelle _in-folio_, para o qual devêra inventar-se a eternidade, se ella não andasse já por ahi á disposição das obras inuteis. D. Josepha, posto que viesse de Paris quasi nada disposta a crer nos milagres de Santo Antonio, depois que leu a obra de seu marido, reduziu-se á pureza da fé catholica, e revalidou as ceremonias do baptismo, para se limpar de escrupulos. Não seria esta a razão efficiente; mas parecia ser. No anno seguinte, Braz Luiz saiu com outro volume de egual tamanho, bem que menos importante á salvação da alma. Todavia, choviam bençãos sobre o sabio que primeiro curava almas achacadas de vicios, e depois dava á humanidade enferma, como coisa secundaria, um livro que olhava a minorar-lhe os flagellos corporaes. Eis aqui o titulo d'este padrão da medicina portugueza: «Portugal medico, ou monarchia medico-lusitana. Historica, pratica, symbolica, ethica e politica. Fundada e comprehendida no dilatado ambito dos dois mundos creados, macrocosmo e microcosmo.» Estes dizeres podem chamar-se o cabeçalho do titulo, que se continua em vinte linhas. Assim o declaro para que se não julgue da superficialidade da obra pela pequenez d'aquelle rotulo. Braz Luiz de Abreu dedica o seu livro ao principe do Brazil D. José Francisco, e assigna-se _medico portuense e familiar do santo officio_, assentando n'estas qualidades dois titulos á consideração publica. Este livro, a meu ver, é a mais pittoresca historia dos costumes d'aquelle seculo. Ninguem lê o _Portugal Medico_, e poucos sabem que desprezado thesouro alli está. Como author de livros de medicina é vilipendio nosso que Braz Luiz seja contado na lista dos escriptores medicos, de par com os Zacutos, com os Veigas, e com Jacob de Castro Sarmento; como relação das usanças do seculo XVIII, não ha novella nem poema satyrico em portuguez que lhe chegue á barba. Onde me dá o leitor a conhecer o que eram os medicos estrangeiros em Portugal? Quaes gazetas do tempo ou quaes poetas mordentes nos deixaram traços da chusma de charlatães, naturaes e peregrinos, que se locupletaram entre nós, favorecidos pela crassa bruteza a que tinha descido a faculdade medica em Portugal! Nenhum livro de prosa ou verso, nenhuma publicação coeva nol-o diz, exceptuado o livro obscuro ou escarnecido do Olho de Vidro. Para mim é de fé que o leitor, nem ainda peitado por estes encomios, vae folhear o _Portugal Medico_. Pois eu, mas que me alcunhem de impertinente, vou dar-lhe em traslado coisa pouca d'este curioso livro, que é mais historia que as chronicas dos Azuraras e Pinas, e mais comedia humana que as comedias de Gil Vicente e do Judeu. Ácerca dos medicos estrangeiros: «Enfada-se de ser soldado na Italia um romano; passa a Portugal, e constitue-se um famoso espagytico florentino. Foge da sua religião feito apostata um francez; aporta em Lisboa, e inculca-se por um insigne medico portuguez. Quebra em Hollanda um mercador; busca o nosso reino, e vende-se por um peritissimo physico hamburguez. E até entre os nossos o que é alveitar no Minho passa a ser medico no Algarve; o que é cirurgião na Extremadura vae buscar o gráo de doutor ao Alemtejo; e de boticario da Beira, se converte em Galeno de Traz-os-Montes; e d'esta sorte espalhados e desconhecidos, morrendo por viver da sua necessidade, vivem de matar com a sua medicina, e atormentando a todos sem piedade, ferem sem pena e matam sem castigo... «Desembarca em Lisboa, no Porto, ou em outra qualquer barra d'este reino um medico estrangeiro, não disse bem, um estrangeiro metido a medico; antes que ponha o pé em terra, já o bom do homem tem mandado encher as esquinas de editaes em que publica remedios infalliveis para todos os achaques... Entra-se um d'estes por casa de um illustre, de um nobre, de um ecclesiastico; mas nunca de um pobre; e se ha achaque na casa, começa logo o parabolano a desenrolar promettimentos, e que foi fortuna chegar elle a tempo em que podesse emendar o que os medicos tinham errado; porque a queixa só elle a conhecia, por ter já feito, similhante cura na pessoa do delfim de França, e vencido o mesmo achaque no principe Eugenio, ou em outro qualquer personagem d'este calibre; por que similhantes physicos nunca se fazem medicos ahi de qualquer tudesco de má morte; mas as suas experiencias sempre tem sido observadas, ou nos palacios dos principes, ou no serralho do grão turco. «Começa um d'estes alchimistas a prometter e o pobre doente a pasmar. Se o achaque é uma ethica marasmada, diz-lhe: senhor, eu faço uma agua tão portentosa e de tão infallivel virtude, para esta sua queixa, que não só é capaz de restauricar ethicos, mas de resuscitar mortos. O cardeal de Rouen em Paris estava já mais magro do que um pisco em janeiro; tomou a mesma agua, e logo se poz mais gordo que um taralhão por agosto... É verdade que lhe custou do seu porque este remedio para se compôr leva duzentas moedas de ingredientes. Se vossemecê quer que eu lh'o faça venham as moedas; e, se não se achar bom, não me dará nada pela cura. A isto responde o doente que é muito dinheiro--Bom remedio (torna o estrangeiro) faremos por ora só metade da cura, e não vem vossemecê a gastar mais do que cem moedas. Ainda é muito? Pois venham cincoenta. Assim vae duvidando um e outro, e abatendo, até que o alchimista para não ir de todo em todo sem dinheiro, para comprar as drogas se resolve a fazer a cura por duas moedas; mas pede segredo ao doente, porque não quer fazer o seu remedio mal reputado. Vae para casa; põe a ferver dois almudes d'agua da fonte com um selamin de cevada, deita-lhe umas poucas de flores de papoulas, para tomar outra côr, e um arratel de assucar mascavado; compõe uma agua adocicada côr de fogo; enche quatro garrafões bem tapados com cortiça e lacre, e pilha duas moedas.» Prosegue Braz Luiz em muitas paginas em prosa e verso a critica zombeteira dos medicos mesinheiros, dos pseudo-medicos, dos barbeiros, das benzedeiras. Concluo o extracto com uma amostra da prosa, e outra da poesia. Qualquer das coisas denota o entranhado fervor com que o medico portuense saía de frente contra os charlatães em favor da humanidade. «Oh!--exclama elle--quantos e quantos medicos, lobos na condição, estou eu vendo espalhados pelos reicos da nossa monarchia, que não sabem mais que roubar e matar!... São estes ladrões e matadores publicos todos aquelles que sem o serem se fingem medicos. Oh! miseravel e desgraçada medicina! Como vejo trocados hoje os teus predicados nobilissimos! Já não és arte de curar, és atalho de morrer; já não emendas os vicios do corpo, extingues as virtudes da alma; já não és triumpho das queixas, és flagello das vidas; já não és sciencia, és ignorancia; já não és arte preclarissima, és claro e clarissimo latrocinio. Os teus methodos de curar são modos de viver; os teus aphorismos são gyrias; os teus textos são roubos; os teus remedios são mortes, e os teus brazões são sepulturas. Mas como não ha de ser assim, se são homens ignorantes e perdidos os teus professores? Fingem-se medicos os idiotas, os vagabundos, os judeus, os barbeiros, os soldados, os feiticeiros, os benzedores...» É christãmente louvavel o affoutamento e desprezo com que elle entala os judeus entre os vagabundos e barbeiros; faz, porém, tristeza ver n'isto a ingratidão com que elle malsina a raça d'aquelle Heitor Dias da Paz, que vinte annos antes lhe estabelecêra a pensão no real collegio de S. Paulo. Entristece ainda mais que elle se não condôa do pae de sua mulher, do avô de seus sete filhos, o hebreu desterrado, que, no dizer de D. Josepha, expirara exclamando: «Dêem-me um pouquinho de ar da minha terra, que eu não morrerei ainda!» Desculpe-se o ingrato aos israelitas, e lembre-se a gente do muito que elle devia á inquisição, que o fizera seu familiar, sem lhe averiguar a raça, até á quarta geração, condicional indispensavel na investidura d'aquella honra, honra n'este mundo, e segurança na conquista do outro, vista a somma de indulgencias com que os papas alimpavam a consciencia d'estes esbirros do santo officio. Desculpe-se-lhe ainda a feia culpa, em desconto da malquerença e odio com que os seus collegas leram o seguinte soneto: «Um, dois, trez, vinte, trinta, oitenta, cem, Mil, dez mil, vinte mil, seiscentos mil, Milhares de milhares (São frei Gil!) Quem poderá contar quantos cá vem? «Tanta gente sem conhecer ninguem![24] Más caras! ruins aspectos! fórma vil! Nunca elles são de genio mais subtil, Se a cara testemunha o que ellas tem. «Ah! sim; já sei; uns mata-sanos são D'aquelles asneiroens que por hi ha, Que não sabem escolher o mal do bom. «Ah! quantos burros ha! (mais de um milhão?) Que sem saberem lêr o _b a-Bá_, Curam e matam por hi sem tom nem som?» Agora, vamos, por algum tempo, deixar Braz Luiz de Abreu com as suas prosas, com os seus poemas, e com o locupletar-se, por justo effeito da sua grande nomeada. Não cuidem que elle, á similhança dos poetas, de seu natural perdularios e desinteresseiros, tem em conta de pouco a paga das suas visitas. No tocante a estipendio de medicos, vejam como elle se declara: «Não faltam medicos na monarchia medica-lusitana, que por este modo vivam apostolicamente. Em muitas cidades, villas notaveis e povoações grandes d'este reino, é para os seus medicos muito pouco o sustento e immenso o trabalho. Na arithmetica medicinal d'esta monarchia, multiplicam-se as visitas, mas nunca se accrescentam as pagas: poucas vezes os medicos cuidam em sommar, porque nunca os doentes chegam a repartir. Trabalhar todos os dias, levantar-se a qualquer hora da noite, subir e descer escadas, ouvir queixas, soffrer impertinencias, examinar cloacas, receitar remedios, e revolver livros, isto sim; que para isso é burro: receber pagas, cobrar partidos, recolher avenças, e embolçar estipendios, isso não, que por isso é asno.» Engenhoso modo este de avisar os seus doentes remissos na paga, não por attenciosas cartas no fim do anno, mas por tres paginas de um livro _in folio_, das quaes trasladei algumas linhas, em obsequio aos medicos do tempo d'agora, e censura aos doentes que não pagam. X Os expatriados Trinta e quatro annos antes, se o leitor se lembra, tinham fugido para a India, em uma náo mercantil, o doutor Francisco Luiz de Abreu e sua mulher, disfarçados em mercadores de drogas indostanicas. Assim que aportaram a Goa, antes que os quadrilheiros da inquisição os farejassem com aquelle olfacto d'elles, subtilissimo em esquadrinhar sangue judaico, apressaram-se em fugir do territorio portuguez. No primeiro navio britannico aproado á costa do Malabar, conseguiram os incognitos embarcar-se, e saltaram em Cochim, na cidade querida do grande Affonso de Albuquerque, qual, desde 1663, pertencia aos hollandezes. Estavam salvos. O doutor Abreu começou exercitando a medicina e o commercio, e auferindo mais ganancia da camphora, do beijoim e do chumbo, que da sciencia das drogas salutiferas. Corridos dois annos, como os bens de fortuna lhe sobrassem, visto que já de Portugal saira com sobejos para viver meãmente, passou á Europa e estabeleceu-se em Hollanda. Aqui, recebido nos braços de centenares de portuguezes, voltou á profissão de medico, e poz os seus cabedaes a logro, com prosperos resultados. Hollanda era o paraizo terreal dos perseguidos hebreus. «Em parte nenhuma do mundo,--escrevia Daniel Lavi de Barros--gosam maior segurança que em Amsterdão, tanto pela liberdade de consciencia nas sete provincias unidas, como pela bondade de seus engenhosos habitantes.»[25] Hebreus portuguezes e hespanhoes tinham alli sua synagoga, independente dos israelitas de procedencia allemã. Foi a primeira edificada em Amsterdão, consoante o affirma Antonio Alvares Soares na sua _Sylva_: _La primera Synagoga Amstelodama_ _Fundada fué del grand Jacob Tirado_ _Que por su nombre Bet Jahacob la llama,_ _I por el pueblo de Jacob sagrado._ Tanto crescera a opulencia dos hebreus da peninsula hispanica, desde que a lerda piedade dos reis os expulsaram que, em menos de quatro annos, levantaram e consagraram em 1673, o mais soberbo edificio que ainda hoje sobreleva a todos de Amsterdão. No crer dos hebreus, aquelle templo era o milagre que Deus lhes havia promettido por Ezequiel: «Porque os puz longe entre as gentes, e porque os lancei dispersos por varios paizes, eu serei para elles um pequeno sanctuario dos paizes para onde forem.»[26] Francisco Luiz de Abreu, assim que se viu de assento e pouco menos de esquecido da patria, logo que a occasião se lhe amoldou, sem risco do seu amigo Moraes de Villa Flor, escreveu-lhe, pedindo-lhe a ida do filho de Antonio de Sá Mourão para Hollanda. O pae de Heitor Dias da Paz, respondendo á carta, pedia-lhe com lagrimas que lhe não tirasse o pequeno, porque, além de magoar penetrantemente seu filho, que o estremecia como irmão, podia ser que lhe tolhesse o futuro, ou, com a ida, suggerisse á inquisição suspeitas e aparelhasse desgraças para os que lhe estavam debaixo da vista fulminante. Relatava-lhe a perseguição que os Oliveiras de Ourem estavam soffrendo, desde a fuga na náo da carreira da India, e o certo perigo que corria a creança, se levissimas suspeitas o indigitassem como filho de Francisco de Abreu. O medico desvaneceu as esperanças da sua mulher, que era a mais fervorosa em pedir o seu filho adoptivo. D'esta correspondencia nem palavra Francisco de Moraes revelava á creança, por medo que a indiscrição propria dos annos acareasse desconfianças da espionagem, que sem treguas espreitava os actos dos judeus abastados. Moraes pedia ao seu amigo que lhe escrevesse pouco e com muita segurança, para que as suas cartas não tivessem destino egual ás de Pedro Lopes, residente em Damasco. Senhor do seu tempo e liberdade, o doutor Francisco Luiz foi a França inquirir de novo informações de Antonio de Sá. Nada adiantou ás colhidas pelo joalheiro de Villa Flor. O navio, que navegava para o Canadá, parecia que as ondas o tinham engulido e pulverisado nas profundezas dos seus abysmos. Nem a mais ligeira suspeita de que existisse um folego vivo d'aquella náo, a não ser que as duas galeotas de flibusteiros, então ancoradas na costa de S. Domingos, podessem dar noticia do naufragio. Recolheu o doutor a Amsterdão com as esperanças de todo perdidas. Seis annos decorridos, chegou á familia dos Moraes, residente em Hollanda, a nova de estar nos carceres da inquisição de Lisboa Heitor Dias da Paz. Foi grande luto e choro nas familias portuguezas de Amsterdão, entre as quaes tinha sido creado e educado o mocinho. Abriram-se as synagogas, e prostraram-se os de Israel, pedindo ao seu Deus que lhes redimisse da morte affrontosa do garrote e do fogo o mancebo, cuja genealogia promanava já da tribu de Levi. Bem sabiam elles que Heitor Dias da Paz havia de morrer profitente da lei de Moysés, e sómente por milagre do Senhor poderia salvar-se de morrer queimado. Quando chegou a Hollanda a noticia do suicidio de Francisco Moraes Taveira e da imperterrita morte de seu filho, estes nomes gloriosos nas dypticas da nação fiel foram inscriptos no martyrologio hebreu. Assim o tinha sido o do medico Silva, que, apoz treze annos de carcere, fôra queimado em Lima, no anno de 1693, e, ao tempo que o fogo o devorava, um pegão de vento esboroou o tribunal onde elle havia sido condemnado.[27] Assim fôra santificado um judeu portuguez, o qual, apenas a fumarada da fogueira lhe levou aos pulmões as primeiras agonias, desataram-se-lhe os ferros, e foi arrebatado por um anjo, a tempo que os algozes exclamavam que o diabo o transportava em corpo e alma. Deus, para salvar o seu servo das angustias do supplicio horrendo, o arrancara d'entre as chammas, segundo o asseverado nas actas dos martyres. Não menos illustres em santidade eram para os hebreus o religioso da Assenção, queimado em Lisboa no anno de 1603, e o medico Sobremont, suppliciado em Lima, depois de vinte e dois annos de masmorra. Na _Sylva_, de Antonio Alvares, vem commemorada assim a crucificada vida d'aquelle martyr: _Veinte y dos annos in prison penosa_ _Por defender de Dios la verdad pura,_ _Termino arrastra la cadena dura_ _Que le da el ser la sacra ley su esposa._ Heitor Dias da Paz foi comparado na coragem da morte ao hespanhol Lopo de Vea, filho de paes christãos velhos, o qual se fizera judeu, e se circumcidára no carcere. A constancia de sua morte obrigou o inquisidor geral a dizer que _nunca vira tão ardente desejo de morrer, nem tamanha confiança de salvação, nem tão completa firmesa, como a d'aquelle moço na flor da edade_.[28] O medico Abreu, para não arriscar a segurança dos seus parentes e amigos de Portugal, absteve-se de pedir informações de Braz, nos primeiros annos seguidos á morte dos judeus de Villa Flor. Corria o anno de 1710 quando elle se animou a indagar com a maxima cautela. Algumas pessoas foram disfarçadas a Coimbra, averiguaram com todo o resguardo, e nenhum esclarecimento alcançaram. Ninguem dava novas nem rastreava o destino do moço. Eram obvias as razões d'esta ignorancia: Braz Luiz nunca em Coimbra estivera na companhia de Heitor Dias da Paz, nem o collegial de S. Paulo ousava dizel-o, admoestado pelos frades, os quaes, por sua parte, movidos de compaixão do estudantinho, cuidavam em salval-o da nota infame de amizade com taes protectores. O medico Francisco Luiz, se não esqueceu o filho de Antonio de Sá, desistiu de perguntar, como diligencia inutil, a paragem d'elle. Facilmente acreditaram que tivesse morrido, ou caísse em obscura indigencia, depois do auto de fé de 1706. Em 1718 appareceu em Amsterdão a obra de Braz Luiz d'Abreu, publicada em 1717, com o titulo: «Aguias filhas do sol que voam sobre a lua.» O nome do author produziu estranho reparo em Francisco Luiz d'Abreu. _Braz_ era o nome da creancinha, que elle entregára a Francisco de Moraes; o sobrenome e o appellido eram os d'elle. --Quem sabe!--dizia elle á esposa--Cuidaria o filho de Antonio de Sá que era nosso filho?! Dir-lh'o-hia alguem, depois da morte de Heitor Dias da Paz? Por que ha de ter este homem o nome que lhe deixámos, e o appellido que eu tenho?... --Pergunta a alguem de Portugal onde reside o author d'esse livro--lembrou Francisca. De Portugal disseram ao israelita que Braz Luiz de Abreu era um medico residente no Porto. Sem medeação de alguem, Francisco Luiz escreveu directamente ao medico do Porto estas palavras: «Pessoa interessada em querer saber quaes foram ou são os paes de vossemecê, pede-lhe que os indique, se os conheceu. Responda para Amsterdão.» E deu o pseudonimo _Elias Sarmento_, a quem devia ser dirigida a resposta. Braz Luiz de Abreu entendeu que a pergunta era um escarneo a elle desgraçado, que não tinha conhecido seus paes, e que, na maledicencia de inimigos, passava como exposto na roda de Villa Flor. Affrontado por tão certeira azagaia á sua immensa dôr e pejo de não poder dizer cujo filho era, respondeu n'estes termos: «Braz Luiz de Abreu responderia com um tagante ao judeu ou burro que lhe faz a pergunta, se não tivesse de ir longe procural-o a chatinar no templo, como Jesus Christo nosso Senhor fez aos avós de quem se esconde na terra dos impios, dos hereges, e dos crucificadores do Messias para o insultar.» N'um homem, chamado _Elias_, a allusão insultante devia de acertar infallivelmente. Francisco Luiz de Abreu, lida a resposta, riu-se da sua illusão e da catholica ira do medico portuense. N'esse mesmo correio, foi-lhe de Portugal uma carta do amigo a quem elle perguntára onde residia o medico. A carta dava sobre o sujeito os seguintes esclarecimentos: Tinha sido creado com frades, á custa d'elles se licenciára, e era familiar do santo officio, e denominado o _Olho de Vidro_, porque, tendo perdido um olho em desordem, o substituira por outro artificial. Accrescentava mais que, na opinião de algumas pessoas, o tal Olho de Vidro era filho de um frade, se não fosse filho de tres frades. Á vista d'isto e da resposta do author das _Aguias_, o hebreu acreditou evidentemente que este Braz não tinha de commum com o outro senão o nome. XI Treze annos depois Francisca de Oliveira morreu no anno de 1730 em Italia, para onde seu marido se transferira, por 1724, a procurar-lhe ares restauradores da saude que ella a pouco e pouco perdêra em Amsterdão. O medico, perdido o arrimo da alma aos cincoenta e cinco annos de edade, sentiu gravame e tedio da vida. Os bens da fortuna eram muitos; mas o veneno da saudade e da solidão, por ser bebido em taça de oiro, não lhe era menos lethal. Se elle fosse pobre, trabalharia, quebraria na canceira da lida suada para ganhar pão alguns espinhos da sua corôa de orfão de todos os affectos puros e sagrados, na edade, em que sómente esposa e filhos podem adoçar o amargo da velhice. Não tinha ninguem lá fóra. E em Portugal se tinha parentes nem os conhecia, nem amava, nem já esperava, nem queria ser estimado d'elles. Vagamundeou de reino em reino, repartindo alguma parte dos muitos haveres por hebreus necessitados, e reservando para si a quantia que computou necessaria para passadio abundante de quinze annos. Passados dois, estanceava por Marselha, quando um navio mercante estava carregado com destino a um porto de Hespanha. Quasi sem consultar os perigos da sua temeridade, como quem nenhuns vinculos já tinha que desprender dolorosamente das coisas boas d'este mundo, embarcou como hollandez, com passaporte que o abonava mercador de Amsterdão, e desembarcou na Corunha. D'aqui passou a Portugal, em navio hespanhol, e viveu alguns dias em Lisboa, separado de toda a convivencia e encontrando a miudo pessoas de Hollanda, que deviam conhecel-o, se elle em tres annos não tivesse encanecido, e oito annos antes se não retirasse d'entre os portuguezes para os pontos mais solitarios e pittorescos da Italia. Foi o doutor a Ourem, com ares de forasteiro que vê pelo miudo as mais e menos notaveis terras dos paizes. A casa onde elle nascêra havia sido vendida pela corôa, para a qual tinha sido confiscada, depois que o dono fôra queimado em estatua. Estava sendo estalagem. Pernoitou n'ella; dormiu no quarto de sua mãe... não dormiu: chorou por todo o correr da noite vagarosa. Antes que a primeira luz do seguinte dia apontasse, saiu do quarto onde nascêra e morrêra sua mãe, viu de passagem o quarto que fôra o seu, e d'onde agora saía outro viageiro madrugador. D'aqui se foi caminho de Coimbra, abafando os soluços para que o arrieiro e outro viajante que cavalgava e o seguia silencioso lh'os não ouvissem. Andado um quarto de legua, perguntou-lhe o companheiro: --Vae para Coimbra, camarada? Francisco Luiz, fingindo uma pronuncia de hollandez que sabe algum pouco de hespanhol, disse que sim, ia ver Coimbra, porque andava examinando os monumentos celebres de Portugal. O collocutor era homem já de annos adiantados: orçaria tambem por perto dos sessenta. --Aquillo já foi Coimbra! disse elle. Quando eu por alli andei estudando, grandes homens liam na universidade; hoje, nem já parece Coimbra, nem cidade das letras. A vossemecê, que é estrangeiro, posso-lh'o dizer: os jesuitas deram cabo dos bons estudos. --Ha quantos annos andou vossemecê estudando na universidade? --Ha bons quarenta. Matriculei-me no primeiro anno de medicina em 1693. --Noventa e tres?--perguntou Abreu com reparavel interesse; mas o ar de espanto passou, na mente do outro, como pergunta admirativa do muito longe que já ia a vida estudiosa do interrogado. --É verdade. Ha que tempos isto vae!... Dos meus condiscipulos, que eu saiba, já não vive nenhum. --Seria d'esse tempo--tornou Abreu--um portuguez medico que eu conheci em Hollanda? --Como se chamava? O doutor quedou-se a scismar largo tempo, e disse: --Chamava-se Francisco... Francisco... Luiz... --De Abreu?--accudiu o interlocutor--Ora se conheci!... Não era meu condiscipulo; era mais novo do que eu na universidade um anno; mas havia de regular pela minha edade. Fui amicissimo d'elle, e elle meu. Queimaram-no em estatua e mais a mulher, no auto da fé de Coimbra, em 1699, se bem me lembro. Ora se conheci! Ainda será vivo? --Não lhe sei dizer. Ha muitos annos que viajo, e não voltei ao meu paiz. Tem familia em Portugal? --Não lhe posso dizer; mas a mim lembra-me que elle tinha um filhito natural, posto que outros diziam que o pequeno era filho de outro hebreu, que andava desterrado. Esse filho desappareceu; não sei se elle o levou, se morreu por cá em companhia de parentes. --Tambem a mim me está lembrando que esse medico me fallava muitas vezes n'outro hebreu condiscipulo d'elle... ora que me não accode o nome!... Um hebreu que fugiu de Portugal com a filha de um fidalgo, christão velho... --Ah! já sei de quem vossemecê me quer fallar... Ha de ser Antonio de Sá Mourão. --Parece-me que sim... --Não podia ser outro. Conheci-o perfeitamente. Era o melhor estudante da faculdade medica. Sei a historia d'esse desgraçado, perfeitamente... --Então sabe que fim elle teve?--atalhou Francisco Luiz. --Morreu, o que eu sei é que o pobre homem morreu lá fóra e por pouco lhe não matavam os paes cá dentro. A minha casa dista da casa dos Cabraes, senhores de Carrazedo, meia legua. Veja se eu não estarei lembrado de tudo isso, conhecendo a morgadinha como as minhas mãos. Imagine vossemecê qual seria o meu espanto, quando, faz agora quatorze annos, a vi. --A viu?!--exclamou Abreu--viu? quem?! --A morgada de Carrazedo... E, como soffreando a expansão, o viajante disse: --Conto estas coisas a vossemecê porque é estrangeiro, e por que ella já morreu, e não tem que temer da inquisição. Que ella andou em Portugal incognita... --Mas vossemecê viu D. Maria Cabral?--tornou Francisco Luiz. --Justamente, D. Maria era o nome d'ella. Vejo que sabe tambem algumas miudezas da tragedia!... Pois vi-a com estes olhos; e vossemecê poderia vel-a tambem, se ella não tivesse morrido em 1718. --Conte-me o que souber d'essa senhora, que tenho ardentissima curiosidade de saber os successos da vida de tamanhos infelizes... --Olhe, o modo como o marido lá morreu por fóra, não m'o disse ella... mas, o melhor é contar-lhe desde o principio. Appareceu aquella senhora em Bragança, com uma menina de vinte e dois annos. --Menina! filha d'ella? --Sim, filha d'ella e do judeu Sá Mourão. Francisco Luiz de Abreu arquejava, e parecia temer que a vida se lhe acabasse antes de ouvir o remate da historia. Mortificava-o, a vontade de ingranzar perguntas em tropel; sustinha-o, porém, já o receio de se privar das miudezas que o pachorrento narrar do homem promettia, já tambem o receio de se fazer suspeito pela demasia do interesse, bem que o sujeito se lhe afigurasse bom homem, e incapaz de o denunciar. --Então ella tinha uma filha?--insistiu Abreu. --É verdade. Linda como a mais linda estrella; mas a mãe, d'aquillo que tinha sido, não lhe restava sombra nem vestigio. Era uma sexagenaria, não podendo ter então mais de quarenta e quatro annos, cá pelas minhas contas, porque ella tinha dezeseis quando fugiu com o judeu da Guarda... Não me lembra o que eu ia dizendo... --Que appareceu em Bragança D. Maria Cabral com uma menina... --É verdade. Chegou a Bragança, e fallava muito confusamente o portuguez, e a filha pouco ou nada dizia. Tomou de renda uma casinha e para alli se metteu com duas criadas, que lhe chamavam D. Antonia da Piedade. Depois de por lá estar alguns mezes, dando muito que pensar á curiosidade da terra, começou a sair com um aspecto muito doentio, e a dar passeios a cavallo pelos arredores. Chegou á casa de Carrazedo, onde ella tinha nascido, e mandou pedir aos moradores d'ella licença para lá passar as horas da calma. Foi recebida por pessoas que ella nunca tinha visto; mas que eram seus primos e sobrinhos, que tinham ido de Chaves tomar conta da herança de Fernão Cabral. Este fidalgo desherdára a filha, porque as leis lh'o facultavam, e nomeara herdeiros os filhos de uma sua irmã, que elle odiava, por se ter casado com um capitão de cavallos menos fidalgo do que ella. Mas o odio á filha avantajou-se tanto ao odio da irmã, que, em artigos de morte, receiando que os descendentes d'elle ainda viessem perturbar-lhe o somno eterno, desherdou-a e nomeou seus herdeiros os sobrinhos.[29] D. Maria soffreu voluntariamente algumas horas de martyrio n'aquella casa, e ouviu com enchutos olhos contar a uma de suas primas a historia da morgada de Carrazedo, mulher perdida por amor de um judeu da Guarda com quem casara. Soube como tinha sido desherdada e amaldiçoada pelo pae á hora ultima; agradeceu as sôpas que lhe deram os possuidores do seu grande patrimonio, e seguiu seu caminho. Ao escurecer chegou ao portão da minha casa, e perguntou se alli morava ainda, ou se já tinha morrido o doutor José de Barredo. --José de Barredo! disse Abreu, sem ter mão da impetuosa reminiscencia que lhe accudiu. --Sou eu. Parece-me dar vossemecê a entender que já ouviu o meu nome?! --Não me é novo... tartamudeou Francisco Luiz. --Póde ser que Francisco Luiz de Abreu lhe fallasse alguma vez em mim, quando lhe referiu a historia de Antonio de Sá, porque eu, não sei porque fatal compaixão de D. Maria, alguma parte tive nos amores funestos d'elles, prestando-me a receber da Guarda as cartas que elle escrevia á morgada. --Naturalmente é de Francisco Luiz que eu conheço o nome de vossemecê, disse o doutor Abreu, olhando muito em fito as feições d'aquelle velho, que tinha sido em Coimbra um dos seus mais affectos contemporaneos.--Deixe-me apertar a mão de um amigo de Francisco Luiz--tornou Abreu, apertando-lh'a com estremecido enthusiasmo.--Se elle o podesse encontrar, senhor Barredo, estou que choraria, estreitando ao coração o homem talvez unico n'este mundo que lhe resta dos que na mocidade o prezaram... --Certamente--disse José de Barredo enternecido a lagrimas.--Se elle vivesse, seria o meu mais velho amigo... que todos os outros morreram... A opinião que elle e Antonio de Sá tinham do meu natural, sendo elles judeus e eu christão velho, bem se deixa ver no procedimento de D. Maria comigo; pois, escondendo ella o seu nome e nascimento de todos, procurou-me a mim com o proposito de se declarar. E assim o fez. Logo que me avisaram de estarem alli duas damas, uma das quaes tinha cara de doente, fui recebel-as ao pateo, cuidando que era consulta de medico. Conduzi-as á sala, e ahi D. Maria, com os olhos desfeitos em lagrimas, e muito embaciados, entrou a olhar-me, e a tremer, até que, expedindo um grande ai, se lançou nos meus braços, clamando: «eu sou a sua amiga da infancia, sou Maria Cabral, morgada de Carrazedo!» N'este ponto da narrativa, pararam os arreeiros á porta da estalagem de Thomar. Os cavalleiros apearam, subiram ao sobrado da estalagem e pediram almoço. José de Barredo proseguiu, atando o fio com as palavras de D. Maria. --Eu sou a sua amiga da infancia!--clamou ella--Sou Maria Cabral, morgada de Carrazedo! Faça idéa, e continuou Barredo--faça idéa do meu assombro, senhor... senhor... póde dizer-me a sua graça?... Um amigo do meu amigo da mocidade, não deve hesitar em querer a amizade que lhe offereço, e dizer-me o seu nome... --Direi--balbuciou commovido o outro no mais correcto portuguez:--mas ha de ser com o coração bem perto do teu, José; abraça-me, e ouve-me muito baixinho esta revelação feita á tua alma: Eu sou Francisco Luiz de Abreu. José de Barredo abriu a bôca até onde lh'o permittiam as articulações das mandibulas. A expressão d'aquelle seu grandissimo espanto foi um som rouco, similhante a um brado de terror. Em seguida, rebentaram-lhe subitas as lagrimas, e então sómente pôde o velho atirar-se todo aos braços do amigo, e exclamar: --Ó Francisco!... se a inquisição te conhece! --Tu sómente me conheces em Portugal--disse o doutor Abreu--E não temas por mim, que, se eu cair nas garras do santo officio, pouco mais se doerá do fogo d'elle este corpo empedrenido do que ha trinta e sete annos a minha estatua. Morto estou eu já, meu amigo. Que me faz a mim agonisar sobre as brazas da minha tristeza irremediavel, ou expirar mais depressa nas torturas da polé ou nas do garrote? Como quizerem... José de Barredo quiz suspender a narrativa do tocante á viuva de Antonio de Sá Mourão para ouvir a dos successos de Francisco Luiz. Não lh'o permittiu a anciedade do amigo. Conformou-se o confidente de D. Maria, e continuou, ordenando aos arrieiros que fossem adiante e os esperassem no Arneiro, onde haviam de jantar, cinco leguas adiante na estrada de Coimbra. Continuou o doutor Barredo: --O alvoroço que me fez o apparecimento d'aquella senhora alquebrada e de todo desfigurada, dizendo-me que era a formosa morgada de Carrazedo, só t'o posso comparar com aquelle que, ha pouco tu me causaste, Francisco. São dois lances da minha vida que já não podem repetir-se. Não tenho mais ninguem que esperar da minha mocidade. Era ella e tu; por que Antonio de Sá, esse não póde mais voltar... --Creio que seria o mais ditoso dos teus amigos...--balbuciou Francisco Luiz. --Oh! não!... pois tu desconheces a doçura d'estas nossas lagrimas? Dois velhos, que se amaram moços, e se encontram nos umbraes de outro mundo para se despedirem! Que é isto, senão o derradeiro calor da vida que ainda nos aquece os corações?... Demos graças ao nosso Deus, que é o mesmo Deus, ou elle se chame Jesus de Nazareth, ou Messias, ou simplesmente creador do céo e da terra. Suppliquemos-lhe que nos deixe já agora acabar estes ultimos dias um á beira do outro... Tu vaes para minha casa, não é verdade, Francisco? --Irei a tua casa, irei, José; mas... estou a receiar que te esqueças da nossa pobre senhora...--disse Abreu, sorrindo, e enchugando as lagrimas. --Tens razão; mas deixa-me ser feliz um poucachinho... Temos tanto tempo em que fallar dos outros desgraçados... --Oh! se tu podesses dizer-me que ella ainda vive... --Não posso, e pouco tenho que te contar antes da morte d'ella... Ahi vae o mais que sei. D. Maria perguntou-me se devia considerar perdido o seu patrimonio; e eu respondi lhe que sim; e pedi-lhe que nem fallasse em tal pretenção, se a trazia, porque os individuos possuidores d'elle seriam capazes de a denunciar ao santo officio, e de lançarem rezina aos páos da fogueira com as proprias mãos. Então me relatou ella a desgraçada vida que tivera por espaço de quinze annos, captiva de corsarios e mais o marido e filhinha: é uma historia longa, que eu te hei de mostrar escripta, em minha casa. Não t'a sei dizer de memoria porque ha quatorze annos que fechei e mais não vi os taes papeis, e já era minha tenção queimal-os para que por elles se não venha a descobrir quem é D. Josepha, a filha do judeu Antonio de Sá. Esteve D. Maria alguns poucos mezes em minha casa, soffrendo, sem treguas, molestia incuravel: estava ethica. Lembrou-se de ir consultar medicos famosos: bem sabia eu a inutilidade do passo; mas deixei-a ir ao Porto, a consultar um famoso medico chamado o _Olho de Vidro_. --Braz Luiz de Abreu--atalhou Francisco Luiz. --Esse mesmo, cujo nome tantas vezes me fez lembrar o teu, que cheguei a perguntar se elle seria teu parente; mas logo me disseram que não, e, para prova de que não era, bastou-me saber que o Olho de Vidro era familiar do santo officio. Francisco Luiz interrompeu a narração para referir a correspondencia que tivera com o tal medico portuense, imaginando que elle, por um acaso maravilhoso, poderia ser o filho de Antonio de Sá, uma creança que... --Muita gente--accudiu José de Barredo--e eu mesmo pensei que fosse teu filho... --E admiro que não soubesses que era filho de Antonio de Sá! --Não sabia; porque, desde a fuga da morgada, nunca mais tive novas d'algum d'elles, e bem sei eu por que: fiz repugnancia ao desvariado procedimento d'ella; cheguei a fazer-lhe ameaças de a denunciar ao pae, a ver se a dissuadia. Tu mesmo, se bem me lembro, ignoravas onde estivessem alapados, e cuidavas comigo que se tinham embarcado para a India. Depois desappareceste de Coimbra, e quando voltaste nada me disseste, nem eu t'o levo a mal, porque sei quão perigosa era a tua situação, e a dos paes de Antonio de Sá que o santo officio prendera na Guarda. Sabia eu que uma mulher creava em Coimbra uma creancinha que tu algumas vezes visitavas. Suppuz, como quasi toda a gente, que era teu filho... Morreu esse menino? --Não sei. Presumo que sim. Ninguem me pôde informar, e bastas vezes pedi novas d'elle. Acaso te lembras da morte de Heitor Dias da Paz, de Villa Flor? --Lembro, foi em 1707. --Nunca ouviste dizer que em poder d'esse hebreu estivesse um moço, que então devia ter entre quatorze e quinze annos? --Não ouvi dizer nada. --Pois era elle, se existisse. Vamos ao fim da historia de D. Maria. Valeu-lhe alguma coisa a medicina do tal Olho de Vidro? --Nada. Passados trinta e tantos dias, chegou a Bragança a nova de que ella tinha morrido, com o nome de D. Antonia da Piedade, e que sua filha D. Josepha tinha casado com o medico Braz Luiz de Abreu. Aqui tens o que sei. Haverá cinco annos que eu fui ao Porto e procurei o Olho de Vidro, no intento de ver D. Josepha. Disseram-me que elle, em resultado de inimigos seus collegas, que assanhára com a publicação d'um livro chamado _Portugal Medico_, tivera de afastar-se do Porto, e fôra estabelecer-se em Aveiro, onde tinha comprado muitos bens de raiz e vivia abastadamente. As minhas occupações não me deixaram ir a Aveiro, e já agora morrerei sem ver D. Josepha, que deve estar perto dos quarenta, ou quem sabe se já estará na eternidade! --Irás agora a Aveiro comigo--disse Francisco Luiz.--Quero vel-a, sem que ella saiba que eu fui o maior amigo de seu pae. É preciso temer-lhe o marido, visto que elle tanta familiaridade tem com o santo officio. Tu a procurarás, e darás azo a que eu a veja e lhe falle como desconhecido. Uma boa lembrança... Irei consultar-lhe o marido, fingindo de doente estrangeiro, a quem chegou a nomeada de tão abalisado medico. Contar-lhe-hei muitissimos padecimentos que elle ha de classificar de muitissimas maneiras, e assim estarei mais ao alcance de ouvir D. Josepha dizer-me alguma coisa de seu pae. Ora, dize-me tu: nunca, D. Maria te disse que deixára um filho em Portugal, quando fugiu para Hespanha? --Disse que esse menino o considerava morto: uma só vez me fallou d'elle; mas as lagrimas eram tantas que eu me esquivei a pedir-lhe pormenores da creança, de modo que nem soube que o menino ficára em tua companhia, nem depois passára á dos Moraes de Villa Flor. Eu não te disse ainda que D. Maria, ás temporadas, parecia cair em modorra e paralysia de entendimento. Esquecia-se e quedava-se n'umas cogitações taciturnas; e, se lhe tiravam muito pela falla, respondia disparates. De sorte que eu, a respeito do filho, que ella dizia ter deixado em Portugal, não cheguei a fazer perfeito juizo, nem a mesma filha estava convencida de que elle tivesse existido: a prova era que ella ouvia com certa estranheza as revelações confusas que a mãe me fazia sobre as desgraças do seu longo desterro e captiveiro. Póde ser que tu, Francisco, se te deres a conhecer a D. Josepha, venhas a obter muitos esclarecimentos, que eu mal posso dar-te porque sinto enfraquecida a memoria, e preciso espertal-a com a leitura dos meus apontamentos. Quem melhor te poderá referir a vida de Antonio de Sá, a meu ver, é o marido da filha; mas quererá elle--o familiar do santo officio e author da vida de Santo Antonio--que tu saibas a procedencia hebraica de sua mulher, embora possa ufanar-se de serem netos de Fernão Cabral os seus filhos? Não terá elle medo de que o santo officio lhe sáia ainda a pedir contas á mulher dos delictos do pae e da mãe? --Isso é claro--observou Abreu.--Nem eu lh'o perguntaria, nem elle me contaria coisa alguma allusiva á filha de Antonio de Sá. De mais a mais, já eu te disse que resposta me elle deu para Amsterdão. Devemos ir prevenidos contra o genio irritavel do homem; é preciso muitissimo cuidado, que não vamos indiscretamente perguntar-lhe de quem é filho. No dia seguinte ao meio dia, os dois velhos chegaram a Coimbra, e andaram procurando as differentes casas em que tinham morado. Ao segundo dia de repouso, cuidaram em jornadear para Aveiro. Pouco antes da partida, chegou a Coimbra um proprio enviado da casa de José de Barredo; noticiando-lhe que sua mulher estava em perigo de vida. Desfez-se o plano de irem juntos a Aveiro, e foram juntos para Bragança; Francisco Luiz de Abreu quiz acompanhar o velho amigo, no proposito de lhe desacerbar as lagrimas da viuvez, se a desgraça fosse inevitavel. Era. Francisco Luiz assistiu aos funeraes da esposa de José de Barredo. E quando o velho parecia conformar e esquecer-se entre as caricias de muitos filhos, despediu-se por alguns dias, e saiu sósinho de Bragança em direitura a Aveiro. XII Historia de Antonio de Sá Recebeu Braz Luiz de Abreu aviso para ir ver um hespanhol que pousara enfermo na estalagem. Francisco Luiz queixou-se de varias molestias, ouviu o parecer do medico, pagou-lhe generosamente e pediu-lhe que o visitasse todos os dias. Dos remedios receitados não se aproveitou, porque os achaques eram phantasticos, e bem sabia o doutor Abreu como era facil enganar outro doutor Abreu. No dia seguinte, o Olho de Vidro encontrou melhorado o seu doente, e sentiu-se ufano do acerto com que cortára pela raiz uma doença, com a qual se tinham enganado os principaes medicos de Hespanha, segundo a confissão do doente. Já o doutor Braz queria espacejar as visitas: o hespanhol, porém, instava, pagando-as a brio, que não lhe faltasse diariamente com ellas. Estava sendo celebrado em Aveiro este triumpho recente do Olho de Vidro. Já o convalescente se julgava restaurado, e o doutor como tal o déra; o forasteiro, porém, affeiçoado á terra onde se recobrara, determinou passar n'ella a primavera de 1732, e voltar nutrido a Castella, de modo que os medicos madrilenses se comessem de inveja dos seus collegas portuguezes. O doutor Braz, como visse no seu enfermo D. José Aristizaval (assim era conhecido em Aveiro) excellentes qualidades, contando n'estas a bizarria indicativa de riqueza, convidou-o a servir-se de sua casa e da convivencia de sua esposa e filhos, os quaes, dizia Braz Luiz, são tantos que bastam a formar uma assembléa em Aveiro ou saráo d'aldeia, que monta o mesmo. Agradeceu e aceitou o convidado o offerecimento; e, logo á primeira visita, brindou a esposa do seu medico e as cinco meninas, formosuras muito de se verem, cada uma com sua joia de preço. Reparou logo e de relance em D. Josepha, e recordou uma por uma as feições de D. Maria Cabral. Ficaram as meninas contentissimas dos presentes, que eram braceletes de oiro, mandadas comprar ao Porto, com a designio já posto no destino que tiveram. Entretido n'estas coisas, mistura de puerilidade e bons sentimentos, o espirito de Francisco Luiz ía cobrando alento e certa energia. Grande parte n'esta sua insolita actividade era por certo a esperança de saber pelo miudo a vida tragica do seu amigo Antonio de Sá. Seguiram-se as visitas e foi-se apertando a intimidade. As meninas e os rapazes folgavam muito de ouvir o velho D. José contar historias curiosas das suas navegações. Um dia, veio ao ponto uma batalha de corsarios com uma náo hollandeza, em que elle viajava na costa de S. Domingos. --De S. Domingos!?--exclamou D. Josepha.--Já esteve n'esses sitios vossemecê? --Avistei-os--disse o hospede. E inventou uma rija peleja entre hollandezes e piratas, descripção temerosa que tinha os ouvintes espavorecidos. Terminou o saráo d'aquella noite; e, na seguinte, Braz Luiz de Abreu, cada vez mais entrado de affecto ao hespanhol, lhe disse: --D. José Aristizaval, hoje sou eu o narrador de desventuras de navegantes. A historia que eu vou referir só a sabe em Portugal minha mulher e eu: de hoje ávante ficam-na sabendo o meu honrado hospede, que a não ha de repetir a portuguezes, e os meus filhos, que por interesse seu, hão de calal-a. --Honrado sou eu por benevolencia do doutor--se vossemecê me considera egual com seus filhos no merecimento de entrar no segredo de seus paes, respondeu Francisco Luiz. --É segredo de tanto porte--accrescentou o medico, abaixando a voz--que não sei d'outro em minha vida com que possa mostrar-lhe a confiança que me merece, senhor D. José. E, passados alguns segundos, Braz Luiz de Abreu, silenciosos profundamente os ouvintes, principiou assim: --Minha sogra era filha de um dos primeiros fidalgos de Traz-os-Montes. O solar dos Cabraes de Carrazedo é um dos mais antigos de Portugal. Meu sogro era hebreu, e chamava-se Antonio de Sá Mourão, natural da Guarda. Fugiram de Portugal com admiravel fortuna, e casaram-se segundo o ritual hebraico, presumo eu. Meu sogro, ao tempo da fuga, estudava medicina, e tomou gráo em uma das universidades estrangeiras. Esteve alguns annos na Europa; e, como o dominava a paixão de ser rico, aceitou partido muito vantajoso que os francezes lhe offereciam no Canadá, e embarcou em Marselha, quando minha mulher era creancinha. Na altura da costa de S. Domingos, a náo em que elle se embarcára perdeu o rumo, e foi levada contra a costa, por não ter tempo de fazer-se ao mar quando a tormenta se levantou. Antes que o navio se despedaçasse, alguns passageiros aventuraram-se n'uma lancha a ganharem a praia por entre as fauces da morte. Com os aventureiros ia meu sogro, e a esposa com a filhinha nos braços, dispostos a descerem ao abysmo abraçados. Já perto de terra, onde levavam postos os olhos, avistaram dois navios de pequeno lote, e chusmas de tripulantes vestidos de trajos extravagantes. Um conhecedor d'aquelles mares reparou nos homens da patria, que se moviam vertiginosamente, e exclamou: --São os demonios do mar! São flibusteiros![30] Vejam lá o que querem: morrer no mar ou no captiveiro d'aquellas bestas-feras? Ninguem optou por morrer no mar. Os passageiros da lancha, bebendo a morte a cada instante, conclamaram que antes queriam o captiveiro do que a morte horrivel de afogados. Antes de chegarmos a terra, ouviu-se uma grande celeuma do mar a dentro. Olhámos todos para a náo, e vimol-a sossobrar, e uma montanha de vagas abater-se sobre ella. Soltámos um grito unisono de consternação! Alguns dos aventureiros gritavam por esposas, por paes e filhos!... Que situação, senhor D. José! D'um lado, aquelle naufragio horroroso, do outro os flibusteiros, que esperavam anciosos a prêsa, que se lhe ia entregar aos ferros. Assim que a lancha bateu em terra, os bandidos rodearam a prêsa, e mal ouviram não sei que palavras ditas por meu sogro a sua mulher, bradaram todos: «Cá temos um cão de hespanhol!» E a um tempo se lançaram todos a elle, como se entre si disputassem com especial odio a posse d'aquella victima distincta das outras. Como se explicava o particular rancor que os flibusteiros tinham aos hespanhoes? --Se eu não receasse interromper a sua interessante historia--disse Francisco Luiz--lhe daria a razão d'esse odio, se é que sua esposa não quer explicar-lh'o melhor do que eu sei, por m'o haverem contado e não por experiencia. --Minha mulher, disse Abreu, ignora-o, porque muitos annos viveu longe do trato de tal gente, e não sabe explicar-m'o. --Em poucas palavras o farei--tornou o hospede.--Os pontos essenciaes da ilha e costa de S. Domingos pertenceram aos hespanhoes. Um dia, chegaram á costa septentrional d'aquellas possessões algumas galeotas de aventureiros francezes, mesclados com malfeitores foragidos de todas as nações, homens sem patria, escapados do cadafalso, feras tremendas, que precisavam embriagar-se de sangue para gosarem algum prazer n'este mundo. A estas escorias sociaes congregaram-se outras da mesma indole saidas de Guadelupe, de Granada e da Martinica. N'aquellas vastas florestas acharam que farte sustento, na abundancia de manadas de toiros bravos, de javalis, e vaccas mansas, que os hespanhoes por lá deixaram medrar e multiplicar. A riqueza de cada um de estes bandidos compunha-se de uma boa matilha de rafeiros, d'uma enorme espingarda, duas camisas, uma jaleca, um chapéo de feltro, um calção, e uma grossa correia á cinta com uma espada curta e tres facas de matto pendentes. As casas d'elles, durante as sortidas á rapina, eram barracas de fina lona, com a qual se defendiam das ferroadas dos moscardos e das geadas homicidas. Viviam aos dois, antes que a França lhes mandasse mulheres, e, por morte de um, era herdeiro o outro. Raras vezes se desavinham, e quando se desafiavam matavam-se a tiro de espingarda. Se o morto não recebesse os pelouros pela frente, o assassino era logo degolado como traiçoeiro. O principal commercio d'elles era carnes seccas e pelles, que iam vender ás enseadas da costa, mediante uns assalariados, que tratavam entre elles e os compradores, na esperança de voltarem ricos da America, onde se lhes ia a vida em durissimo captiveiro. Quando os hespanhoes da ilha de S. Domingos deram tento dos salteadores nas visinhanças das ilhas, tiraram-se da lethargia de suas riquezas, pediram tropas ao rei de Hespanha e fizeram guerra implacavel aos flibusteiros, matando-lhes muitos dos mais audazes. D'este começo de exterminio se gerou o odio dos bandidos á Hespanha, e mais ainda por causa do golpe mortal que soffreram, quando as tropas entraram ás mattas, e mataram os rebanhos mansos e bravos, que o mesmo foi seccar as fontes de subsistencia d'aquellas hordas. Eis aqui, a meu ver, a origem do inquebrantavel rancor dos chamados _demonios do mar_. Agora, vamos á historia do senhor Antonio de Sá, meu sogro. --Meu sogro, minha mulher e filho--continuou Braz de Abreu--foram remettidos á Martinica n'uma galé, que vogava com mais de cem homens. O capitão dos flibusteiros residia alli, como governador, e chamava-se Duparquet... --Devia ser filho--atalhou Francisco Luiz--de um francez tambem chamado Duparquet, levado ás honras de governador em 1637 por Luiz XIII de França, a quem convinha aliançar-se com _tão honrados_ vassallos. --Duparquet, sabendo que o hespanhol captivo era medico, tratou-o com alguma affabilidade, e encarregou-o de lhe curar de cameras uma filha. Meu sogro saiu felizmente do encargo, e foi considerado por isso medico da casa do governador. N'aquelle anno, que me parece seria o de 1697 ou 98, segundo as confusas lembranças de minha sogra, meu sogro foi mandado embarcar n'uma náo de quatro peças, da qual se arvorára almirante um francez chamado Legrand, o mais temivel flibusteiro d'aquelles mares. Antonio de Sá curou muitos mutilados n'uma abordagem aos galeões de Hespanha, e, pela pericia com que o fez n'um grave ferimento de Legrand, ficou desde logo nomeado escravo e medico do almirante. Meu sogro assistiu ao assalto de Maracaibo, riquissima cidade e bem guarnecida, que se deixou entrar e saquear por quatrocentos salteadores. Tambem assistiu á tomada de Carthagena pela esquadra franceza, auxiliada por flibusteiros, que lhe deram a victoria. No afogo d'esta peleja, Antonio de Sá, quando estava pençando as feridas de seu senhor, foi gravemente ferido de bala. A convalescença foi longa. N'este intervallo, em que elle se tornára inutil, pediu licença para ir vêr á Martinica sua mulher e filha. Negaram-lh'a; mas concederam-lhe que a familia o fosse visitar nos arraiaes movediços de sobre as ondas. Legrand tinha residencia em S. Domingos, onde se desfadigava das batalhas navaes, exercitando os seus leões do mar. Obrigou, portanto, o prezadissimo escravo a viver com elle. D. Maria, minha sogra, passou á companhia do marido, e minha mulher que tinha então seis annos, ficou em casa do governador da Martinica, por que a filha predilecta de Duparquet se habituára a consideral-a a sua escrava loura. Por muitas vezes, Antonio de Sá Mourão supplicou a Legrand, que, em paga de seus serviços, o deixasse passar com sua familia á Europa. O francez, importunado pela teimosia de taes rogos, ameaçou-o de o mandar matar, se elle tentasse fugir! É onde podia chegar a gratidão do flibusteiro almirante! Minha sogra me disse que, decorridos cinco annos, o marido escrevera desde S. Domingos a um amigo muito querido, que tinha em Portugal. A carta, porém, foi devolvida passados dias a Antonio de Sá, com a seguinte reflexão do governador almirante: «Os escravos dos flibusteiros, se teimam em escrever cartas para Hespanha, correm o perigo de não poderem já ler as respostas, quando ellas voltarem.» Nunca mais Antonio de Sá escreveu ou tentou escrever para Portugal. O medico ia enriquecendo com as liberalidades dos flibusteiros; porém, um dia, achou-se roubado, não obstante ser pouquissimo vulgar o latrocinio entre elles. Seria porque ao portuguez ou hespanhol o consideravam estranho á sua tribu, e como tal indigno de se gosar dos foros de lealdade, que uns com outros guardavam. Minha mulher corria por este tempo nos seus dez annos. O pae consternava-se de a ver crear-se entre gente brutal, e rodeada de creaturas ignobeis do seu sexo, recenseadas nos lupanares de Paris e de Marselha, enviadas como presas ás colonias. Antonio de Sá, aproveitando o lanço de ter captivo o animo do governador, depois da cura de doença grave, pediu-lhe licença para enviar a filha a educar-se n'uma casa de religiosas francezas. O governador condescendeu, e enviou duas netas ao mesmo collegio, na primeira náo que saiu para França. Meus sogros presumiam que lhe seria menos embaraçada a fuga podendo passar a filha á Europa. Enganaram-se; por que Duparquet, arrependido da concessão, redobrou de vigilancia sobre os menores passos do seu medico. XIII Seguimento da historia --Antonio de Sá--proseguiu Braz Luiz--foi chamado a curar de febres um judeu rico da Normandia, que se passara com grande companhia de hebreus pobres a fundar uma colonia na costa de S. Domingos, com licença do rei de França e beneplacito do governador. Meu sogro, cumulado de liberalidades do seu restabelecido enfermo, deu-se por bem pago da amizade do hebreu, a quem se revelou proscripto da nação fiel, e evidenciou sua origem, praticando com elle as ceremonias judaicas. O colonisador estimava-o muitissimo. Animou-o a declarar-lhe o seu intento e pedir-lhe coadjuvação para a fuga. Não lhe encareceu o hebreu grandes difficuldades á boa saida do plano; assegurou-lh'a facil, logo que, fundada e solidificada a colonia, elle se fizesse na volta de França. O medico, alentado de esperanças, aguardou anno e meio a almejada hora; todavia, minguou-lhe a necessaria prudencia, porque, sem grande recato, começou de longe a simplificar os valores que tinha, trocando-os por pedras preciosas e coisas de facil transporte. Chegado o tempo da saida do opulento hebreu, conforme ao plano gizado pelos dois, inventaram uma epidemia na colonia, e pediu-se ao governador a assistencia do medico hespanhol. Duparquet mandou conhecer da epidemia clandestinamente por um cirurgião francez, fugido das galés de Marselha, e foi certificado de que era imaginaria a contagião. Foi o hebreu normando chamado á Martinica, quando já Antonio de Sá se desconfiava de certos tregeitos que vira na má cara do governador. O judeu, porém, mais desconfiado ainda que o seu protegido, respondeu affirmativamente ao commissario de Duparquet, e em vez de velejar para Martinica, mandou aproar ás ribas normandas e accender os morrões para incutir respeito ás galés de flibusteiros ancoradas na costa. Antonio de Sá foi o bode expiatorio da affronta, se mais bodes não foram os judeus da colonia que o governador mandou passar á espada, sem perdoar sequer a mulheres e crianças. Meu sogro teria sido espingardeado, se a esposa se não lançasse em joelhos aos pés da filha de Duparquet, a quem o marido por duas vezes arrancara ás presas da morte. Depois de preso alguns mezes, Antonio de Sá foi chamado á presença do governador e perdoado. Prégou-lhe o francez um demorado sermão, recheado de censuras contra o feio crime de ingratos da laia d'elle medico, o mais venturoso homem que ainda tinha caído em unhas de flibusteiros, e homem de mais a mais filho das Hespanhas. Lembrou-lhe os beneficios desusados com que lhe galardoara os seus bons serviços como medico, e os conselhos que lhe dera sobre o modo de enriquecer-se e constituir-se um dos mais ricos proprietarios das colonias de S. Domingos. Lembrou-lhe o resgate que lhe dera da filha, tendo-a aliás destinada, como formosissima que era, a casar com um seu neto. Antonio de Sá respondeu com muitas lagrimas, talvez suggeridas pelo recordar-se da filha, e desesperança de tornar a vel-a. Estas lagrimas compadeceram o governador, que o abraçou estreitamente, e lhe pediu que se deixasse estar até que um dia passassem ambos a França. O medico resignou-se e esperou. Entretanto, senhoreou-se d'elle presadissima tristeza, que a pobre esposa não sabia nem podia consolar. Esquartejava-lhe o coração aquelle espectaculo de incessante latrocinio e sordido desavergonhamento de costumes. Olhava contra o mar, e perdia a vista afogada nas lagrimas, exclamando: «Não hei de mais ver-te, ó minha filha... não hei de mais ver-vos, meus filhos...» --Pois elle tinha mais que uma filha?--perguntou Francisco Luiz de Abreu. --Essa mesma pergunta fiz a minha sogra--disse Braz--; mas a resposta era um silencio indecifravel, um esquisito amuar, que nem eu nem minha mulher ainda agora podemos atinar o que fosse... A meu juizo, minha sogra padecia umas turvações, a revezes, durante as quaes era preciso que a gente se não demorasse a querer entendel-a ou interrogal-a, que então rompia em alto choro ou carregava iradamente a sobrancelha. Meu sogro foi um dia com sua mulher supplicar ao governador que os deixasse sair, ou os mandasse matar. O francez condoeu-se, e mandou-os retirar benignamente, e esperar resposta em occasião opportuna. A opportunidade chegou tarde. Tinham já decorrido doze annos n'aquelle viver, em que outro qualquer homem acharia distracção, enriquecendo-se, e sabendo aproveitar-se d'esse lado unico, e todavia o mais bello para muita gente. Enfermou gravemente o medico: quem sabe se elle a si mesmo ministrou o veneno, que o ia corroendo vagarosamente? A sua maxima afflicção era antever a morte da esposa antes da sua. Isto attribulava-o, como se já a estivesse vendo sobre terra. Ia-se a ella debulhado em lagrimas, e rogava-lhe de mãos postas que tivesse mais força d'alma, mais coragem do que elle tinha para arrastar aquellas cadeias. Póde ser que afinal se lhe espessassem sombras de demencia na grande luz de razão com que entendera os arcanos da sciencia, quando a estudava em Coimbra... --Fallou vossemecê com alguem que o houvesse conhecido em Coimbra?--perguntou Francisco Luiz. --Fallei com os meus lentes, que todos tinham sido condiscipulos e contemporaneos d'elle, e lhe perdoavam o crime do rapto e do hebraismo em desconto de sua alta capacidade para as divinas sciencias medicas... Em que ponto estavamos? --Na doença do pae...--disse D. Josepha. --É verdade... na doença do meu sogro que foi a primeira e ultima da sua vida. Minha sogra, quando chegava a esta final jornada da sua tragedia, parece que se lhe apagava o entendimento. Soluçava, com os braços cruzados sobre o seio, e os olhos cravados no alto ponto onde ella imaginava por ventura entrever o espirito de seu marido. O certo é que elle morreu em 1716, consoante o calculo de minha mulher, que então já contava os seus vinte e um annos, dez dos quaes tinham sido vividos n'um convento. A compaixão franqueou a minha sogra a saida da colonia. Apossou-se da herança do marido que devia ser grande. Embarcou em um navio marselhez, que voltava do Canadá; antes, porém, de saltar de um barco de flibusteiro ao navio francez, já estava roubada do mais precioso da sua fazenda. A pobrinha não se queixou, nem de ver-se pobre cobrou grande angustia. Lembrou-se de que tinha uma filha, uma patria, e n'ella os haveres de seu pae, que deviam ser a riqueza de sua filha. Procurou em França o convento de sua filha, a qual duvidou reconhecer a mãe. Saiu minha mulher da casa religiosa, e assim se viram duas senhoras desamparadas em meio da França, entregues á propria deliberação. Alguem as enviou ao ministro portuguez em Paris, que lhes ouviu a historia com sentimento, e caridosamente aconselhou a minha sogra que se houvesse muito prudente com o santo officio de Portugal, em cujos archivos o nome d'ella devia estar escripto para eterna memoria. Porém, como quer que D. Maria teimasse em sair para a patria, o ministro advertiu-lhe que mudasse de nome, e se valesse das cartas que lhe deu, caso a inquisição a perseguisse, por effeito de alguma irreflexão d'ella, quanto á exigencia dos haveres de seus paes. Proseguiu Braz Luiz de Abreu, relatando o que já é notorio ao leitor, até ao seu casamento com a filha de D. Maria Cabral, fallecida no Porto. --Crucificada existencia foi pois a de Antonio de Sá Mourão!--murmurou muito recolhido Francisco de Abreu, e assim se esteve cogitativo por largo espaço. --Vejo que lhe fez commoção esta funebre historia!--disse D. Josepha. --Muitissima dôr!--murmurou o hospede, limpando o rosto coberto de lagrimas.--Pobre homem!... que destino!... que vida!... Como o mundo debaixo do céo está infamado de tamanhas desgraças!... E vale a pena o viver!... E não morrem afogadas as creancinhas ás mãos de seus paes!... Braz de Abreu, esposa e filhos todos tinham os olhos amarados de pranto. Francisco Luiz levantou-se, beijou as meninas mais novas, apertou a mão de D. Josepha, e despediu-se offegante de soluços. --Que sensibilissimo homem!...--disse o medico. XIV O segredo horrivel Ao outro dia, Francisco Luiz foi convidado a jantar com o seu medico. A condolencia a que o movera a infelicidade do hebreu Sá Mourão atou mais n'alma os liames de sympathia com que o Olho de Vidro o entranhára na intimidade dos seus. O israelita de Ourem ia triste. Dir-se-ia que nunca elle, até á vespera d'aquelle dia, devéras se convencêra da morte do seu Antonio de Sá. Tantos annos idos, e elle ainda a querer-lhe e como que a esperal-o! Já o seu contemporaneo Barreto lhe havia dito na summa o que Braz de Abreu lhe dissera, e todavia o convencimento da morte do marido de D. Maria não o tinha ainda penetrado, ao que parecia. Durante o jantar, como nenhum estranho assistisse, a fóra o hespanhol--que nunca se esquecera de o ser na linguagem--praticaram largamente ácerca dos actos do santo officio na Peninsula. O hespanhol relatou a sorte dos judeus em diversas partes do mundo, para concluir que em Portugal e Castella eram elles mais perseguidos do que poderia sel-o no inferno se, como piamente cria, Deus os tinha castigado com fogo infinito. Braz de Abreu, posto que familiar do santo officio, recebeu de boa sombra aquella um tanto ironica reflexão do commensal, attribuindo a genio espanholado a comparação faceta. Voltando á conversação da noite anterior, reflexionou Francisco Luiz que, tendo estudado algum tanto os factos da inquisição de Portugal, notára que a santa bandeira de S. Domingos de Gusmão era pouquissimo misericordiosa com os hebreus medicos ou estudantes de medicina. E ajuntou: --É sabido segundo me fizeram crer alguns foragidos de Portugal, que os estudantes de medicina apenas licenciados, ou se acreditavam como familiares do santo officio, ou se expatriavam antes que a inquisição os desterrasse d'este mundo. Dou como exemplo Henrique de Castro Sarmento... --Foi meu condiscipulo--atalhou Braz de Abreu. --Pois então sabe vossemecê que elle está em Londres, com o nome de Jacob de Castro Sarmento, em tanto credito e dignidade que, pouco ha, foi elevado á cathegoria de membro do collegio real dos medicos, e socio da sociedade real de Londres? Este grande sabio, e co-reformador da sciencia, que seria hoje em Portugal, se não se evadisse d'aqui uns quatro annos depois de licenciado? Seria porção d'essa vasa do Tejo por onde se misturam as cinzas de muitissimos da sua raça e do seu alto entendimento. Outro medico houve ahi em Coimbra, segundo me disseram, que chegou a pertencer ao corpo cathedratico, e teve de fugir com sua mulher para a India hollandeza. --Quem era? perguntou o doutor. --Se bem me lembro, tinha elle um nome assaz parecido com o de vossemecê. Chamava-se Francisco Luiz de Abreu. --É verdade!--acudiu D. Josepha--que nome tão similhante!... --E não sei--disse meditativo Braz Luiz--como esse nome me desperta coisas da minha primeira mocidade! --Póde ser--tornou o hospede--que, no tempo em que vossemecê estudou, se fallasse ainda no lente fugitivo. --Creio que sim: ha de ser d'esse tempo que me vem estas vagas memorias--redarguiu o Olho de Vidro.--Creio até que elle teria sido contemporaneo de meu sogro. --Provavelmente seria--obtemperou Francisco Luiz. --E a mim me está parecendo--acrescentou D. Josepha--que alguma vez ouvi meu pae proferir esse nome. --Ouviu?--perguntou o hospede com o coração sobresaltado. --Ouvi, sem duvida... _Francisco Luiz de Abreu_... Pois não ouvi? quantas e quantas vezes?... Que fim teria esse homem? --Provavelmente morreu, senhora--respondeu o hebreu; e proseguiu sem sensivel mudança de rosto:--Pois ahi tem, senhor doutor Braz, outro exemplo de perseguição á medicina. Ainda bem que vossemecê não teve de provar que o seu apellido nada tinha que ver com o do medico fugitivo. --Nada--balbuciou Braz Luiz, receando que, depós isto, disparasse a affrontosa pergunta de quem era filho. Francisco Luiz, n'este lance, lembrou-se da resposta que o _Olho de Vidro_ lhe mandára bastantes annos antes, e sorriu-se interiormente do dito d'aquelle hebreu, que ao mesmo lhe escrevia presumindo que Braz Luiz de Abreu era filho sacrilego de um frade, senão fosse filho de tres frades ao mesmo tempo. A pratica ficou por aqui, visto que a physionomia do dono da casa expressava nenhuma satisfação de que ella se proseguisse. Todavia, D. Josepha, quando já estavam sentados á lareira, porque a tarde era de março, disse: --Não me sae da lembrança o nome de Francisco Luiz de Abreu!... A gente, quando entra a envelhecer, recorda-se de coisas da infancia, esquecidas no correr de muitos annos... --A envelhecer!--disse risonho o hospede--vossemecê, minha senhora, está ainda muito no vigor da vida. Terá quando muito... --Trinta e sete annos--concluiu D. Josepha. --Pois ahi tem: ainda não chegou a meio caminho. E quem ha de dizer que já aqui tem esta senhorita, que representa dezoito, e apenas terá... --Treze--disse a mãe, correndo a mão pelos cabellos negros da sua primogenita Anna Maria. --E estes mocinhos, doutor? que destino tenciona dar-lhes?--perguntou o hospede. --Se o meu plano fôr ávante, irá um para a companhia de Jesus, e outro para medicina. --Cuidado com a medicina!--observou jovialmente Francisco Luiz--Faço-os ambos jesuitas, que os fará ambos dois grandes homens. --Pois D. José receia--dizia Braz Luiz algum tanto acrimonioso--que um meu filho, se fôr medico, possa parecer judeu? --Deus me livre de receiar similhante coisa! mas a mim quer-me parecer que a inquisição, quando não ha judeus, encarrega-se de os fazer, talvez por ter lido as santas palavras de Jesus que resam: _é necessario que haja escandalos_. --Como amigo--acudiu Braz Luiz--lhe peço que não falle assim diante de alguem. Lembre-se que está em Portugal, D. José!... --Bem sei, meu amigo; e, se outra vez me esquecer, rogo-lhe que m'o lembre. Agora me estava eu imaginando entre pessoas que muito me estimam, por isso me deixei levar d'uma invencivel propensão a estigmatisar as injustiças, ou ellas partam dos reis, ou dos ministros, dos papas ou dos inquisidores. D'isto, d'esta perigosa exempção e rudeza de espirito, procede não ter eu paragem certa sobre este solo cavado de abysmos, e andar-me sempre perigrinando de solidão em solidão, para ser ouvido da minha consciencia sómente... --Em nossa casa póde fallar--retarquiu o doutor--como falla a sós com a sua consciencia, D. José Aristizaval. A observação peço-lhe que m'a receba de bom animo, porque entende com o seu socego e deve servir-lhe n'um paiz que vossemecê conhece pouco. --Mercês, meu amigo!--tornou Francisco Luiz de Abreu.--O que eu sei de Portugal é verdadeiramente a historia da sua inquisição, e pouco mais... Ha pouco lembrou-me o nome de um condemnado ao fogo... tambem medico ou estudante de medicina... mas... passou-me... Deixe estar... Deixe ver... Ah! recordo-me... Chamava-se elle Heitor Dias da Paz... Vossemecê havia de ouvir fallar de Heitor Dias da Paz, que, segundo me affirmaram, andaria por Coimbra desde 1701 até 1704, uma coisa assim, pouco mais ou menos. Braz Luiz fitara os olhos n'um ponto da fogueira, como quem finge que se está recordando, e disse, corridos dois segundos, com profunda tristeza: --Conheci-o. --Pessoalmente? --Pessoalmente. N'este comenos, Braz Luiz, fitando o ouvido, como se ouvisse voz no interior da casa a chamal-o, ergueu-se. --Ninguem te chamou, Braz--disse D. Josepha. --Parece-me que sim... ouvi que me chamavam. --Não serão familiares do santo officio, que me requeiram para maior gloria de Deus!...--observou o hebreu como comico tregeito de quem se esconde. --Venha comigo á sala, D. José, se não tem muito frio--disse o _Olho de Vidro_. --Quem fallou na inquisição que sentisse frio? Estas praticas são excellentes no inverno...--respondeu Francisco Luiz, cuidando que o seu hospedeiro amigo lhe ia solemnisar com toda a gravidade possivel os sustos de o ver a braços com o santo officio. Braz Luiz, entrado á sala, deu alguns passeios meditativo, examinou as portas receiando a curiosidade da familia, e disse a meia voz ao muito attento e como espantado hospede: --Conheci-o, e conheci-o muito. --A quem?! perguntou como já esquecido Francisco Luiz. --A Heitor Dias da Paz. --Ah... já me não lembrava que estavamos fallando n'esse infeliz mancebo, cujos parentes conheci em Amsterdão... Devo dizer-lhe, meu amigo, que Heitor e o pae de Heitor, que se chamava... --Francisco de Moraes Taveira... --Justamente... são considerados santos no martyrologio ou cathalogo dos martyres hebreus. Isto presenciei eu e li nas dypticas da synagoga hollandeza chamada a _Casa de Jacob_... Com que então conheceu vossemecê mui de perto... --Conheci, como se conhece um irmão--acudiu Braz Luiz.--Não lh'o disse diante de meus filhos, porque é meu dever de pae e de christão esconder d'elles coisas tristes da minha mocidade, por isso que o mundo, se m'as soubesse, faria d'ellas espinhos, que me entrassem pela fronte dentro e me levassem a morte ao coração. Vou contar-lhe com egual sinceridade á da historia de meu sogro, o que eu sei de Heitor Dias da Paz e... de mim. As mais antigas reminiscencias da minha infancia prendem-se a Heitor Dias da Paz. Ditas estas palavras, Francisco Luiz de Abreu ouviu o bate de uma forte pancada no coração. Braz devia ver-lhe a subita alteração do aspecto, se tivesse mais claridade a sala, e elles não estivessem sentados no recanto mais escuro d'ella. Braz Luiz continuou: --Lembro-me de algumas coisas dos meus seis annos. Vejo uma mulher que me aperta ao coração, e desapparece para nunca mais ser vista. Nem já sei que feições ella tinha, nem sei onde a vi. É a recordação de um sonho isto, e pouco mais. Perguntei depois quem era aquella mulher, e responderam-me que fôra uma visão; e, se não era visão, mais tarde eu o saberia. Ora, as pessoas que podiam dizer-m'o, porque assim m'o tinham promettido, morreram. Uma era Francisco de Moraes, e outra era o filho, o suppliciado Heitor. Francisco Luiz arfava ancioso: ia-lhe no intimo coisa mais attribuladora que o susto da morte. Braz deu conta do que havia indissimulavel em tamanha anciedade; mas attribuiu tal inquietação ao natural condoimento do seu ouvinte. E, proseguindo, disse: --Heitor Dias chamava-me irmão; e Francisco de Moraes abençoava-me como a filho. --Vossemecê vivia em casa d'elles? --Vivia, desde os seis annos, como já lhe contei. Passados alguns, Heitor foi para Coimbra, e levou-me comsigo. Prestacionou-me para eu entrar no collegio de S. Paulo. No principio do anno de 1704. Heitor Dias foi preso, e sómente depois de 1707 alguns mezes, soube que a inquisição o condemnára a ser queimado vivo, e que o ancião--o desgraçado que não tinha outro filho, e chorava a mulher na sepultura ainda fresca--saindo ao encontro da procissão do auto da fé, se suicidara em presença de Heitor. Francisco Luiz de Abreu levantou-se hirto, de golpe, tremente e pallido. Este movimento como que levantou o marido de D. Josepha pelos cabellos, sem que elle comprehendesse a força mysteriosa que o repuchava. --Que tem, D. José?--perguntou o medico. --Eu não comprehendo o horror da sua situação!--murmurou Francisco de Abreu em legitima lingua portugueza, tapando os olhos com as mãos convulsivas. --Não comprehende o que?!--interpellou Braz estranhando grandemente a mutação de linguagem. --Como se chamava seu pae?--perguntou com palavras intercortadas pela abafação o hospede. --Não sei...--tartamudeou o interrogado. --Porque se chama Braz _Luiz de Abreu_? Como ajuntou este sobrenome e appellido ao seu nome baptismal? --Porque assim o achei escripto n'um abcedario da minha infancia. --Que desgraça!--exclamou Francisco Luiz, e começou passeando vertiginosamente na sala!--Que desgraça, Deus do céo!... Braz encarava-o com terrivel spasmo procurando nos olhos do seu hospede algum symptoma de demencia. N'isto, Francisco Luiz vae direito ao medico, como que o força a fazer pé atraz de espavorido, e diz-lhe: --Vossemecê ama muito sua mulher? --Se amo muito minha mulher? Como a Deus, mais do que a Deus! mais do que aos meus filhos!... Fitou-o com os olhos cheios de lagrimas o hospede, e disse-lhe: --Não me falle por alguns minutos... não me falle... deixe-me pensar... mas o melhor é que eu me vá, e voltarei n'outro dia. --Não... ha de explicar-me o que é isto... A sua linguagem é outra... Ha terrivel segredo aqui, ou o meu amigo enlouqueceu... Tire-me d'esta incerteza, por quem é... Deteve-se silencioso largo espaço o hebreu. Estava aquelle afflictissimo homem perguntando á sua consciencia, se não seria mais grato a Deus e á humanidade que um peregrino vindo d'além mar não entrasse um dia aos paços de Manuel de Sousa Coutinho a dizer a D. Magdalena de Vilhena que não podia ser mulher do homem que lhe chamava esposa! Se não seria mais humano e santo que aquelle peregrino passasse por diante da casa dos felizes, e dissesse: «Deixae-os viver e morrer ditosos na vossa ignorancia! Não serei eu quem vá vestir-vos a mortalha, e dizer-vos: sepultae-vos!» Assim pensava Francisco Luiz, e curava já de remediar o alvoroço em que pozera o seu amigo, quando este o abraçou com impeto, e lhe disse em tom violento: --Quem é meu pae? Quem sois vós, homem! Respondei, que eu sinto o peito alanceado de mortaes agonias! --Falle baixo, senhor Braz Luiz de Abreu--disse moderada e placidamente o hospede--Falle baixo, que está alli dentro a mãe com sete filhos. E desapertou-se dos braços d'elle para fugir. --Não!--exclamou o medico--não irá de minha casa, sem me dizer o que sabe do meu nascimento. Que importa que me diga que sou filho de um hebreu? que meu pae morreu queimado? que Heitor Dias era meu irmão? que o meu appellido é o de algum facinora? Diga, diga tudo, que a mim basta-me a consciencia da minha vida honrada para me acobertar dos insultos do mundo! Farto d'elles estou eu, por que me chamam engeitado! Diga-me seja o que fôr, que eu lh'o peço com as mãos erguidas! Por Deus não minta, senhor! Conheceu meu pae? conheceu minha mãe? --Conheci. --Jura-m'o pelos Santos Evangelhos? --Eu não reconheço a santidade dos Evangelhos. Juro-lh'o pela honra d'este homem, d'este hebreu queimado em estatua, d'este homem sem terra nem familia, chamado Francisco Luiz de Abreu. Jura-lh'o o homem que recebeu nos braços ha quarenta annos uma creancinha, que depois se chamou Braz Luiz de Abreu. Jura-lh'o o homem que depositou essa creancinha, quando os esbirros da inquisição o perseguiam, nos braços de Francisco de Moraes Taveira, de Villa Flor. Jura-lh'o o maior amigo de seu pae! Jura-lh'o o homem que enchugou no seu rosto as ultimas lagrimas de sua mãe... --Mas o nome de meu pae--atalhou Braz de joelhos, com as mãos erguidas e trementes.--O nome de meu pae, senhor Francisco Luiz de Abreu. --Dir-lh'o-hei ao ouvido--disse o hebreu, inclinando-se á orelha do medico. Braz expediu um brado estridente, ergueu-se de salto, e clamou: --E o nome de minha mãe? --Pergunte a sua irmã, á mãe dos seus sete filhos, como se chamava a mãe d'ella. --Como é, meu Deus?! como é?! por caridade, salve-me d'esta duvida atroz... Minha irmã!... quem é minha irmã, senhor? --É a filha de sua mãe. Abriram-se os batentes de uma das portas da sala. A mulher que entrou, fechando a porta para que os sete filhos a não seguissem, impetuosa, como cega de furia, ou impulsada de um grande terror, terror como de incendio que ameaçava devorar-lhe as creanças, ia lançar-se nos braços do marido; e, como lhe faltasse o amparo d'elles, caiu de rosto no pavimento, e soltou do peito uma soada rouca, similhante ao estallido de todas as fibras da vida. O quadro era de mais pavor do que póde exprimir lingua humana. Francisco Luiz poz a mão na fronte glacial e disse entre si: --Maldito eu seja, que trouxe a desgraça e a vergonha a esta familia! Braz Luiz inclinou-se a levantar a mãe de seus filhos nos braços que a não podiam suster. Chamou as filhas mais velhas, e mandou-lhes que levassem sua mãe ao leito. Acercou-se de Francisco de Abreu que estava chorando com a face encostada ao alisar de uma porta, e disse-lhe brandamente: --Senhor Abreu, não se arrependa; foi Deus que o enviou. Não chore, que as minhas lagrimas ámanhã estão enchutas: ha de seccar-m'as o fogo sagrado da minha religião. Tenho Jesus Christo na minha alma. Agora comprehendo que milagres se operam nas maiores angustias do homem. Os meus filhinhos serão sempre os bens que Deus nosso Senhor me confiou. Minha irmã está debaixo da mesma divina mão. Ha de resignar-se, ha de santifical-a a saudade, incenso de lagrimas que o Senhor lhe ha de aceitar e retribuir em consolações... Susteve-se n'esta exclamação arrobada e ungida de santa resignação. Momentos passaram silenciosos... Depois, levando freneticas as mãos á cabeça, exclamou: --Mas eu hei de separar-me para sempre de minha esposa... do anjo bemdito de toda a minha vida!... E atirou-se ao peito soluçante do homem que, quarenta annos antes, o aquecera ao calor de suas faces, creança de vinte e cinco dias. XV Angustias que existiram Por volta das dez horas d'aquella noite Braz Luiz de Abreu saíu de casa do vigario capitular, e recolheu-se ao convento de frades antoninos, convisinho da egreja da ordem terceira de S. Francisco, na qual o familiar do santo officio era irmão professo. Que noite aquella, que lagrimas choradas aos pés da cruz, e no seio do venerando prior da casa hospitaleira do maior infeliz que alli se albergára! Ao aclarar-se a manhã, o prior e dois frades de Santo Antonio, varões de grandes annos e virtudes, chegaram á porta de D. Josepha de Abreu. Abriu-se-lhes a casa, em cujo recesso tinha ido um chorar soluçante, e passado horas infernadas, sem mais desafogo que o atirarem-se por terra aquella mulher e sete filhos, ignorantes da angustia de sua mãe, pedindo misericordia, diante de um santuario. De joelhos se quedaram, quando os tres frades, sublimes de religioso terror, appareceram no limiar da casa da oração. --Irmã, disse o prior, erguei-vos e mais as vossas cinco filhas, e vinde. --Para onde, senhor?--murmurou ella com os olhos no pavimento e as mãos sobre o seio. --Estão dadas ordens para serdes recebidas no conservatorio de S. Bernardino, Recolhimento de Terceiras de S. Francisco. --E eu não hei de vêr mais...--exclamou ella, e retraiu-se como aterrada do delicto de tal pergunta. --Vinde, senhora e meninas. Emquanto a vós, moços, esperae que vos digam o vosso destino. Era na madrugada de 25 de março de 1732. Regorgeavam os festeiros da primavera, os passarinhos emboscados no arvoredo dos quintaes. A geada branquejava as ruas, e do lado da rua assoprava frigidissimo vento. As meninas aconchegavam das faces escarlates os capuzes das mantilhas. A mãe ia aquecida no banho ardente das lagrimas. Os antoninos caminhavam mesuradamente á beira d'ellas, com as mãos enfiadas nas mangas dos habitos. O prior ia ciciando quaesquer palavras, que deviam de ser as suas orações da manhã, ou rogava ao Senhor dos afflictos que esteiasse o animo d'aquella mulher singularmente desgraçada. Abriu-se a portaria do conservatorio de S. Bernardino. Os frades ficaram áquem da porta, que rouquejara nos gonzos com o quer que fosse de muitos gemidos unisonos de fundissimos carceres, soados por abobadas subterraneas. D. Josepha quando encarou no interior do recinto lobrego da entrada, deixou-se rasgar desde o intimo d'alma por um grito, mais desesperado, mais blasphemo que invocativo da divina graça para tão acerbo calix. --Haja-se com paciencia, senhora!--disse o prior--Olhe que desde este momento o Altissimo a está vendo e sondando-lhe o coração. A ignorancia não podia ser culpada até hoje; mas d'hora em diante, a reluctancia com os deveres que lhe impõe a justiça do céo e a justiça da terra é crime mais que muitissimo grande... Entendeu-me, senhora? --Entendi, senhor padre-mestre prior--respondeu a confessada do prelado dos antoninos. Fecharam-se as portas. A directora do Recolhimento, silenciosa como um phantasma, conduziu D. Josepha e as cinco meninas ao longo de um pequeno corredor, com cubiculos lateraes, e mal alumiados da luz do dia ainda froixa. No extremo do corredor abriu-se a portinha de uma cella espaçosa. --Aqui está, senhora--disse a directora, e ausentou-se. As meninas romperam em grande chôro, assim que a livida directora saíu; logo, porém, lhe assomou a mulher de macerado aspecto, no limiar da porta, e disse: --Aqui n'esta casa são permittidos os prantos da penitencia, e só esses, senhoras! Retrocedeu, a tempo que D. Josepha se abraçava de um amplexo em todas as cinco filhas, e lhes dizia: --Choremos baixinho. Meia hora depois d'este lance, os dois meninos de Braz Luiz de Abreu, um de dez, outro de nove annos, eram conduzidos ao convento de Santo Antonio, onde encontraram seu pae vestido com o habito de irmão professo da ordem terceira. Estacaram defronte d'elle n'um glacial spasmo. O medico tomou-os ambos, com as faces aconchegadas um do outro, e disse-lhes: --Não haveis de chorar, não, meninos? Ficareis aqui por algum tempo. Aqui vos deixo com amigos e mestres. Fazei muito por aproveitar o tempo, e trabalhae por ganhar o coração d'estes santos homens. Nem uma lagrima exsudou aos olhos d'aquelle pae! O fogo da divina graça seccara-lhe as fontes da alma. Era já o ser humano mutilado dos orgãos da vida de relação. Era o homem sobre-natural, aquella coisa inexprimivel de que se formam o anjo ou o demonio, as visões beatificas ou o revolutear escandecente da legião. Os frades entraram a tomar conta dos meninos. O prior, ao pegar das mãos d'elles, disse: --É tempo. Vá á sua vida, senhor Braz de Abreu. --Adeus, filhos. Abençoe-me, reverendo padre!...--disse o irmão professo da ordem terceira de S. Francisco, e saiu. Sobre-humana coragem! Entrar na casa, onde, vinte e quatro horas antes ainda almoçado com sua mulher e filhos! Entrou. Foi ao oratorio de sua mulher. Se reparasse, poderia ainda ver signaes humidos de lagrimas no genuflexorio e na peanha do Christo de marfim. Estava orando, quando ouviu passos na escada. Levantou-se para fechar a porta, e furtar-se a dar explicação d'aquelle habito, d'aquella soledade. Não foi a tempo. Era Francisco Luiz de Abreu. Caminhou para elle com firmeza e risonho semblante: --Meu bemfeitor, disse elle, aqui me tem. Faço grande differença do que era ha quarenta annos. Então, viu-me nas faixas infantis, e teve-me junto do seu coração. Abrace-me agora vestido na mortalha. O hebreu apertou-o com vehemencia. As palavras não podiam sair do peito anciado e da garganta afogada por suspiros. Passado tempo, disse: --E era preciso isto? A conformidade com a vontade de Deus exprime-se com vestir esta tunica, e apertar este cordão? Não é o homem tão grande na dôr, sem a celebrar com a magestade funebre d'estes habitos? --O homem é um verme, e mais nada, murmurou Braz Luiz.--Se a religião me não soldar os pedaços da vida, se me ella não tirar d'este tumulo em que estou caido, que hei de eu fazer tão esmagado até á medula dos ossos? --Pois os seus filhos? que é dos seus filhos, Braz Luiz. --As minhas filhas assistem, as innocentinhas, á penitencia de sua mãe. --Penitencia de quaes peccados? --Oh! calle-se!... por Deus, calle-se, diante do filho de Antonio de Sá! Se não era crime o meu viver para que me avisou?... --Diz bem... Perdôe-me. --Não só lhe perdôo... que lhe agradeço... Agora é que eu me gelo de horror do meu passado!... Nunca tive um abalo que me dissesse: «porque lhe queres tu assim tanto, tanto, que em quinze annos teus olhos não viram outra mulher sobre a terra!» As irmãs não se amam assim... Ai!... e eu que assisti á morte de minha mãe, ainda lhe beijei as mãos... Alli sim, então senti convulsões de espirito extrordinarias, das quaes não podiam ser motivo o amor que eu tinha á filha... Não; era Deus que me avisava... Quinze annos, quinze annos de felicidade sem sombra... os meus filhinhos, os meus sete anjos... ahi me ficam... --Onde vae?... --Onde vou?! E chorava com tamanho afôgo que lhe vieram umas ancias mortaes. --Deus me mate já, já!--vociferou por entre o repuchar dos gritos abafados.--Sou fraco, sou miseravel lodo! Dê-me animo, salve o filho do seu desventurado amigo. Creia no Deus dos martyres, para que a sua voz me alente, e eu não seja confundido pelo escarneo da multidão. --Creio no Deus de todos os martyres, senhor Abreu. Creio--atalhou Francisco Luiz.--Soffra, chore, despedace-se sem amaldiçoar, e verá que está comsigo o Deus de Socrates, o Deus de Saulo, o Deus de Antonio de Sá, o Deus de Heitor Dias da Paz, o meu Deus, o creador de todos os martyres e algozes, de todas as cruzes e de todos os postes levantados sobre a lenha que vae abrasar um corpo. É Jesus de Nazareth o seu Deus? Sirva-o, tome-lhe dos labios a esponja e sorva-lhe o fel, ame os inimigos, valha aos desvalidos, acôlha os orphãos á alma que os aconselha, dê-lhes tecto que os cubra, e olhos que os chorem. Assim faziam os justos segundo Platão, os justos segundo Bouddha, os justos segundo Philon, os justos segundo Jesus, os justos segundo Luthero. Ame, condoa-se, e ampare como elles, e será salvo para melhor mundo, e sentirá n'este as supremas alegrias da consciencia... --Oh! não é isso--atalhou Braz Luiz--ha uma só religião, e uma só salvação. --Pois bem: haja uma só; e seja a sua. Todas ellas dão as suas melhores corôas aos seus martyres, corôas tecidas dos mesmos espinhos, e abençoados da mesma benção; mas é preciso soffrer, soffrer sem infligir tortura, sem retalhar o peito de outra fé para lhe ir lá dentro remoer com ponta de ferro em brasa a consciencia. Braz Luiz de Abreu, respeito grandemente a sua angustia, e dou graças ao Senhor do céo e terra que lhe está vertendo balsamos no roer do cancro que lá deve ir n'essa pobre alma. Siga a sua religião, eu lhe seguirei os passos n'ella, e ajoelharei ao seu lado, sem receio de que estejamos cada um de nós orando a differentes creadores. E seus filhos? E seus filhos?--proseguiu Francisco Luiz--quer que eu vele pelo seu futuro d'elles? --Mercês, meu amigo. Meus filhos hão de ter pão e futuro. Trabalhei; tenho ahi uns bens. Continuarei a trabalhar para augmental-os. Minhas cinco filhas hão de ser freiras; meus filhos seguirão o sacerdocio. --Qual é o seu destino, Braz? --Tomar ordens clericaes. Hoje mesmo vou caminho de Lisboa. E vossemecê deixa Portugal? --Ainda não. --Adeus, pois, até quando?... Até á eternidade? --Ainda não. Ver-nos-hemos antes. Não se morre assim depressa... Os desgraçados são de bronze. Quer Deus que elles vivam muito para serem muito vistos como pompas do mal necessario. XVI O padre Braz O famigerado author do _Portugal Medico_ appareceu em Lisboa, cingido pelo cordão franciscano, sobraçando o manto pardo, fronte abatida, faces sulcadas, e desfeitas, a luz dos olhos amortiçada, e um amarellido de rosto accusando tanta afflicção interior, que não havia olhos enchutos que o vissem. Por casas de bispos e mais jerarchias da egreja andava o irmão professo da ordem terceira, solicitando a sua ordenação de missa, e a concessão de recursos que o ajudassem a converter em convento o conservatorio de S. Bernardino, onde tinham sido recolhidas D. Josepha e suas filhas. D. João V, informado da resolução mysteriosa do celebre Olho de Vidro, cujas facecias o tinham muito alegrado, quando sua magestade, em hora de pachorra, consentia que o seu medico lh'as lesse, desejou ouvir da bocca do famoso Braz Luiz uma historia escassamente conhecida dos altos dignitarios da egreja. Braz Luiz foi levado ao paço pelo doutor José Rodrigues de Abreu, medico de el-rei. O filho de Pedro II revelou o desejo que tinha de saber que fundo reviramento se operára no espirito de um pae de sete filhos, para, no vigor dos annos, se privar das caricias da familia, e defraudar a esposa de marido e os filhos de pae. O medico referiu a sua historia, a sós com o curioso monarcha, depondo na consciencia e religiosidade de el-rei os pontos melindrosos e secretos da sua vida. Sensibilisou-se o soberano, e em paga da confidencia lhe fez mercê das rendas do real d'agua para que as elle applicasse á fundação do convento de D. Josepha. Ordenou mais el-rei, de harmonia com o nuncio, que se não delongassem a Braz Luiz de Abreu as ordens solicitadas, de modo que entre umas e outras não interferisse mais tempo que o necessario, em conformidade com o maximo gráo da dispensação em taes casos usada. Por maneira que Braz Luiz, ao cabo de seis mezes, estava clerigo de missa. O concilio tridentino permittia e explicava santissimamente todas estas coisas, que hoje se nos affiguram monstruosas irregularidades. N'este anno da graça de 1866, póde qualquer novelleiro citar o concilio tridentino, por que é presumivel senão certo, que por amor do casamento civil toda a gente de alguma curiosidade reveza a leitura das decretaes com a dos concilios. Pois o logar do concilio tridentino que permittia desatarem-se esposos, e vestirem habitos, e professarem, e deixarem os filhos sem paes, é a _Sess. 24 de Matrimonio, Can. 9_. Ao mesmo tempo, o padre Braz Luiz de Abreu foi nomeado syndico do convento permittido, e, por um breve, tambem nomeado medico d'elle. Tornou-se o padre de Lisboa para Aveiro, e entendeu logo nas obras do convento novo. Podia, se quizesse, dizer logo missa nova, mas reservou-a para o dia em que sua mulher e filhas professassem. A edificação do convento fez-se n'um anno. Sobravam os recursos, além do subsidio real. Os cavalheiros da terra concorriam com grandiosos donativos, e muitas esmolas de procedencia desconhecida iam dar ás mãos do syndico. O hebreu Francisco Luiz observou que o seu dinheiro maldito não queimava as mãos ungidas do sacerdote. Algumas vezes o padre Braz Luiz de Abreu entrou ao locutorio ou grade para se entender com a mãe de seus filhos sobre coisas attinentes á profissão. Dizem as memorias que nunca jámais lhe elle vira o rosto, porque D. Josepha o velava com um espesso véo negro.[31] Aos vinte e quatro de dezembro de 1734, passados trinta e tres mezes de noviciado, de cruelissimas dores, de inenarraveis desmaios, as cinco filhas de D. Josepha, trajadas para a festa do martyrio como sua mãe, ajoelharam ao lado d'ella, e abdicaram nas mãos da prioresa tudo que podesse parecer ao mundo coisa melhor do que o escuro abysmo em que de repente se viram despenhadas. Aquelle acto era uma crucificação atrocissima para a filha de Antonio de Sá, porque ella tinha perdido a fé. Nunca se lhe haviam entranhado muito as crenças na religião do Calvario, porque da indifferença religiosa, em que lhe correra a infancia, passara a ser educada em convento francez, onde a piedade sincera de alguma peccadora contricta era mettida a riso por alegres peccadoras, de quem poderia ser que os proprios anjos andassem namorados. Sua mãe tinha vivido uniforme com a religiosidade do marido; e, por fins de vida, rejeitara e apagara da alma os vislumbres da piedade, porque, dizia ella: «Ha certas lagrimas, que apagam toda a luz da religião, seja ella qual fôr.» A religião de Braz Luiz pareceu-lhe a ella muitas vezes ostentosa, pouco menos de hypocrita, e sustentada á custa da razão. Todavia, como discreta e amantissima d'elle, não lh'a impugnava, nem se esquivava a seguil-o nas publicas demonstrações de sua piedade. Quando ella, desde os reconcavos d'alma, caíu aos pés de Christo, foi na hora tremenda em que se ouviu nomear filha do pae e mãe de seu marido. Orou então, para não morrer, ou póde ser que orasse para ser arrebatada á sua angustia pela mão de Deus, ou fulminada por poder satanico. N'aquellas orações ninguem sabe o que a alma pensa. Encerrada n'um convento, com cinco formosas meninas, que se encostavam ás rexas de ferro a olhar cheias de saudades por esse céo fóra, e seguiam as avesinhas de arvore para arvore, de monte para monte, a infeliz mãe adivinhava os colloquios das pobrinhas com o céo impassivel, e fugia-se d'ellas, para que a não vissem chorar. Voltava a vêl-as, e trazia ainda vidrados na face os prantos. Ellas aqueciam-os com beijos, e, em vez do fervor piedoso e consolativo de sua mãe, ouviam-lhe supplicas com que ella lhes pedia perdão de as ter gerado. As meninas perguntavam-lhe porque estavam assim captivas e desterradas da vida tão sem vontade, e a mãe não podia responder-lhes: «É porque sois filhas de meu irmão, e minhas filhas.» Que importava? Tinham ajoelhado, tinham renunciado, tinham professado, tinham assistido á missa nova de seu pae, d'aquelle homem de faces lividas, que as não apparentava mais translucidas de uma alegre consciencia do que as teria um sacrilego, que houvesse cuspido no ciborio e calcado aos pés a hostia. E depois, viram-no assomar no pulpito, e prégar com elegancias de primoroso lapidario de palavras o sermão da profissão, o sermão d'aquelle enterro de seis vidas, de seis corações apunhalados, mortos, com authoridade do concilio tridentino, e com muitos applausos dos prelados, do rei e dos edificados espectadores da tragedia. Estavam professas. A de trinta e nove annos, que representava vinte cinco formosas primaveras, ao entrar n'aquelle antro de S. Bernardino, a filha de D. Maria Cabral estava desfigurada como na ultima velhice. Anna Maria, de dezeseis, e Sebastiana Ignacia, a mais nova, de onze--onze annos e professa com um breve de Sua Santidade!--todas cinco, seguindo sua mãe da egreja ao claustro, olhavam contra o chão como a procurarem a cova que se lhes abrira. E depois, se choravam, saía-lhes a prioresa e dizia-lhes: --Filhas, lagrimas de penitencia, de penitencia... E se, do interior do convento, ia ao padre Braz a noticia de que suas filhas estavam deperecendo e morrendo, o santo, calejado para uns dardos que varam e matam todo homem menos santo, respondia: --É o Senhor que as chama... Deixal-as, deixal-as ir para o côro das virgens. E, rodeado de muitos e piedosos livros, escrevia a _Lusiada sacra_, a origem ecclesiastica do imperio lusitano, e levava mão do trabalho para assistir aos seus doentes, que curava ou enviava a melhores mundos gratuitamente. Os moços Agostinho e Pedro lá estavam estudando latinidade no convento de Santo Antonio. Ao principio perguntavam por sua mãe, por seu pae e por suas irmãs. Um doutissimo frade, lente jubilado, respondia-lhes: --O melhor pae é Deus, a melhor mãe é Nossa Senhora, as melhores irmãs são as tres pessoas da Santissima Trindade. Sã theologia; mas os mocinhos queriam saber de sua mãe, de seu pae e de suas irmãs. Deram em não estudar, de tristes que viviam. Foram accusados ao padre Braz, que entrou a admoestal-os no convento. Os meninos abraçaram-se n'elle, e pareciam contentes. --E nossa mãe? perguntava Agostinho. --E nossas irmãsinhas? perguntava Pedro. E Braz Luiz baixava os olhos sobre o seio, permanecia n'um recolhimento angustiado, e saía com estas palavras: --É verdade!... e vossa mãe!... e as vossas irmãsinhas? Mas, apenas as orelhas da sua alma escutavam estas lastimas do coração, o padre ajoelhava na postura de mentecapto, batia punhadas no peito, e clamava: --Pequei! pequei! perdão, meu Redemptor! XVII O inferno, como elle é possivel Eu negaria minha fé a quem me dissesse que a prece dos infelizes sem culpa não ha Deus que a ouça e attenda. Se ha!... N'um dia de junho de 1735, ao sexto mez de professa, soror Josepha da Cruz, depois de tres semanas de aturada hemoptyse, amanheceu com uns spasmos convulsos, chamando pelas filhas, que a rodeavam, e ella não via. Accudiram as freiras, e ordenou a prioreza que fosse chamado confessor e medico. Avisaram o padre Braz, syndico do convento. Estava elle resando as contas, e voltou o rosto da pessoa que lhe levou o aviso, para atar um _pater noster_ interrompido no _fiat voluntas tua_. Tres vezes repetiu com seraphico arrobamento o _fiat voluntas tua_--«faça-se a tua vontade»--e de si para si entendeu que aquelle seu despego em tamanho transe, ao annunciarem-lhe que sua mulher estava em trabalhos de morte, era egual ao de muitos lances de natureza identica, e santo stoicismo, contados no _Flos-Sanctorum_, e _Vita patrum_. Concluido o ultimo mysterio do rosario, aspergiu-se de agua benta, e foi caminho do convento, resmuneando o psalmo:... _Amplius lava me ab iniquitate mea: et a peccato meo munda me. Quoniam iniquitatem meam ego agnosco... etc._ Ao avisinhar-se da cella da enferma o syndico, disse a prelada: --Irmã Josepha, aqui está o nosso padre syndico Braz Luiz. Soror Josepha não vellou o rosto, porque já não entendera o aviso da prioreza. Braz Luiz deu de olhos fitos na sua companheira de quinze annos. Ressumou-lhe ao rosto um suor frio, cambaleou, e amparou-se á ombreira da porta. Depois, tornou em si; invocou a força dos santos, compoz o semblante, acercou-se do catre da moribunda, e balbuciou: --Soror Josepha da Cruz! A enferma estremeceu, despregou as palpebras, circumvagou as pupilas esgazeadas, e retrahiu-as logo, como se a face do padre lhe fulminasse faiscas de raio aos olhos. --Os aprestos para a extrema-uncção--disse o syndico. --Venha o capellão ministrar-lh'a--ajuntou a prioreza. --Não, nossa madre: serei eu--disse o padre Braz. Accorreram os aprestos, emquanto Braz Luiz desceu á egreja a envergar uma cotta com estola roxa. Deu signal o sino, ajuntaram-se as freiras acolytas, uma com a cruz, outras com velas, outra com a caldeirinha, e muitas cantando alternadamente os versos do psalmo _Miserere mei Deus_. Entrou á cella o padre, precedido da cruz e da caldeira. A prioreza observou que as uncções deviam ser feitas com presteza, omittindo-se as ceremonias usadas quando não ha receio de que o enfermo expire antes de ungir-se. Principiou o padre a ungir-lhe os olhos; e logo notaram que os dedos lhe tremiam convulsivamente. Esteve com a mão suspensa, esperando que o tremor aquietasse. Desfitou os olhos da face da moribunda, e viu as cinco filhas ajoelhadas em carreira com os cirios empunhados, e os rostos caídos sobre os seios. Contemplou-as com olhar embaciado de lagrimas, e na bocca um sorriso triste, que poderia ser qualquer coisa do usual sorrir dos santos, e tambem poderia ser a expressão vulgar da insania. Esta equivoca expressão, porém, sumiu-se, e as lagrimas saltaram a quatro. Depois, foi um conflicto aquelle para ser visto dos que apenas conhecem alguns milhares de flagellos n'esta vida! Caiu em joelhos, pegou das mãos ambas da enferma, e exclamou: --Leva-me comtigo, leva-me comtigo, ó santa, ó martyr! As cinco meninas levantaram um alarido de gemidos, e romperam por entre as freiras a cobrirem com os braços a moribunda... a morta. Braz Luiz arquejava encostado ao leito. Não ousavam pôr-lhe as freiras as suas mãos para o retrairem d'alli; mas, todas a um tempo, lhe pediam que offerecesse a Deus, em beneficio da alma de Soror Josepha, as angustias por que tão santa e heroicamente quizera passar e ser provado. O padre levantou-se de impeto, olhou em torno de si, e disse: --E que me dá Deus? Sim! que me dá Deus? As freiras contemplaram-se estarrecidas e frias de religioso medo. --Pois então!--proseguiu elle com tregeitos de louco e semblante descomposto--pois então, não houve um raio de graça para esta santa mulher! não seria divina justiça que ella achasse aqui as alegrias de uma consciencia pura, de um coração sem mancha! Por fim... é certo que eu te matei minha innocente victima? E, dizendo, acurvou-se sobre o cadaver, beijou-lhe os olhos soffregamente e cobriu-lhe a testa de lagrimas. Era isto já uma vertigem, que terminou pelo deliquio. Foi chamado o capellão e alguns frades visinhos de Santo Antonio. Levaram d'alli o padre para accommodarem logo os escrupulos das freiras escandalisadas. Ia sem accordo, nos braços dos antoninos. As filhas viram-no ir sem lastima. Estavam em volta da barra de sua mãe. Aquelle homem fazia-lhes terror, senão odio. Poderia ser que elle tivesse por si a côrte celestial; mas n'este mundo não havia alma que o pranteasse. Propriamente os frades incriminavam-no de pusillanime e vacillante na reforma de vida. As freiras--santo nome de Deus!--davam como perdida a alma d'aquella que morrera sem confissão; e, porque eram santas, foram em côro exorar ao Senhor que não pesasse na sua balança sem o contrapeso da misericordia, as palavras blasphemas do padre syndico. Braz Luiz, quando cobrou sentimento, achou-se na sua pobre alcova, com dois frades á cabeceira. Escutou-os. O que elles diziam eram coisas formidaveis sobre o inferno sem fim. Stygmatisavam-lhe a fraqueza, a impenitencia, a temeridade de se aproximar da religiosa moribunda, se não ia santamente disposto a dar um exemplo de desprendimento dos affectos que havia renunciado no acto da sua sagração a Deus. O padre pediu perdão do escandalo, e rogou que o deixassem só para examinar sua consciencia. Deixaram-n'o os frades e foram-se ao seu convento, d'onde tinham saído em jejum. Braz Luiz de Abreu soffria tanto, que duvidava do poder da oração ou não sabia orar. Punha os olhos na face do Christo, e logo os descia como aterrado do pensamento sacrilego que a intercadencias lhe agonisava a alma. Aquella religiosidade, que, horas antes, parecia robusta e sentida como a dos martyres, estava a desfazer-se miseravelmente na incerteza, no desprezo, na negação das mais santas coisas do christianismo! Alli se estava vendo o que em verdade é o homem, e quanto são morredoiras as phantasias do espirito arrancado ás leis da humanidade, quando a mão da desgraça descarrega a maça de bronze no peito que tem dentro sangue e fibras. O grande edificio d'aquelle selvagem ascetismo estava a derruir-se. O coração de quarenta e tres annos dava pulos como para espedaçar o arnez apertado com arcos de ferro debaixo do habito franciscano. A imagem de Francisco Luiz perpassava-lhe execrandissima por diante dos olhos, cravados n'um revolutear de visões extravagantes que o assediavam, á volta do cadaver d'aquella mulher assassinada sem culpa nem fé para aceitar de boamente uma tão grande quanto immerecida penitencia. Fez-se em volta d'elle a solidão dos grandes desgraçados, que já nem sequer podem captar a benevolencia dos grandes hypocritas, nem a estima dos ferventes devotos. Os mais virtuosos frades fugiam d'elle, desde que do convento de S. Bernardino sairam peioradas em blasphemia as phrases do syndico ao pé do corpo ainda quente de sua mulher. Além d'isto, entraram em averiguações os mais escrupulosos sobre os factos antecedentes á resolução de entrar aquella mulher na religião e elle no sacerdocio. O prior dos antoninos esquadrinhou em Lisboa no secreto gabinete da nunciatura, e vingou descobrir que o rompimento fôra sequencia de um casamento incestuoso. Calou o frade a infanda noticia, por caridade; apenas a revelou a metade dos seus conventuaes; e estes, por caridade tambem, disseram-n'a á outra metade, sentindo não ter mais a quem a revelassem. Por isso, á volta d'elle se fez a solidão dos grandes desgraçados. Entregaram-lhe os dois filhos, que estudavam humanidades no convento, para que elle lhes désse destino. O padre levou-os para si, e desde esse momento principiou a sentir quebrarem-se os aguilhões que o cravejavam e atiravam impenitente á sepultura. Cogitou em mudar-se com elles para algum ermo, onde lhe ignorassem o nome e os infortunios. Mas alli, ao pé da sepultura de Josepha, estavam as cinco filhas, que elle, se podesse, tiraria do convento. Era aloucada fantasia similhante intento. Aquellas meninas estavam perdidas para elle e para Deus; porque já não podiam amar o algoz de sua mãe; e, diante do poder do Altissimo, apenas podiam tremer de medo, medo sem amor. Nem pae, nem Deus! E d'este modo, com a alma assim vasia, sem embrião de esperança n'algum reconcavo d'ella, não ha vida. A mais velha das meninas, Anna Maria, sobreviveu dois mezes a sua mãe, e acabou em phrenesis, não obstante os exorcismos com que valentes demonifugos de todos os conventos de Aveiro lhe medicavam a alma. Expirou com reputação de precíta aquella gentil creatura com dezoito annos incompletos, a mansissima menina que seus paes quatro annos antes denominavam, á conta da sua indole branda e sujeita, a pomba da familia, o exemplo angelico de suas irmãs. Quando o padre Braz recebeu a nova da morte de sua filha, quizera a Providencia que ao lado d'elle estivesse um peito que lhe désse amparo. Francisco Luiz de Abreu, n'aquelles dias, descêra dos arrabaldes de Bragança, onde fôra despedir-se do seu amigo José de Barredo, e passára por Aveiro, onde conjecturava encontrar ditoso e embevecido nas delicias do céo o sacerdote de Jesus. XVIII Catequeze Francisco Luiz planeou mover o filho de Antonio de Sá Mourão a saír de Aveiro, sob pretexto de fazer entrar na carreira das lettras ou das armas os dois moços, já habilitados para as começarem. O padre passou a consultar os filhos sobre a escolha de seu futuro. Tinham-se os meninos habituado a pensar no destino para que o pae os encaminhára, desde que os entregou aos frades de Santo Antonio. N'aquelles dias, as carreiras abertas aos espiritos mais arremessados em esperanças e cobiça de nomeada gloriosa, eram a milicia, já então decadente, e a companhia de Jesus, ou a ordem de S. Domingos, as duas mais poderosas e florentes hostes evangelicas n'estes reinos, e as mais conjuradas em realisar o absolutismo theocratico. Os filhos de Braz não entendiam nada d'estes intentos; mas entreviam a grandiosa estatura do jesuita e do dominicano, em cujas frontes se estavam sempre cerzindo as mytras, e no interior d'essas frontes se elaborava o pensamento dos reis, a palavra directora dos governos, o enlace mystico do céo com a absoluta soberania da terra. Portanto, os dois netos do hebreu da Guarda, respondendo á consulta de seu pae, disseram que entrariam em conventos. Agostinho escolheu a companhia de Jesus, e Pedro a ordem de S. Domingos. Francisco Luiz encarou n'elles com desprezo: não podia ser de piedade, nem de odio aquelle sorriso que entre-abriu os beiços do velho judeu de Ourem. Passados momentos, murmurou, sorrindo ainda: --Este Pedro já não virá a tempo de me queimar... nem eu lhe deixo filhos ou netos, cujos ossos lhe sirvam de degráos para escalar a bem-aventurança dos carnifices... Se o avô d'este menino se lembraria de que um seu neto seria frade dominicano!... E, voltado ao padre Braz, continuou com mal fingida serenidade: --Conjecturava eu, senhor Braz Luiz, que um homem de sua indole e saber, vestido com as insignias de uma religião qualquer, e mormente da christã, se empenharia em lavar-lhe com lagrimas as nodoas de sangue, e no amaciar-lhe as cruezas que ella trouxe das tradições pagãs. O homem de grande entendimento e muitas luzes devia ser lustre e honra de qualquer religião que elle assentasse de converter em policiamento e bem-fazer da humanidade. Não lhe perguntei ainda, meu amigo, se applaudia o proceder da christandade portugueza contra os paes de Antonio de Sá, contra Maria Cabral, contra Heitor Dias da Paz. Pergunto-lh'o agora, na occasião em que vossemecê manda um filho alistar-se nos aprendizes do santo officio, e estudar as physionomias das antigas rezes do açougue dominicano penduradas na galilé da egreja de S. Domingos. Bem póde ser que lá veja retratos de seus avós. --Basta! que me está mortificando, senhor!--atalhou o padre.--Sou um desgraçado, á volta de quem se assanham todas as tentações! Quem vem contender em pontos de religião com um homem tão quebrado de espiritos? Oh! deixem-me como a um leproso, abandonado de Deus e dos homens... --Abandonado de Deus! como assim?--accudiu o israelita.--Pois as tres divindades christãs, o Padre, o Filho e o Espirito Santo assim abandonam quem tanto lhes sacrifica! Onde está a compensação das suas afflicções, meu amigo? Que bem aventuranças infinitas são bastantes a galardoar uma só das suas torturadas noites? Por minha fé! Consterna ver o desamparo em que o Moloch d'estas voluntarias hostias deixa affogar-se em lagrimas e derreter-se ao fogo da desesperação um homem que tinha direito a receber consolações analogas á devoção com que se deixa esmagar na carne e no espirito!... Ah! eu cuidei que, na minha retirada de Portugal, o deixaria enlevado na beatifica visão e antegosto da eterna e perennal mão direita do Deus-Padre! E a minha consciencia sabe que eu muitas vezes pensei em me converter ao christianismo, se Braz Luiz de Abreu estivesse, a esta hora, conformado e alegre sobre o peso da sua cruz!... --É que eu sou lodo... atalhou o padre. --É que eu não vi ainda bem remunerada a renunciação dos direitos do homem, em hecatomba de uma equidade convencional, chamada a justiça das religiões. São todas muito artificiaes para que alguma d'ellas possa ser verdadeira. As menos sobre-humanas são as mais equitativas; e estas mesmas estão manchadas pela miseria do homem, que não comprehende a virtude aconselhada pela razão; carece de a ouvir trovejada no Sinay, legislada pelo alfange mahometano, ou introduzida no cerebro das nações selvagens com o gume da espada dos Cabraes e dos Pizarros. Pois está Deus n'estas carniçarias? O creador das florestas e dos mares, do oução e do elefante, se quizesse revelar-se mais sensivelmente ao homem, careceria de morrer n'uma cruz ignominiosa, ou permittiria que aos pobres cegos, que o não sabem ver, lhes queimassem os olhos nas lavaredas do santo officio?! --Jesus, soccorrei-me! exclamou o padre, tapando com as mãos a fronte, em que as palavras d'aquelle homem coavam luz de infernal claridade. Depois murmurou palavras inaudiveis que deviam ser orações efficazes contra a tentação da heresia, da philosophia, da razão indocil, do demonio, que é tudo um. O hebreu era pertinaz, porque o estimulo, a razão nua, sem minima compostura de fé, lhe espicaçava a consciencia. O homem vinha dos focos da heresia. Comprehendêra a loucura do hebraismo e a loucura dos heresiarcas. Reformara-se na philosophia de Spinosa, e facilmente derivara do pantheismo á completa abstinencia de deuses, coisas desnecessarias para explicar a ordem do universo, e inintelligiveis para as fazer presidir á creação. A causa das causas parecia-lhe sempre effeito dos effeitos. O atheismo, se o não consolava, tambem lhe não mettia em trabalhos as molas da imaginação. As expansivas demonstrações de sua incredulidade eram todavia inefficazes para apagarem a luz do calvario no coração do padre. O dique do terror de Deus represava as torrentes de sabedoria rebelde com que o hebreu pretendia levar de rojo o amigo, cuja victoria estaria indecisa; se o christão convicto aceitasse o cartel. Não. Braz Luiz vencia com o silencio. O argumento triumphal é o calar-se aquelle, cujo coração bafejou o Senhor. Não obstante, as asperezas da vida, os jejuns, as penitencias, as orações mentaes e exercicios fatigantes de piedade foram diminuindo de dia para dia. No fim de tres mezes, o padre fallava ainda tres horas á milagrosa imagem de S. Francisco, e conversava seis horas com Francisco Luiz de Abreu. Estava, pois, reduzido á piedade rasoavel. Não mortificava a carne para manter o espirito na energia que se lhe requer em meditação das coisas divinas. Tinha horas regulares de oração, de alimento, de visitar os seus enfermos, e de procurar no locutorio de S. Bernardino as quatro freiras. Foi para Lisboa com o hebreu e com os filhos. Renovou a consulta sobre o destino d'elles. Permaneciam constantes na sua resolução. Um entrou no noviciado da ordem dominicana em Bemfica; e outro no collegio de Santo Antão. O padre Braz foi beijar a mão de el-rei, que se compungiu da extemporanea velhice do celebre Olho de Vidro. Ouviu-lhe a historia pathetica da morte de soror Josepha e da filha, saudosa de sua mãe, e o definhar-se das quatro meninas para quem a vida claustral fôra sempre incessante martyrio e desesperação de que a misericordia divina talvez pedisse contas a elle pae. Observou-lhe D. João V que levasse para sua companhia as quatro meninas. --São freiras, são professas, real senhor!... murmurou o padre. El-rei mandou-o voltar no dia seguinte, e ordenou que lhe entregassem provisão regia e breve do nuncio para que as quatro freiras de S. Bernardino vivessem por tempo illimitado na companhia de seu pae. Voltou o padre a Aveiro, e Francisco Luiz de Abreu acompanhou-o. N'este homem andava encavalgado o Lucifer da mais desenfreada philosophia que viu aquelle seculo. O pensamento que o esporeava era generoso; mas no inferno iria um dia de festa se elle vingasse a idéa execravel. Venceram os anjos custodios, que faziam guarda ao espirito do padre e das quatro filhas, promettidas esposas de quatro serafins que as esperavam, posto que nem todas correspondessem ao convite amoroso dos serafins. Queria Francisco Luiz de Abreu restituir a felicidade áquellas meninas, a felicidade terreal, mentira em que o hebreu ainda acreditava. Preparava o animo do filho de Antonio de Sá, inoculando-lhe a peçonha da duvida no dogma, e pelo conseguinte na moral. Discutia os chamados sacramentos da egreja. Dizia que o sacerdocio era a mais convencional e estupida das instituições humanas, com grave ultrage de Deus, chamado a sanccional-a, se Deus por acaso podesse existir e ser ultrajado por affrontas do homem, chamado irrisoriamente o rei da creação, á mingua de besta-fera que se proclame com eguaes direitos á mesma realeza. Dizia que esta bestial instituição cedia a primasia a outra, que era a da profissão da mulher; e que de estupida passava a ferocissima quando a professa era violentada a jurar a perdição das suas alegrias de mocidade, e das suas esperanças de familia nas tristezas da velhice. Amartelladas por largo tempo estas e similhantes idéas sobremodo impias, o hebreu puzera a pontaria em tirar de Portugal o padre e as freiras, leval-os onde rasgassem os habitos, e se vissem de repente restituidos á simpleza de creaturas formadas á imagem e similhança do Creador, o qual, a ter existido, formára certamente homens e não padres, mulheres e não freiras: gente, no dizer de Moysés, apta e escorreita para formar individuos, aldeias, cidades, reinos, mundos. Ouviu o padre as theses do seu amigo, defendidas por longo tempo com erudição digna de melhor serventia. Prodigioso poder da fé, quanto eu te admiro e venero! O padre resistiu nervosamente á seducção, e por pouco, no calor da refesta, não apresentou uma idéa que destruisse os preconceitos do judeu luciferino. Prodigioso poder da fé! exclamava tambem Francisco Luiz, quando, inventariando os argumentos do seu amigo, não topava um que merecesse redarguição grave. E perguntava elle a si mesmo como era que aquelle homem tão embotado em agudezas de dialectica pudera escrever as «Aguias que voavam sobre a lua, e o sol nascido no occidente e posto ao nascer do sol!» Desistiu: mas já lhe foi grandissimo contentamento ver á beira de seu pae as quatro meninas, quatro exhumadas da lobrega crypta do convento, onde deixaram sem lagrimas as grammas que rastejavam na claustra sobre a campa de sua mãe. Dizia elle, todavia, ao pae: --Crê que as caras marmóreas d'estas meninas tornem a reflorir? --Espero que sim. --Nunca mais. Estão mortas. Se as quer vivas, rasgue-lhes a mortalha, Braz Luiz!--exclamou elle abraçando-as todas contra o seio.--Dê-me estas meninas, deixe-me salval-as, deixe-me fugir com ellas para o ar abençoado da liberdade! Eu prometto aviventar-lhes o coração, e depois estão salvas. Dê-m'as que eu ainda, sou bastante rico para deixal-as ricas. E, se eu fosse pobre, dar-lhe-ia a cada uma um amor para o coração resuscitado, um esteio para a alma, um companheiro para toda a vida! O padre ergueu-se de repellão, travou das filhas, arrancando-as aos braços do hebreu, e exclamou: --Que maldição traz comsigo este homem!... Quer perder-me as minhas filhas!... Ha infernal predestinação na sua mensagem ao seio da minha familia, homem da horrivel fatalidade! XIX O velho da ermida Em uma aldeia, chamada Verdimilho, a uma legua d'Aveiro, vivia em 1738 um ancião, reputado justo porque á volta da sua casa, colmada e desguarnecida da mais trivial mediania, se ajuntavam os pobres da freguezia, em dias determinados, e recebiam esmolas que lhes bastavam á alimentação parca da semana. Chamavam ao incognito o «velho da ermida» porque, ao lado da choupana d'elle, estava uma capella. Os pobres, favorecidos d'este homem, paravam ao cair da tarde nas visinhanças da ermida, para o verem sentado no tezo de um oiteirinho, com os olhos enlevados no transmontar do sol; e, se o viam passar a mão por elles como quem enchuga lagrimas, diziam entre si: «Um homem que dá tanto aos pobres, e chora!...» Em 1739 saiu elle caminho d'Aveiro, pela primeira vez. Os pobres seguiram-n'o, e disseram-lhe: --Não voltaes mais aqui, nosso bemfeitor? --Voltarei, filhos. Á noite serei comvosco. E caminhava a pé, abordoado n'um cajado que lhe dera um dos seus pobres. Chegado a Aveiro, entrou na egreja de S. Bernardino, acantoou-se no mais escuro d'ella, e assistiu aos responsorios da segunda filha de Braz Luiz de Abreu, a qual estava sobre a eça. Saiu, parou á porta do pae da defunta, subiu, entrou á saleta em que elle recebia os pesames, apertou-o nos braços e disse-lhe: --Dá-me a vida das tres filhas que te restam, e vem tu com ellas. O padre derramou copiosas lagrimas, e não respondeu. Voltou Francisco Luiz á sua cabana da ermida, e os pobres, ao outro dia, confluiram das suas aldeias a dar-lhe as boas vindas. Em 1740 fez o hebreu a mesma caminhada, entrou na mesma egreja onde se resavam responsos, na mesma saleta onde chorava um velho, e disse-lhe: --Dá-me a vida das duas filhas que te restam, e vem tu com ellas. Rasga-lhe as mortalhas, antes que o coveiro as esconda, e o sino dobre por ellas. O padre chorou muito, inclinado ao peito do velho, e não respondeu. Voltou o caminheiro á sua cabana, e os pobres olharam-n'o com muita amargura, porque a sombra d'elle era como de arejo vindo da região dos sepulchros. Uma tarde, não longe d'aquelle dia em que se finára a quarta professa de S. Bernardino, appareceu em Verdimilho o padre Braz Luiz, atirou-se esbofado aos braços do hebreu, e disse-lhe: --Dê-me as minhas filhas! --Pede-m'as a mim?! É a Deus que as deve pedir... ao seu Deus, que resuscitou muitas... --Não peço as mortas; quero as vivas. --Que sei eu das vivas? Esperava que morresse uma para lhe ir pedir a ultima. --Pois minhas filhas não estão aqui? exclamou Braz Luiz de Abreu. --Aqui?! não vê que toda a minha casa é esta cabana? --Meu Deus! bradou o padre. --Que é de suas filhas? acudiu o hebreu. --Fugiram! perderam-se!... --Salvar-se-iam? Encaminhal-as-ia qualquer providencia que eu desconheço?... --Roubaram-m'as! E o padre, guardando silencio por alguns minutos, continuou com intermittentes de gemidos e ancias offegantes: --Perdi-as... e perderam-se!... Pois que nome tem isto senão é prostituição?... A justiça lançará mão d'ellas... e d'elles... --D'elles quem?--atalhou o israelita. --De relance os vi: eram militares, vinham de Coimbra a Aveiro, hospedavam-se nas mais nobres casas, e minhas filhas sabiam da existencia d'estes homens... --E rasgaram as mortalhas--ajuntou o velho de Verdimilho--Pois deixal-as ir. A natureza as defenda, se os aguasis da religião as perseguirem. Deixal-as ir em paz. Falleceram-lhes forças para a continuação do martyrio. Muitas das viuvas do Indostão já hoje se não queimam. É necessario que os preconceitos sejam derrotados uma vez por outra, a ver se alguma hora surge ahi d'este atascadeiro melhor geração, que traga ao mundo a idéa de Deus com bondade. Coitadinhas! Possam ellas chegar onde lhes digam: «Vivei, gosae sem remorsos. O que vos lá ensinaram a dizer na profissão caducou debaixo de outro céo. Pedi, meninas, o coração ás estrellas da noite, ao sol do dia, ás campinas que reflorecem, ás aves que senhoream os ares e pousam a cantar nas mais formosas frondes das arvores. Perguntae ás bellezas e jubilos da natureza, se quem os fez lhes pautou intercadencias de amargura. Vivei, candidas pombas, aquecei-vos ao calor que desentranha o gomo da arvore congelada, e aquece no seio da virgem o sangue palpitante que lhe purpureja as faces. Ide, e escondei-vos no reconcavo das penedias, como as gazellas se escondem do pelouro do carniceiro.» E tu choras?--disse elle com vehemencia, repuchando para si o corpo inerte de Braz Luiz--hei de fallar-te assim com este ar de pae, porque estou a ver-te, creancinha, que, ha quarenta e oito annos, eu tirava dos braços da ama para sentir o goso de te embalar e ver adormecido nos meus. Chora por ti que és muitissimo desgraçado: por ellas não, que eu duvido que haja ahi maior horror que o morrer das outras. Porque não iria eu com tuas filhas á fonte da saude, do bem do corpo e da alma? Porque m'as não déste? Davas dois anjos a este homem de setenta annos, que não tem ninguem que lhe feche os olhos. E, depois, extincta esta luzinha que vasqueja, as tuas filhas aprenderiam nas memorias da minha vida a viverem virtuosas sem religião revelada, a soccorrerem indigentes sem lerem os preceitos da caridade de Confucio ou de Jesus. Mas se m'as não déste, nem por isso descreias da felicidade d'ellas. O amor tem céos e resplendores, que banham de luz as mais tristes almas. O crime d'ellas é coisa tão mal feita á superficie da razão degenerada, que lhes não ha de durar mais na consciencia do que a sentença d'ellas escripta sobre areia. Verdadeiros crimes, diante do juiz incorruptivel, são aquelles de que o senso interior nos condemna. Prolongou-se a pratica do hebreu. O padre não o ouvia. O que elle parecia escutar era um cavo e muito intimo desfibrar-se-lhe o coração, este envelhecer e morrer que o homem está sentindo a branquear-lhe os cabellos e a ressumar-lhe á face camarinhas de suor de agonia. Depois despediu-se, e murmurou: --E adeus! que está consummado tudo! --Ainda não: viverás mais annos, porque se não é desgraçado como tu és senão em toda a plenitude. Eu é que vou sair d'aqui. É noite fechada. Já não tenho n'este mundo sol que me derreta os gelos de setenta annos. XX Parecia christão na morte! Vinte dias depois, correu nas aldeias circumpostas a Verdimilho, que o velho da ermida estava enfermo. Abalaram os pobres dos seus cardenhos, e entraram quantos cabiam na cabana do ancião. Os ricos tambem foram com os seus capellães, com os seus padres adscriptos á gleba das missas de _requiem_, com que mercavam barato o paraiso aos seus ascendentes. O ancião viu uns e outros. Ergueu a cabeça e disse: --Que entrem sómente os pobres. O espectaculo de um moribundo não convida. Os pobres, pois, ajoelharam em duas alas, defronte da parede a que se encostava uma barra de bancos, e cada um dizia em silencio as suas orações. A porta da cabana estava de par em par aberta. O sol da tarde doirava a poeira do interior. A fita luminosa, que ia inclinada em scintillas alumiar a fronte do enfermo, vinha com direcção obliqua e coada por uma abertura do colmo. Os pobres viam n'aquelle raio de pó lucido coisa mysteriosa de bonissimo agouro para a alma do doente. Appareceu então no limiar da porta um sacerdote, que a gente d'aquellas aldeias venerava como medico do corpo e do espirito. Era o padre Braz Luiz de Abreu. E como elle entrasse, o povo, que enchia a casinha, saíu, cuidando que o velho da ermida ia confessar-se. A só com o sacerdote, disse o hebreu com penosa pronuncia: --Agora é que são as despedidas, amigo. Vieste a tempo, Braz, filho adoptivo de minha mulher, que ha vinte annos me espera. Debaixo do meu travesseiro está um papel escripto de meu pulso; na arca em que te sentas, está o que eu tenho de meu. Cumprirás as minhas disposições... --E a sua alma?...--atalhou o padre.--É tempo ainda. Salve-se, homem de bem! salve-se... --Se sou homem de bem, estou salvo--murmurou o judeu. --Receba com fé os sacramentos da Santa Madre Egreja. --Ceremonias pagãs... A vida do espirito vae começar. Receba a natureza em seu seio a porção immaterial do meu ser. Descance em perpetua paz este motor interno, que recebia as lançadas da adversidade, a influencia do mal, que os homens geraram. Acabo sem remorsos, sem odios e sem esperanças. Acabo, é o que eu sei deveras. Vou desenganar-me, se errei. Agora, filho, deixa entrar a minha familia. São esses pobrinhos que saíram. Abre-lhes as portas: quero vel-os até á ultima. Braz abriu a porta, os pobres entraram e o padre ficou entre elles. O vigario perguntou ao medico e supposto confessor se era tempo de virem os santos oleos. --Mais tarde, disse Braz Luiz, esperando que o moribundo caído na apathia da extrema hora, insensivelmente recebesse as uncções e assim enganasse a devoção d'aquelle povo. Piedosa impostura, santa fraude, que levava em vista salvar os creditos do padre visitante, e abonar as virtudes do homem que os pobres começavam a beatificar. Por volta das onze horas, cresceram os trabalhos dos paroxismos. Á meia noite, descaíu o moribundo em lethargia. A respiração era quasi imperceptivel. Saíu o sacerdote a pedir a extrema-uncção, sem impedimento de saber que a boa e sã theologia não dava já nada por aquella alma, embora o agonisante fosse sacramentado. Quando o vigario, espertado do primeiro somno, chegou, estremunhado e carrancudo, com a ambula á porta da cabana, o padre Braz ajoelhara á cabeceira do moribundo, em adoração ao Santissimo Sacramento. Sondou o pulso do velho da ermida, e disse: --Expirou agora. Os pobres cessaram de cantar o _Bemdito_, e levantaram um grande choro, entrando todos a beijar a mão do cadaver. Se este acabamento de homem, transviado da religião verdadeira e das falsas, não fosse referido em romance, poderia alguem suppor que póde uma pessoa morrer como justo, sem ser absolutamente religioso. Bom é que mortes assim se não divulguem em livros graves. As disposições do philosopho são faceis de antever. Os seus herdeiros eram aquelles pobres que choravam, e outros que pediam enxerga e remedios na santa casa da misericordia de Aveiro, e tambem os peregrinos que se acolhiam á albergaria convisinha da egreja de S. Braz. Pois com tantos legados de espirito christianissimo ninguem acreditava que fosse sincero christão um sujeito que entre tantas disposições não applicou missas por sua alma, nem sequer trezentas! O clero estava escandalisado! Folgavam tamsómente os pobres,--e tanto folgavam que nem já choravam a perda do bemfeitor. XXI Como se póde viver! De causas de todo em todo inversas e entre si repugnantes apparecem effeitos similhantissimos. O despejo, por exemplo, a coisa hedionda que por ahi se chama cynismo, caleja e abroqueia tão rijamente o homem, que todas as setas da desgraça lhe resvalam do peito. Quando cuidamos vel-o soçobrado, eil-o se apruma a desafiar novas tempestades, e de tormenta em tormenta chega á derradeira edade, e acaba de cachexia, porque as cachexias não se curam com a valentia da alma. Vejamos agora o justo em tribulações, o christão de tempera pacientissima e refractaria ao desanimo que prostra e mata. As calamidades a choverem-lhe, as injustiças dos homens a pôrem-lhe em duvida a justiça divina--por se dizer que o homem tem fórma e similhança de Deus; elle a abster-se, a amputar-se, a desaggregar-se do bom da vida, e a temperar com fel alguma coisa melhor para offerecer ao céo o amargor d'ella e a reluctação com que a toma, degenerando e estragando tudo que os outros saboream. Eis que umas pessoas queridas lhe morrem; e outras o deixam, quando elle a chorar lhes pedia amparo; fogem lhe e deshonram-n'o; e o christão atira-se aos pés da cruz, queixa-se, mostra as garrochas que o trespassam, os anjos como que baixam a descravar-lh'as; fecham-se as feridas, outras logo se abrem, e elle a exclamar: «Mais, mais, Senhor!» _Amplius, amplius, domine!_ Este é o christão, o penitente, o stoico setenta vezes santo. Eil-o ahi vae vida fóra, caindo, erguendo-se, pondo peito ao baque da legião que o tenta, esgrimindo a um e outro lado com a cruz, com o hyssope: ora magestoso, ora ridiculo; mas vivendo, vivendo, até aos sessenta, e ávante ainda, n'um viver que se nos figura a mais pavorosa das agonias! Tal foi Braz Luiz de Abreu. Quantas vezes o leitor, no decurso d'esta biographia, terá dito: «o homem vae morrer agora!» Morrer! quando será isso? Ha de ainda viver, depois de tanto veneno que lhe imborcaram, ha de viver dezeseis annos. Dezeseis annos! sósinho! alli em Aveiro, não sei em que rua d'aquellas, em qualquer casa das mais desaconchegadas, a rever na téia da phantasia o rosto da mulher agonisante, das tres filhas mortas, das duas fugitivas, sem que mais aos seus ouvidos soasse o nome d'ellas, nem dos sacrilegos raptores das divinas esposas! E, como elle pôde, em meio d'isto, escrever ainda dois livros, dois grossos manuscriptos, que não sei onde param, um chamado _Feniz Lusa_, referindo a vida e acções do serenissimo infante o senhor D. Manuel, filho de D. Pedro II; e outro intitulado: _Vida e acções do primeiro principe do Brazil para exemplar do nosso serenissimo principe D. José_.[32] Querem revelação para maiores assombros? Em 1755, foi aquelle memorando terramoto de Lisboa. O padre Agostinho de Abreu, da companhia de Jesus, ia de Santo Antão para S. Roque, ao começar o tremor. Passava diante de uma casa que se estava derruindo, ouviu os clamores de dentro, entrou heroicamente para arrancar uma velha debaixo da couçoeira de uma porta, e ficou esmagado debaixo do tecto abatido. Já sabem que este jesuita era filho do padre Braz. Pois, quando a nova d'este desastre chegou ao pae, seis dias depois, o velho de sessenta e quatro annos ajoelhou, orou, levantou-se, limpou as lagrimas que lhe tolhiam a leitura do seu breviario, e leu o psalmo _Miserere mei Deus_. Que morte será pois a d'este homem para que se não diga que houve ahi angustia que podesse com elle? Ha de ser a morte designada pelos seus biographos, a morte que o senhor Innocencio Francisco da Silva lhe assigna: «apoplexia fulminante, a tempo que estava sentado, sobre uma cadeira.» Eram corridos dez dias de agosto de 1756, quando no convento de franciscanos de S. Bernardino se fechou em sepultura rasa o cadaver de Braz Luiz de Abreu. A memoria de suas mysteriosas desgraças será menos duradoura que o renome de medico abalisado que os contemporaneos lhe celebraram. CONCLUSÃO Que destino tiveram aquellas duas freiras que, no dizer do defunto hebreu, rasgaram as mortalhas? Saibamos quem eram os raptores. Eram uns cadetes de cavallaria, filhos de um Heitor Teixeira de Macedo, capitão-mór de Coimbra, e fidalgo solarengo de Condeixa-a-Nova, muito aparentado com os Chamorros, Marreiros e Matosos, nobilissimos apellidos de familias aveirenses. Hospedados em casa d'estes Chamorros e Matosos é que os Cadetes puderam ver soror Antonia Maria e soror Sebastiana Ignacia. Fazerem-se amados devia ser coisa de pequeno prologo, já porque as duas virgens não tinham das cousas d'este mundo mais experiencia que os anjos, já porque almejavam ser amadas, já porque os dois cadetes eram bizarros moços, galans palacianos, formosissimos demonios, que faziam tremer as calçadas e os corações das damas de Aveiro com a estrupiada dos seus alasões. O namorarem-se, convencionarem-se e fugirem foi n'um prompto. A justiça, quando tal soube, quiz gritar; mas os Chamorros, Matosos e Marreiros amordaçaram-n'a. Os rapazes já não tinham pae: tinham mãe, uma santa matrona, que era a imagem das virtudes christãs. Appareceram-lhe os filhos, e ajoelharam pedindo recursos para fugirem de Portugal. A tremula e espavorida senhora escutou a historia do criminoso passo. Não amaldiçoou os filhos. Chorou muito; e os velhacos, nas costas d'ella, faziam esgares de grandes farcistas! A fidalga perguntou onde estavam as freiras. Soube que as tinham escondidas n'uma quinta distante. Quiz vêl-as, porque sabia a tragedia singular da familia do medico. Por noite alta, entraram as duas meninas á recamara da viuva do capitão-mór de Coimbra. Foram mui benignamente recebidas. Aquella senhora tinha facilidades incriveis! Receber assim duas libertinas esposas do Espirito Santo! Receiando que fossem presas, antes de irem onde a virtuosa senhora tencionava mandal-as, não as deixou mais saír da sua recamara. O capellão saíu para Lisboa; e, oito dias depois, estava de volta com muitas cartas para cardeaes e ministros residentes em Roma. --Podeis ámanhã partir, filhos--lhes disse ella.--Ide a Roma com estas cartas, entregae-as, e tornae com um bom despacho. De volta, podereis ser esposos d'estas meninas, que ficam no quarto de vossa mãe até que volteis. Os moços olharam-se entre si, e ficaram como aparvados. Olharam para as freirinhas, e viram-n'as a chorar, fingindo que sorriam. Não havia que replicar. Partiram para Roma. Estavam em Lisboa ainda, negociando ordens de dinheiro sobre banqueiros romanos, quando foram chamados á pressa por ordem da mãe. A fidalga adoecêra com todos os symptomas de proxima morte. --Chamei-vos, disse ella, para que me assistaes ao enterro. Depois, ireis. Agora, jurae sobre estas Horas que cumprireis a minha vontade quanto a estas meninas. Depois de me haverdes sepultado, ireis para Roma, e, obtida a annullação dos votos d'ellas, casareis. Juraram e cumpriram. A annullação dos votos foi prolongada com inqueritos de testemunhas no convento de S. Bernardino. O padre Braz não favoreceu nem contradictou a annullação. Ao cabo, porém, de tres annos, Antonia e Sebastiana receberam as bençãos nupciaes em Roma. Detiveram-se em Roma até 1750. Em 1751 já estavam em Portugal. Não procuraram o pae, porque lhes era odioso o homem, que as atirara com sua mãe e irmãs, vivas, novas e formosas, ao sepulchro de um convento, e lhes dera como flagellos a convivencia de freiras que enfeitavam a sua estupidez com as lantejoulas da hypocrisia, ou da refinadissima protervia de intolerantes. Odiavam por isso o pae, e o lucto, que vestiram por elle, não tinha nodoa de uma lagrima. Morreram velhas, ignorando que motivo lançara um véo negro sobre o rosto de sua mãe, á hora em que o padre maldito lhe fallára. Fr. Pedro de Abreu, o frade dominicano, chegou a ser qualificador do santo officio; mas, como quer que o marquez de Pombal apagasse a ultima lavareda do santo officio com o corpo de Gabriel Malagrida, fr. Pedro acabou sem assistir a um auto de fé espectaculoso, como tinham sido os da triumphal egreja, quando os relaxados perfumavam a atmosphera com os aromas dos ossos torrados. FIM NOTAS I (Pag. 23) Sobre os nomes referidos dos justiçados pela inquisição Manuel Fernandes Villa Real, que defendeu contra os Filippes os direitos de D. João IV á corôa de Portugal, e o fez com tamanho engenho, que insinua a legalidade da sua argumentação no livro intitulado _Anti-Caramuel_, veio de Paris a Lisboa, foi logo preso, e em dezembro de 1652 mandado á fogueira com a seguinte sentença, que é um testemunho da magnanimidade com que D. João de Bragança pagava aos defensores da sua legitimidade, perante os estados que o sustentavam no throno ganhado de assalto: «Accordão os inquisidores, ordinario e deputados da santa inquisição que, vistos estes autos, libello e prova da justiça, author, confissões e defesa de Manuel Fernandes de Villa Real, x n. (christão novo) natural d'esta cidade de Lisboa, morador no reino de França e residente n'esta dita cidade, réo preso que presente está, porque se mostra que sendo christão baptisado, obrigado a ter e crer tudo o que tem, crê e ensina a santa madre egreja, e não ser fautor de heresias, e respeitar e venerar o tribunal do santo officio, e não detrair de seu justo, recto e livre procedimento, elle o fez pelo contrario, jactando-se, depois do ultimo perdão geral, de ser israelita e descendente de prophetas, e tratando com judeus publicos muito familiarmente, e por cartas com um archisinagogo dos judeus de certa parte, tendo e lendo muitos livros prohibidos, e principalmente um de ceremonias e ritos judaicos, o qual deu a certa pessoa, fazendo jejuns judaicos, estando sem comer nem beber em certos dias senão á noite depois de saida a estrella, e fazendo um livro que imprimiu[33] tratando n'elle varios assumptos; um dos quaes era favorecer os que commettem erros contra a fé, persuadindo ser bom meio para estabelecer a fé nos reinos e cidades controversias publicas, approvando por este modo em uma parte os erros publicos, e em outras os occultos, dizendo que os principes não podem impedir os que sem escandalo e máo exemplo vivem em suas seitas, e persuadindo outros que dissimulem os desacatos feitos á religião, reprovando que algum principe altere com rigores, querendo o réo que ainda que falsa se conserve, e mostrando ser da opinião que haja liberdade geral de consciencia, pretendendo sempre que o politico de uma republica se conserve, vivendo cada um na religião que mais quizer, e tendo por escandaloso não admittir aos officios publicos os de contraria religião; e querendo que em nenhum caso possa haver causa para que um principe catholico favoreça os subditos catholicos contra seu rei hereje, nem que haja reparo em soccorrer herejes contra catholicos, e querendo outrosim que a palavra da...[34] aos de contraria religião se observe ainda que seja contra os bons costumes, admittindo que Deus concede aos herejes victorias pela caridade e piedade que exercitam, como se n'elles houvera caridade ou piedade, ou virtude alguma, comparando nas insolencias os catholicos na modestia, admittindo que os de contraria religião, quando se reduzem á catholica, se podem enganar em cuidar que até então iam errados, approvando a condemnação, e censura que em certa parte se deu a certo livro que tratava do poder do summo pontifice, sendo a dita censura errada, em que tira totalmente ao papa um poder em direito aos principes _circa tempo_, _ralia_ ainda quando o principe seja heretico e scismatico e que nunca o summo pontifice possa sujeitar o principe a interdicto ecclesiastico, nem absolver os vassallos do juramento de fidelidade; e que os principes temporaes totalmente são independentes, mostrando pouca affeição á egreja romana, fazendo distincção d'ella á galicana, e preferindo a liberdade d'esta particular á authoridade d'aquella catholica e universal; e sendo outro assumpto do dito livro reprovar o justo, recto e livre procedimento do santo officio, e os castigos e confissões dos culpados pelo crime de heresia, chamando-lhe tyrannico e barbaro, e qualificando estes procedimentos por effeitos do odio, avareza e paixão, dizendo que de cumplices faziam prophetas, e de delictos enigmas, e que por um erro de entendimento se castigava a fazenda, não só a propria, mas a alheia de mulher e filhos, e que fôra melhor não querer dar luz a uma alma cega com processo ás escuras; e que emquanto o odio e ambição acompanhassem os ministros, nem os subditos viveriam seguros, nem as monarchias gosariam felicidade. E sendo estranhadas ao réo as ditas proposições antes de imprimir o dito livro, comtudo as não quiz emendar, antes ajudou a certa pessoa em outro livro que tambem imprimiu contra os procedimentos do santo officio, procurando introduzir pratica entre pessoas grandes, para que se tratasse de haver alteração e mudança nos estylos do santo officio. «Pelas quaes culpas sendo o réo preso nos carceres do santo officio e com caridade admoestado as quizesse confessar, por ser o que lhe convinha para descargo de sua consciencia, salvação de sua alma, e seu bom despacho, disse e confessou que do ultimo perdão geral a esta parte, persuadido com o ensino e falsa doutrina de certas pessoas da sua nação, se apartára da nossa santa fé catholica, e passára á crença da lei de Moysés, tendo-a ainda por boa e esperando salvar-se n'ella, e não na fé de Christo Senhor nosso, em o qual não cria nem o tinha por verdadeiro Deus e Messias, antes esperava ainda por elle, por ouvir dizer que ainda havia de vir, e só cria em Deus do céo, que fez o céo e a terra, e a elle se encommendava com algumas orações judaicas, que recitava por um livro e por observancia da dita lei guardava os sabbados de trabalho, e a paschoa do mez de março, comendo por espaço de oito dias pão asmo e seladas, e fazia varios jejuns judaicos, como era o dia grande, estando n'elles sem comer nem beber senão á noite, em que comia gallinha, com tanto que fosse degolada ao modo judaico por mão de pessoa circumcidada, compondo-se no mesmo dia com os melhores vestidos e peças novas, ainda que para isso fosse necessario buscal-as e fazel-as; e outro jejum que caía em certo mez, estando por espaço de tres semanas sem começar negocio algum, posto que continuava os principiados, estando n'ellas dois dias sem comer nem beber senão á noite, como dito é; e usando de particulares vocabulos e palavras para se entender com outras pessoas quando fazia ou havia de fazer os ditos jejuns, sem que fossem entendidos ordinariamente, por o sentido comum das ditas palavras ser mui differente, communicando estas coisas com pessoas da sua nação apartadas da fé, com as quaes se declarava por judeu, perseverando na dita crença até certo tempo, que declarou. «E que por andar apartado da fé, no dito livro que compuzera, detrahira em alguns logares no procedimento do santo officio, e se accommodara com algumas opiniões politicas com que o via usar e praticar em certo reino; e que tambem usava de livros prohibidos, e que de tudo estava muito arrependido e pedia perdão e misericordia. E por o réo não satisfazer á informação da justiça nem declarar todas as ceremonias e jejuns que havia feito por guarda da dita lei, sendo para o fazer por vezes admoestado, na fórma do estylo do santo officio, o promotor fiscal do santo officio veio com libello criminal e accusatorio contra elle, que lhe foi recebido, e o réo o contestou pela materia de suas culpas e confissões, e não quiz usar de contrariedade. E sendo lançado da com que podera vir, e sendo ratificadas as testemunhas da justiça na fórma de direito, se lhe fez publicação de seus ditos, conforme o estylo do santo officio. E veio com contraditas, que lhe foram recebidas e não provou coisa relevante; e guardados os termos de direito, e feitas as diligencias necessarias, seu feito se processou até final conclusão, sendo o réo por muitas vezes advertido de suas diminuições e admoestado com muita caridade da parte de Christo nosso Salvador as quizesse declarar, para se poder usar com elle de misericordia, que a santa madre egreja manda conceder aos bons e verdadeiros confitentes sem o réo o querer fazer. E visto seu processo, na mesa do santo officio se assentou que pela prova da justiça e por sua confissão estava convencido no crime de heresia e que a dita sua confissão não estava em termos de ser recebida, e por hereje e apostata da santa fé catholica, feito falso, simulado, confitente diminuto e impenitente foi julgado e pronunciado. «E para o réo cuidar em suas culpas e diminuições, e as poder confessar arrependendo-se d'ellas, lhe foi dada noticia do dito assento, e foi de novo admoestado para descargo de sua consciencia, salvação de sua alma, e ser tratado com misericordia, quizesse dizer toda a verdade. Vendo o réo que estava convencido por diminuto em suas confissões, pediu audiencia, e as continuou, dizendo que depois de fazer as primeiras confissões, ficára continuando até áquella hora na crença da lei de Moysés, e que por sua guarda fizera algumas cerimonias judaicas, e para que Deus lhe perdoasse seus peccados na observancia da dita lei, fazia tambem algumas penitencias, como eram não dormir em cama senão em noite de sabbado; resar algumas orações e psalmos sem _Gloria Patri_, e repetir muitas vezes a confissão geral, e communicava estas coisas com certa pessoa da sua nação, com a qual se declarava por judeu e animava para continuar na dita crença: e que de tudo pedia perdão e misericordia. E sendo visto outra vez seu proccesso em mesa, se determinou que o assento que n'elle se havia tomado não estava alterado, porque não declarava o réo todas as culpas que havia commettido segundo a informação da justiça, não se presumindo, conforme a direito, esquecimento. Alem de que não dava signaes de verdadeiro arrependimento antes os contrarios, dizendo que confessava o que fizera exteriormente, e que o que ficava em seu coração não era necessario dizel-o; pelo que foi notificado para ir ao auto da fé ouvir sua sentença, pela qual estava relaxado á justiça secular. E sendo trazido ao auto da fé, pediu n'elle audiencia, e n'ella disse que a pedira para requerer ao santo officio, com intimo e verdadeiro arrependimento de suas culpas, se usasse com elle de misericordia; que a verdade era que elle permanecera até áquella hora em seus erros, dos quaes se apartava por meio das admoestações dos religiosos que lhe assistiam, e por ver a commiseração que seu estado causava a todo este povo e pessoas que o conheceram; e que por guarda da lei de Moysés em que até então crêra, fizera muitos mais jejuns judaicos dos que tinha declarado e muitas outras cerimonias; e que de tal maneira estava na observancia d'ella depois da sua prisão que determinara morrer por sua guarda, com tal excesso que depois de lhe ser dada noticia do assento que se tinha tomado em sua causa, se tinha disposto para a morte, com aquellas cerimonias que sabia, lavando-se e vestindo camisa nova, que tinha feito para este fim, e jejuando ainda como judeu[35]. E sendo vista esta sua confissão na mesa do santo officio, se assentou que não estava em termos de ser recebida, e que era feita mais afim de escapar da morte, que pelo réo estar verdadeiramente arrependido de seus erros, como claramente se mostra do termo de que tinha usado nas mais confissões que fizera no discurso de sua causa: O que tudo visto e bem examinado, e como o réo sendo por tantas vezes admoestado nunca deu mostras de se tornar do coração á fé de Christo Nosso Senhor de que se apartou; de que claramente se colhe que persevera ainda agora em seus erros e na damnada crença da lei de Moysés. _Christi Jesus nomine invocato_, declaram ao réo Manuel Fernandes Villa Real por convicto e confesso no crime de heresia e apostasia, e que foi, e ao presente é, hereje apostata da nossa santa fé, e que incorreu em sentença de excommunhão maior e em confiscação de todos os seus bens para o fisco e camara real, e nas mais penas em direito contra os similhantes estabelecidas; e que como hereje apostata, convicto, confesso, ficto, falso e impenitente o condemnam e relaxam á justiça secular, a quem pedem com muita instancia se haja com elle benigna e piedosamente, e não proceda a pena de morte nem effusão de sangue.--_Luiz Alves da Rocha._--_Pedro de Castilho._--_Belchior Dias Preto._ * * * * * É escusado dizer que a justiça secular, comprehendendo ao justo a _benignidade e piedade_ recommendadas pelo santo officio, condemnou o réo a garrote e fogueira para que das cinzas do strenuo defensor de D. João de Bragança não ficasse memoria, como se assim podessem diante da posteridade passar a esponja por sobre uma das mais esqualidas manchas do reinado d'aquelle soberano. * * * * * O bacharel Miguel Henriques da Fonseca, advogado em Lisboa, foi queimado vivo em 10 de maio de 1682. Infere-se da leitura da sua sentença que este infeliz dez vezes foi posto a tormento, e com todas ellas foi aggravando a sua desgraça, revelando peccados novos, que o apertar das cordas e o queimar lento do fogo lhe ia arrancando. Afinal, já calejado e invulneravel ás torturas, manifestou-se profitente da lei de Moysés, affrontou no rosto os algozes, e subiu á fogueira com grande animo e anciedade do martyrio. * * * * * Por occasião do supplicio do doutor Antonio Homem, lente da universidade em 5 de maio de 1624, _um engenhoso_ poeta contemporaneo publicou, e fez correr, com grande applauso publico, o seguinte soneto em _écos_ ou de _reflexo_: «Quando um primario excellente _lente_ contra a fé cáe em desconcerto _certo_, está o que não é tão esperto _perto_ de seguir o erro que de presente _sente_, «Mas quem é da hebrea e negligente _gente_, e vendo-se do bom respeito _peito_ na fé segura do deserto _certo_ nega a Jesus, que é tão clemente _mente_ «Povo que elegeu uma bezerra _erra_; deixae do vosso velho estudo _tudo_; Segui a lei para ser guardada _dada_; «que quando em tal descuido _cuido_ que um bom lente, o melhor da terra _erra_, mas sciencia sem Deus tornada _nada_» Nunca a piedade inspirou coisa mais insulsa e soez! III (Pag. 39) A expensas da casa, sem licença do reitor... O _Regimento dos medicos e boticarios christãos velhos_, adjunto aos _Estatutos da Universidade de Coimbra_, mandados imprimir em 1653 por Manuel de Saldanha, ordena que haja trinta estudantes porcionistas e os dois logares de collegiaes medicos _que sempre houve no collegio real de S. Paulo_. «Os que houverem de ser admittidos no partido da medicina (diz o _Regimento_) não hão de ter raça de judeu e christão novo, nem mouro, nem proceder de gente infame, nem ter doenças contagiosas... «Para constar que os pretendentes tem as partes sobreditas, farão petição ao reitor, em que declarem d'onde são naturaes, e cujos filhos; e elle por seu despacho mandará passar carta em meu nome para os corregedores e justiças fazerem as ditas informações com muito segredo, tirando-as das pessoas antigas, honradas, etc.» Estas averiguações eram feitas tanto pelo miudo, que seria impossivel escapar pela malha porcionista, que tivesse gota de sangue judeu. Braz Luiz não poderia certamente dizer cujo filho era, se pretendesse os _vinte mil réis annuaes_, que tanto era a _porção paga aos quarteis_, e tirada das rendas dos concelhos de certas cidades e villas. XI (Pag. 112) As leis do reino davam rasão de sobra a Fernão Cabral, para desherdar a filha... No tit. 88 do liv. 4.º das Ordn. Filip. § 1.º, lê-se: «E se alguma filha, antes de ter vinte e cinco annos, dormir com algum homem, ou se casar sem mandado de seu pae, ou de sua mãe, não tendo pae, por esse mesmo feito será desherdada e excluida de todos os bens e fazenda do pae ou mãe, _posto que não seja por elles desherdada expressamente_(!)» E no § 17; «Item. poderá o pae ou mãe, que forem catholicos christãos, desherdar livremente os filhos herejes, que perfeitamente não crerem em nossa santa fé catholica, desviando-se do que tem e crê a santa madre egreja.» Convinha que, uma vez por outra, tirassemos o látego das costas dos frades e o sacudissemos nas costas dos legisladores. Corriam parelhas na perversidade. A depravação moral era tão cerrada e tamanha que havemos de receber como fabula um justo no meio de taes ministros da justiça divina e humana. INDICE PAG. Prologo 5 Introducção 7 I--Informações 22 II--Não era mãe! 29 III--O faro das bestas-feras 37 IV--Resposta 43 V--A piedosa eloquencia do frade 53 VI--Braz Luiz 63 VII--Exemplo de honestidade aos medicos 72 VIII--Má sina de poetas 81 IX--Poeta e moralista 89 X--Os expatriados 99 XI--Trese annos depois 107 XII--Historia de Antonio de Sá 122 XIII--Seguimento da historia 131 XIV--O segredo horrivel 137 XV--Angustias que existiram 150 XVI--O padre Braz 157 XII--O inferno como elle é possivel 164 XVIII--Catequeze 171 XIX--O velho da ermida 179 XX--Parecia christão na morte 184 XXI--Como se póde viver! 188 Conclusão 191 Notas 195 [1] _Nação_ era o termo denominativo e collectivo do povo judaico, dispersado entre as nações. Nação, por excellencia, era a d'elle. Vej. _passim_, João Baptista d'Este, _Dialogo entre discipulo e mestre cathechisante_, e todas as sentenças do santo officio, e escriptos concernentes á raça hebraica. [2] _Caracteristico legal da raça judaica._ Vej. Ord. do Reino--as Philip. [3] Veja a nota final. [4] Veja a nota final. [5] O leitor dispensa que se lhe dê fielmente traslado das maiusculas e da orthographia. [6] N'este periodo asfixiante é menos admiravel a profundeza da doutrina que o folego pulmonar do leitor da sentença! [7] Sairam de um mal para outro mal, e não me conheceram, diz o Senhor. _Jerem., cap. 9._ [8] Desculpe-se á obcecação piedosa do author do _Anno historico_ uma bestidade de tanto porte. Foi a maior que se atirou do pulpito abaixo n'aquelle seculo! [9] Estes pormenores, corridos na relação com os condemnados, vejam-se em João Martins da Costa. «Estylos mais praticados na casa da supplicação» pag. 239 e seg. [10] Isto consta do livro que Braz Luiz d'Abreu publicou, oito annos depois, intitulado _Portugal medico_. [11] _Portugal Medico_, pag, 730 n.º 63. [12] Idem, pag. 728, n.º 56. [13] Idem, mesma pag. n.º 57. [14] Limpo. [15] _Portugal Medico_, pag. 724. [16] A receita é trasladada de pag. 752 do _Portugal Medico_. [17] É textual da pag. 751. «A sciencia da medicina está de todo perdida em Portugal...» escrevia o doutor Francisco Thomaz, medico do hospital de Lisboa, ao bispo D. Jorge de Athaide em 1592 Vej. _Comp. hist. do estado da Univ. de Coimbra, 1772_. [18] São as menores virtudes da raposa, segundo vemos no tratado, d'este escriptor, medico, o mais famigerado dos seus collegas. Vej. a pag. 722. [19] Veja _Portugal Medico_, pag. 690-691. [20] É impresso em 1717, por Bento Secco Ferreira. [21] _Portugal Medico_, pag. 307. [22] Vej. _Port. Med._ pag. 209 [23] _Portugal Medico_, pag. 741 e 742. [24] Os versos errados é necessario desculpal-os tambem á santa indignação. [25] Cap. II, V. 16 [26] _Casa de Jacob_, pag. 24. [27] Cardoso. Las excellencias, 10 Exp. p. 322. [28] Foi queimado em Valhadolid em 1644. As expressões estão na _Carta del Inquisidor Moscoso a la condesa de Mònterrey_. [29] As leis do reino davam razão de sobra a Fernão Cabral para desherdar a filha, e transferir os vinculos a parentes. Os interesses da religião sobrelevavam aos mais sagrados vinculos do sangue e da piedade paternal. O pae, que quizesse perdoar as injurias recebidas do filho, poderia fazel-o; mas o desacato ás coisas e prescripções das Decretaes não estava em seu poder perdoal-o, concedendo o pão da vida a seus filhos. Veja a nota final sobre as leis facultativas do desherdamento. [30] Não se liquidou ainda a etimologia de _flibusteiros_, palavra que aportuguezamos por lhe não conhecermos a correspondente, se a ha. Vem de _flyboat_ em inglez, ou de _flibot_ em francez, ou ainda do bretão _free booter_? [31] Diccionario bibliog. do sr. J. F. da Silva Art. _Braz Luiz de Abreu_. [32] Veja _Barbosa. Biblioth. Lusit._ [33] Presumo que seria o livro intitulado _El politico christianissimo, e discursos politicos sobre algumas aciones de la vida del em.mo sr. Cardenal Duque de Richelieu_. 1642. 12.º Da 2.ª edição d'este livro diz o versadissimo bibliophilo I. Francisco da Silva «N'esta segunda edição se supprimiram depois de impressos varios trechos que desagradaram aos inquisidores, e que tambem foram na primeira riscados e illegiveis algumas passagens a pag... etc. Na edição de 1642 se acham as folhas respectivas suppridas com _cartuns_ ou folhas intercalares...» Vej. _Diccion. bibliog._ pag. 422 e 423 do 5.º vol. [34] Não podemos decifrar os caracteres que o tempo desfez no manuscripto, d'onde vamos trasladando a sentença. [35] Das tres confissões augmentativas infere-se que Manuel Fernandes Villa Real foi, por tres vezes, interrogado na tortura. Nota do transcritor: Foram corrigidos diversos erros tipográficos. Na lista que segue estão algumas das alterações efectuadas. Pág. Original Corrigido 20 inculpada familla inculpada familia 26 que o estremecia como irmoo que o estremecia como irmão 56 o unico profiente o unico profitente 138 conversação da noite anterio conversação da noite anterior 143 --Braz Luiz continuou: Braz Luiz continuou: 155 Deus me mate já, já! --Deus me mate já, já! 168 achou se na sua pobre alcova achou-se na sua pobre alcova 182 aquecei vos ao calor que aquecei-vos ao calor que Os números de página no índice estavam errados, pelo que foram corrigidos. --- Provided by LoyalBooks.com ---