OLIVEIRA MARTINS ESTUDO DE PSYCHOLOGIA POR G. MONIZ BARRETO SEGUNDA EDIÇÃO PARIS GUILLARD, AILLAUD & C.ª 47, Rue St. André des Arts, Paris 242, Rua Aurea--1.º, LISBOA 1892 OLIVEIRA MARTINS OLIVEIRA MARTINS ESTUDO DE PSYCHOLOGIA POR G. MONIZ BARRETO PARIS GUILLARD, AILLAUD & C.ª 47, Rue St. André des Arts, 47 I OS CARACTERES A peça mestra da intelligencia do Sr. Oliveira Martins é a imaginação psychologica, isto é, o dom de ver e descrever interiores de alma.--É esta a faculdade que já apparece claramente nos seus primeiros trabalhos, atravez das leviandades e temeridades da sua estreia, e que crescendo, avulta eminente nos seus ultimos livros.--É ella quem faz a sua força de historiador e o seu encanto de escriptor.--É ella quem muitas vezes o ampara nas correrias da sua improvisação e suppre as lacunas visiveis da sua cultura. É ella finalmente quem, habilitando-o a decifrar os compostos sociaes pelos compostos individuaes o mune da capacidade pratica, e o arma com a aptidão politica. Em que consiste essa faculdade? Consiste na representação minuciosa e exacta dos estados da sensibilidade e da intelligencia alheia, e na intuição precisa e completa dos phenomenos da propria intelligencia e sensibilidade. Todos possuem a primeira d'estas aptidões em grau sufficiente para se adequarem ao meio social em que vivem; e a segunda, para se perceberem como um todo distincto e individual. Mas em certos espiritos essa faculdade existe em grau desmedido, e os homens que a possuem são capazes de notar as mais delicadas e fugitivas impressões da sua alma e da alma alheia, de observar os sentimentos e os pensamentos mais incoerciveis, de conservar a sua curiosidade attenta e activa mesmo sob a acção ardente da dor e do prazer physico, ou sob o surdo encanto da comprehensão e da invenção. Quando ella attinge o seu maximo, as intelligencias culminantes em que apparece, Balzac e Shakespeare por exemplo, podem transformar-se nas suas creações e viver nos seus personnagens com uma intensidade adequada á realidade; e como essa imaginação é n'elles tão extensa como exacta, a sua obra será egual á natureza em quantidade e qualidade: o analysta francez escreverá a _Comedia humana_ e fará passar na tela do romance em tropel vivo, cortezãs, forçados, magistrados, sacerdotes, industriaes, poetas, todos os estados da vontade desde a indecisão até ao crime, todas as modalidades da intelligencia desde a inepcia até ao genio: o poeta inglez comporá o seu theatro e dará a theoria completa das paixões e das imagens tal como a construem laboriosamente a psychologia e a clinica. Esta especie de imaginação é a mais preciosa entre todas; o espirito que a possue transforma-se por sympathia nos objectos que descreve; é ella quem faz do romance uma autopsia e da historia um confessionario. É o dom dos avataras, e o seu nome é legião. O Sr. Oliveira Martins possue em grau raro esta faculdade rara entre nós. Os exemplos abundam na sua obra, e tão numerosos que constituem prova. Tomal-os-ei d'aquelles livros em que não é visivel uma influencia extranha, e onde a sua originalidade é incontestavel. Á portada da sua Historia de Portugal está o parallelo das duas nações peninsulares, pagina veridica e profunda que abre com esplendor essa galeria magnifica de retratos. «Ha no genio portuguez o que quer que é de vago e fugitivo, que contrasta com a terminante affirmativa do castelhano; ha no heroismo lusitano uma nobreza que differe da furia dos nossos vizinhos; ha nas nossas lettras e no nosso pensamento uma nota profunda ou sentimental, ironica ou meiga, que em vão se buscaria na historia da cultura hispanhola, violenta sem profundidade, apaixonada mas sem entranhas, capaz d'invectivas, mas alheia a toda a ironia, amante sem meiguice, magnanima sem caridade, mais que humana muitas vezes, outras abaixo da craveira do homem a entestar com as feras. Tragica e ardente sempre, a historia hispanhola differe da portugueza, mais propriamente epica; e as differenças da historia traduzem as dissemelhanças do caracter. Confronte-se Calderon com Camões, Garrett com Espronceda; ver-se-á a verdade da affirmação e a sagacidade do historiador.» Tão lucido na psychologia do individuo como na dos povos, leia-se o retrato do primeiro rei: dissipadas com o clarão da critica as nevoas do patriotismo, superada com o alcance da vista a grandeza da distancia, o vulto do fundador da monarchia apparece vivo, alumiado de frente, na plena resurreição da historia. «Quem era Affonso Henriques? Já amestrado no officio de reinar, á maneira porque então se entendia um tal officio, o moço principe reunia as condições necessarias para consolidar uma independencia até ahi precaria. Era audaz, temerario até, pessoalmente bravo, qualidade nem tão commum no tempo, como a muitos acaso pareça. Fraco general, ao que se vê, porque as batalhas feridas com as tropas leonezas perdeu-as sempre, era feliz guerrilheiro. Capitaneando um troço de soldados, cahia d'improviso sobre um logar, e a furia irresistivel do ataque deu-lhe a maior parte das suas victorias. Nem a grandeza das empresas o assustava, nem as distancias o impediam de acudir, a um tempo, do extremo norte quasi ao extremo sul do paiz. A estes dotes militares reunia outros não menos valiosos, dada a precaria situação em que se apossara do reino. Era secco, astuto, friamente ambicioso, sem chimeras nem illusões. Era um espirito mediocremente pratico, e isso fazia boa parte da sua força: mal dos politicos ao mesmo tempo apostolos! Como a tenra haste que verga á mais leve briza do cannavial, assim Affonso Henriques, sem rebuços obedecia, logo que a sorte lhe era adversa. Passada a tormenta erguia-se; e á facilidade astuta com que se humilhara, respondia logo a teima perfida com que se rebellava. Isto fazia-o indomavel. Ubiquo militarmente, era nos negocios um Proteu. Os seus inimigos, leonezes, sarracenos, não achavam por onde prendel-o. Submisso e humilde quando se achava vencido, subscrevia a todas as condições, acceitava todas as durezas, para logo mentir a todas as promessas, rasgar todos os tratados, com uma franqueza ingenua, uma simplicidade natural que chegaram a espantar a propria Edade-média. Nem brios cavalleirosos, nem sentimentos de familia, nem odios pessoaes, nem vinganças estupendas: nenhuma chimera, nenhuma grande ambição, nenhum poetico sentimento enchiam a sua cabeça estreita e inteiramente occupada pela idéia fixa de consolidar a sua independencia. O predominio absoluto d'uma idéia pratica, servida por uma intelligencia lucida, por um caracter sem grandeza e por uma valentia provada, tornavam-no invencivel, ainda mesmo quando era batido. A sua teima fazia-o semelhante a uma lamina de aço: um instante vergada por um esforço momentaneo, logo estendida e livre; impossivel de manter curvada desde que foi solta. O seu pensamento tinha a tenacidade da mola, e não a rijeza do bronze nem o peso do chumbo. Vivia dentro do seu Portugal como um javardo no seu refojo: assaltado, investia, despedaçando tudo com as suas fortes presas. Perseguido, fugia. Não tinha a nobreza do leão, nem a ferina astucia do tigre: possuia só a brava e bronca tenacidade do javali. Um fraco apenas lhe notam, embora os actos da sua vida não denunciem que esse defeito o prejudicasse muito: gostava de ser adulado.» Mais interressante ainda é o retrato do primeiro Pedro. O psychologo multiplicou aqui os pormenores e os casos da vida privada, porque o vulto que quiz descrever tem um alcance mais social do que politico. Para o comprehender abandona os habitos intellectuaes modernos, a reflexão pautada e a emoção equilibrada; e em presença do velho rei faz resurgir em si a visão concreta e os sentimentos de terror e amor que elle devia provocar n'um camponez ou n'um burguez do seculo XIV. Para ver e fazer ver esse vulto tão pittoresco, não compõe uma dissertação, pinta um quadro. O historiador faz-se subdito do rei que historía, e fechando os olhos vê surgir na tela interior a apparição colorida e nitida, dotada de vida e capaz de viver. Leiam-se essas paginas singulares, attente-se n'este retrato do rei gago e feio, temido e amado do seu povo; uma palavra acode á mente: é uma allucinação; uma allucinação auditiva e visual completada pela resurreição das emoções correspondentes. «D. Pedro tinha a paixão da justiça: era n'elle uma mania como em seu avô o fora a guerra. Não prescindia de julgar todos os delictos. Os criminosos vinham á côrte, desde os remotos confins do reino. Quando algum chegava, manietado, e o rei comia, levantava-se pressuroso da mesa, e trocava a vianda pela tortura. Prazia-se em ajudar e dirigir os algozes; indicava os expedientes e processos para obter a confissão dos reos. Nunca abandonnava o açoute enrolado á cinta em viagem, tomava d'elle, e por suas mãos castigava o facinora que no caminho lhe traziam. Os adulteros mereciam-lhe um odio especial; jámais lhes perdoava. D. Pedro tinha um escudeiro, Affonso Madeira, _luitador e travador de grandes ligeirices_, a quem, embora o amasse _mais que se deve aqui de dizer_, o rei mandou castrar, porque peccou com Catarina Tosse:--o rapaz engrossou, e morreu depois _da sua natural door_. Certa mulher era infiel ao marido, que nem por isso se offendia: offendeu-se o rei, e mandou-a queimar; ao esposo desolado respondeu que lhe devia alviçaras pelo ter vingado. Havia um homem casado, com filhos, mas que antes da boda forçara a mulher. Roussou? Morra. Enforcou-o entre os choros e supplicas da esposa e dos filhos. O seu odio aos peccados da carne perseguia com furor as alcouvetas, e as feiticeiras não lhe mereciam menos cuidados. «Quando o tomavam os ataques da furia justiceira, a gaguez fazia ainda mais terrivel a expressão da sua physionomia. A fala não lhe deixava traduzir bem as coleras, e rubro, grosso, agitando o latego, n'um delirio, mettia espanto. Os gagos, porém, tem isto de particular: tanto o defeito accrescenta ao horror da furia, como põe nas horas mansas o que quer que é de bonhomia quasi ironica. Era assim D. Pedro. Caçador tenaz, descançava do officio de juiz nas corridas do monte, seguido pelos moços com os nebris e falcões, e pelas matilhas de cães. Então, o seu rosto aplacava-se, e era benigno, bemfajezo, liberal, folgazão. _Foi grande criador de fidalgos._ Glotão, passava horas esquecidas á meza, onde a vianda era em grande abastança. «Assim como a sua justiça era destituida de majestade, assim eram as suas folganças. Dir-se-ia um rustico feito rei; e acaso por isso o povo o amava tanto. Não tinha distincções, nem delicadezas no sentimento, nem no trato, sendo em tudo brutal. Se confundia em si o juiz e o algoz, as suas festas eram kermesses extravagantes e plebéias. Os instinctos aristocraticos e as fórmas da cortezia nobre, torneios, lanças e outros, não tinham n'elle um amigo. Era um democrata, um tyranno á antiga, em cujo espirito toda a brutalidade popular encarnara: por isso mesmo era adorado! Os seus castigos terriveis, passando de bocca em bocca, faziam-lhe um pedestal de força; e as suas continuas folganças populares cimentavam essa força com o amor intimo que nos merece o que tem comnosco a irmandade de gostos. O povo via-se rei na pessoa de D. Pedro. «Quando voltava em batéis de Almada para Lisboa, a plebe lisboeta sahia a recebel-o com danças e trebelhos. Desembarcava, e ia á frente da turba, dançando ao som das _longas_ (trombetas), como um rei David. Estas folias apaixonavam-no quasi tanto como o seu cargo de juiz. Por ellas chegava a fazer loucuras. Certas noutes, no paço, a insomnia perseguia-o: levantava-se, chamava os trombeteiros, mandava accender tochas; e eil-o pelas ruas, dançando e atroando com os berros das _longas_. As gentes, que dormiam, sahiam com espanto ás janellas, a ver o que era. Era o rei. Ainda bem! ainda bem! que prazer vel-o assim tão ledo! Vestiam-se todos á pressa, desciam ainda tontos de somno; e as ruas, uns momentos antes silenciosas e negras, brilhavam com as luzes e tinham o clamor da multidão em vivas, o movimento das danças universaes.» Não só as ruas, mas tambem estas paginas. Como para o seu mestre Michelet, a historia é para elle uma resurreição, e como no seu mestre Michelet o poder de evocação é acompanhado n'elle pelo dom da comprehensão. N'este mesmo retrato que analysei, se os pormenores e anecdotas que fazem _ver_ os objectos abundam, não escasseiam os juizos geraes que os fazem _perceber_. Assim depois de ter pintado o velho rei em corpo e alma, localisa-o na sua epocha e no seu meio, e indica as causas da sua força, que são os motivos da sua influencia. Poder-se-iam definir as suas narrações e descripções, como uma serie de allucinações com integridade da razão. «D. Pedro é a viva imagem da Edade-média, politica e domestica. Todos os vicios e todas as virtudes, a fereza e a ingenuidade, os odios terriveis e as amizades espontaneas, sommadas n'um caracter primitivo, onde acaso alguma lepra dos vicios civilisados antigos punha nodoas novas, formavam a pessoa d'esse rei que é verdadeiramente um symbolo: por isso o povo, vendo-se n'elle re-tratado, o adorou.» N'este retrato, como em todos os trabalhos do Sr. Oliveira Martins, a cor e a vida abundam; o que não abunda é a proporção e a ordem. E ainda assim não transcrevi senão o que convinha. Se o fizesse na integra, ver-se-ia que o nosso auctor, na furia da inspiração improvisadora, repisa e baralha. Se ordenasse e concentrasse, o effeito seria fulminante e a critica batida recuaria até á admiração. Mesmo assim é nos retratos que elle triumpha; vastos como quadros, ou concisos como medalhas vêem-se pendurados a todos os cantos da sua obra. Pinta-os ás dezenas, cunha-os aos centos. Na _Historia da Civilização Iberica_ é Camões, é Colombo, é Loyola; na _Historia de Portugal_ são Affonso Henriques, Pedro o Cru, o Condestavel, o Infante D. Henrique, Albuquerque, D. Francisco de Almeida, D. João de Castro, o Principe perfeito, D. Sebastião, o Restaurador, o Rei magnanimo, o pobre D. João VI; no _Portugal Contemporaneo_, Saldanha, Palmella, D. Miguel e o Telles Jordão, Mousinho, Rodrigo, Cabral, os Passos e tantos. Com dois traços ou com duzentos, o personnagem apparece sempre vivo, n'um escorço fugitivo ou n'uma longa analyse, com uma verosimilhança que garante a veracidade. E não só esta imaginação é psychologica, mas realista: ella se compraz não só na pintura das opiniões e paixões, mas tambem na representação dos pormenores corporaes e das circunstancias triviaes. Como psychologo, elle sabe que as grandes forças presentes em cada individuo, e que lhe determinam a biographia, se revelam não só no mechanismo das idéias e no jogo das tendencias, mas ainda nas pregas do vestuario e nas rugas do sorriso; como escriptor conhece que só o traço sensivel provoca a visão, e que a arte de pintar com a palavra, é a arte de evocar com a palavra. Assim elle verá a gaguez de D. Pedro, a surdez de Mousinho, a cabeça felina de D. João II; o peito constellado de Saldanha, a face quadrada de Rodrigo, o eterno charuto de Palmella; os habitos, as doenças, as idiosyncrasias mais furtivas apparecem daguerreotypadas por uma imaginação e estampadas n'uma prosa que tem a complexidade e a velocidade das operações vitaes. Psychologica e realista, esta imaginação é completa? Um romancista como o Sr. Eça de Queiroz prima na pintura das sensações corporaes e das paixões animaes: o cio, a gula, o egoismo brutal e a intriga trivial, a cobiça e a vaidade, a bondade ingenua e a maldade machinal, quasi que exgottam o seu reportorio; a população dos seus romances é composta de personnagens medios; se uma vez n'um livro que é uma confidencia elle pintou uma alma fóra do commum, foi procedendo á maneira dos lyricos, transcrevendo as suas proprias emoções; Carmen Puebla é o proprio romancista com o vibrar pungente dos seus nervos, e os fremitos da sua furiosa e dolorosa sensibilidade; mas o auctor do _Primo Bazilio_ nunca escreveu um romance como _Louis Lambert_; para um vôo tal são precisas as azas musculosas do genio cosmopolita e androgyno de Balzac. O Sr. Oliveira Martins conhece perfeitamente as raizes inconscientes e physicas da vida superior do espirito, e mostra-as sempre que precisa, bem que sem as minudencias do romance, porque pinta a fresco sobre a parede da historia; mas vê com lucidez egual a florescencia culminante da razão e da moralidade. Elle retrata tão bem o fundador do jesuitismo, como o filho da lavadeira. O genio é-lhe tão familiar como o instincto; e não vejo melhor maneira de cerrar esta analyse da face mais importante do seu espirito, senão transcrever as paginas magnificas que elle escreveu sobre Herculano, e reproduzir, depois da figura do rei que com o punhal nos fundou a nacionalidade, o vulto do escriptor que com o seu genio, incompleto mas poderoso, nos iniciou a historia. «.... A palavra que o retrata é o Caracter, porque n'elle a vida moral e a intellectual eram uma e unica,--o contrario do sceptico, não raro santo, o proprio do estoico, não raro obtuso. «Dizemos pois Caracter no sentido e valor que a palavra teve na Antiguidade, e não na vaga accepção moderna. Não é a intemerata vida, não é o desprezo dos bens mundanos, o odio, a ostentação vã, a desabrida recusa de titulos, de honras, de logares que em si constituem o Caracter; embora a repugnancia pelas cousas mesquinhas seja consequencia indispensavel d'esse modo d'existir que essencialmente consiste na afinação perfeita das regras da moral e dos principios da intelligencia, da vida do cidadão e da existencia do philosopho. O typo do caracter á antiga é o estoico, e este é o nome que propriamente define a physionomia de Herculano; este é o typo que passo a passo veiu crescendo até dominar nos ultimos annos,--quando as licções successivas do mundo, nunca estoico e muito menos do que nunca em nossos dias, e muito menos do que em parte alguma em Portugal; quando os desenganos do mundo o degradaram para o exilio,--não como um martyr, mas como um homem, que protestando sempre, se não converte, nem se corrompe. «Por isso o estoico é por natureza austero e duro; e na pessoa de Herculano esse genero aggravava-se com effeito por varios motivos: já pelo seu temperamento lusitano, já pela deploravel baixeza do nivel moral da sociedade portugueza, já pelo saber consideravel systematisado pelo philosopho, e sem duvida alguma desproporcionado para a illustração media do paiz em que vivia. Olhando as miserias alheias e a alheia ignorancia, por modesto que fosse--e não o era--via-se muito acima como homem e como sabedor. Isto, e não a cohorte dos aduladores ineptos a quem não dava importancia, embora a sua bondade os não fustigasse, o fazia inconscientemente orgulhoso: porque nenhum orgulho nem pedantismo tinha para com todos os que via crédores de attenção e respeito. «Do accordo da intelligencia e da moral vem ao estoico um pensamento bem diverso e até opposto ao dos santos, que do antagonismo sentido partem para as soluções mysticas. Esse pensamento e o individualismo, cujo traço fundamental consiste na idéia de que o homem é em si um todo indiviso e completo, e a unica verdadeira realidade da sociedade; a idéia de que a razão humana é a fonte do conhecimento certo e absoluto, a consciencia a origem da moral imperativa,--a liberdade, portanto, a formula da existencia social. D'este modo de ver as cousas nasce aquillo a que podemos chamar o orgulho transcendente,--que os antigos estoicos disseram Caracter, quando pela primeira vez essa fórma do pensamento appareceu systematisada em doutrina. «No revolver da agitada vida, em que se achara, iam pouco a pouco reunindo-se, como que crystallizando, os elementos da futura, distincta e typica individualidade. A nobreza e a ideal rectidão do seu espirito tinham na sua profundidade o motivo d'uma systematica cegueira para pesar e medir as cousas reaes com a fria imparcialidade d'um critico, ou com a caridade do santo. Com o seu metro absoluto e integro, Herculano, na agitação do mundo, corria atraz da chimera de achar aquelles homens que o seu estoicismo desenhava, aquelles raros, dos quaes elle era em Portugal um e unico. O critico, se é politico, manobra com os homens como um general com um exercito, auscultando as vontades e caprichos, dirigindo as forças direito a um fim, sem attenção pelos instrumentos d'elle. Perante os homens, o santo tem na piedade uma intima força: a coragem que não abranda; tem o enthusiasmo que o move, e a caridade que explica e lhe faz comprehender, em Deus, as fraquezas e as miserias da terra. Combate, pois, sem recuar, levando nos labios a palavra de uncção, e o sorriso d'uma ironia boa, ao mesmo tempo cauterio e balsamo. O estoico, porém, ferido, pára. O mundo era elle e nada mais além da sua razão, da sua consciencia, da sua liberdade. E quando as feridas, as perseguições, os ataques, os ultrajes são profundos e agudos como os que expulsaram da politica,--e tambem das letras,--Alexandre Herculano, o estoico repetindo a historica phrase do Africano, suicida-se. É então que vivamente nasce, pois só então o Caracter apparece em toda a sua pureza. «Não o mata o scepticismo, mata-o o excesso de uma incompleta doutrina. Não descrê, e é por cada vez mais acreditar em si, que foge a um mundo rebelde a ouvir a verdade. A morte não é pois um acto de desespero, é um acto de fé. Só a differença dos tempos fez com que no suicidio de Herculano não entrasse o ferro como entrou nos suicidios estoicos da Antiguidade. A vida assim coroada, o homem assim transfigurado n'um typo, e a sua palavra e o seu exemplo n'um protesto, superior ao mundo e ás suas fraquezas, ficam aureolados com o forte clarão dos heroes, lume que aos navegantes, errando no mar escuro da vida, guia a derrota e indica o porto.» Marcado com firmeza e analysado com perspicacia o facto capital d'este espirito, o critico passa a estudar-lhe as origens, porque sabe que nos homens cultos a educação é uma segunda natureza. E no caso presente, como succede quasi sempre na historia dos homens fóra do commum, a cultura concorda com o temperamento e exalta o valor das qualidades innatas. O estoicismo ingenito, exasperado pelo kantismo apprendido, determinam o corpo das suas opiniões sociaes, politicas, religiosas e economicas, e depois de fundir as idéias ao pensador, fabricam o estylo ao escriptor. O Sr. Oliveira Martins considera-o sob todos estes pontos de vista com uma lucidez de expressão e uma nitidez de comprehensão, que surprehendem tanto mais que o nosso critico discorda do auctor que explica, a ponto de combatel-o. Esta sagacidade é ainda mais notavel no curto juizo sobre as qualidades da prosa de Herculano, quando se pensa que elle é emittido por um homem que não prima pela posse d'aquillo a que cabe rigorosamente o nome de dotes litterarios. «O racionalismo kantista foi o molde onde se vasaram em systema as tendencias naturaes do espirito de Herculano,--um D. João de Castro da burguezia e do seculo XIX. O antigo stoicismo portuguez era catholico e monarchico; o estoico de agora foi romantico e individualista,--exprimindo a reacção, geral na Europa, contra a religião dos jesuitas a contra a doutrina da Razão-de-Estado que depois de ter feito as monarchias absolutas, fizera a Convenção e Napoleão. «O kantismo como philosophia, o individualismo como politica, o livre-cambio como economia,--eis ahi as tres phases da doutrina que, por ser um philosopho, Herculano media em todo o seu alcance.» Mas a aptidão superior que o leva a marcar n'um espirito o facto capital é acompanhada pelo tino da realidade que lhe impede de fazer derivar tudo d'este unico facto; ao lado d'esta causa primordial o Sr. Oliveira Martins restabelece os principios subsidiarios que a modificam, limitando-a, e combinando-se com ella originam uma alma real, capaz de viver entre cousas reaes e de produzir obras reaes. Por este sentimento intenso do concreto o Sr. Oliveira Martins nos apparece como um verdadeiro artista, e não como um simples combinador de abstracções. «.... Não basta o principio individualista para explicar a physionomia intellectual de Herculano. Varias causas concorriam para o temperar ou desviar das suas logicas conclusões. O saber é uma d'essas, mas a principal é o seu temperamento estoico. Para Herculano, e em geral para o estoicismo, uma doutrina não é um producto da intelligencia pura, que póde ser ou não amado e _vivido_. O estoico vive com o que pensa; o seu pensamento está no seu coração: é a carne da sua carne, o sangue do seu sangue; é uma fé, não é apenas uma opinião. Eminentemente forte, é por isso mesmo positivo e pratico. As doutrinas são para elle realidades, não são abstracções; e nada valem quando nada representam na esphera da consciencia e da moral, quando nada valham na do direito e da economia. Por isso as extremas conclusões do individualismo, irrealisaveis, praticamente absurdas, immoraes até, repugnantes para o proprio instincto, contradictadas pelo saber mais mesquinho, essas conclusões, delicia d'espiritos seccos, de philosophos abstrusos, de ingenuos ignorantes,--não podia Herculano, sabio e estoico, abraçal-as. Parava, pois, afim de conciliar a sua opinião com o seu sentimento; e se em resultado sahiam inconsequencias, ellas não fazem senão demonstrar a verdadeira nobreza da sua alma e a tempera rija da sua intelligencia. «Lado algum das suas idéias mostra isso mais do que o economico. Tão livre-cambista como individualista: ou ainda mais, porque o socialismo, cujo crescer sentia e temia, vendo ahi um positivo e declarado inimigo, e o vivo problema do futuro, ou ainda mais, dizemos, porque não parava, nem limitava as conclusões ultimas, Herculano era radical no _free-trade_, pois firmemente acreditava n'elle como numa panacia. Estoico sempre, a doutrina da concorrencia apparecia-lhe principalmente por um lado,--secundario para os economistas. O livre-cambio, proclamado como a melhor receita para crear a riqueza, era para Herculano sobre tudo a melhor fórma de a distribuir. Queria que as leis pulverisassem o solo, no qual não reconhecia outro valor senão o que o trabalho consolidava n'elle, e esperava que a concorrencia, desembaraçada de todas as peias, creasse uma sociedade proudhoniana, em que todos fossem capitalistas e proprietarios. Como estoico, era um socialista; mas o seu socialismo realisar-se-ia pela liberdade, pela concorrencia. E quando se lhe contavam os casos repetidos, actuaes, do sem numero de monopolios de facto, nascidos, não das leis, mas sim da guerra natural economica,--elle parava, scismava e não respondia. «Via-se que lá dentro luctavam a doutrina e a lucidez; em se convencer, sem mudar, apparecia o moralista invectivando os vencedores d'essa lucta donde elle esperava a justiça e donde apenas sahia o dolo. Ninguem o excedia então; e ao ouvil-o, dir-se-ia algum fugido de Paris, dos tempos da Communa,--porque nos referimos agora aos seus ultimos annos, ás vesperas da sua morte, quando a agiotagem _livre_ de Lisboa e Porto provocou uma crise bancaria. Quiz então o governo cohibir a liberdade de emissão, mas não o pôde.» E transcriptos uns trechos de carta em que o individualista defende a sua doutrina, mesmo contra argumentos tirados d'um campo, em que as consequencias d'ella são promptas e fulminantes, o critico prosegue. «Mas se essa liberdade, expressa na concorrencia economica,--e na franca emissão de notas, no caso especial tomado para exemplo; mas se essa liberdade conduz a taes resultados, sendo em si excellente, força é que haja um vicio no mechanismo das instituições. E ha, sem duvida, diz Herculano,--é o anonymato. «Na essencia, a _bank-note_ é a expressão do credito que o individuo attribue a si. Que se reunam 7, 70 ou 700 individuos para sommarem essas avaliações; que se chame banco e que exprimam collectivamente o total, isso não muda a essencia da cousa. Supprimia todas as responsabilidades _limitadas_. A responsabilidade é de sua natureza _illimitada_ até onde chegam os recursos e pessoa do responsavel. _Non habet in posse, dicat in corpore_, é maxima que se não devia desprezar n'esta questão do abuso do credito. Note-se que eu desejaria supprimidas todas as responsabilidades limitadas, tacitas ou expressas, manifestas ou disfarçadas.» «Nós vimos antes como o espirito do erudito historiador corrigia em certo ponto a doutrina individualista; vemos aqui o jurista a corrigir o livre-cambio; vamos ver o canonista a corrigir para a direita o ultramontanismo, para a esquerda o atheismo. A educação do homem temperava os principios do philosopho; e essas correcções eram-lhe indispensaveis para que os seus pensamentos se mantivessem de accordo com os seus rectos instinctos, com as suas bellas aspirações,--eram-lhe indispensaveis, porque o estoico não admitte divergencias entre a intelligencia e a moral, entre o mundo das idéias e o das realidades. «Com fundado motivo dizia Herculano que perante os principios,--liberal e socialista, ou individualista e collectivista,--era indifferente a questão das fórmas do governo: «pouco me incommoda que outrem se sente n'um throno, n'uma poltrona, ou n'uma tripeça». Mas essa questão da republica ou da monarchia, é para elle um problema não só historico, mas tambem religioso. «Pondo de parte a questão de opportunidade no momento d'uma crise, a republica não parecia a Herculano adequada «á velha Europa, sobretudo a estas sociedades meio-germanicas na indole e celto-romanas na raça que estanceiam ao occidente educadas pelo catholicismo que na pureza da sua indole é o typo da monarchia representativa.» «A tradição religiosa--ou antes aquella tradição religiosa d'um catholicismo liberal inventada pelo romantismo,--servia, pois, ao philosopho para temperar o seu individualismo, para o conciliar com um resto de auctoridade social consagrada nas prerogativas do throno representativo. De tal modo se combinava o racionalismo, e este traço é o que dá a Herculano, ou antes á sua doutrina um caracter d'individualidade original, depois do ensino, apenas racionalista de Mousinho da Silveira. «Tambem entrava ao lado da educação, o temperamento para acabar de afeiçoar a physionomia religiosa de Herculano. O mechanismo do frio Deus kantista não bastava á sua indole peninsular. A imaginação pedia-lhe a antiga historia tradicional; o sentimento reclamava que quer que é d'affectuoso e meigo,--a doce caridade catholica; e o bom-senso exigia o culto e a pompa que impressionam as massas. O protestantismo, alvo das suas acerbas satyras, não satisfazia a sua alma, nem as suas exigencias de canonista. Nada propenso ao mysticismo, e até rebelde a comprehendel-o fóra da caridade pratica, não via na religião mais do que uma Egreja,--instituição e disciplina.... «A Liberdade, supposto principio que para elle resumia a essencia d'um espirito racional e absolutamente consciente, era afinal o seu verdadeiro e intimo deus. É essa a religião do estoico; e o Deus da _Harpa do Crente_ é um ser eminentemente livre que por um acto de vontade absoluta creou tudo o que existe: o deus do estoico é a divinisação do estoicismo. E como todos sabem por quanto esta antiga philosophia entrou na formação do christianismo, é desnecessario mostrar desenvolvidamente como e até que ponto Deus era para Herculano o Deus christão. «Obras de tres naturezas diversas nos revelam pelo estylo tres phisionomias. A primeira, official e grave, são os seus trabalhos historicos, onde o periodo redondo e classico, mas sem affectação quinhentista, se desenvolve alimentado pelos _caldos de Vieira_ que nos receitava a nós os moços, para educar a mão; a segunda são os seus romances e escriptos humoristicos, onde mal ataviado o periodo jesuitico, ás vezes combinado com fórmas e _tours_ estrangeirados, transparece sempre o _goût du terroir_, o cunho do portuguezismo duro e pesado, mais aggressivo do que de comedia. Na terceira, finalmente, em nossa opinião a mais bella, nos escriptos de polemista a phrase rotunda é quente, a aggressão é viva, as palavras tem calor, e a dureza do genio lusitano acha nos sentimentos expressos em orações duras, uma convicção, uma independencia que a ennobrecem. Ouve-se a voz do estoico, e ha uma harmonia perfeita entre o pensamento profundo, grave e forte, e o estylo redondo, sobrio e nobre. A rethorica classica é o molde proprio do classico pensamento estoico. Mas entre estas obras ha uma, uma unica (_Carta á Academia das Sciencias_), onde apparece o homem intimo, sensivel, caridoso e simples, esse homem que nós esboçamos fugitivamente, porque a vida, a educação, o temperamento, de mãos dadas concorriam para o subalternisar ao homem estoico; ha uma dizemos, em que as palavras não falam apenas, choram e vociferam, tem lagrimas e imprecações e ironias. Ferido no vivo coração da sua existencia, o homem poz no papel o melhor do seu sangue. O que o genio do artista obtem com a intuição, consegue-o o poeta com a emoção. A _Carta á Academia_ é tão bella como as melhores das poesias intimas de Herculano. «Para elle que, como lusitano, nada tinha de artista (prova, os seus romances), a litteratura era uma missão e não um dilletantismo. O universo, a historia, a sociedade, não se lhe apresentavam como assumpto de estudos subtis e curiosos, de observações finas ou profundas, de quadros brilhantes, vivos ou commoventes; mas como objecto de affirmações ou negações inspiradas pela convicção estoica. Nos seus livros póde seguir-se ao mesmo tempo o desenvolvimento do seu pensamento e a historia da sua consciencia. São o retrato da alma do auctor, ora apaixonada, ora melancholica, quasi sempre triste, raras vezes contente, mas sempre convicta, energica e franca. «As _Poesias_ e o _Eurico_ revelam-nos o crente na providente liberdade d'um poderoso e justo Deus; a alma rijamente temperada contra o funesto acaso; o coração aberto ás emoções da natureza que se lhe manifesta com o caracter d'uma fatalidade cruel e d'um cego desabrimento. Deus, a Natureza, o Homem, são, n'essas obras, personnagens d'uma tragedia biblica, com a tempestade rouca por musicas e por fundos de scena bulcões de opacas nuvens cobrindo o azul do ceo. «Vem depois as obras polemicas, vasta e riquissima collecção que patenteia a omnimoda actividade do pensamento de Herculano, e lhe dá o caracter d'um philosopho, cujo pensamento em vez de se manifestar em tratados, se exprime em controversias. Profissionalmente, era historiador. A _Historia de Portugal_ e os trabalhos que com ella formam o corpo dos estudos do erudito são a obra mais importante do escriptor e solido fundamento do seu immorredouro nome na historia litteraria portugueza. Reunindo a um vasto e forte saber geral a paciencia do erudito e o escrupulo do critico, esses trabalhos não respiram a pedante seccura do especialismo, e se não constituem, nem podem constituir uma historia nacional, fizeram com que os problemas das origens sociaes e politicas da nação portugueza fossem por uma vez resolvidos. A historiographia peninsular tem em Herculano o seu mais illustre nome: um nome que se conservará ao lado do de Guizot, de quem tinha os golpes de vista comprehensivos, e do de Thierry, a quem acompanhava na faculdade de representar vivas, nos seus habitos, costumes e leis (senão em sua alma como um Michelet) as passadas gerações,--avantajando-se a ambos na coragem com que arcou com o trabalho improbo de colligir, coordenar, traduzir, interpretar os monumentos historicos d'um povo que não tivera benidictinos eruditos. Robinson de nova especie, Herculano achou-se como n'um paiz deserto e teve de descobrir os materiaes antes que pudesse pôr mãos á obra. «Prodigio de trabalho, de saber, de paciencia, de talento, a _Historia de Portugal_, é um monumento; entretanto,--devemos dizel-o, se quizermos ser inteiramente justos.--mais de uma cousa lhe falta, para poder ser considerada um typo, e o seu auctor um grande historiador como Ranke. Falta-lhe ar na contextura sobrecarregada de eruditas discussões; falta-lhe, sobre tudo, aquella alta e serena imparcialidade, aquelle ponto de vista rigorosamente objectivo, aquella isenção critica, impassivel perante as escholas, os systemas, os partidos; e sem a qual a historia deixa de o ser. «Além d'isto, ha uma falta de nexo na _Historia de Portugal_, resultado do modo como primeiro foi concebido.... as duas faces do livro se não ligam,... os factos e os homens nos apparecem como um appendice, subalterno, indifferente, dando a impressão de que se tivessem sido outros e diversos, nem por isso a vida anonyma das sociedades poderia ter seguido rumo differente. E se nem a acção dos elementos voluntario-individuaes e dos fortuitos, sobre os elementos sociaes, nem a inversa, nos apparece, tirando assim á historia o seu caracter eminente de realidade; juxtapondo artificialmente a uma chronica, veridica, desinçada dos erros e das invenções fradescas, uma dissertação erudita sobre o desenvolvimento das instituições: tambem a apreciação dos elementos moraes,--crenças individuaes, phenomenos de psychologica collectiva,--é feita á luz de doutrinas quasi voltaireanas; e no avaliar das lendas religiosas, da acção do clero, o historiador prescinde de profundar os motivos moraes, ou cede a palavra ao sectario que nos bispos e em Roma não vê outra cousa mais do que sacerdotes da astucia e uma Babylonia de perversão.». N'este magnifico retrato se vê em alto relevo todos os recursos do auctor. No arcar com uma empresa difficil se mede toda a força disponivel. Tendo de estudar uma natureza complexa e eminente, o psychologo desenvolveu n'esse trabalho todos os recursos do seu eminente e complexo espirito. Eminente e differente, o espirito estudado vê-se que quem o estuda, nem philosopho por officio, nem stoico por temperamento, é capaz de, pela imaginação psychologica, perceber as idéias geraes e as paixões moraes. Quiz transcrever quasi na integra, estas paginas numerosas, mas que se lêem d'um fôlego, porque um bom exemplo se não é um ramo legitimo de prova, é um instrumento optimo de exposição, e convem expor com a lucidez maxima, aquella que reputo a faculdade matriz do espirito que analyso, e que nenhum escriptor portuguez contemporaneo possue em tão alto grau como o Sr. Oliveira Martins. II AS PAIZAGENS Com a imaginação psychologica, possue elle a imaginação physica? O exame das suas paizagens o dirá. Um escriptor como o Sr. Ramalho Ortigão, por exemplo, em quem o dom da representação visual, apparece completo e permanece intacto, procederá nas suas descripções pela transcripção minuciosa, exacta e methodica das impressões taes como foram recebidas, ou antes taes como foram enviadas dos objectos. Se elle descreve um trecho qualquer da realidade, supponhamos uma rua de Amsterdam, começará por calcular-lhe a largura, 3 metros; verá os predios de tres e quatro andares, em tijolo; notará em seguida a côr do tijolo, preto, e a nuance particular, preto côr de sombra ou vermelho tostado; falará das varas pintadas de verde dos enxugadouros, onde pendem riscados brancos, azues e vermelhos; observará as pranchas com vasos, as taboletas sobre as portas, vinte objectos miudos ou dispersos, um gallo branco de crista encarnada, o pão de assucar da tenda, uma chave de broca para o ar, tres queijos sobrepostos, um branco, um dourado, um preto; uma lanterna, um barril, um tamanco; nas janellas, os espelhos quadrados de caixilho de ferro; no chão comprido e varrido da rua, arrumados á parede uma vassoura, baldes, gigas, celhas, o pincel das lavagens, uma roda desembuchada do eixo, uma lança de corvo, uma gaiola de frangos, e n'uma casota, um sapateiro velho, de oculos, sobre a tripeça, curvado a trabalhar, com o tecto em cima do seu _bonnet_ de lontra. E os objectos virão descriptos com uma tão vehemente fidelidade, que enumerando-os parecerá, não que elle redige um rol mas que estampa uma visão. E as manchas da côr, a direcção das linhas, a obtusidade ou a agudeza dos angulos, a disposição e o recuo dos planos visuaes, o systema das apparições corporaes dadas na adaptação dos seus elementos intestinos, e nas combinações ou contrastes com as apparições adjacentes, o peso, a forma, a proveniencia e a utilidade das cousas vistas, serão dictas n'uma prosa de tal sorte adequada pela sua provada firmeza e estructural precisão ao genero de trabalho a que a submettem, que o leitor se lá esteve, sem querer, exclama: S. Nicolas Straat! repetindo o nome que leu e a rua por que passou. São assim as descripções do Sr. Oliveira Martins? Não são. Na sua Historia Romana, no livro das guerras punicas, encontram-se descripções admiraveis que rivalisam em colorido e nitidez com as melhores do Sr. Ramalho Ortigão; mas a influencia litteraria é visivel n'ellas, são reminiscencias intelligentes da _Salammbo_ de Flaubert. Ha porém nos seus livros paizagens vistas cuja originalidade é incontestavel. N'essas o processo descriptivo é bem diverso. O Sr. Oliveira Martins não nos diz o que observou, mas o que sentiu. Os aspectos physicos não lhe apparecem senão como signaes de forças e fontes de emoções. E a emoção que elle procura e acha na visão. Se elle observa uma arvore não lhe vê a côr das folhas nem os contornos dos troncos, e se o faz é com intenção e esforço; nota-lhe a expressão moral: «Os campos sobem em terraços viçosos, assombrados pela oliveira _doce e pallida_, dando com a sua folhagem minuscula, _um tom aereo, um tom grego_ á paizagem.....» Ou ainda «o aloés orgulhoso levantando _com imperio_ o seu pennacho de carmim». Falando com precisão elle não reproduz o aspecto das cousas, mas a sua physionomia. As suas paizagens são retratos. Um pedaço qualquer da realidade corporea não é para elle mais que um afloramento de energias latentes e uma causa de sentimentos presentes. O pensamento de Amiel, que uma paizagem é um estado da alma, inexacto para os escriptores de imaginação physica, é absolutamente verdadeiro para os escriptores de imaginação psychologica, como o Sr. Oliveira Martins. Elle encara a natureza não como um pintor mas como um poeta. Precisemos ainda mais esta analyse. Uma paizagem é um conjuncto de elementos materiaes coordenados de um certo modo no espaço e reflectido de um certo modo no espirito. Dos diversos factos em que ella póde ser resolvida, uns são propriamente objectivos como a grandeza e a figura, outros uma pura sensação individual, como a côr, ou uma fonte directa de emoção como o movimento. D'aqui nascem duas ordens de paizagens, uma a que chamarei descriptiva, outra a que cabe o nome de expressiva. As do Sr. Oliveira Martins são expressivas, como convem a um escriptor de imaginação psychologica. Isto explica tambem porque elle prima na pintura de certas scenas e claudica na descripção de outras. Descreve muito melhor uma batalha do que um assedio, e um naufragio do que uma viagem. As tumultuosas descripções, motins, cavalhadas, procissões, triumphos, combates e festas abundam nos seus livros e são excellentes. Não assim as scenas tranquillas que demandam a lucidez de memoria e segurança de traço e que não provocam senão uma emoção pacifica e duravel. Uma viva preoccupação da força é visivel nas suas grandes descripções e em nenhuma ella se manifesta tão energica como nas magnificas paginas sobre o terremoto. «Na manhã do 1º de novembro a cidade estremeceu, abalada profundamente e começou a desabar. Eram nove horas, dia de Todos-os-Santos: nas casas ardiam as velas nos oratorios, e as egrejas regorgitavam povo a ouvir missas. Toda a gente, n'uma onda, correu ás praias; mas, rolando em massa, estacou perante a onda que vinha do rio, galgando a inundar as ruas, invadindo as casas. Por sobre este encontro ruidoso, uma nuvem de pó que toldava os ares e escurecia o sol, pairava, formada já pelos detritos das construcções e das mobilias, que o abalo interno da terra vasculhava, e os desabamentos enviavam, em estilhas, para o ar. A onda do povo afflicto, retrocedendo, a fugir do mar, tropeçava nas ruinas; e as quedas, e a metralha dos muros que tombavam, abriam na floresta viva, agitada pelo vento da desgraça, clareiras de morte, montões de cadaveres e poças de sangue dos membros decepados com manchas brancas dos cerebros derramados contra as esquinas. E as casas erguiam se com as paredes desabadas, os tectos abertos sobre o esqueleto dos tabiques, mostrando a nú todos os interiores funestos, n'este dia em que, para muitos, Deus julgara e condemnara Lisboa, como outr'ora fizera a Sodoma. Por isso o rouco trovão dos desabamentos se ouvia cortado pelos ais dos moribundos, e pelos gritos dos homens e das mulheres, abraçadas ás cruzes, aos santos, ás reliquias, soluçando ladainhas, ungindo moribundos, parando esgazeados a cada novo abalo da terra que não cessava de tremer, arrastando-se pelo chão, de joelhos, com as mãos postas a face em lagrimas, a clamar: Misericordia! Misericordia! «Casas, palacios, conventos, mosteiros, hospitaes, egrejas, campanarios, theatros, fortalezas, porticos, tudo, tudo cahia. «Se visses sómente o palacio real, diz uma testemunha, que singular espectaculo, meu irmão!» Os varões de ferro torcidos como vimes, as cantarias estaladas como vidro! A onda do rio sorvia n'um momento o caes do Terreiro-do-Paço, com os barcos atracados coalhados de gente. Dos andares altos precipitavam-se sobre as lages das ruas. O medo crescia, vinha a loucura; viam-se mortos arrastados pelos vivos, viam-se mutilados coxeando, gente correndo desgrenhada, semi-nua, homens e mulheres, velhos e crianças, dilacerados, sangrentos, arrastando uma perna fracturada, esvahindo-se em sangue por algum membro decepado. Gritos, choros, clamores, imprecações, ais, preces, um borborinho de vozes desvairadas acompanhava os gemidos comprimidos dos soterrados nos escombros. No turbilhão das ruas havia quedas e mortos, abraços e agonias. A mesma loucura dos homens era o desvairamento dos brutos: os machos, desbocados, arrastavam os cavalleiros e as caleças, precipitando-se nos despenhadeiros da cidade montuosa; e as massas de gente viva, moribunda e morta, de envolta com os entulhos, rolavam nas ruas ladeadas pelos esqueletos das casas como uma imagem desolada do que seria o cahos. Quando a terra se subvertia, quando o mar vinha subindo afogar a terra, quando no ar faiscavam as linguas flammiferas rutilantes, que lembrança podia haver das invenções humanas? Abraçados, confundidos, na communidade do pranto, fidalgas e freiras, meretrizes e mães, mendigos e senhores, villões e cavalheiros, traçavam-se na communidade da fome, do frio, da nudez, do terror. De rastos a cidade inteira, sacudida pelo abalo formidando, reunia toda a sua eloquencia numa palavra unica--Misericordia! Misericordia! «Mas vinha o clarão das chammas com a sua luz sinistra; vinha a labareda fustigar com o lume a pobre gente semi-nua, tiritando sob o açoute de um nordeste frigido; gelava-se e ardia-se a um tempo; suffocava-se em fumo e pó! E as labaredas cresciam, e o incendio lavrava, e aos gritos desvairados dos infelizes ajuntava-se o crepitar das madeiras o estalar das cantarias, a cascalhada dos espelhos, dos crystaes e dos charões, que o fogo devorava. A densa nuvem de pó que escurecia tudo, illuminava-se com os clarões vermelhos que rebentavam por toda a parte, porque Lisboa inteira derrocada era um brazeiro. As linguas orgulhosas das chammas subiam emproadas para o ceo, juntando ás preces lacrimosas dos habitantes como um protesto satanico dos elementos. Outros protestos, mais positivos e egualmente horriveis, atroavam agora os ares: os escravos vingavam-se da sua escravidão, os mendigos da sua pobreza, os maus da sua maldade. O assassinato, o estupro, o roubo, como n'uma terra posta a saque, rolavam de envolta com as ruinas e o fogo: e por entre os destroços ainda apagados, viam-se os perfis negros dos escravos, rindo infernalmente, com os olhos injectados, os dentes brancos, a atiçar tições ardentes para cima das ruinas, augmentando o incendio, acclamando a chamma vingadora!... Misericordia! Misericordia!» Estas paginas tem o encanto da desordem e a majestade da força. O que seria defeito na descripção de scenas calmas e de objectos regulares é virtude na pintura de paysagens revoltas e de figuras desmedidas e informes. A violencia extrema da imaginação é adequada ao caracter terrivel do quadro. O sentimento vivo da energia que abunda nos trabalhos do Sr. Oliveira Martins, não podia ter melhor emprego do que na representação dos estragos produzidos pelo desencadeamento da energia. Ajunte-se a estas paginas que transcrevo, outras que calo. Leiam-se as suas descripções de incendios, batalhas, execuções, matanças, sedições populares, tumultos parlamentares. Observe-se que a poesia é a arte que tem por instrumento a palavra, e que a palavra, pela sua origem provavel e pela sua ligação certa com a paixão, é uma expressão natural dos movimentos da alma, que a obra litteraria tem antes um alcance moral do que um valor plastico, e ver-se-á que tive razão quando disse que o Sr. Oliveira Martins procedia na composição das suas paizagens não como um pintor mas como um poeta. Como um poeta e como um geographo. Não só as suas paizagens são sentidas, mas ainda pensadas. Ellas são para elle não só fontes de emoção, mas resultados de forças, constituidas em systemas naturaes pela communidade das causas que as determinam, e pela identidade de effeitos que provocam nos espiritos sobre que actuam. São poemas que se leem, effeitos que resultam, e meios em que se vive. Assim, depois, de ter descripto a largos traços a paizagem italiana, resume: «Ao sul da Italia reinam os vulcões, ao norte imperam os rios; além o constructor da terra é o fogo, aqui a agua.» Leia-se na _Historia de Portugal_ esta descripção do littoral alemtejano. «As aguas estagnam ou escasseiam nos baixos, as populações definham. Ou torradas pelo arido suão que os areaes ardentes não podem suavisar, e sem montanhas que obriguem os vapores do mar a condensarem-se, ou envenenadas pelos miasmas dos paúes que o sol de fogo põe numa fermentação permanente, as populações amarellidas e magras definham, curvadas pelo mortifero trabalho das marinhas de sal, ou da cultura do arroz. São o contraste das baixas do norte do paiz, estas baixas do sul. Além, copiosas chuvas e uma humidade criadora; aqui, o ar secco (500 a 700 mill. annuaes, 30 a 50 no estio; humidade 30 a 80%), duro e carregado de emanações mephiticas. Além uma temperatura branda, aqui um calor excessivo (med. 17°). Além uma população exuberante; aqui as solidões e os areaes nus, matisados pela traiçoeira cevadilha, e pelo aloés orgulhoso, levantando com imperio o seu pennacho de carmim. Além homens laboriosos e familias; aqui esfarrapadas tribus em choupanas, tiritando com o frio das sezões n'uma atmosphera de fogo, mulheres esqualidas, crianças verde-negras, homens na indifferença da desolação, ou na vertigem do crime!» Eil-o que penetra na paizagem fazendo reflexões de geographia e meteorologia, munido de um udometro e de um hygrometro. A imaginação não fica abafada sob os dados numericos e technicos, e o quadro com ser instructivo não deixa de ser artistico. Dos dois caracteres que notamos nas paizagens do Sr. Oliveira Martins, o ser uma transcripção de emoções e o ser a explicação de um mechanismo o ultimo predomina no trecho que acabamos de citar, o primeiro no que antes citaramos; ambas apparecem n'um justo equilibrio no que passamos a citar. «Aquem Tamega o scenario muda. A humidade cria em toda a parte vegetações abundantes; não ha um palmo de terra d'onde não brote um enxame de plantas; mas como o solo é breve, como a rocha afflora em toda a parte, e os campos nascem do terreno vegetal formados nas anfractuosidades do granito pelas folhas e ramos decompostos e nos estuarios dos rios pelos sedimentos das cheias, a vegetação é rasteira e humilde, o pinho maritimo de uma constituição debil, o carvalho um pygmeu, enleado ainda pelas varas das vides suspensas. A densidade da população completa a obra da natureza, numa região onde o vinho não amadurece: o acido picante dá-lhe uma semelhança das bebidas fermentadas do norte, cidra ou cerveja, e com ella, ao genio do povo caracteres tambem semelhantes aos dos bretões e flamengos. A vegetação de si mesquinha, é amesquinhada ainda pela mão dos homens; as necessidades implacaveis da população abundante, produzem uma cultura que é mais horticola do que agricola: pequeninos campos circumdados por pequeninos valles, orlados de carvalhos pygmeus decotados, onde se penduram os cachos das uvas verdes. No meio d'isto formiga a familia: o pae, a mãe, os filhos, immundos atraz d'uns boisinhos anões que lavram uma amostra de campo, ou puxam a miniatura de um carro. Sob um ceu ennevoado quasi sempre, pisando um chão quasi sempre alagado, encerrado n'um valle abafado em milhos, dominado em torno por florestas de pinheiros sombrios, sem ar vivificante, nem abundante luz, nem largos horizontes, o formigueiro dos minhotos não podendo despegar-se da terra como que se confunde com ella; e com os seus bois, os seus arados e enxadas forma um todo, donde se não ergue uma voz de independencia moral, embora a miude se levante o grito da resistencia utilitaria. A paizagem é rural não é agricola; a poesia dos campos é naturalista, não é idealmente pantheista. Quem uma vez subiu a qualquer das montanhas do Minho e dominou d'ahi as lombadas espessas d'arvoredo, sem contornos definidos, e os valles quadriculados de muros e renques de carvalhos recortados, sentiu de certo a ausencia de um largo folgo de ideal, de uma viva inspiração de luz: apenas aqui e acolá, no meio da monotonia da côr dos milhos, um canto do alegre verde do linho, vem lembrar que tambem no coração do minhoto ha um logar para o idyllio infantil do amor.» Se eu quizesse resumir o que penso das paizagens do Sr. Oliveira Martins, diria que ellas revelam uma percepção mediocre da linha, e uma percepção maior da côr, um sentimento vivo dos movimentos, uma visivel tendencia para traduzir os aspectos physicos em impressões moraes, e uma aptidão activa para explicar os aspectos physicos como mechanismos naturaes; traços estes que dão ás suas paizagens o valor de um elemento da Historia. Ellas são productos da imaginação psychologica e da razão abstracta do auctor, e depois de termos largamente examinado a primeira estudando os seus retratos, vamos analysar a segunda, estudando as suas theorias. III AS THEORIAS Qual é a sua concepção do mundo? qual o seu processo de invenção? qual o seu methodo de prova? qual a quantidade a qualidade e a ligação das suas idéias geraes? Eis as perguntas que um critico deve fazer sempre que queira ter uma percepção clara da razão do escriptor que analysa. Á portada do seu livro _O Hellenismo e a Civilisação christã_ ha uma theoria digna de attenção, menos pelo seu valor intrinseco de verdade ou novidade do que pela sua importancia como indicio do espirito que a formulou. É a theoria do Acaso. Em presença da realidade historica, como em presença da realidade natural, o Sr. Oliveira Martins é ferido pelo caracter eminentemente _concreto_ que ella apresenta. A infinita complexidade propria das cousas e que imprime a cada uma um caracter de individualidade, não escapa á sua observação. Na sciencia, pensa elle, o necessario e o fortuito tem uma funcção igualmente inevitavel. É certo que o Sr. Oliveira Martins não confunde o fortuito com o milagroso, que justamente regeita como irracional. Mas admittindo ser impossivel explicar um caso qualquer na sua totalidade, elle introduz um elemento d'ignorancia mesmo n'aquella porção da Realidade que é confessadamente do dominio da sciencia positiva. É isto que a sua notavel theoria do Acaso enuncia com a lucidez propria das operações abstractas. Os factos apparecem-lhe certamente formando series e ligados entre si pelo nexo da causalidade. Mas o encontro d'essas series determina nos pontos de intersecção a apparição de novas formas de realidade, cuja existencia a sciencia não póde explicar, visto o encontro das series não ser necessario, e cujos aspectos o investigador se deve limitar a descrever, abandonando aqui a razão abstracta, instrumento adequado á descoberta das leis geraes, pela imaginação poetica, visão sufficiente da existencia concreta. Sem entrar na discussão desenvolvida d'esta theoria, a meu ver inexacta, não posso deixar de me demorar um instante com ella. A introducção da noção de Acaso como elemento constitutivo da Realidade, quer se considere o Acaso como ausencia de leis, quer seja apenas synonymo de contingencia no encontro das series naturaes expressas por essas leis, significa sempre uma abdicação confessada ou tacita da Razão. A previsão dos casos futuros, aferidora da solidez das verdades adquiridas, torna-se tão impossivel n'um universo em que a ausencia de causalidade implica uma constitucional e incuravel anarchia, como n'um mundo em que os factos apparecem, sim, ligados por um nexo abstracto de causalidade, mas em que as cousas são aggregados contingentes, resultantes da intercorrencia de series independentes. A coherencia parcial representada pela existencia d'essas series é inutilisada pela ausencia de uma connexão natural que ligue as series n'um systema, resultando d'ahi uma incoherencia effectiva como a que torna um cahos o mundo concebido pela philosophia de Stuart Mill. Os resultados de uma tal doutrina fazem-se sentir logo; e não é difficil dizer porque occorrem ás vezes á penna do Sr. Oliveira Martins expressões singulares, que levariam a suspeital-o de scepticismo intellectual, se o corpo das suas opiniões não desmentisse uma tal hypothese, e se o proprio auctor não corrigisse o que as suas expressões possam conter de excessivo. Copiarei do prefacio do _Portugal contemporaneo_ estas linhas para exemplo: «O profundo e inabalavel reconhecimento das causas que fazem dos homens os instrumentos do acaso ou do destino!...» N'este trecho está como que visivel toda a theoria. A affirmação das causas não exclue a admissão do Acaso e uma extranha reserva coexiste com um dogmatismo energico. A theoria acima exposta contém certamente alguma cousa de verdadeiro; para que fosse absolutamente exacta seria preciso completal-a pela affirmação de uma solidariedade estructural entre as partes e de uma unidade systematica no todo universal. Affirmação esta que tem o seu fundamento quer na doutrina da communidade d'origem e identidade latente dos elementos da Realidade, quer na philosophia que vê na idéia de Systema como no conceito de Causa formas condicionaes do pensamento. Admittindo qualquer d'estas hypotheses, o Sr. Oliveira Martins não se privava do direito de se conservar n'uma prudente reserva em frente da esmagadora complexidade das cousas concretas, antes lhe seria facil motivar a sua abstenção com a impossibilidade em que se acha o espirito de exgottar por analyses successivas a quantidade infinita de elementos que entram na formação do mais insignificante phenomeno. De maneira que esta impossibilidade de explicação completa proviria não de uma falta de coherencia entre as series causaes, mas de um excesso d'ella. Fundada nestas duas idéias, o Universo e o Individuo, é possivel proceder á construcção da sciencia positiva. Para conseguil-o deve-se ainda recorrer a principios subsidiarios. Não entra no programma d'este estudo enuncial-os. Diga-se porém que a noção de jerarchia de causas e a comparação entre grandezas de forças são instrumentos adequados á resolução do problema. Seja porém qual for o valor doutrinal d'esta theoria, ella nos interessa como documento do espirito que analysamos. Vê-se que o Sr. Oliveira Martins encontra na realidade dois principios, um necessario, outro fortuito. Quanto ao primeiro o nosso auctor exprime-se categoricamente; e investe-o de certeza absoluta; e no fim do seu livro a _Anthropologia_ escreve o seguinte: «A logica dipensa os prolegomenos da physiologia; e todos os progressos passados ou vindouros da anatomia do cerebro não alteraram, nem alterarão uma linha só do systema das suas leis. Podemos affirmar com afouteza que o que torna certa para nós uma proposição, a tornaria egualmente certa para intelligencias tão bem munidas de conhecimentos como a nossa: embora com a indispensavel capacidade organica, tivessem uma constituição physiologica differente. Com algumas circumvoluções mais ou menos no cerebro talvez se não seja capaz de comprehender a geometria; mas, sendo-se, a geometria não poderá ser diversa da que nos ensinaram Euclides ou Archimedes.» Esta peremptoria affirmativa nos revela uma intelligencia que por natureza ou por systema, se não deixa immergir nas nevoas da duvida. Quanto á admissão de um elemento fortuito na realidade, é conveniente observar que o Sr. Oliveira Martins não só o confessa mas ainda o pratica. Com effeito nas suas narrações e deducções elle foge ás explicações que se contentam com uma só causa; as suas previsões são cheias de restricções. Pegar n'um trecho da realidade, despil-o de tudo quanto for accessorio, decompol-o n'um pequeno numero de elementos constitucionaes, referil-os a um pequeno numero de causas simples, subordinar todas estas causas a um só principio explicativo que é razão sufficiente de todo o grupo estudado, partir do trabalho feito para formular previsões imperiosas semelhantes a ordens dadas ao futuro, são actos proprios das intelligencias simplistas e centralistas, de que offerecem um excellente exemplo entre nós os primeiros escriptos do Sr. Theophilo Braga. O Sr. Oliveira Martins procede de um modo bem diverso. Elle multiplica os pontos de vista, não poupa principios novos para explicar novas formas de existencia, foge de theorias demasiado simples, e quando formula uma lei só admitte a sua futura realisação sob certas condições, abstendo-se de uma excessiva confiança na sciencia como explicação do presente ou previsão do porvir. Sem tomar as interminaveis precauções, nem ter a delicadeza infinita de um Ernesto Renan, por que lh'o não permitte o temperamento nimiamente apaixonado da raça, a sua prudencia é grande e seria efficaz, se a não prejudicasse o seu exaggerado e contumaz espirito de improvisação. Assim como é, não se torna porém difficil mostrar a relação que prende os seus habitos d'intelligencia á sua concepção da realidade. Nem é menos facil apontar o nexo logico que liga a concepção exposta e as tendencias indicadas ao seu habitual e confessado processo de indagação. «Não bastam á historia, diz elle, a observação e o systema classificador, assim como á sua lingua, não bastam a precisão e a clareza; é mister sentir e adivinhar e por no estylo a vida e o calor proprios das cousas moraes». E accrescenta: «O historiador não reproduzirá a sociedade, se não poder combinar no seu espirito o raciocinio que descreve, a intuição que vê a alma que sente.» É mister sentir e adivinhar diz o Sr. Oliveira Martins e é o que elle faz de preferencia. Alguns verão n'estas palavras um paradoxo ou uma ironia. Mas as pessoas versadas no assumpto sabem que ha duas maneiras de inventar: Ou se parte da observação das causas e por um laborioso processo de raciocinio se sobe aos principios mais geraes que as explicam, ou por uma immediata e impetuosa improvisação se descobrem estes mesmos principios sem passar por todas as intermediarias logicas que são os seus antecedentes naturaes. D'estas duas classes de intelligencias, uma fadada para a grande descoberta inconsciente, outra predestinada para a perfeita prova efficaz, e que mutuamente se completam, porque se uma é a invenção, a outra é a demonstração, o Sr. Oliveira Martins pertence á primeira, isto é, apparece-nos antes como um poeta, do que como um orador. Certamente elle estuda os assumptos de que trata, mas vê-se que as suas theorias derivam menos da erudição que da intuição. Póde-se dizer que elle adivinha, se entendermos por adivinhação, não uma milagrosa apprehensão de principios impossiveis de descobrir por meios naturaes, mas uma veloz e certeira descoberta de verdades que seria lento e penoso investigar pelo raciocinio ordinario. O nosso auctor pertence, salvo as differenças de grandeza, a essa classe d'espiritos, de que são excellentes exemplares Michelet na França, Carlyle na Inglaterra, e na Allemanha tantos Allemães. É antes um poeta, do que um orador. Porque os attributos proprios da razão oratoria, o instincto da ordem, o habito da symetria, o emprego das verdades claras e equidistantes, a contextura equilibrada e a velocidade uniforme do discurso, a abundancia de argumentos e a efficacia de provas, não são visiveis nos seus livros. Pelo contrario, os dons propriamente poeticos, a veracidade e a intensidade da visão concreta, a energia da imaginação instantanea e intermittente, o vôo desigual e tortuoso do raciocinio, o emprego da inspiração, e da paixão como processos de descoberta e exposição, saltam aos olhos de quem o estuda. Este genero de espirito é fadado, pela sua estructura, ás verdades importantes e aos erros frequentes, e nem umas, nem os outros faltam nos trabalhos do Sr. Oliveira Martins. D'entre os dotes oratorios acima indicados, e cuja falta notei no Sr. Oliveira Martins, um dos mais importantes é certamente o talento e o gosto da prova; qualidade esta cuja importancia sobe de ponto, se observarmos que a prova é não sómente um instrumento da eloquencia, mas ainda um elemento da sciencia. Quem o leu, observou de certo, que elle se contenta com expor as idéias, muitas vezes novas, sempre interessantes, que lhe occorrem nas suas explorações atravez da Historia, sem procurar fundamentar as suas theorias, e tornar evidente aquillo que considera como verdadeiro. E não só esta ausencia de provas é visivel em questões theoricas, mas ainda em materia de factos. Certamente as narrações do Sr. Oliveira Martins tem um cunho d'extrema verosimilhança. Artista pela visão das massas e pelo sentimento dos conjunctos, elle sabe adequar os pequenos factos que escolhe ao effeito final que deseja, e nos seus livros a harmonia do todo garante a veracidade das partes. Mas salvo esta garantia que é commum ao romance que se imagina, como á historia que se narra, nada merece nas suas obras o nome de demonstrado. Nem a immensa accumulação dos factos averiguados, nem a enumeração completa dos documentos compulsados, nem a discussão e a critica das fontes exploradas, vem dar á sua narração o cunho da certeza. Entrando num assumpto vai direito ao amago d'elle, e depois de traduzir a viva impressão recebida, com uma abundancia extrema de pormenores sensiveis, n'um quadro que se grava na memoria, passa a atacar outro assumpto e a pintar outro quadro, sem procurar convencer o leitor da efficacia da analyse e da fidelidade da pintura. No seu desdem de artista e no seu orgulho de inventor, parece crer que a evidencia é a atmosphera da intelligencia e repelle a prova como um pleonasmo. Nenhum dos nossos escriptores merece mais ser lido, nem carece mais de ser lido com cautela. IV OS SENTIMENTOS Estudada a sua intelligencia passemos a estudar a sua sensibilidade; esta não é menos interessante do que aquella. Qual é o numero, a força, a especie das suas emoções? Certamente ellas são numerosas. A emoção é um estado habitual da sua alma. Qualquer que seja o assumpto de que se occupa, a paixão abunda. Isto é visivel sobretudo pelo tom do seu estylo. Historia ou critica, jornal ou theoria, tudo quanto escreve é animado por um sopro quente de commoção sincera. Nenhuma idéia lhe apparece como um simples objecto de comprehensão, mas como uma verdadeira fonte de impulsões. Frequentes e intensas. Basta percorrermos os seus livros, mesmo de relance, para nos convencermos que a força das suas emoções é tão grande como a sua constancia é perfeita. Vehementes sempre, violentas muitas vezes, ellas constituem pela sua multiplicidade e continuidade um estado habitual de exaltação da sensibilidade. Dotes estes, que ligados á sua capacidade de visão, concreta e ao seu vivo sentimento dos totaes, dão a este historiador um alcance de artista e fazem d'este publicista um verdadeiro poeta. Ardentes e frequentes. Até aqui não vimos das suas emoções senão a quantidade, e isso mesmo dentro d'aquelles limites de imperfeita approximação que não é dado á Psychologia transpor. Vejamos agora a sua qualidade, isto é a especie dos sentimentos, e ordem dos agrupamentos. Sem duvida essas emoções são tristes. O bem estar em frente da realidade, a alegria de viver, não são sentimentos proprios do seu espirito. A gravidade e a tristeza que elle considera como qualidades da alma portugueza, são-no tambem da sua mesma alma. Se a dor é um maximum de sensação, a extrema sensibilidade é um principio de soffrimento. Capaz de emoções frequentes e vehementes, e propenso a emoções graves e tristes, vejamos que sentimentos são despertados n'elle ao contacto dos objectos, como elles se combinam com as ideias, quaes d'entre elles se transformam em paixões, e são capazes pela sua persistencia e efficacia de lhe governarem a actividade. Certamente não é a belleza physica que se impõe á sua admiração. Escriptor de imaginação psychologica, a harmonia das linhas e o esplendor das côres deixa-o insensivel. Nós só nos commovemos com aquillo que percebemos, e a nossa sensibilidade é solidaria com a nossa intelligencia. Por isso no espirito que analyso, o enthusiasmo franco em frente da magnificencia da materia, a sympathia ardente pelo livre jogo das forças naturaes, não são visiveis. Se o Paganismo significa o amor da vida corporal e o predominio da actividade instinctiva, em contraposição com o Christianismo, considerado como uma reacção espiritualista, e uma repressão systematica das paixões organicas, não se lhe poderia chamar pagão. Mas a solidez da sua razão prática e a energia das suas tendencias moraes prohibe que o consideremos christão. Não é christão porque é mais largamente humano. Em parte nenhuma isto se verifica melhor do que na sua concepção do amor. A psychologia das paixões mostra que este sentimento é o mais complexo, e portanto o mais instructivo documento que se póde explorar para a intelligencia de um coração. Não temos do Sr. Oliveira Martins uma colleccão de poesias lyricas onde possamos estudar todos os cambiantes, de que um tal sentimento se reveste ao passar pelo seu espirito. Mas n'essas admiraveis paginas finaes da Historia romana, em que o philosopho resumiu as suas idéias sobre a Vida, e o poeta poz a nú a sua alma, a confissão involuntaria vale por um documento especial. Ora de todos os elementos que podem entrar na composição d'esta paixão, elle só vê dois: o instincto animal e a compaixão. A energia dos seus instinctos moraes regeita o primeiro como inferior, e a mulher apparece-lhe não como um arrebatamento dos sentidos, uma satisfação do orgulho, um objecto de posse, um assumpto de analyse, uma visão divina imposta á admiração do artista, mas como um ente digno de piedade e necessitado de protecção. Alguma coisa de viril e triste caracterisa esta concepção. Ella é propria dos homens em que o dom da analyse perspicaz está ligado a vigorosos instinctos moraes. É que a energia da affirmação moral dá a chave d'este caracter. Esta energia de affirmação é tanto maior quanto no espirito de que nos occupamos ella não é uma força cega, mas coexiste com a vasta intelligencia comprehensiva e a grande curiosidade activa. Sentimentos e idéias tudo está nelle submettido a uma forte disciplina e subordinado a um plano determinado por uma livre resolução. Um vivo sentimento da dignidade humana, um amor apaixonado da justiça, brilha na sua Historia. Em balde a sua penetrante intelligencia lhe mostra o mechanismo dos factos sociaes e a majestade das causas permanentes. A energia da sua sensibilidade persiste a despeito da efficacia da analyse, e n'elle a philosophia não annulla o sentimento moral. Vinte vezes nas suas narrativas os movimentos de admiração ou colera, de indignação ou compaixão, cortam a exposição dos successos. Bem que veja a fatalidade do curso dos acontecimentos, não pode resignar-se á exposição desinteressada e calma. Padece e triumpha com os seus personnagens e sobre tudo admira com vehemencia os seus heroes. É preciso ler no _Portugal Contemporaneo_ a historia de Manoel Passos para ver como a energia de uma qualidade estructural resiste a toda a acção da cultura, e reapparece nos momentos decisivos. Este profundo psychologo, este historiador que explica os conjunctos pelas causas, pára de repente, soltando um applauso ou lançando um sarcasmo. A grande curiosidade indifferente que considera as almas como theoremas, e as sociedades como systemas, e que não vê no mundo senão um mechanismo a explicar, não é a forma propria da sua actividade mental. O Sr. Oliveira Martins está isento d'esta magnifica e perigosa exageração, pela sua robusta saude moral, pelo equilibrio estavel das suas faculdades. Incapaz de ver no Universo um ser divino a adorar, ou um simples mechanismo a comprehender, igualmente afastado da sensibilidade religiosa como da sensibilidade philosophica, escapa ás duvidas e incertezas inherentes á falta de solução do problema da Vida, pela energia da vontade e pelo habito da acção. E em quanto o seu amigo Anthero de Quental, impellido pela intemperança desmedida dos seus desejos, pela grandeza e incoherencia dos seus instinctos metaphysicos, rolava pela ladeira do pessimismo ao abysmo da negação, o Sr. Oliveira Martins não mais feliz do que elle na solução dos problemas da Existencia, appellava para a força intima da sua alma, e resignava-se a acceitar a vida sem protestos vãos nem gigantescas indignações. Comtudo seria um erro consideral-o um stoico. Para sel-o, falta-lhe aquella perfeita afinação da intelligencia com a vontade, que segundo a sua propria definição constitue o caracter. Herculano, poeta da Energia, pôde sel-o; não o Sr. Oliveira Martins, psychologo por officio e que tem visto a vida e a historia com olhos de philosopho. A capacidade de fazer reviver em si os alheios sentimentos e paixões, e o habito de os comprehender e explicar como factos naturaes, determinados por causas, se não é bastante para abafar n'elle os movimentos do coração, e leval-o a observar o mundo com a indifferença immoral dos artistas, impedem contudo a faculdade da convicta approvação ou reprovação que constitue o fundo do estoicismo. A Justiça é para elle um amor, não um dogma. A palavra que define a alma do estoico, é o orgulho, diz o Sr. Oliveira Martins. O orgulho transcendente, isto é, o sentimento proprio de quem julga possuir a verdade absoluta e resolve applical-a com um rigor absoluto. Bem diversa é a palavra que resume um caracter como o do Sr. Oliveira Martins. Esta é a Ironia, resultado natural da superioridade intelligente. A Ironia é tambem uma especie de orgulho, mas bem differente do estoico, porque é temperado pela piedade e pelo desdem. São estes os sentimentos que apparecem cada vez mais claros nos seus ultimos livros e tem a sua mais perfeita expressão no retrato maravilhoso de Cesar. É a Ironia aquelle estado da alma, que nelle provocam e confirmam dia a dia a experiencia e a cultura, o sentimento com que elle se mune para a travessia da Historia e para a campanha da vida. Foi este o sentimento que lhe dictou estas linhas á portada do seu livro mais original e que mais apaixonou a critica: «O exame dos nossos tempos apenas lhe provocou (ao auctor) expressões d'aquelles sentimentos que são compativeis com a serenidade da critica: uma ironia sem maldade, uma compaixão sem orgulho, pelas repetidas miserias dos homens; ás vezes, uma sympathia e um respeito singulares por certos individuos excepcionaes. Ironia, compaixão, sympathia, respeito,--moderadas commoções, com que é licito acompanhar o estudo, sem prejudicar a lucidez da vista--não impedem comtudo, que acima d'estas impressões fugitivas se colloque o profundo, inabalavel reconhecimento das causas que fazem dos homens os instrumentos do acaso ou do destino.» A estructura do nosso espirito revela-se na especie do nosso ideal, e a nossa concepção da ventura deriva da nossa concepção da vida. Todos os sentimentos que no Sr. Oliveira Martins desperta a realidade e todas as opiniões que elle tem sobre as cousas, estão resumidas nas paginas finaes do seu ultimo livro (_Historia Romana_). É alli visivel o que ha de mais importante na sua alma, posto a nú por um psychologo, mestre na arte de pintar caracteres. O que elle pensa da paixão e do dever, da sciencia e da acção, do Universo e do eu, a sua idéia da vida e o seu ideal da vida, está expresso nesta curta pagina, em traços breves e profundos, a que a concisão do escorço exalta a energia. E não vejo melhor modo de fechar esta analyse, que é uma tentativa de autopsia moral, do que copiar este retrato que equivale a uma confissão espontanea. «Aquelle que, sem ter de esmagar desapiedadamente os sentimentos e paixões da sua natureza, sem ter de partir a mola interior que o torna um ser vivo, consegue mitigar, moderar, ponderar ou equilibrar os impulsos do seu sangue com os dictames das suas idéias, sanccionando paixões e pensamentos com a luz inextinguivel dos instinctos moraes e do senso esthetico; olhando para si proprio e para as angustias, para as dores e para as feridas da sua vida com uma commiseração vizinha do desdem; olhando para o proximo e para o mundo, sem desprezo nem orgulho, mas com a ironia caridosa que se deve a todas as cousas involuntariamente inferiores; contemplando finalmente com uma curiosidade placida e discreta o nevoeiro dos mysterios e problemas que, sondados, endoudecem, e de que é mister fugir, como dos abysmos cujas vertigens hallucinam ou embrutecem; esse homem, por fóra activo, por dentro como que apathico, por vezes, e só por vezes, atacado de tedio, mas sabendo que não deve nem póde aborrecer a vida: esse homem é o unico verdadeiramente feliz.... Ser feliz depende de um acto da intelligencia e da vontade, independentemente das circumstancias exteriores da vida.» V O ESCRIPTOR Habitos de intelligencia e movimentos de sensibilidade, tudo se reflecte nos seus processos de escriptor. Como um cardiographo delicado que regista e conta as mais imperceptiveis pulsações do espirito, assim é o estylo. Tão sómente pela analyse d'elle podiamos chegar ás conclusões a que nos levou o exame directo das opiniões e paixões; feito este, as paginas que se seguem só podem confirmar as verdades que se enunciaram e este capitulo, é menos uma indagação do que uma prova. Que especie de estylo é esse? Um escriptor de imaginação oratoria e gostos decorativos como o Sr. Latino Coelho, exprime-se n'uma linguagem adequada pela sua regularidade e sumptuosidade ás aptidões e tendencias do espirito que a emprega, e ás necessidades e utilidades do fim para que se destina. Leia-se o seu derradeiro discurso. Os vocabulos graves como fidalgos e compostos como hallabardeiros, as immensas phrases roçagantes comparaveis a reposteiros de damasco, a amplitude e disciplina da syntaxe, a abundancia e efficacia das incidentes, a extensão e o aprumo dos periodos, o predominio do pensamento abstracto sobre a imaginação pittoresca, a perpetua representação do thema e a perfeita convergencia das provas, a unidade no todo, a proporção nas partes, a equidistancia nos termos, e a uniformidade na marcha do raciocinio, a majestade curul e a graça talar do discurso, revelam um homem apto e propenso para a prosa regular, a dissertação erudita, o elogio historico, a oração academica, e para todos os generos que requerem o gosto da pompa e o sentimento da gravidade, a correcção, a riqueza e a ordem, o respeito continuo de si e dos outros, uma especie de prodigalidade elegante e de arte sem nervos, a preferencia dada á erudição sobre a sciencia, e á rethorica sobre a poesia, a capacidade das idéias geraes exercendo-se em logares communs, qualidades que manejadas por um talento superior e postas ao serviço de um grande interesse, podem produzir verdadeiros monumentos litterarios. Bem diverso é o estylo do Sr. Oliveira Martins. Nada de menos grave, de menos pomposo e respeitoso. Elle escreve como fala, e fala como acha. O seu processo é a notação directa dos sentimentos presentes; a sua linguagem, a algebra nua da paixão. Rapida, irregular, tortuosa, brusca, insolente e indecente, burlesca e sublime, composta de palavras que se empinam por se verem juntas, feita de phrases de todos os tamanhos e feitios, galopa ou vôa a sua prosa. Nada de mais agil e vivo. Ás vezes, a suppressão dos elementos grammaticaes produz extranhos escorços, e a phrase contrae-se como um musculo. Outras os pleonasmos batem o pé, e a repetição encrava a convicção, como um martello percutindo um prego. Ás vezes a inversão dá extranhas posturas á linguaguem, e os periodos rugem, crucificados com os pés para cima. A grammatica violada debate-se n'um tetano. As imagens soberbas ou ignobeis pullulam de todos os lados, trazidas dos palacios ou das tabernas, como um rebanho de conscritos arrastados para a batalha. E todo o livro avança, semelhante a um couraçado de combate, replecto do convez ao porão, n'um turbilhão de estrondo e espuma, precipitado pela massa e armado da velocidade, e levando na caldeira abrazada um foco de força e um perigo de explosão. Esta é a primeira impressão; profundemol-a, completando o juizo litterario pela analyse critica, e substituindo a linguagem imaginosa pela notação exacta, instrumento condigno do trabalho scientifico. Tres pontos ha a considerar na analyse de um estylo; o vocabulario, isto é, o conjuncto de elementos ultimos do discurso; a syntaxe, isto é, a ordem em que estes elementos estão dispostos para constituirem o organismo da expressão; e as figuras, isto é, os expedientes necessarios para supprir as lacunas do vocabulario ordinario e da syntaxe regular. Mas antes de mais nada, observemos que o Sr. Oliveira Martins não possue o genio verbal, isto é, aquella facilidade de imitação e invenção de formas da linguagem, que em alguns dos nossos escriptores substitue e simula a intelligencia e a sensibilidade ausentes. Supponho que como os dois grandes historiadores a que o tenho comparado, Michelet e Carlyle, elle teve uma extrema difficuldade de exposição, no principio da sua carreira litteraria; pelo menos esteve muito longe de possuir aquella segurança e nitidez da palavra, aquella capacidade de adequar exactamente a expressão á intenção que caracterisa os verdadeiros temperamentos de escriptor. É porem justo dizer-se que sob este ponto de vista, como sob todos os mais, os livros do Sr. Oliveira Martins manifestam um progresso consideravel. A sua _Historia Romana_ é um monumento litterario. Mas essa lacuna constitucional e o habito da improvisação impedem que as paginas perfeitas abundem nos seus escriptos; e possuindo em alto grau a força e a vida, carece de majestade e graça. Em primeiro logar, o seu vocabulario não é numeroso; não se manifesta nos seus livros aquella abundancia, que no Sr. Ramalho Ortigão provém de um forte estudo do lexicon, e no Sr. Camillo Castello Branco de uma memoria verbal extremamente feliz. As palavras vagas não escasseiam nos seus escriptos mesmo exprimindo ideias precisas. Com as palavras vagas, os termos improprios que falseiam a expressão e tornam necessaria a decifração. Os vocabulos extrangeiros ou mesmo nacionaes tomados n'uma accepção extranha á lingua lançam manchas desagradaveis na tela do discurso. As expressões synonimicas e as emendas que elle faz seguir ás expressões originaes, parecem indicar que o proprio auctor sente que não exprimiu cabalmente o seu pensamento; e se muitas vezes a accumulação de expressões novas para formular a mesma idéia, manifesta a paixão obstinada e a convicção activa, muitas outras significa sómente a consciente escassez de recursos do escriptor. Dois typos syntacticos se notam nos escriptos do Sr. Oliveira Martins. Um é o grande periodo regular, de que elle se serve ordinariamente nos seus trabalhos didacticos, e de que se póde observar um bom exemplo no prefacio do _Hellenismo e a Civilisação christã_. A ausencia de aptidões e gostos oratorios impede que o Sr. Oliveira Martins prime n'esta forma de discurso. E diga-se a verdade, poderiamos percorrer os escriptores portuguezes antigos ou contemporaneos sem encontrarmos muitos exemplares de prosa perfeita, taes como abundam na litteratura franceza. O ar latino da nossa prosa classica póde illudir á primeira vista. Mas quem a submetter á analyse verá que não encontra nella aquelle habito de decompor as idéias e passar gradualmente por todos os seus elementos, que constitue um dos caracteristicos principaes da prosa franceza. O outro typo syntactico é o inciso, a phrase curta e entrecortada, offegante. Ella se obtem suspendendo continuamente o pensamento, supprimindo os desenvolvimentos das idéias, e até as particulas grammaticaes, pronomes, artigos e conjucções. A phrase elliptica tem movimentos convulsivos de ave decapitada, e os elementos do discurso trocam vivamente os logares como os raios de uma roda. Esta é a forma adequada a um temperamento litterario como o Sr. Oliveira Martins. É nesta forma que elle vasa as suas descripções e narrações. As ellipses, as repetições, as inversões, a ausencia completa de todas as figuras de symetria, conspiram no mesmo sentido, e não é difficil mostrar como sendo os sobresaltos da machina nervosa irregulares e instantaneos, é esta a prosa que convem ao escriptor e á obra que analysamos. Leia-se esta descripção do incendio nos armazens de Gaya. «Posto o fogo ao rastilho, começou breve a pyrotechnia, allumiando a noute. Começou por uma explosão tremenda, donde sahiram labaredas e rolos de fumo rapido. O vento animado impellia a chamma. E as pipas estalando troavam como canhões. Singular batalha! O vinho rolava em cachões, da praia sobre o rio que ia tinto de vermelho como sangue. As labaredas subiam e a vasta seara de fogo batida pela aragem, ondeando, crescia, andava. Incendiados, como lavas de um vulcão, desciam ao Douro, os liquidos espirituosos e chocando as aguas repelliam-nas, entrando nellas como um cabo. Parecia uma tempestade geologica. A agua do rio fervia, fumava; e fluctuando sobre a agua, vogava á mercê da corrente um lançol de chammas rubras.» A phrase tem a velocidade, a mobilidade, a plasticidade da chamma, e o foco moral donde ella brota não é menos ardente e vivo. Os outros expedientes litterarios convergem no mesmo sentido. E antes de mais nada, a ausencia das figuras de dicção, que estabelecem uma symetria visivel e um equilibrio extrinseco do discurso, revela um espirito pouco sensivel á harmonia verbal e ás seducções da rhetorica. O epitheto, esse instrumento de que tanto se abusa, é raro, e quasi sempre pittoresco e novo. Mas os tropos abundam, como convem a um estylo que é a manifestação de uma alma audaciosa e ferida vivamente pelos aspectos das cousas. Ás vezes n'uma fria dissertação de direito publico ou de economia politica uma imagem fulgura magnificamente, como uma papoula n'um trigal. Assim depois de expor o admiravel regimen de federação municipal que consolidava e completava a conquista romana, exclama num rapto de poeta: «Roma é a capital: está no pincaro da montanha ideal em cujas encostas por estradas espiraes se desenrola a procissão das gentes e cidades que sobem». Assim depois de pintar a angustiosa situação do paiz na primavera de 47, escreve referindo-se ao abuso da emissão fiduciaria, «Havia em Lisboa uma grande miseria, uma carestia excessiva de tudo, um doloroso mal-estar, perseguições e recrutamentos, os batalhões sempre em armas, e fluctuando, as notas, como os trapos de neve caindo, cobrindo tudo, nos dias mornos que precedem o desencadear da tormenta.» E as metaphoras como estas abundam ou magnificamente desenvolvidas n'uma pagina, ou ardendo concentradas n'um verbo e n'um epitheto. A mesma vehemencia de imaginação e paixão produz e explica as apostrophes ao leitor e aos personnagens da sua historia, as interrogações, as exclamações, as reticencias, as prosopopéias, os bruscos saltos, a falta de clareza, as referencias a factos que se calam e que o escriptor julga conhecidos. Esta energia de habitos vai tão longe, que se exerce sobre porções dos seus livros que parece deveriam escapar a ella. Copio do _Portugal contemporaneo_ estes titulos de livros e capitulos: _Fuit homo missus a Deo; Sic itur ad astra; O principio do fim; Væ victis; Os impenitentes; A raposa e suas manhas._ Quando lança um olhar retrospectivo sobre o conjuncto da sua obra, não encontra uma serie de idéias precisas, mas um tumulto de visões inflammadas. Por isso escasseiam os summarios, os resumos e todos os expedientes destinados a precisar as doutrinas e fixal-as na memoria. Este escriptor faz imagens e sarcasmos até nos indices. Tal é esse estylo: irregular, tortuoso, familiar, apaixonado e vivo. Para o conhecermos cabalmente não recuamos perante a minuciosa analyse das formas grammaticaes e dos expedientes litterarios, mas fizemol-a como psychologo e não como rhetorico. O espirito philosophico é o dom da analyse e da synthese, e a sciencia deve reunir como a aguia as garras penetrantes ás largas azas. VI O HISTORIADOR Composto assim o seu espirito só resta a deduzir a sua obra e demonstrar a solidariedade que prende aquelle a esta, considerando-o successivamente como historiador e como politico. Se ha trabalho que pela sua complexidade e difficuldade assoberbe a imaginação de quem o intenta, e exija a maxima energia da parte de quem o realisa, é certamente o trabalho historico. Só examinando esta complexidade e difficuldade poderemos fazer idéia da variedade dos recursos empregados e da quantidade de força dispendida pelos grandes historiadores. Para isto, basta considerar que a Historia é a visão intelligente dos phenomenos sociaes. Toda a formidavel complicação dos trabalhos historicos deriva do simples exame d'esta formula. E antes de tudo, observemos que o aggregado social é dado em relação a um meio physico e constituido por unidades vivas, o que torna necessario o conhecimento das sciencias inorganicas e organicas. A posição da sociologia na serie gerarchica das sciencias exige, nos que a cultivam, a posse das verdades que logicamente a condicionam. E desde os principios mais abstractos da Quantidade e da Forma até os factos relativamente menos simples da Anthropologia, tudo concorre para a explicação dos phenomenos sociaes. Os exemplos abundam e são faceis de adduzir. A doutrina da população não se póde constituir sem a theoria algebrica das series e o calculo arithmetico dos logarithmos. A relação geometrica que n'uma dada figura prende a grandeza da area ao valor do perimetro, é um elemento a considerar na comprehensão do engrandecimento d'um territorio. As leis que ligam o crescimento do organismo á massa do planeta e regem a distribuição do calor, da luz e porventura da electricidade á superficie da terra, forçosamente exercem uma intervenção activa no curso da Historia. Os dados geologicos que enunciam a natureza actual e as transformações futuras da crosta terrestre, não são indifferentes á explicação dos phenomenos que a tem por theatro; a theoria dos ventos interessa á historia da navegação de muitos povos, e a dos terremotos á vida d'alguns. Finalmente as leis que regem á existencia dos seres vivos, influem profundamente no corpo social, visto o homem ser um animal, e fazem do conhecimento da Biologia a condicção immediata e indispensavel do estudo da Sociologia. Assim toda a massa das verdades adquiridas pela Sciencia vem illuminar directa ou indirectamente o caminho que o historiador tem de percorrer. (V. Spencer, Intr. á sciencia social; A. Comte, Curso de Philosophia positiva.) A todas estas difficuldades que resultam da variada e completa preparação em que se deve basear o historiador, é preciso juntar ás difficuldades intrinsecas, as que provém da natureza intima da Historia. Em primeiro logar, a Historia é uma sciencia moral, isto é, versa em ultima analyse sobre factos mentaes, sentimentos e idéias. O ser um estudo da alma humana é a primeira e mais grave fonte das difficuldades inherentes a esta ordem de investigações. Com effeito os phenomenos mentaes, quer os propriamente intellectuaes, quer os puramente emocionaes, se apresentam investidos de um duplo caracter que os torna eminentemente rebeldes a uma exacta observação. De um lado, a sua mesma natureza de phenomenos interiores, do dominio da consciencia, exige um dom especial, um sentido que nem todos possuem sufficientemente desenvolvido. D'outro lado, o composto mental é extremamente complicado e cada phenomeno de que se compõe se resolve por seu turno n'um numero enorme de elementos, que como taes caem fora do campo da consciencia, onde só apparecem os totaes. A velocidade extrema das reacções cerebraes, corresponde a esta complexidade formidavel de que dão apenas uma vaga ideia os phenomenos que constituem as funcções propriamente biologicas. Accrescentem-se a estas difficuldades resultantes da natureza do individuo, as provenientes da natureza do aggregado social. Se é certo que em ultima analyse a Sociologia se reduz á Psychologia, é tambem certo que as opiniões e paixões individuaes são continua e vigorosamente modificadas pelas paixões e opiniões adjacentes, e que o espirito de cada um apparece como um espelho da sociedade inteira de que faz parte. Quando o aggregado social é bastante extenso a complicação resultante da sua grandeza é tal que parece desafiar o poder da analyse. Junte-se ainda a difficuldade que resulta de se considerar uma sociedade não num momento dado, mas na sua evolução atravez de muitos seculos. Seguir um aggregado tão multiplo nas suas continuas e imperceptiveis transformações de momento para momento, determinar as causas variadissimas e occultas d'essas transformações, marcar as forças superiores cuja permanencia determina a identidade de um povo atravez de todas as suas metamorphoses, produzindo essa consciencia social bem mais difficil de se estabelecer e bem mais facil de se destruir do que a individual, é uma empresa comparada á qual, qualquer trabalho scientifico é relativamente facil. Considere-se finalmente que a Historia é uma sciencia concreta, isto e, descriptiva e narrativa. Este derradeiro traço é origem de grandes difficuldades na indagação e sobretudo na exposição das verdades historicas. Mesmo nas sciencias inferiores essas difficuldades são grandes. Por exemplo, em Astronomia é relativamente facil indicar as forças que determinam a harmonia do nosso systema solar; mas mostrar a evolução, pela qual elle se veiu transformando até se constituir como existe actualmente, é uma tarefa d'outra ordem que não comporta o mesmo grau de precisão; a hypothese da nebulosa está privada da certeza de que se acha investida a theoria da gravitação, e a hypothese das agglomerações meteoricas inventada por Julio-Roberto Meyer, prova a necessidade de tornar a doutrina de Laplace mais adequada á realidade completando-a com principios subsidiarios. Semelhantemente nas sciencias inorganicas, o methodo experimental permitte demonstrar com efficacia uma lei de barologia ou thermologia; mas a applicação d'essas leis para a explicação da historia passada e constituição actual do globo, não tem a mesma segurança; a Geologia está longe de attingir o estado de adeantamento da Physica e da Chimica, sciencias em que ella se baseia; a doutrina das geleiras não se acha constituida com a mesma perfeição que a theoria da irradiação do calor. Em Biologia verifica-se o mesmo. Em quanto se tratam de indagar as leis abstractas da morphologia e da physiologia vegetal e animal, as difficuldades são grandes mas superaveis graças ao emprego da observação, da experimentação e da comparação; mas quando se trata de explicar a existencia das plantas e animaes taes como realmente são, as difficuldades crescem de ponto e inversamente diminue a precisão e certeza das doutrinas enunciadas; a hypothese de Darwin sobre a evolução dos organismos não póde aspirar á mesma convicta adhesão que o principio de Milne Edwards sobre a divisão do trabalho physiologico. Semelhantemente as difficuldades de investigação inherentes á natureza e complicação dos phenomenos sociaes, com serem enormes, são pequenas, comparadas com as que apresenta o estudo da Historia propriamente dicta. E abaixo dos philosophos nenhuma classe de espiritos arca com tamanhas difficuldades, incorre em tão graves responsabilidades, nem se reveste de uma tão alta dignidade scientifica como os historiadores. Para vencer tão grandes difficuldades, o historiador deve fecundar por uma vasta preparação geral e technica um espirito extremamente complexo e profundo. Qual seja essa preparação geral deriva da indicação acima feita dos estudos subsidiarios que condicionam o conhecimento da Sciencia social. A preparação technica resulta semelhantemente da propria natureza da Sciencia social. Elle suppõe o conhecimento exacto dos factos adduzidos e a sua classificação methodica em grupos naturaes. Quanto aos dotes de espirito o historiador deve conter um sabio e um artista. A capacidade de observação exacta dos factos particulares deve estar ligada á faculdade das idéias geraes; e além d'isso a imaginação pittoresca que permitte a representação nitida e colorida das paysagens que constituem o palco da Historia, ha de ser completada pela imaginação psychologica que faz a alma dos individuos e povos que são os protogonistas da Historia. Finalmente o grande historiador deve ser um grande escriptor e empregar um estylo que reuna á precisão propria do trabalho scientifico, o colorido proprio das descripções, e o movimento proprio das narrações. Comparemos este modelo do historiador ideal com o retrato já traçado do Sr. Oliveira Martins e veremos o que elle tem e o que lhe falta. O seu saber é vasto inda que incompleto. Os volumes publicados da sua _Bibliotheca das Sciencias sociaes_ e os annunciados no programma, revelam que o Sr. Oliveira Martins tem consciencia da importancia e largueza de estudos com que se deve preparar para o trabalho historico. Comtudo seria para desejar que o auctor conservasse ineditos os livros em que a sua originalidade e competencia são contestaveis, e estudando convenientemente os assumptos sobre que elles versam, se abstivesse de tratar publicamente sciencias de que só se podem occupar com auctoridade os especialistas. No que toca á exactidão dos factos enunciados nos seus tratados de historia nacional, constituidos pela _Historia da Civilisação Iberica_, a _Historia de Portugal_, e o _Portugal Contemporaneo_, o Sr. Oliveira Martins não tem o habito de enumerar os documentos compulsados e discutir as fontes exploradas. As notas, que nas grandes historias classicas acompanham e comprovam as affirmações feitas no texto, não apparecem na sua obra. É verdade que historiadores como Mommsen e Curtius supprimiram nos seus livros monumentaes a bagagem das demonstrações; mas esses historiadores já tinham assignalado a sua actividade de investigadores em numerosas dissertações especiaes, e accumulado materiaes que serviam de base ao auctor e de garantia ao leitor. Considere-se ainda que escreviam sobre assumptos largamente explorados. O Sr. Oliveira Martins occupando-se da historia de Portugal, deveria redobrar de precauções no que toca ás provas. Mas acceitando-a tal como está escripta, e lastimando que ella não seja mais extensa, observaremos que a conhecida assiduidade ao trabalho e a sinceridade certa do Sr. Oliveira Martins, são consideraveis garantias da veracidade das suas asserções. Quanto as aptidões cujo conjuncto constitue o seu espirito, já vimos que o Sr. Oliveira Martins possue a imaginação dos movimentos, das massas, das forças e que as suas paysagens representam as expressões moraes dos aspectos physicos; e que além d'isso possue a capacidade e o habito de explicar os aspectos physicos como mechanismos naturaes. Se reflectirmos que estas duas aptidões exgottam a noção do scenario historico, considerado como um conjuncto de causas efficazes actuando sobre espiritos, veremos que o Sr. Oliveira Martins está apto pela imaginação pittoresca e pela razão abstracta a descrever e explicar o _meio_ dos successos que narra. Semelhantemente e ainda melhor a sua admiravel imaginação psychologica habilita-o a ver o interior das almas individuaes e collectivas que põe em scena. Essa imaginação, integral e intensa, prima na representação das emoções, e como a maioria das acções é determinada por emoções, resulta d'ahi que o Sr. Oliveira Martins está apto para representar o _agente_ da _Historia_, como representara o seu _meio_. E o mesmo poder de abstracção que lhe permittira comprehender as relações geraes entre os factos physicos, lhe faz ver o nexo logico que determina as coexistencias e as sequencias dos factos moraes. Vimos que o seu estylo era destituido de ordem, precisão e clareza, e que abundava em movimento, força e vida. A ausencia das primeiras qualidades prejudica a sua Historia considerada como obra de sciencia, e impede que ella se possa considerar como obra de vulgarisação. A presença dos outros dotes dá-lhe um valor raro como obra de arte. O seu vocabulario trivial, technico, fornecido em todos os recantos da vida, permittir-lhe-á fazer descripções coloridas e supprir pela abundancia de pormenores concretos a nitidez ausente que lhe daria a ordem que não possue. A syntaxe rapida e tortuosa permittir-lhe-á fazer narrações dramaticas e vivas e acompanhar pela marcha offegante e irregular dos periodos a successão precipitada e sempre nova dos acontecimentos. Finalmente todos os outros expedientes de composição revelando o sentimento do real e a paixão intensa convergem no mesmo sentido; e a mesma solidariedade que prende a sua obra á sua imaginação e á sua sensibilidade, liga a ella o seu estylo. VII O POLITICO Tendo escripto a Historia de Portugal, o Sr. Oliveira Martins resolveu continual-a e naturalmente o pensamento conduziu-o á acção. Não entra no programma d'este estudo occupar-me de assumptos de politica contemporanea, sobretudo quando trato de um homem cuja carreira publica apenas começa. Mas fazendo um trabalho de psychologia e não de simples critica litteraria, não me é licito calar uma das manifestações mais importantes do espirito que analyso. Porém indicarei apenas o valor dos seus recursos e a tendencia geral das suas idéias como homem d'Estado. As faculdades que fazem o homem de acção em cada esphera da actividade humana, são essas mesmas que fazem o homem de sciencia, mais o tino das circumstancias particulares. As do estadista são as do historiador; digo as do historiador e não as do sociologista, porque o conhecimento das leis abstractas que regem o equilibrio e o movimento das sociedades, não é sufficiente para dirigir a acção conservadora ou modificadora dos governantes; é preciso reunir-lhe o vivo sentimento do concreto, a visão plena dos innumeraveis factos particulares que dão a um povo um caracter individual e fazem que nenhuma deducção abstracta o possa adivinhar. Pense-se na immensa complexidade do organismo collectivo, no caracter profundamente individual que uma sociedade reveste em virtude das circumstancias de raça, meio e momento, na obrigação de conhecer plenamente a força e a direcção das vontades, a energia e a profundidade dos instinctos, a vitalidade e a duração dos preconceitos, as necessitades materiaes ou moraes, reaes ou ficticias dos seus membros, reflicta-se na obrigação de conhecer essas forças na sua quantidade exacta e na sua direcção certa, nas proporções variadas em que ellas se combinam e nos systemas complicados que d'ellas resultam, medite-se que cada um dos factos presentes tem profundas raizes no passado e consequencias inevitaveis no futuro ainda o mais remoto, e ver-se-á que essa improvisação maravilhosa e certeira que se chama a arte de governar, consiste na visão adequada e perpetua, retrospectiva e prophetica das almas sobre que ella se exerce, e que a politica é psychologia activa e em ponto grande. Note-se emfim que o habito da representação concreta degenera facilmente no empirismo e que a habilidade technica descamba no especialismo estreito, para se admirar ainda mais a plasticidade mental dos que conservam intacto sob a acção das questões quotidianas o sentimento dos interesses geraes e caminham atravez dos expedientes com olhos fitos nas idéias. Estas qualidades parecem reunir-se no Sr. Oliveira Martins. Essa visão poderosa e plena, essa representação veridica e intensa dos caracteres, esse golpe de vista sagaz e profundo mergulhado no intimo dos corações, que faz o encanto e a força dos seus livros, podem guial-o nos seus actos; as mãos acostumadas a fazer a autopsia das almas no amphitheatro da Historia, não são improprias para jogar os lances da politica. O habito de ver as cousas de alto, proprio do historiador, arrancão aos trilhos mesquinhos em que se perde o espirito da rotina e do expediente. Artista pela visão colorida e palpavel da realidade, é-o tambem pela intuição magnifica do ideal. A imaginação constructiva anda n'elle ligada ao sentimento do real e do exequivel. E tendo aquelle exacto bom-senso e aquella efficaz percepção do possivel, que resulta da pratica dos homens e da vida, possue comtudo aquella largueza de vistas e aquelle desejo do melhor, que provém da convivencia das ideias e do trato dos livros. Será esse ideal realisavel e esse tino pratico sufficiente? Os successos dil-o-ão. Não é porém difficil apontar desde já no sentimento da força propria e no generoso instincto do dever civico as causas que o fizeram passar do pensamento á acção, e mostrar a clara coherencia que liga as suas opiniões de hontem aos seus actos de hoje, e os seus vinte annos de historia aos seus dois annos de politica. Tal é essa figura interessante e rara. Homem interior, isto é, dotado de imaginação psychologica, admiravel na representação dos accidentes do apparelho mental e dos sobresaltos da machina sensivel, toda a sua obra se resente e vive d'esta aptidão primordial, que constella os seus livros de retratos veridicos e profundos, de paizagens vivas de narrações dramaticas. Capaz de operações abstractas, a razão scientifica completa n'elle a imaginação poetica, e a analyse explicativa anda ligada ao colorido intenso. Sujeito ás emoções vehementes e frequentes, sobre tudo ás de ordem moral, isto é, a compaixão, a admiração, a indignação, e o desprezo, a sua obra, dramatica pela logica e pela vida, sel-o-á tambem pela paixão; mas a intuição do psychologo e a reflexão do philosopho hão de envolvel-o n'um nimbo de indulgencia, de ironia e de tristeza. Empregando um estylo em que parecem reviver e encarnar todas as qualidades da sua alma, successivamente energico e suave, enthusiasta e sarcastico, e cujo tecido fluctuante e agil acompanha como uma purpura amarrotada e resplandecente os movimentos bruscos do seu espirito. Lançado na politica pela energia do sentimento moral e importando para a Acção a elevação do philosopho e a perspicacia do homem pratico, e pondo ao serviço das aspirações do moralista a habilidade do psychologo. Uma relação intima liga entre si todas as partes do seu talento e faz derivar d'elle todos os aspectos da sua obra. Lisboa, Abril de 1887. INDICE I. OS CARACTERES--Que a sua imaginação é psychologica--Que ella é realista--Comparação com a de Eça de Queiroz--O caracter portuguez e o hespanhol--Retrato de D. Affonso Henriquez--Retrato de D. Pedro I--Retrato de Herculano--Que essa imaginação é completa. II. AS PAIZAGENS--A imaginação physica: exemplo, Ramalho Ortigão--Caracter das paizagens em Oliveira Martins--Que ellas são transcrições moraes dos aspectos physicos--Que ellas são a explicação de um mecanismo.--Descripção do littoral alemtejano--Descripção da paizagem minhota--O terremoto. III. AS THEORIAS--A theoria do Acaso--Concepção do Universo e da sciencia--Ausencia de razão oratoria--Falta da amplificação e da prova--Caracter artistico da sua intelligencia--Comparação com as intelligencias simplistas: os primeiros escriptos de T. Braga--A inspiração e a intuição. IV. OS SENTIMENTOS--Abundancia e energia das suas emoções--Que ellas são de ordem moral--Sua concepção do Amor--Sua concepção da Vida e da Ventura--Acção mutua entre o seu caracter e a sua intelligencia. V. O ESCRIPTOR--Valor do estylo como documento--O estylo oratorio: o sñr. Latino Coelho--O estylo de Oliveira Martins--O vocabulario, a syntaxe, as figuras, a composição dos livros, os indices. VI. O HISTORIADOR--Vastidão complexidade difficuldade dos estudos historicos--Qualidades e lacunas da sua Historia. VII. O POLITICO--Retrato ideal do Politico--Oliveira Martins como politico. Composição do seu espirito e deducção da sua obra. Paris.--GUILLARD, AILLAUD E Cª. --- Provided by LoyalBooks.com ---