POESIAS IMPRENSA NACIONAL POESIAS POR A. HERCULANO SEGUNDA EDIÇÃO LISBOA EM CASA DA VIUVA BERTRAND E FILHOS AOS MARTYRES, N.^o 73 M DCCC LX LIVRO PRIMEIRO A HARPA DO CRENTE. A SEMANA SANCTA. Der Gedanke Gott weckt einen furchlerlichen Nachbar auf. Sein Name heisst Richter. Schiller. I. Tibio o sol entre as nuvens do occidente, Já lá se inclina ao mar. Grave e solemne Vai a hora da tarde!--O oeste passa Mudo nos troncos da alameda antiga, Que á voz da primavera os gomos brota: O oeste passa mudo, e cruza o atrio Ponteagudo do templo, edificado Por mãos duras de avós, em monumento De uma herança de fé, que nos legaram, A nós seus netos, homens de alto esforço, Que nos rimos da herança, e que insultamos A cruz e o templo e a crença de outras eras; Nós, homens fortes, servos de tyrannos, Que sabemos tão bem rojar seus ferros Sem nos queixar, menosprezando a Patria E a liberdade, e o combater por ella. Eu não!--eu rujo escravo; eu creio e espero No Deus das almas generosas, puras, E os despotas maldigo.--Entendimento Bronco, lançado em seculo fundido Na servidão de goso ataviada, Creio que Deus é Deus e os homens livres! II. Oh sim!--rude amador de antigos sonhos, Irei pedir aos tumulos dos velhos Religioso enthusiasmo, e canto novo Hei-de tecer, que os homens do futuro Entenderão; um canto escarnecido Pelos filhos dest' epocha mesquinha, Em que vim peregrino a ver o mundo. E chegar a meu termo, e reclinar-me Á branda sombra de cypreste amigo. III. Passa o vento os do portico da igreja Esculpidos umbraes: correndo as naves Sussurrou, sussurrou entre as columnas De gothico lavor: no orgam do côro Veiu, emfim, murmurar e esvaecer-se. IV. Mas porque sôa o vento?--Está deserto, Silencioso ainda o sacro templo: Nenhuma voz humana ainda recorda Os hymnos do Senhor. A natureza Foi a primeira em celebrar seu nome Neste dia de lucto e de saudade! Trévas da quarta feira eu vos saúdo! Negras paredes, mudos monumentos De todas essas orações de mágua, De gratidão, de susto ou de esperança, Depositadas ante vós nos dias De fervorosa crença, a vós que enlucta A solidão e o dó, venho eu saudar-vos. A loucura da cruz não morreu toda Após dezoito seculos!--Quem chore Do soffrimento o Heroe existe ainda. Eu chorarei--que as lagrymas são do homem-- Pelo Amigo do povo, assassinado Por tyrannos, e hypocritas, e turbas Envilecidas, barbaras, e servas. V. Tu, Anjo do Senhor, que accendes o estro; Que no espaço entre o abysmo e os céus vagueias, D'onde mergulhas no oceano a vista; Tu que do trovador á mente arrojas Quanto ha nos céus esperançoso e bello, Quanto ha no abysmo tenebroso e triste, Quanto ha nos mares magestoso e vago, Hoje te invoco!--oh vem!--lança em minha alma A harmonia celeste e o fogo e o genio, Que dêm vida e vigor a um carme pio. VI. A noite escura desce: o sol de todo Nos mares se atufou. A luz dos mortos, Dos brandões o clarão, fulgura ao longe No cruzeiro sómente e em volta da ara: E pelas naves começou ruído De compassado andar. Fiéis acodem Á morada de Deus, a ouvir queixumes Do vate de Sião. Em breve os monges, Suspirosas canções aos céus erguendo, Sua voz unirão á voz desse orgam, E os sons e os ecchos reboarão no templo. Mudo o côro depois, neste recincto Dentro em bem pouco reinará silencio, O silencio dos tumulos, e as trévas Cubrirão por esta área a luz escaça Despedida das lampadas, que pendem Ante os altares, bruxuleando frouxas. Imagem da existencia!--Em quanto passam Os dias infantis, as paixões tuas, Homem, qual então és, são debeis todas. Cresceste:--ei-las torrente, em cujo dorso Sobrenadam a dôr e o pranto e o longo Gemido do remorso, a qual lançar-se Vai com rouco estridor no antro da morte, Lá, onde é tudo horror, silencio, noite. Da vida tua instantes florescentes Foram dous, e não mais: as cans e rugas, Logo, rebate de teu fim te deram. Tu foste apenas som, que, o ar ferindo, Murmurou, esqueceu, passou no espaço. E a casa do Senhor ergueu-se.--O ferro Cortou a penedia; e o canto enorme Pulído alveja alli no espesso panno Do muro colossal, que éra após éra, Como onda e onda ao desdobrar na areia, Viu vir chegando e adormecer-lhe ao lado. O ulmo e o choupo no cahir rangeram Sob o machado: a trave affeiçoou-se; Lá no cimo pousou: restruge ao longe De martellos fragor, e eis ergue o templo, Por entre as nuvens, bronzeadas grimpas. Homem, do que és capaz! Tu, cujo alento Se esvái, como da cerva a leve pista No pó se apaga ao respirar da tarde, Do seio dessa terra, em que és estranho, Sair fazes as moles seculares, Que por ti, morto, falem; dás na idéa Eterna duração ás obras tuas. Tua alma é immortal, e a prova a déste! VII. Anoiteceu.--Nos claustros resoando As pisadas dos monges ouço: eis entram; Eis se curvaram para o chão, beijando O pavimento, a pedra. Oh sim, beijae-a! Igual vos cubrirá a cinza um dia, Talvez em breve--e a mim. Consolo ao morto É a pedra do tumulo. Sê-lo-hia Mais, se do justo só a herança fòra; Mas tambem ao malvado é dada a campa. E o criminoso dormirá quieto Entre os bons sotterrado?--Oh não! Em quanto No templo ondeiam silenciosas turbas, Exultarão do abysmo os moradores, Vendo o hypocrita vil, mais impio que elles, Que escarnece do Eterno, e a si se engana; Vendo o que julga que orações apagam Vicios e crimes, e o motejo e o riso Dado em resposta ás lagrymas do pobre; Vendo os que nunca ao infeliz disseram De consolo palavra ou de esperança. Sim:--malvados tambem hão-de pisar-lhes Os frios restos que separa a terra, Um punhado de terra, a qual os ossos Destes ha-de cubrir em tempo breve, Como cubriu os seus; qual vai sumindo No segredo da campa a humana raça. VIII. Eis que a turba rareia. Ermam bem poucos Do templo na amplidão: só lá no escuro De afumada capella o justo as preces Ergue pio ao Senhor, as preces puras De um coração que espera, e não mentidas De labios de impostor, que engana os homens Com seu meneio hypocrita, calando Na alma lodosa da blasphemia o grito. Então exultarão os bons, e o í­mpio, Que passou, tremerá. Emfim, de vivos, Da voz, do respirar o som confuso Vem confundir-se no ferver das praças, E pela galilé só ruge o vento. Em trévas não ficou silenciosas O sagrado recincto: os candieiros, No gelado ambiente ardendo a custo, Espalham debeis raios, que reflectem Das pedras pela alvura; o negro mocho, Companheiro do morto, horrido pio Solta lá da cornija: pelas fendas Dos sepulchros deslisa fumo espesso; Ondeia pela nave, e esvái-se. Longo Suspirar não se ouviu?--Olhae! lá se erguem. Sacudindo o sudario, em peso os mortos! Mortos, quem vos chamou? O som da tuba Ainda do Josaphat não fere os valles. Dormí, dormí: deixae passar as eras... IX. Mas foi uma visão: foi como scena D'imaginar febril. Creou-se, acaso, Do poeta na mente, ou desvendou-lhe A mão de Deus o íntimo ver da alma, Que devassa a existencia mysteriosa Do mundo dos espiritos? Quem sabe? Dos vivos ja deserta, a igreja torva Repovoou-se, para mim ao menos, Dos extinctos, que ao pé das sanctas aras Leito commum na somnolencia extrema Buscaram. O terror, que arreda o homem Do limiar do templo ás horas mortas, Não vem de crença van. Se fulgem astros, Se a luz da lua estira a sombra eterna Da cruz gigante (que campeia erguida No vertice do timpano, ou no cimo Do corucheu do campanario) ao longo Dos inclinados tectos, afastae-vos! Afastae-vos d'aqui, onde se passam Á meia-noite insolitos mysterios; D'aqui, onde desperta a voz do archanjo Os dormentes da morte; onde reune O que foi forte e o que foi fraco, o pobre E o opulento, o orgulhoso e o humilde, O bom e o mau, o ignorante e o sabio, Quantos, emfim, depositar vieram Juncto do altar o que era seu no mundo, Um corpo nú, e corrompido e inerte. X. E seguia a visão.--Cria ainda achar-me, Alta noite, na igreja solitaria Entre os mortos, que, erectos sobre as campas, Eram ha pouco um fumo que ondeiava Pelas fisgas do vasto pavimento. Olhei. Do erguido tecto o panno espesso Rareava; rareava-me ante os olhos, Como tenue cendal; mais tenue ainda, Como o vapor de outono em quarto d'alva, Que se libra no espaço antes que desça A consolar as plantas conglobado Em matutino orvalho. O firmamento Era profundo e amplo. Involto em gloria, Sobre vagas de nuvens, rodeiado Das legiões do céu, o Ancião dos dias, O Sancto, o Deus descia. Ao summo aceno Parava o tempo, a immensidade, a vida Dos mundos a escutar. Era esta a hora Do julgamento desses que se alçavam Á voz de cima sobre as sepulturas? XI. Era ainda a visão,--Do templo em meio Do anjo da morte a espada flammejante Crepitando bateu. Bem como insectos, Que á flôr de pego pantanoso e triste Se balouçavam--quando a tempestade Veiu as azas molhar nas aguas turvas, Que marulhando sussurraram--surgem Volteando, zumbindo em dança douda, E lassos, vão pousar em longas filas Nas margens do paul, de um lado e de outro; Tal o murmurio e a agitação incerta Ciciava das sombras remoinhando Ante o sopro de Deus. As melodias Dos córos celestiaes, longinquas, frouxas, Com frémito infernal se misturavam Em cahos de dôr e jubilo. Dos mortos Parava, emfim, o vortice enredado; E os grupos vagos em distinctas turmas Se enfileiravam de uma parte e de outra. Depois, o gladio do anjo entre os dous bandos Ficou, unica luz, que se estirava Desde o cruzeiro ao portico, e fería De reflexo vermelho os largos pannos Das paredes de marmore, bem como Mar de sangue, onde inertes fluctuassem De humanos vultos indecisas fórmas. XII. E seguia a visão.--Do templo á esquerda, Méstas as faces, inclinada a fronte, Da noite as larvas tinham sobre o sólo Fito o espantado olhar, e as dilatadas Baças pupillas lhes tingia o susto. Mas, como zona lucida de estrellas, Nessa atmosphera crassa e afogueada Pela espada rubente, refulgiam Da direita os espiritos, banhado De inenarravel placidez seu gesto. Era inteiro o silencio, e no silencio Uma voz resoou--Eleitos vinde!-- Ide precítos!»--Vacillava a terra, E ajoelhando eu me curvei tremendo. XIII. Quando me ergui e olhei, no céu profundo Um rastilho de luz pura e serena Se ia embebendo nesses mares de orbes Infinitos, perdidos no infinito, A que chamâmos o universo. Um hymno De saudade e de amor, quasi inaudivel Parecia romper desde as alturas De tempo a tempo. Vinha como involto Nas lufadas do vento, até perder-se Em socego mortal. O curvo tecto Do templo, então, se condensou de novo, E para a terra o meu olhar volveu-se. Da direita os espiritos radiosos Já não estavam lá. Chispando a espaços, Qual o ferro na incude, a espada do anjo O mortiço rubor mandava, apenas, D'aurora boreal quando se extingue. XIV. Proseguia a visão.--Da esquerda ás sombras Anciava o seio a dôr: tinham no gesto Impressa a maldicção, que lhes seccára Eternamente a seiva da esperança. Como se vê, em noite estiva e negra, Scintillar sobre as aguas a ardentia, D'umas frontes ás outras vagueiavam Ceruleos lumes no esquadrão dos mortos, E ao estalar das lousas, grito immenso Subterraneo, abafado e delirante, Ineffavel compendio de agonias, Misturado se ouviu com rir do inferno, E a visão se desfez. Era ermo o templo: E despertei do pesadelo em trevas. XV. Era loucura ou sonho? Entre as tristezas E os terrores e angustias, que resume Neste dia e logar a avi­ta crença, Irresisti­vel força arrebatou-me Da sepultura a devassar segredos, Para dizer:--Tremei! Do altar á sombra Tambem ha mau-dormir de somno extremo!»-- A justiça de Deus visita os mortos, Embora a cruz da redempção proteja A pedra tumular; embora a hostia Do sacrificio o sacerdote eleve Sobre as vizinhas aras. Quando a igreja Rodeiam trevas, solidão e medos, Que a resguardam co'as asas acurvadas Da vista do que vive, a mão do Eterno Separa o joio do bom grão, e arroja Para os abysmos a ruim semente. XVI. Não!--não foi sonho vão, vago delirio De imaginar ardente. Eu fui levado, Galgando além do tempo, ás tardas horas, Em que se passam scenas de mysterio, Para dizer:--Tremei! Do altar á sombra Tambem ha mau-dormir de somno extremo!»-- Vejo ainda o que vi: da sepultura Ainda o halito frio me enregela O suor do pavor na fronte; o sangue Hesita immoto nas inertes veias; E embora os labios murmurar não ousem, Ainda, incessante, me repete na alma Íntima voz:--Tremei! Do altar á sombra Tambem ha mau-dormir de somno extremo!»-- XVII. Mas troa a voz do monge, e, emfim, desperto O coração bateu. Eia, retumbem Pelos ecchos do templo os sons dos psalmos, Que em dia de afflicção ignoto vate Teceu, banhado em dôr. Talvez foi elle O primeiro cantor que em varias córdas, Á sombra das palmeiras da Iduméa, Soube entoar melodioso um hymno. Deus inspirava então os trovadores Do seu povo querido, e a Palestina, Rica dos meigos dons da natureza, Tinha o sceptro, tambem, do enthusiasmo. Virgem o genio ainda, o estro puro Louvava Deus sómente, á luz da aurora, E ao esconder-se o sol entre as montanhas De Bethoron.--Agora o genio é morto Para o Senhor, e os cantos dissolutos De lodoso folguedo os ares rompem, Ou sussurram por paços de tyrannos, Assellados de putrida lisonja, Por preço vil, como o cantor que os tece. XVIII. O PSALMO. Quanto é grande o meu Deus!.. Té onde chega O seu poder immenso! Elle abaixou os céus, desceu, calcando Um nevoeiro denso. Dos cherubins nas asas radiosas Librando-se, voou; E sobre turbilhões de rijo vento O mundo rodeiou. Ante o olhar do Senhor vacilla a terra, E os mares assustados Bramem ao longe, e os montes lançam fumo, Da sua mão tocados. Se pensou no Universo, ei-lo patente Ante a face do Eterno: Se o quiz, o firmamento os seios abre, Abre os seios o inferno. Dos olhos do Senhor, homem, se pódes, Esconde-te um momento: Vê onde encontrarás logar que fique Da sua vista isento: Sobe aos céus, transpõe mares, busca o abysmo, Lá teu Deus has-de achar; Elle te guiará, e a dextra sua Lá te ha-de sustentar: Desce á sombra da noite, e no seu manto Involver-te procura... Mas as trévas para elle não são trévas. Nem é a noite escura. No dia do furor, em vão buscáras Fugir ante o Deus forte, Quando do arco tremendo, irado, impelle Setta em que pousa a morte. Mas o que o teme dormirá tranquillo No dia extremo seu, Quando na campa se rasgar da vida Das illusões o véu. XIX. Calou-se o monge: sepulchral silencio Á sua voz seguiu-se. Uma toada De orgam rompeu do côro. Assemelhava O suspiro saudoso, e os ais de filha, Que chora solitaria o pae, que dorme Seu ultimo, profundo e eterno somno. Melodias depois soltou mais doces O severo instrumento: e ergueu-se o canto, O doloroso canto do propheta, Da patria sobre o fado. Elle, que o vira, Sentado entre ruinas, contemplando Seu avito esplendor, seu mal presente, A quéda lhe chorou. Lá na alta noite, Modulando o Nebel, via-se o vate Nos derribados porticos, abrigo Do immundo stellio e gemedora poupa, Extasiado--e a lua scintillando Na sua calva fronte, onde pesavam Annos e annos de dôr. Ao venerando Nas encovadas faces fundos regos Tinham aberto as lagrymas. Ao longe, Nas margens do Kedron, a ran grasnando Quebrava a paz dos tumulos. Que tumulo Era Sião!--o vasto cemiterio Dos fortes de Israel. Mais venturosos Que seus irmãos, morreram pela patria; A patria os sepultou dentro em seu seio. Elles, em Babylonia, aos punhos ferros, Passam de escravos miseranda vida, Que Deus pesou seus crimes, e, ao pesa-los, A dextra lhe vergou. Não mais no templo A nuvem repousára, e os céus de bronze Dos prophetas aos rogos se amostravam. O vate de Anathot a voz soltára Entre o povo infiel, de Eloha em nome: Ameaças, promessas, tudo inutil; De bronze os corações não se dobraram. Vibrou-se a maldicção. Bem como um sonho Jerusalem passou: sua grandeza Sómente existe em derrocadas pedras. O vate de Anathot, sobre seus restos, Com triste canto deplorou a patria. Hymno de morte alçou: da noite as larvas O som lhe ouviram: squallido esqueleto, Rangendo os ossos, d'entre a hera e musgos Do portico do templo erguia um pouco, Alvejando, a caveira.--Era-lhe allivio Do sagrado cantor a voz suave Desferida ao luar, triste, no meio Da vasta solidão que o circumdava. O propheta gemeu: não era o estro, Ou o vívido jubilo que outr'ora Inspirára Moysés: o sentimento Foi sim pungente de silencio e morte, Que da patria lhe fez sobre o cadaver A elegia da noite erguer e o pranto Derramar da esperança e da saudade. XX. A LAMENTAÇÃO. Como assim jaz e solitaria e quèda Esta cidade outr'ora populosa! Qual viuva ficou e tributaria A senhora das gentes. Chorou durante a noite; em pranto as faces, Sósinha, entregue á dôr, nas penas suas Ninguem a consolou: os mais queridos Contrarios se tornaram. Ermas as praças de Sião e as ruas, Cobre-as a verde relva: os sacerdotes Gemem; as virgens pallidas suspiram Involtas na amargura. Dos filhos de Israel nas cavas faces Está pintada a macilenta fome; Mendigos vão pedir, pedir a estranhos, Um pão de infamia eivado. O tremulo ancião, de longe, os olhos Volve a Jerusalem, della fugindo; Vê-a, suspira, cahe, e em breve expira Com seu nome nos labios. Que horror!--ímpias as mães os tenros filhos Despedaçaram: barbaras quaes tigres, Os sanguinosos membros palpitantes No ventre sepultaram. Deus, compassivo olhar volve a nós tristes: Cessa de Te vingar! Vê-nos escravos, Servos de servos em paiz estranho. Tem dó de nossos males! Acaso serás Tu sempre inflexivel? Esqueceste de todo a nação tua? O pranto dos hebreus não Te commove? És surdo a seus lamentos? XXI. Doce era a voz do velho: o som do Nablo Sonoro: o céu sereno: clara a terra Pelo brando fulgor do astro da noite: E o propheta parou. Erguidos tinha Os olhos para o céu, onde buscava Um raio de esperança e de conforto: E elle calára já, e ainda os ecchos, Entre as ruinas sussurrando, ao longe Íam os sons levar de seus queixumes. XXII. Choro piedoso, o choro consagrado Ás desditas dos seus. Honra ao propheta! Oh margens do Jordão, paiz formoso Que fostes e não sois, tambem suspiro Condoído vos dou.--Assim fenecem Imperios, reinos, solidões tornados!... Não:--nenhum deste modo: o peregrino Pára em Palmyra e pensa. O braço do homem A sacudiu á terra, e fez dormissem O seu ultimo somno os filhos della-- E elle o veio dormir pouco mais longe... Mas se chega a Sião treme, enxergando Seus lacerados restos. Pelas pedras, Aqui e alli dispersas, ainda escripta Parece ver-se uma inscripção de agouros, Bem como aquella que aterrou um í­mpio Quando, no meio de ruidosa festa, Blasphemava dos céus, e mão ignota O dia extremo lhe apontou dos crimes. A maldicção do Eterno está vibrada Sobre Jerusalem!--Quanto é terri­vel A vingança de Deus! O Israelita, Sem patria e sem abrigo, vagabundo, Ódio dos homens, neste mundo arrasta Uma existencia mais cruel que a morte, E que vem terminar a morte e inferno. Desgraçada nação!--Aquelle solo Onde manava o mel, onde o carvalho, O cedro e a palma o verde ou claro ou torvo, Tão grato á vista, em bosques misturavam; Onde o lyrio e a cecem nos prados tinham Crescimento espontaneo entre as roseiras, Hoje, campo de lagrymas, só cria Humilde musgo de escalvados cerros. XXIII. Ide vós a Mambré.--Lá, bem no meio De um valle, outr'ora de verdura ameno, Erguia-se um carvalho magestoso. Debaixo de seus ramos largos dias Abrahão repousou. Na primavera Vinham os moços adornar-lhe o tronco De capellas cheirosas de boninas, E coreias gentis traçar-lhe em roda. Nasceu com o orbe a planta veneravel, Viu passar gerações, julgou seu dia Final fosse o do mundo, e quando airosa Por entre as densas nuvens se elevava, Mandou o Nume aos aquilões rugissem, Ei-la por terra! As folhas, pouco a pouco, Murcharam-se cahindo, e o rei dos bosques Serviu de pasto aos tragadores vermes. Deus estendeu a mão:--no mesmo instante A vinha se mirrou: juncto aos ribeiros Da Palestina os platanos frondosos Não mais cresceram, como d'antes, bellos: O armento, em vez de relva, achou nos prados Sómente ingratas, espinhosas urzes. No Golgotha plantada, a Cruz clamára --Justiça!»--A tal clamor horrido espectro No Moriá surgiu. Era seu nome Assolação.--E despregando um grito, Cahiu com longo som de um povo a campa. Assim a herança de Judá, outr'ora Grata ao Senhor, existe só nos ecchos Do tempo que já foi, e que ha passado Como hora de prazer entre desditas. ................................... XXIV. Minha Patria onde existe? É lá sómente! Oh lembrança da Patria acabrunhada Um suspiro tambem tu me has pedido; Um suspiro arrancado aos seios d'alma Pela offuscada gloria, e pelos crimes Dos homens que ora são, e pelo opprobrio Da mais illustre das nações da terra! A minha triste Patria era tão bella, E forte, e virtuosa! e ora o guerreiro E o sabio e o homem bom acolá dormem, Acolá, nos sepulchros esquecidos, Que a seus netos infames nada contam Da antiga honra e pudor e eternos feitos. O escravo português agrilhoado Carcomir-se lhes deixa juncto ás lousas Os decepados troncos desse arbusto, Por mãos delles plantado á liberdade, E por tyrannos derribado em breve, Quando patrias virtudes se acabaram, Como um sonho da infancia!... O vil escravo, Immerso em vicios, em bruteza e infamia, Não erguerá os macerados olhos Para esses troncos, que destroem vermes Sobre as cinzas de heroes, e, acceso em pejo, Não surgirá jámais?--Não ha na terra Coração português, que mande um brado De maldicção atroz, que vá cravar-se Na vigilia e no somno dos tyrannos, E envenenar-lhes o prazer por noites De vil prostituição, e em seus banquetes De embriaguez lançar fel e amarguras? Não!--Bem como um cadaver já corrupto, A nação se dissolve: e em seu lethargo O povo, involto na miseria, dorme. XXV. Oh, talvez, como o vate, ainda algum dia Terei de erguer á Patria hymno de morte, Sobre seus mudos restos vagueiando! Sobre seus restos?--Nunca! Eterno, escuta Minhas preces e lagrymas:--se em breve, Qual jaz Sião, jazer deve Ulissea; Se o anjo do extermi­nio ha-de risca-la Do meio das nações, que d'entre os vivos Risque tambem meu nome, e não me deixe Na terra vagueiar, orpham de Patria. XXVI. Cessou da noite a grão solemnidade Consagrada á tristeza, e a memorandas Recordações:--os monges se prostraram, A face unida á pedra. A mim, a todos Correm dos olhos lagrymas suaves De compuncção. Atheu, entra no templo; Não temas esse Deus, que os labios negam, E o coração confessa. A corda do arco Da vingança, em que a morte se debruça, Frouxa está; Deus é bom: entra no templo. Tu para quem a morte ou vida é fórma, Fórma sómente de mais puro barro, Que nada crês, e em nada esperas, olha, Olha o conforto do christão. Se o calis Da amargura a provar os céus lhe deram, Elle se consolou: balsamo sancto Piedosa fé no coração lhe verte. --«Deus compaixão terá!--Eis seu gemido: Porque a esperança lhe sussurra em torno: --Aqui, ou lá... a Providencia é justa.» Atheu, a quem o mal fizera escravo, Teu futuro qual é? Quaes são teus sonhos? No dia da afflicção emmudeceste Ante o espectro do mal. E a quem alçáras O gemente clamor?--Ao mar, que as ondas Não altera por ti?--Ao ar, que some Pela sua amplidão as queixas tuas? Aos rochedos alpestres, que não sentem, Nem sentir podem teu gemido inutil? Tua dôr, teu prazer existem, passam, Sem porvir, sem passado, e sem sentido. Nas angustias da vida, o teu consolo O suicidio é só, que te promette Rica messe de goso, a paz do nada!-- E ai de ti, se buscaste, emf­im, repouso, No limiar da morte indo assentar-te! Alli grita uma voz no ultimo instante Do passamento: a voz atterradora Da consciencia é ella. E has-de escuta-la Mau grado teu: e tremerás em sustos, Desesperado aos céus erguendo os olhos Irados, de través, amortecidos; Aos céus, cujo caminho a Eternidade Co'a vagarosa mão te vai cerrando, Para guiar-te á solidão das dôres, Onde maldigas teu primeiro alento, Onde maldigas teu extremo arranco, Onde maldigas a existencia e a morte. XXVII. Calou tudo no templo: o céu é puro, A tempestade ameaçadora dorme. No espaço immenso os astros scintillantes O Rei da creação louvam com hymnos, Não ouvidos por nós nas profundezas Do nosso abysmo. E aos cantos do Universo, Ante milhões de estrellas, que recamam O firmamento, ajunctará seu canto Mesquinho trovador?--Que vale uma harpa Mortal no meio da harmonia etherea, No concerto da noite? Oh, no silencio, Eu pequenino verme irei sentar-me Aos pés da Cruz nas trévas do meu nada. Assim se apaga a lampada nocturna Ao despontar do sol o alvor primeiro: Por entre a escuridão deu claridade; Mas do dia ao nascer, que já rutíla, As torrentes de luz vertendo ao longe, Da lampada o clarão sumiu-se, inutil, Nesse fulgido mar, que inunda a terra. A VOZ. É tão suave ess' hora, Em que nos foge o dia, E em que suscita a lua Das ondas a ardentia, Se em alcantis marinhos, Nas rochas assentado, O trovador medita Em sonhos enleiado! O mar azul se encrespa Co'a vespertina brisa, E no casal da serra A luz ja se divisa. E tudo em roda cala Na praia sinuosa, Salvo o som do remanso Quebrando em furna algosa. Alli folga o poeta Nos desvarios seus, E nessa paz que o cérca Bemdiz a mão de Deus. Mas despregou seu grito A alcyone gemente, E nuvem pequenina Ergueu-se no occidente: E sóbe, e cresce, e immensa Nos céus negra fluctua, E o vento das procellas Já varre a fraga nua. Turba-se o vasto oceano, Com horrido clamor; Dos vagalhões nas ribas Expira o vão furor E do poeta a fronte Cubriu véu de tristeza: Calou, á luz do raio, Seu hymno á natureza. Pela alma lhe vagava Um negro pensamento, Da alcyone ao gemido, Ao sibillar do vento. Era blasphema idéa, Que triumphava emfim; Mas voz soou ignota, Que lhe dizia assim: ----- --«Cantor, esse queixume Da nuncia das procellas, E as nuvens, que te roubam Myriadas de estrellas, E o frémito dos euros, E o estourar da vaga, Na praia, que revolve, Na rocha, onde se esmaga, Onde espalhava a brisa Sussurro harmonioso, Em quanto do ether puro Descia o sol radioso, Typo da vida do homem, É do universo a vida; Depois do afan repouso, Depois da paz a lida. Se ergueste a Deus um hymno Em dias de amargura; Se te amostraste grato Nos dias de ventura, Seu nome não maldigas Quando se turba o mar: No Deus, que é pae, confia, Do raio ao scintillar. Elle o mandou: a causa Disso o universo ignora, E mudo está. O nume, Como o universo, adora!»-- ----- Oh sim, torva blasphemia Não manchará seu canto! Brama a procella embora; Pése sobre elle o espanto; Que de sua harpa os hymnos Derramará contente Aos pés de Deus, qual oleo Do nardo recendente. A ARRABIDA. I. Salve, oh valle do sul, saudoso e bello! Salve, oh patria da paz, deserto sancto, Onde não ruge a grande voz das turbas! Sólo sagrado a Deus, podesse ao mundo O poeta fugir, cingir-se ao ermo, Qual ao freixo robusto a fragil hera, E a romagem do tumulo cumprindo, Só conhecer, ao despertar na morte, Essa vida sem mal, sem dôr, sem termo, Que íntima voz contínuo nos promette No transito chamado o viver do homem. II. Suspira o vento no alamo frondoso; As aves soltam matutino canto; Late o lebreu na encosta, e o mar sussurra Dos alcantís na base carcomida: Eis o ruí­do de ermo!--Ao longe o negro, Insondado oceano, e o céu ceruleo Se abraçam no horisonte.--Immensa imagem Da eternidade e do infinito, salve! III. Oh, como surge magestosa e bella, Com viço da creação, a natureza No solitario valle!--E o leve insecto E a relva e os matos e a fragrancia pura Das boninas da encosta estão contando Mil saudades de Deus, que os ha lançado, Com mão profusa, no regaço ameno Da solidão, onde se esconde o justo. E lá campeiam no alto das montanhas Os escalvados pincaros, severos, Quaes guardadores de um logar que é sancto; Atalaias que ao longe o mundo observam, Cerrando até o mar o ultimo abrigo Da crença viva, da oração piedosa, Que se ergue a Deus de labios innocentes. Sobre esta scena o sol verte em torrentes Da manhan o fulgor; a brisa esvaí-se Pelos rosmaninhaes, e inclina os topos Do zimbro e alecrineiro, ao rez sentados Desses thronos de fragas sobrepostas, Que alpestres matas de medronhos vestem; O rocío da noite á branca rosa No seio derramou frescor suave, E 'inda existencia lhe dará um dia. Formoso ermo do sul, outra vez, salve! IV. Negro, esteril rochedo, que contrastas, Na mudez tua, o placido sussurro Das arvores do valle, que vecejam Ricas d'encantos, co' a estação propicia; Suavissimo aroma, que, manando Das variegadas flores, derramadas Na sinuosa encosta da montanha, Do altar da solidão subindo aos ares, És digno incenso ao Creador erguido; Livres aves, vós filhas da espessura, Que só teceis da natureza os hymnos, O que crê, o cantor, que foi lançado, Estranho ao mundo, no bulicio delle, Vem saudar-vos, sentir um goso puro, Dos homens esquecer paixões e opprobrio, E ver, sem ver-lhe a luz prestar a crimes, O sol, e uma só vez pura saudar-lh'a. Comvosco eu sou maior; mais longe a mente Pelos seios dos céus se immerge livre, E se desprende de mortaes memorias Na solidão solemne, onde, incessante, Em cada pedra, em cada flor se escuta Do Sempiterno a voz, e vê-se impressa A dextra sua em multiforme quadro. V. Escalvado penedo, que repousas Lá no cimo do monte, ameaçando Rui­na ao roble secular da encosta, Que somnolento move a coma estiva Ante a aragem do mar, foste formoso; Já te cubriram cespedes virentes; Mas o tempo voou, e nelle involta A formosura tua. Despedidos Das negras nuvens o chuveiro espesso E o granizo, que o sólo fustigando Tritura a tenra lanceolada relva, Durante largos seculos, no inverno, Dos vendavaes no dorso a ti desceram, Qual amplexo brutal de ardor grosseiro, Que, maculando virginal pureza, Do pudor varre a aureola celeste, E deixa, em vez de um seraphim na terra, Queimada flor que devorou o raio. VI. Cáveira da montanha, ossada immensa, É tua campa o céu: sepulchro o valle Um dia te será. Quando sentires Rugir com som medonho a terra ao longe, Na expansão dos volcões, e o mar, bramindo, Lançar á praia vagalhões cruzados; Tremer-te a larga base, e sacudir-te De sobre si, o fundo deste valle Te vai servir de tumulo; e os carvalhos Do mundo primogenitos, e os sobros, Arrastados por ti lá da collina, Comtigo hão-de jazer. De novo a terra Te cubrirá o dorso sinuoso: Outra vez sobre ti nascendo os lyrios, Do seu puro candor hão-de adornar-te; E tu, ora medonho e nú e triste, Ainda bello serás, vestido e alegre. VII. Mais que o homem feliz!--Quando eu no valle Dos tumulos cahir; quando uma pedra Os ossos me esconder, se me fôr dada, Não mais reviverei; não mais meus olhos Verão, ao pôr-se, o sol em dia estivo, Se em turbilhões de purpura, que ondeiam Pelo extremo dos céus sobre o occidente, Vai provar que um Deus ha a estranhos povos E além das ondas trémulo sumir-se; Nem, quando, lá do cimo das montanhas, Com torrentes de luz inunda as veigas: Não mais verei o refulgir da lua No irrequieto mar, na paz da noite, Por horas em que véla o criminoso, A quem íntima voz rouba o socego, E em que o justo descança, ou, solitario, Ergue ao Senhor um hymno harmonioso. VIII. Hontem, sentado n'um penhasco, e perto Das aguas, então quêdas, do oceano, Eu tambem o louvei sem ser um justo: E meditei, e a mente extasiada Deixei correr pela amplidão das ondas. Como abraço materno era suave A aragem fresca do cahir das trévas, Emquanto, involta em gloria, a clara lua Sumia em seu fulgor milhões d'estrellas. Tudo calado estava: o mar sómente As harmonias da creação soltava, Em seu rugido; e o ulmeiro do deserto Se agitava, gemendo e murmurando, Ante o sopro de oeste:--alli dos olhos O pranto me correu sem que o sentisse, E aos pés de Deus se derramou minha alma. IX. Oh, que viesse o que não crê, comigo, Á vecejante Arrabida de noite, E se assentasse aqui sobre estas fragas, Escutando o sussurro incerto e triste Das movediças ramas, que povôa De saudade e de amor nocturna brisa; Que visse a lua, o espaço oppresso de astros, E ouvisse o mar soando:--elle chorára, Qual eu chorei, as lagrymas do goso, E adorando o Senhor detestaria De uma sciencia van seu vão orgulho. X. É aqui neste valle, ao qual não chega Humana voz e o tumultuar das turbas, Onde o nada da vida sonda livre O coração, que busca ir abrigar-se No futuro, e debaixo do amplo manto Da piedade de Deus: aqui serena Vem a imagem da campa, como a imagem Da patria ao desterrado; aqui, solemne, Brada a montanha, memorando a morte. Essas penhas, que, lá no alto das serras Nuas, crestadas, solitarias dormem, Parecem imitar da sepultura O aspecto melancholico e o repouso Tão desejado do que em Deus confia. Bem semelhante á paz, que se ha sentado Por seculos, alli, nas cordilheiras É o silencio do adro, onde reunem Os cyprestes e a cruz, o céu e a terra. Como tu vens cercado de esperança, Para o innocente, oh placido sepulchro! Juncto das tuas bordas pavorosas O perverso recúa horrorisado: Após si volve os olhos; na existencia Deserto árido só descobre ao longe, Onde a virtude não deixou um trilho. Mas o justo, chegando á meta extrema, Que separa de nós a eternidade, Transpõe-na sem temor, e em Deus exulta. O infeliz e o feliz lá dormem ambos, Tranquillamente: e o trovador mesquinho, Que peregrino vagueiou na terra, Sem encontrar um coração ardente Que o entendesse, a patria de seus sonhos, Ignota, por lá busca; e quando as eras Vierem juncto ás cinzas collocar-lhe Tardios louros, que escondera a inveja, Elle não erguerá a mão mirrada, Para os cingir na regelada fronte. Justiça, gloria, amor, saudade, tudo, Ao pé da sepultura, é som perdido De harpa eolia esquecida em brenha ou selva: O despertar um pae, que saboreia Entre os braços da morte o extremo somno, Já não é dado ao filial suspiro; Em vão o amante, alli, da amada sua De rosas sobre a c'roa debruçado, Réga de amargo pranto as murchas flores E a fria pedra: a pedra é sempre fria, E para sempre as flores se murcharam. XI. Bello ermo! eu hei-de amar-te, emquanto esta alma, Aspirando o futuro além da vida E um halito dos ceus, gemer atada Á columna do exilio, a que se chama Em lingua vil e mentirosa o mundo. Eu hei-de amar-te, oh valle, como um filho Dos sonhos meus. A imagem do deserto Guarda-la-hei no coração, bem juncto Com minha fé, meu unico thesouro. Qual pomposo jardim de verme illustre, Chamado rei ou nobre, ha-de comtigo Comparar-se, oh deserto? Aqui não cresce Em vaso de alabastro a flor captiva, Ou arvore educada por mão de homem, Que lhe diga--és escrava» e erga um ferro E lhe decepe os troncos. Como é livre A vaga do oceano é livre no ermo A bonina rasteira e o freixo altivo! Não lhes diz--nasce aqui, ou lá não cresças» Humana voz. Se baqueou o freixo, Deus o mandou: se a flor pendida murcha, É que o rocío não desceu de noite, E da vida o Senhor lhe nega a vida. Céu livre, terra livre, e livre a mente, Paz intima, e saudade, mas saudade Que não dóe, que não mirra, e que consola, São as riquezas do ermo, onde sorriem Das procellas do mundo os que o deixaram. XII. Alli naquella encosta, hontem de noite, Alvejava por entre os medronheiros Do solitario a habitação tranquilla: E eu vagueei por lá. Patente estava O pobre alvergue do eremita humilde, Onde jazia o filho da esperança Sob as asas de Deus, á luz dos astros, Em leito, duro sim, não de remorsos. Oh, com quanto socego o bom do velho Dormia! A leve aragem lhe ondeiava As raras cans na fronte, onde se lia A bella historia de passados annos. De alto choupo através passava um raio Da lua--astro de paz, astro que chama Os olhos para o céu, e a Deus a mente-- E em luz pallida as faces lhe banhava: E talvez neste raio o Pae celeste Da patria eterna lhe enviava a imagem, Que o sorriso dos labios lhe fugia, Como se um sonho de ventura e gloria Na terra de antemão o consolasse. E eu comparei o solitario obscuro Ao inquieto filho das cidades: Comparei o deserto silencioso Ao perpetuo rui­do que sussurra Pelos palacios do abastado e nobre, Pelos paços dos reis; e condoí-me Do cortezão suberbo, que só cura De honras, haveres, gloria, que se compram Com maldicções e perennal remorso. Gloria! A sua qual é? Pelas campinas, Cubertas de cadaveres, regadas De negro sangue, elle segou seus louros; Louros que vão cingir-lhe a fronte altiva Ao som do choro da viuva e do orpham; Ou, dos sustos senhor, em seu delirio, Os homens, seus irmãos, flagella e opprime Lá o filho do pó se julga um nume, Porque a terra o adorou: o desgraçado Pensa, talvez, que o verme dos sepulchros Nunca se ha-de chegar para traga-lo Ao banquete da morte, imaginando Que uma lagea de marmore, que esconde O cadaver do grande, é mais duravel Do que esse chão sem inscripção, sem nome, Por onde o oppresso, o misero, procura O repouso, e se atira aos pés do throno Do Omnipotente, a demandar justiça Contra os fortes do mundo, os seus tyrannos. XIII. Oh cidade, cidade, que trasbordas De vicios, de paixões, e de amarguras! Tu lá estás, na tua pompa involta, Suberba prostituta, alardeiando Os theatros, e os paços, e o ruido Das carroças dos nobres, recamadas De ouro e prata, e os prazeres de uma vida Tempestuosa, e o tropeiar continuo Dos férvidos ginetes, que alevantam O pó e o lodo cortezão das praças; E as gerações corruptas de teus filhos Lá se revolvem, qual montão de vermes Sobre um cadaver putrido!--Cidade, Branqueado sepulchro, que misturas A opulencia, a miseria, a dôr e o goso, Honra e infamia, pudor e impudicicia, Céu e inferno, que és tu? Escarneo ou gloria Da humanidade?--O que o souber que o diga! Bem negra avulta aqui, na paz do valle, A imagem desse povo, que reflue Das moradas á rua, á praça, ao templo; Que ri, e chora, e folga, e geme, e morre, Que adora Deus, e que o pragueja, e o teme; Absurdo mixto de baixeza extrema E de extrema ousadia; vulto enorme, Ora aos pés de um vil despota estendido, Ora surgindo, e arremessando ao nada As memorias dos seculos que foram, E depois sobre o nada adormecendo. Vê-lo, rico de opprobrio, ir assentar-se Em joelhos nos atrios dos tyrannos, Onde, entre o lampejar de armas de servos, O servo popular adora um tigre? Esse tigre é o idolo do povo! Saudae-o; que elle o manda: abençoae-lhe O ferreo sceptro: ide folgar em roda De cadafalsos, povoados sempre De victimas illustres, cujo arranco Seja como harmonia, que adormente Em seus terrores o senhor das turbas. Passae depois. Se a mão da Providencia Esmigalhou a fronte á tyrannia; Se o despota cahiu, e está deitado No lodaçal da sua infamia, a turba Lá vai buscar o sceptro dos terrores, E diz--é meu»; e assenta-se na praça, E involta em roto manto, e julga, e reina. Se um ímpio, então, na affogueada bôcca De volcão popular sacode um facho, Eis o incendio que muge, e a lava sóbe, E referve, e trasborda, e se derrama Pelas ruas além: clamor retumba De anarchia impudente, e o brilho de armas Pelo escuro transluz, como um presagio De assolação, e se amontoam vagas Desse mar d'abjecção, chamado o vulgo; Desse vulgo, que ao som de infernaes hymnos Cava fundo da Patria a sepultura. Onde, abraçando a gloria do passado E do futuro a ultima esperança, As esmaga comsi­go, e ri morrendo. Tal és, cidade, licenciosa ou serva! Outros louvem teus paços sumptuosos, Teu ouro, teu poder:--sentina impura De corrupções, teus não serão meus hymnos! XIV. Cantor da solidão, vim assentar-me Juncto do verde cespede do valle, E a paz de Deus do mundo me consola. Avulta aqui, e alveja entre o arvoredo, Um pobre conventinho. Homem piedoso O alevantou ha seculos, passando, Como orvalho do céu, por este sitio, De virtudes depois tão rico e fertil. Como um pae de seus filhos rodeado, Pelos matos do outeiro o vão cercando Os tugurios de humildes eremitas, Onde o cilicio e a compuncção apagam Da lembrança de Deus passados erros Do peccador, que reclinou a fronte Penitente no pó. O sacerdote Dos remorsos lhe ouviu as amarguras; E perdoou-lhe, e consolou-o em nome Do que expirando perdoava, o Justo Que entre os humanos não achou piedade. XV. Religião! do misero conforto, Abrigo extremo de alma, que ha mirrado O longo agonisar de uma saudade, Da deshonra, do exilio, ou da injustiça, Tu consolas aquelle, que ouve o Verbo, Que renovou o corrompido mundo, E que mil povos pouco a pouco ouviram. Nobre, plebeu, dominador, ou servo, O rico, o pobre, o valoroso, o fraco, Da desgraça no dia ajoelharam No limiar do solitario templo. Ao pé desse portal, que veste o musgo, Encontrou-os chorando o sacerdote, Que da serra descia á meia-noite, Pelo sino das preces convocado: Ahi os viu ao despontar do dia, Sob os raios do sol, ainda chorando. Passados mezes, o burel grosseiro, O leito de cortiça, e a fervorosa E contínua oração foram cerrando Nos corações dos miseros as chagas, Que o mundo sabe abrir, mas que não cura. Aqui, depois, qual halito suave Da primavera, lhes correu a vida, Até sumir-se no adro do convento, Debaixo de uma lagea tosca e humilde, Sem nome, nem palavra, que recorde O que a terra abrigou no somno extremo. Eremiterio antigo, oh, se podesses Dos annos que lá vão contar a historia; Se ora, á voz do cantor, possivel fosse Transudar desse chão, gelado e mudo, O mudo pranto, em noites dolorosas, Por naufragos do mundo derramado Sobre elle, e aos pés da cruz!... Se vós podesseis, Broncas pedras, falar, o que dirieis! Quantos nomes mimosos da ventura, Convertidos em fabula das gentes, Despertariam o eccho das montanhas, Se aos negros troncos do sobreiro antigo Mandasse o Eterno sussurrar a historia Dos que vieram desnudar-lhe o cepo, Para um leito formar, onde velassem Da mágua, ou do remorso as longas noites! Aqui veiu, talvez, buscar asylo Um poderoso, outr'ora anjo da terra, Despenhado nas trévas do infortunio; Aqui gemeu, talvez, o amor trahido, Ou pela morte convertido em cancro De infernal desespero; aqui soaram Do arrependido os ultimos gemidos, Depois da vida derramada em gosos, Depois do goso convertido em tedio. Mas quem foram? Nenhum, depondo em terra Vestidura mortal, deixou vestigios De seu breve passar. E isso que importa, Se Deus o viu; se as lagrymas do triste Elle contou, para as pagar com gloria? XVI. Ainda em curvo outeiro, ao fim da senda Que serpeia do monte ao fundo valle, Sobre o marco de pedra a cruz se eleva, Como um pharol de vida em mar de escolhos: Ao christão infeliz acolhe no ermo, E consolando-o, diz-lhe--a patria tua É lá no céu: abraça-te comigo.» Juncto della esses homens, que passaram Acurvados na dôr, as mãos ergueram Para o Deus, que perdoa, e que é conforto Dos que aos pés deste symbolo da esp'rança Vem derramar seu coração afflicto: É do deserto a historia a cruz e a campa; E sobre tudo o mais pousa o silencio. XVII. Feliz da terra, os monges não maldigas; Do que em Deus confiou não escarneças! Folgando segue a trilha, que ha juncado, Para teus pés, de flores a fortuna, E sobre a morta crença em paz descança. Que mal te faz, que goso vae roubar-te O que ensanguenta os pés no tojo agreste, E sobre a fria pedra encosta a fronte? Que mal te faz uma oração erguida, Nas solidões, por voz sumida e frouxa, E que, subindo aos céus, só Deus escuta? Oh, não insultes lagrymas alheias, E deixa a fé ao que não tem mais nada!... E se estes versos te contristam, rasga-os. Teus menestreis te venderão seus hymnos, Nos banquetes opiparos, emquanto O negro pão repartirá comigo, Seu trovador, o pobre anachoreta, Que não te inveja as ditas, como as c'roas Do prazer ao cantor eu não invejo; Tristes coroas, sob as quaes às vezes Está gravada uma inscripção d'infamia. MOCIDADE E MORTE. Solevantado o corpo, os olhos fitos, As magras mãos cruzadas sobre o peito, Vêde-o, tão moço, velador de angustias, Pela alta noite em solitario leito. Por essas faces pallidas, cavadas, Olhae, em fio as lagrymas deslisam; E com o pulso, que apressado bate, Do coração os éstos harmonisam. É que nas veias lhe circula a febre; É que a fronte lhe alaga o suor frio; É que lá dentro á dor, que o vai roendo, Responde horrivel íntimo ciclo. Encostando na mão o rosto acceso, Fitou os olhos humidos de pranto Na lampada mortal alli pendente, E lá comsigo modulou um canto. É um hymno de amor e de esperança? É oração de angustia e de saudade? Resignado na dor, saúda a morte, Ou vibra aos céus blasphemia d'impiedade? É isso tudo, tumultuando incerto No delírio febril daquella mente Que, balouçada á borda do sepulchro, Volve após si a vista longamente. É a poesia a murmurar-lhe na alma Ultima nota de quebrada lyra; É o gemido do tombar do cedro; É triste adeus do trovador que expira. DESESPERANÇA. «Meia-noite bateu, volvendo ao nada Um dia mais, e caminhando eu sigo! Vejo-te bem, oh campa mysteriosa... Eu vou, eu vou! Breve serei comtigo! Qual tufão, que ao passar agita o pégo. Meu placido existir turvou a sorte. Halito impuro de pulmões ralados Me diz que nelles se assentou a morte. Em quanto mil e mil no largo mundo Dormem em paz sorrindo, eu vélo e penso, E julgo ouvir as preces por finados, E ver a tumba e o fumegar do incenso. Se dormito um momento, acórdo em sustos; Pulos me dá o coração no peito, E abraço e beijo de uma vida extincta O ultimo socio, o doloroso leito. De um abysmo insondado ás agras bordas Insanavel doença me ha guiado, E disse-me:--no fundo o esquecimento: Desce; mas desce com andar pausado.» E eu lento vou descendo, e sondo as trévas: Busco parar; parar um só instante! Mas a cruel, travando-me da dextra, Me faz cahir mais fundo, e grita:--ávante!» Porque escutar o transito das horas? Alguma dellas trar-me-ha conforto? Não! Esses golpes, que no bronze ferem, São para mim como dobrar por morto. «Morto! morto!--me clama a consciencia: Diz-m'o este respirar rouco e profundo. Ai! porque fremes, coração de fogo, Dentro de um seio corrompido e immundo? Beber um ar diaphano e suave, Que renovou da tarde o brando vento, E converte-lo, no aspirar contínuo, Em bafo apodrecido e peçonhento! Estender para o amigo a mão mirrada, E elle negar a mão ao pobre amigo; Querer uni-lo ao seio descarnado, E elle fugir, temendo o seu perigo! E ver após um dia ainda cem dias, Nús d'esperança, ferteis de amargura; Soccorrer-me ao porvir, e acha-lo um ermo, E só, bem lá no extremo, a sepultura! Agora!... quando a vida me sorria: Agora!... que meu estro se accendêra; Que eu me enlaçava a um mundo d'esperanças, Como se enlaça pelo choupo a hera, Deixar tudo, e partir, sósinho e mudo; Varrer-me o nome escuro esquecimento: Não ter um eccho de louvor, que affague Do desgraçado o humilde monumento! Oh tu, sêde de um nome glorioso, Que tão fagueiros sonhos me tecias, Fugiste, e só me resta a pobre herança De ver a luz do sol mais alguns dias. Vestem-se os campos do verdor primeiro: Já das aves canções no bosque ecchoam: Não para mim, que só escuto attento Funereos dobres que no templo soam! Eu que existo, e que penso, e falo, e vivo, Irei tão cedo repousar na terra?! Oh, meu Deus, oh meu Deus! um anno ao menos; Um louro só... e meu sepulchro cerra! É tão bom respirar, e a luz brilhante Do sol oriental saudar no outeiro! Ai, na manhan sauda-la posso ainda; Mas será este inverno o derradeiro! Quando de pomos o vergel for cheio; Quando ondeiar o trigo na planura; Quando pender com aureo fructo a vide, Eu tambem penderei na sepultura. Dos que me cercam no turbado aspecto, Na voz que prende desusado enleio, No pranto a furto, no fingido riso Fatal sentença de morrer eu leio. Vistes vós criminoso, que hão lançado Seus juizes nos trances da agonia, Em oratorio estreito, onde não entra Suavissima luz do claro dia; Diante a cruz, ao lado o sacerdote, O cadafalso, o crime, o algoz na mente, O povo tumultuando, o extremo arranco, E céu, e inferno, e as maldicções da gente? Se adormece, lá surge um pesadelo, Com os martyrios da sua alma acorde; Desperta logo, e á terra se arremessa, E os punhos cerra, e delirante os morde. Sobre as lageas do duro pavimento De vergões e de sangue o rosto cobre. Ergue-se e escuta com cabellos hirtos Do sino ao longe o compassado dobre. Sem esperança!... Não! Do cadafalso Sóbe as escadas o perdão ás vezes; Porém a mim... não me dirão:--és salvo!» E o meu supplicio durará por mezes. Dizer posso:--existi: que a dor conheço! Do goso a taça só provei por horas: E serei teu, calado cemiterio, Que engenho, gloria, amor, tudo devoras. Se o furacão rugiu, e o debil tronco De arvore tenra espedaçou passando, Quem se doeu de a ver jazendo em terra? Tal é o meu destino miserando! Numen de sancto amor, mulher querida, Anjo do céu, encanto da existencia, Ora por mim a Deus, que ha-de escutar-te. Por ti me salve a mão da Providencia. Vem: aperta-me a dextra... Oh, foge, foge! Um beijo ardente aos labios teus voára: E neste beijo venenoso a morte Talvez este infeliz só te entregára! Se eu podesse viver... como teus dias Cercaria de amor suave e puro! Como te fôra placido o presente; Quanto risonho o aspecto do futuro! Porém, medonho espectro ante meus olhos, Como sombra infernal perpetuo ondeia, Bradando-me que vai partir-se o fio Com que da minha vida se urde a teia. Entregue á seducção em quanto eu durmo, No turbilhão do mundo hei-de deixar-te! Quem velará por ti, pomba innocente? Quem do perjurio poderá salvar-te? Quando eu cerrar os olhos moribundos Tu verterás por mim pranto saudoso; Mas quem me diz que não virá o riso Banhar teu rosto triste e lachrymoso? Ai, o extincto só herda o esquecimento! Um novo amor te agitará o peito: E a dura lagea cubrirá meus ossos Frios, despidos sobre terreo leito!... Oh Deus, porque este calix de agonia Até as bordas de amargor me encheste? Se eu devia acabar na juventude, Porque ao mundo e a seus sonhos me prendeste? Virgem do meu amor, porque perde-la? Porque entre nós a campa ha-de assentar-se? Tua suprema paz com goso ou dores, Do mortal, que em ti crê, póde turbar-se? Não haver quem me salve! e vir um dia Em que de minha o nome ainda lhe désse! Então, Senhor, o umbral da eternidade, Talvez sem um queixume, transposesse. Mas, qual flor em botão pendida e murcha, Sem de fragrancias perfumar a brisa, Eu poeta, eu amante, ir esconder-me Sob uma lousa desprezada e lisa! Porque? Qual foi meu crime, oh Deus terrivel? Em te adorar que fui, senão insano?... O teu fatal poder hoje maldigo! O que te chama pae, mente: és tyranno. E se aos pés de teu throno os ais não chegam; Se os gemidos da terra os ares somem; Se a Providencia é crença van, mentida, Porque geraste a intelligencia do homem? Porque da virgem no sorrir poseste Sancto presagio de suprema dita, E apontaste ao poeta a immensidade Na ancia de gloria que em sua alma habita? A immensidade!... E que me importa herda-la, Se na terra passei sem ser sentido? Que val eterno vagueiar no espaço, Se nosso nome se afundou no olvido? O ANJO DA GUARDA. «I­mpio, silencio! A tua voz blasphema Da noite a paz perturba. Verme, que te rebellas Sob a mão do Senhor, Vês os milhões d'estrellas De nitido fulgor, Que, em ordenada turba, A Deus entoam incessantes hymnos? Quantas vezes apaga Do livro da existencia Um orbe a mão do Eterno! E o bello astro que expira Maldiz a Providencia, Maldiz a mão que o esmaga? Acaso pára o cantico superno? Ou apenas suspira O moribundo, Que se chamava um mundo? Quem vai pôr uma campa sobre os restos Desse inerte planeta, Que o destructor cometa Incinerou na rapida passagem? E tu, átomo obscuro, Que varre á tarde a aragem, Sóltas do seio impuro Maldicção insensata, Porque o teu Deus te evoca á eternidade? Que é o viver? O umbral, a que um momento O espirito, surgindo Das solidões do nada Á voz do Creador, se encosta, e attento Contempla a luz e o céu; d'onde desata Seu vôo á immensidade. Geme acaso o passarinho De saudade, Quando as azas expande, e deixa o ninho A vez primeira, a mergulhar nos ares? Volve olhos lachrymosos Aos mares tormentosos O navegante, quando aproa ás plagas Da patria suspirada? Porque morres?! Pergunta á Providencia Porque te fez nascer. Qual era o teu direito a ver o mundo; Teu jus á existencia? Olha no outono o ulmeiro Que o vendaval agita, E cujas tenues folhas Aos centos precipita. São a folha do ulmeiro o nome e a fama, E o amar dos humanos: Ao nada do que foi assim se atiram No vortice dos annos. Que é a gloria na terra? Um eccho frouxo, Que somem mil ruí­dos. E a voz da terra o que é, na voz immensa Dos orbes reunidos? Amor! amor terreno!... Ai, se podesses Comprehender a amargura, Com que te chóro, oh alma transviada! Eu, que te amei do berço, e qual doçura Ha no affecto que liga o anjo ao homem, Rindo despiras esse corpo enfermo, Para te unir a mim, para aspirares O goso celestial de amor sem termo! Alma triste, que mesquinha Te debruças sobre o inferno, Ouve o anjo, pobresinha; Vem ao goso sempiterno. Resigna-te e espera, e os dias de prova Serão para o crente quaes breves instantes. Tomar-te-hei nos braços no trance da morte, Fendendo o infinito co' as asas radiantes. Depois, das alturas teu terreo vestido Sorrindo veremos na terra guardar, E ao hymno de Hosanna nos córos celestes A voz de um remido iremos junctar.» A GRAÇA. Que harmonia suave É esta, que na mente Eu sinto murmurar, Ora profunda e grave, Ora meiga e cadente, Ora que faz chorar? Porque da morte a sombra, Que para mim em tudo Negra se reproduz, Se aclara, e desassombra Seu gesto carrancudo, Banhada em branda luz? Porque no coração Não sinto pesar tanto O ferreo pé da dor, E o hymno da oração, Em vez de irado canto, Me pede íntimo ardor? És tu, meu anjo, cuja voz divina Vem consolar a solidão do enfermo, E a contemplar com placidez o ensina De curta vida o derradeiro termo? Oh, sim! és tu, que na infantil idade, Da aurora á frouxa luz, Me dizias:--acorda, innocentinho, Faze o signal da cruz.» És tu, que eu via em sonhos, nesses annos De inda puro sonhar, Em nuvem d'ouro e purpura descendo Co' as roupas a alvejar. És tu, és tu! que ao pôr do sol, na veiga, Juncto ao bosque fremente, Me contavas mysterios, harmonias Dos céus, do mar dormente. És tu, és tu! que, lá, nesta alma absorta Modulavas o canto, Que de noite, ao luar, sósinho erguia Ao Deus tres vezes sancto. És tu, que eu esqueci na idade ardente Das paixões juvenis, E que voltas a mim, sincero amigo, Quando sou infeliz. Sinto a tua voz de novo, Que me revoca a Deus: Inspira-me a esperança, Que te seguiu dos céus!... RESIGNAÇÃO «No teu seio reclinado Dormirei, Senhor, um dia, Quando for na terra fria Meu repouso procurar; Quando a lousa do sepulchro Sohre mim tiver cahido E este espirito affligido Vir a tua luz brilhar! No teu seio, de pesares O existir não se entretece; Lá eterno o amor florece; Lá florece eterna paz: Lá bramir juncto ao poeta Não irão paixões e dores, Vãos desejos, vãos temores Do desterro em que elle jaz. Hora extrema, eu te saúdo! Salve, oh trevas da jazida, D'onde espera erguer-se á vida Meu espirito immortal! Anjo bom, não me abandones Neste trance dilatado; Que contrito, resignado Me acharás na hora fatal. E depois... Perdoa, oh anjo, Ao amor do moribundo, Que só deixa neste mundo Pouco pó, muito gemer. Oh... depois... dize á mesquinha Um segredo de doçura: Que na patria o amor se apura, Que o desterro viu nascer. Que é o céu a patria nossa; Que é o mundo exilio breve; Que o morrer é cousa leve; Que é _principio_, não é _fim_: Que duas almas que se amaram Vão lá ter nova existencia, Confundidas n'uma essencia, A de um novo cherubim.» DEUS. Nas horas do silencio, á meia-noite, Eu louvarei o Eterno! Ouçam-me a terra, e os mares rugidores, E os abysmos do inferno. Pela amplidão dos céus meus cantos sôem, E a lua resplendente Pare em seu gyro, ao resoar nest'harpa O hymno do Omnipotente. Antes de tempo haver, quando o infinito Media a eternidade, E só do vacuo as solidões enchia De Deus a immensidade, Elle existia, em sua essencia involto, E fóra delle o nada: No seio do Creador a vida do homem Estava ainda guardada: Ainda então do mundo os fundamentos Na mente se escondiam De Jehovah, e os astros fulgurantes Nos céus não se volviam. Eis o Tempo, o Universo, o Movimento Das mãos sólta o Senhor: Surge o sol, banha a terra, e desabrocha Sua primeira flor: Sobre o invisi­vel eixo range o globo: O vento o bosque ondeia: Retumba ao longe o mar: da vida a força A natureza anceia! Quem, dignamente, oh Deus, ha-de louvar-te, Ou cantar teu poder? Quem dirá de Teu braço as maravilhas, Fonte de todo o ser, No dia da creação; quando os thesouros Da neve amontoaste; Quando da terra nos mais fundos valles As aguas encerraste?! E eu onde estava, quando o Eterno os mundos, Com dextra poderosa, Fez, por lei immutavel, se librassem Na mole ponderosa? Onde existia então? No typo immenso Das gerações futuras; Na mente do meu Deus. Louvor a Elle Na terra e nas alturas! Oh, quanto é grande o Rei das tempestades, Do raio, e do trovão! Quão grande o Deus, que manda, em secco estio, Da tarde a viração! Por sua Providencia nunca, embalde, Zumbiu minimo insecto; Nem volveu o elephante, em campo esteril, Os olhos inquieto. Não deu Elle á avesinha o grão da espiga, Que ao ceifador esquece; Do norte ao urso o sol da primavera, Que o reanima e aquece? Não deu Elle á gazella amplos desertos, Ao cervo a amena selva, Ao flamingo os paúes, ao tigre o antro, No prado ao touro a relva? Não mandou Elle ao mundo, em lucto e trévas, Consolação e luz? Acaso em vão algum desventurado Curvou-se aos pés da cruz? A quem não ouve Deus? Sómente ao impio No dia da afflicção, Quando pésa sobre elle, por seus crimes, Do crime a punição. Homem, ente immortal, que és tu perante A face do Senhor? És a junça do bréjo, harpa quebrada Nas mãos do trovador! Olha o velho pinheiro, campeiando Entre as neves alpinas: Quem irá derribar o rei dos bosques Do throno das collinas? Ninguem! Mas ai do abeto, se o seu dia Extremo Deus mandou! Lá correu o aquilão: fundas raizes Aos ares lhe assoprou. Suberbo, sem temor, saíu na margem Do caudaloso Nilo, O corpo monstruoso ao sol voltando, Medonho crocodilo. De seus dentes em roda o susto habita; Vê-se a morte assentada Dentro em sua garganta, se descerra A bôca affogueada: Qual duro arnez de intrepido guerreiro É seu dorso escamoso; Como os ultimos ais de um moribundo Seu grito lamentoso: Fumo e fogo respira quando irado; Porém, se Deus mandou, Qual do norte impellida a nuvem passa, Assim elle passou! Teu nome ousei cantar!--Perdoa, oh Nume; Perdoa ao teu cantor! Dignos de ti não são meus frouxos hymnos, Mas são hymnos de amor. Embora vís hypocritas te pintem Qual barbaro tyranno: Mentem, por dominar com ferreo sceptro O vulgo cego e insano. Quem os crê é um ímpio! Receiar-te É maldizer-te, oh Deus; É o throno dos despotas da terra Ir collocar nos céus. Eu, por mim, passarei entre os abrolhos Dos males da existencia Tranquillo, e sem temor, á sombra posto Da tua Providencia. A TEMPESTADE. Sibilla o vento:--os torreões de nuvens Pésam nos densos ares: Ruge ao largo a procella, e encurva as ondas Pela extensão dos mares: A immensa vaga ao longe vem correndo, Em seu terror envolta; E, d'entre as sombras, rapidas centelhas A tempestade solta. Do sol no occaso um raio derradeiro, Que, apenas fulge, morre, Escapa á nuvem, que, apressada e espessa, Para apaga-lo corre. Tal nos affaga em sonhos a esperança, Ao despontar do dia, Mas, no acordar, lá vem a consciencia Dizer que ella mentia! As ondas negro-azues se conglobaram; Serras tornadas são, Contra as quaes outras serras, que se arqueiam, Bater, partir-se vão. Oh tempestade! Eu te saúdo, oh nume, Da natureza açoite! Tu guias os bulcões, do mar princesa, E é teu vestido a noite! Quando pelos pinhaes, entre o granizo, Ao sussurrar das ramas, Vibrando sustos, pavorosa ruges E assolação derramas, Quem porfiar comtigo, então, ousára De gloria e poderio; Tu que fazes gemer pendido o cedro, Turbar-se o claro rio? Quem me dera ser tu, por balouçar-me Das nuvens nos castellos, E ver dos ferros meus, emfim, quebrados Os rebatidos élos! Eu rodeára, então, o globo inteiro; Eu sublevára as aguas; Eu dos volcões com raios accendêra Amortecidas fráguas; Do robusto carvalho e sobro antigo Acurvaria as frontes; Com furacões, os areiaes da Lybia Converteria em montes; Pelo fulgor da lua, lá do norte No polo me assentára, E vira prolongar-se o gelo eterno, Que o tempo amontoára. Alli, eu solitario, eu rei da morte, Erguèra meu clamor, E dissera:--sou livre, e tenho imperio; Aqui, sou eu senhor!» Quem se podéra erguer, como estas vagas, Em turbilhões incertos, E correr, e correr, troando ao longe, Nos liquidos desertos! Mas entre membros de lodoso barro A mente presa está!... Ergue-se em vão aos céus: precipitada, Rapido, em baixo dá. Oh morte, amiga morte! é sobre as vagas, Entre escarcéus erguidos, Que eu te invoco, pedindo-te feneçam Meus dias aborridos: Quebra duras prisões, que a natureza Lançou a esta alma ardente; Que ella possa voar, por entre os orbes, Aos pés do Omnipotente. Sobre a nau, que me estreita, a prenhe nuvem Desça, e estourando a esmague, E a grossa proa, dos tufões ludibrio, Solta, sem rumo vague! Porém, não!... Dormir deixa os que me cercam O somno do existir; Deixa-os, vãos sonhadores de esperanças Nas trévas do porvir. Doce mãe do repouso, extremo abrigo De um coração oppresso, Que ao ligeiro prazer, á dor cançada Negas no seio accésso, Não despertes, oh não! os que abominam Teu amoroso aspeito; Febricitantes, que se abraçam, loucos, Com seu dorído leito! Tu, que ao misero rís com rir tão meigo, Calumniada morte; Tu, que entre os braços teus lhe dás asylo Contra o furor da sorte; Tu, que esperas ás portas dos senhores, Do servo ao limiar, E eterna corres, peregrina, a terra E as solidões do mar, Deixa, deixa sonhar ventura os homens; Já filhos teus nasceram: Um dia acordarão desses delirios, Que tão gratos lhes eram. E eu que vélo na vida, e já não sonho Nem gloria, nem ventura; Eu, que esgotei tão cedo, até as fézes, O calix da amargura: Eu, vagabundo e pobre, e aos pés calcado De quanto ha vil no mundo, Sanctas inspirações morrer sentindo Do coração no fundo, Sem achar no desterro uma harmonia De alma, que a minha entenda, Porque seguir, curvado ante a desgraça, Esta espinhosa senda? Torvo o oceano vai! Qual dobre, soa Fragor da tempestade, Psalmo de mortós, que retumba ao longe, Grito da eternidade!... Pensamento infernal! Fugir covarde Ante o destino iroso? Lançar-me, envolto em maldicções celestes, No abysmo tormentoso? Nunca! Deus pôs-me aqui para apurar-me Nas lagrymas da terra; Guardarei minha estancia atribulada, Com meu desejo em guerra. O fiel guardador terá seu premio, O seu repouso, emfim, E atalaiar o sol de um dia extremo Virá outro após mim. Herdarei o morrer! Como é suave Bençam de pae querido. Será o despertar, ver meu cadaver, Ver o grilhão partido. Um consolo, entretanto, resta ainda Ao pobre velador: Deus lhe deixou, nas trévas da existencia, Doce amizade e amor. Tudo o mais é sepulchro branqueado Por embusteira mão; Tudo o mais vãos prazeres, que só trazem Remorso ao coração. Passarei minha noite a luz tão meiga, Até o amanhecer; Até que suba á patria do repouso, Onde não ha morrer. O SOLDADO. I. Veia tranquilla e pura Do meu paterno rio, Dos campos, que elle réga, Mansi­ssimo armentio. Rocio matutino, Prados tão deleitosos, Valles, que assombram selvas De sinceiraes frondosos, Terra da minha infancia, Tecto de meus maiores, Meu breve jardimzinho, Minhas pendidas flores, Harmonioso e sancto Sino do presbyterio, Cruzeiro venerando Do humilde cemiterio. Onde os avós dormiram, E dormirão os paes; Onde eu talvez não durma, Nem rese, talvez, mais, Eu vos saúdo! e o longo Suspiro amargurado Vos mando. É quanto póde Mandar pobre soldado. Sobre as cavadas ondas Dos mares procellosos, Por vós já fiz soar Meus cantos dolorosos. Na prôa resonante Eu me assentava mudo, E aspirava ancioso O vento frio e agudo; Porque em meu sangue ardia A febre da saudade, Febre que só minora Sopro de tempestade; Mas que se irrita, e dura Quando é tranquillo o mar; Quando da patria o céu Céu puro vem lembrar; Quando, no extremo occaso, A nuvem vaporosa, Á frouxa luz da tarde, Na côr imita a rosa; Quando, do sol vermelho O disco ardente crece, E paira sobre as aguas, E emfim desapparece; Quando no mar se estende Manto de negro dó; Quando, ao quebrar do vento, Noite e silencio é só; Quando sussurram meigas Ondas que a nau separa, E a rapida ardentia Em tôrno a sombra aclara. II. Eu já ouvi, de noite, Entre o pinhal fechado, Um fremito soturno Passando o vento irado: Assim o murmurio Do mar, fervendo á prôa, Com o gemer do afflicto, Sumido, accorde sôa: E o scintillar das aguas Gera amargura e dor, Qual lampada, que pende No templo do Senhor, Lá pela madrugada, Se o oleo lhe escaceia, E a espaços expirando, Affrouxa e bruxuleia. III. Bem abundante messe De pranto e de saudade O foragído errante Colhe na soledade! Para o que a patria perde É o universo mudo; Nada lhe rí na vida; Mora o fastio em tudo; No meio das procellas, Na calma do oceano, No sopro do galerno, Que enfuna o largo panno, E no entestar co' a terra Por abrigado esteiro, E no pousar á sombra Do tecto do estrangeiro. IV. E essas memorias tristes Minha alma laceraram, E a senda da existencia Bem agra me tornaram: Porém nem sempre ferreo Foi meu destino escuro; Sulcou de luz um raio As trévas do futuro. Do meu paiz querido A praia ainda beijei, E o velho e amigo cedro No valle ainda abracei! Nesta alma regelada Surgiu ainda o goso, E um sonho lhe sorriu Fugaz, mas amoroso. Oh, foi sonho da infancia Desse momento o sonho! Paz e esperança vinham Ao coração tristonho. Mas o sonhar que monta, Se passa, e não conforta? Minh' alma deu em terra, Como se fosse morta. Foi a esperança nuvem, Que o vento some á tarde: Facho de guerra acceso Em labaredas arde! Do fratricidio a luva Irmão a irmão lançara, E o grito: _ai do vencido!_ Nos montes retumbara. As armas se hão cruzado: O pó mordeu o forte; Cahiu: dorme tranquillo: Deu-lhe repouso a morte. Ao menos, nestes campos Sepulchro conquistou, E o adro dos estranhos Seus ossos não guardou. Elle herdará, ao menos, Aos seus honrado nome, Paga de curta vida Ser-lhe-ha largo renome. V. E a bala sibilando, E o trom da artilharia, E a tuba clamorosa, Que os peitos accendia, E as ameaças torvas, E os gritos de furor, E desses, que expiravam, Som cavo de estertor, E as pragas do vencido, Do vencedor o insulto, E a pallidez do morto, Nú, sanguento, insepulto, Eram um cá'os de dores Em convulsão horrivel, Sonho de accesa febre, Scena tremenda e incrivel! E suspirei: nos olhos Me borbulhava o pranto, E a dor, que trasbordava, Pediu-me infernal canto. Oh, sim! maldisse o instante, Em que buscar viera, Por entre as tempestades, A terra em que nascera. Que é, em fraternas lides, Um canto de victoria? É delirar maldicto; É triumphar sem gloria. Maldicto era o triumpho, Que rodeiava o horror, Que me tingia tudo De sanguinosa côr! Então olhei saudoso Para o sonoro mar; Da nau do vagabundo Meigo me riu o arfar. De desespero um brado Soltou, ímpio, o poeta. Perdão! Chegára o misero Da desventura á meta. VI. Terra infame!--de servos aprisco, Mais chamar-me teu filho não sei: Desterrado, mendigo serei; De outra terra meus ossos serão! Mas a escravo, que pugna por ferros, Que herdará deshonrada memoria, Renegando da terra sem gloria, Nunca mais darei nome de irmão! Onde é livre tem patria o poeta, Que ao exilio condemna ímpia sorte. Sobre os plainos gelados do norte Luz do sol tambem desce do céu; Tambem lá se erguem montes, e o prado De boninas, em maio, se veste; Tambem lá se meneia o cypreste Sobre o corpo que á terra desceu. Que me importa o loureiro da encosta? Que me importa da fonte o ruido? Que me importa o saudoso gemido Da rollinha sedenta de amor? Que me importam outeiros cubertos Da verdura da vinha, no estio? Que me importa o remanso do rio, E, na calma, da selva o frescor? Que me importa o perfume dos campos, Quando passa da tarde a bafagem, Que se embebe, na sua passagem, Na fragrancia da rosa e aleli­? Que me importa? Pergunta insensata! É meu berço: a minha alma está lá... Que me importa... Esta bôca o dirá?! Minha patria, estou louco... menti! Eia, servos! O ferro se cruze. Assobie o pelouro nos ares; Estes campos convertam-se em mares, Onde o sangue se possa beber! Larga a valla! que, após a peleja, Todos nós dormiremos unidos! Lá vingados, e do odio esquecidos, Paz faremos... depois do morrer! VII. Assim, entre amarguras, Me delirava a mente; E o sol ia fugindo No termo do occidente. E os fortes lá jaziam Co'a face ao céu voltada; Sorria a noite aos mortos, Passando socegada. Porém, a noite delles Não era a que passava! Na eternidade a sua Corria, e não findava. Contrarios ainda ha pouco, Irmãos, emfim, lá eram! O seu thesouro de odio, Mordendo o pó, cederam. No limiar da morte Assim tudo fenece: Inimizades calam, E até o amor esquece! Meus dias rodeiados Foram de amor outr'ora; E nem um vão suspiro Terei, morrendo, agora, Nem o apertar da dextra Ao desprender da vida, Nem lagryma fraterna Sobre a feral jazida! Meu derradeiro alento Não colherão os meus. Por minha alma atterrada Quem pedirá a Deus? Ninguem! Aos pés o servo Meus restos calcará, E o riso ímpio, odiento, Mofando soltará. O sino luctuoso Não lembrará meu fim: Preces, que o morto afagam, Não se erguerão por mim! O filho dos desertos, O lobo carniceiro, Ha-de escutar alegre Meu grito derradeiro! Oh morte, o somno teu Só é somno mais largo; Porém, na juventude, É o dormi-lo amargo; Quando na vida nasce Essa mimosa flor. Como a cecem suave, Delicioso amor; Quando a mente accendida Crê na ventura e gloria; Quando o presente é tudo, E inda nada a memoria! Deixar a cara vida, Então, é doloroso, E o moribundo á terra Lança um olhar saudoso. A taça da existencia No fundo fézes tem; Mas os primeiros tragos Doces, bem doces, vem. E eu morrerei agora Sem abraçar os meus, Sem jubiloso um hymno Alevantar aos céus? Morrer, morrer, que importa? Final suspiro, ouvi-lo Ha-de a patria. Na terra Irei dormir tranquillo. Dormir? Só dorme o frio Cadaver, que não sente; A alma voa a abrigar-se Aos pés do Omnipotente. Reclinar-me-hei á sombra Do amplo perdão do Eterno; Que não conheço o crime, E erros não pune o inferno. E vós, entes queridos, Entes que tanto amei, Dando-vos liberdade Contente acabarei. Por mim livres chorar Vós podereis um dia, E ás cinzas do soldado Erguer memoria pia. A VICTORIA E A PIEDADE. I. Eu nunca fiz soar meus pobres cantos Nos paços dos senhores! Eu jámais consagrei hymno mentido Da terra aos oppressores. Mal haja o trovador que vae sentar-se Á porta do abastado, O qual com ouro paga a propria infamia, Louvor que foi comprado. Deshonra áquelle, que ao poder e ao ouro Prostitue o alaúde! Deus á poesia deu por alvo a patria, Deu a gloria e a virtude. Feliz ou infeliz, triste ou contente, Livre o poeta seja, E em hymno isento a inspiração transforme, Que na sua alma adeja. II. No despontar da vida, do infortunio Murchou-me o sopro ardente; E saudades curti em longes terras Da minha terra ausente. O solo do desterro, ai, quanto ingrato É para o foragido, Ennevoado o céu, arido o prado, O rio adormecido! Eu lá chorei, na idade da esperaça, Da patria a dura sorte: Esta alma encaneceu; e antes de tempo Ergueu hymnos á morte: Que a morte é para o misero risonha, Sancta da campa a imagem... Alli é que se afferra o porto amigo, Depois de ardua viagem. III. Mas quando o pranto me sulcava as faces, Pranto de atroz saudade, Deus escutou do vagabundo as preces, Delle teve piedade. «Armas!--bradaram no desterro os fortes, Como bradar de um só: Erguem-se, voam, cingem ferros; cinge-os Indissoluvel nó. Com seus irmãos as sacrosanctas juras, Beijando a cruz da espada, Repetiu o poeta:--Eia, partamos! Ao mar!»--Partia a armada. Pelas ondas azues correndo afoutos, As praias demandámos Do velho Portugal, e o balsão negro Da guerra despregámos; De guerra em que era infamia o ser piedoso, Nobreza o ser cruel, E em que o golpe mortal descia involto Das maldicções no fel. IV. Fanatismo brutal, odio fraterno, De fogo céus toldados, A fome, a peste, o mar avaro, as turbas De innumeros soldados; Comprar com sangue o pão, com sangue o lume Em regelado inverno; Eis contra o que, por dias de amargura, Nos fez luctar o inferno. Mas de fera victoria, emfim, colhemos A c'roa de cypreste; Que a fronte ao vencedor em í­mpia lucta Só essa c'roa veste. Como ella torvo, soltarei um hymno Depois do triumphar. Oh meus irmãos, da embriaguez da guerra Bem triste é o acordar! Nessa alta encosta sobranceira aos campos, De sangue ainda impuros, Onde o canhão troou por mais de um anno Contra invenciveis muros, Eu, tomando o alaúde, irei sentar-me; Pedir inspirações Á noite queda, ao genio que me ensina Segredos das canções. V. Reina em silencio a lua: o mar não brame, Os ventos nem bafejam; Rasas co' a terra, só nocturnas aves Em gyros mil adejam. No plaino pardacento, juncto ao marco Tombado, ou rota sebe, Aqui e alli, de ossadas insepultas O alvejar se percebe. É que essa veiga, tão festiva outr'ora, Da paz tranquillo imperio, Onde ao carvalho a vide se enlaçava, É hoje um cemiterio! VI. Eis de esforçados mil inglorios restos, Depois de brava lida; De longo combater atroz memento Em guerra fraticida. Nenhum padrão recordará aos homens Seus feitos derradeiros: Nem dirá:--aqui dormem portugueses; Aqui dormem guerreiros.» Nenhum padrão, que peça aos que passarem Resa fervente e pia, E juncto ao qual entes queridos vertam O pranto da agonia! Nem hasteada cruz, consolo ao morto; Nem lagea que os proteja Do ardente sol, da noite humida e fria, Que passa e que roreja! Não! Lá hão-de jazer no esquecimento De deshonrada morte, Emquanto, pelo tempo em pó desfeitos, Não os dispersa o norte. VII. Quem, pois, consolará gementes sombras, Que ondeiam juncto a mim? Quem seu perdão da Patria implorar ousa, Seu perdão de Elohim? Eu, o christão, o trovador do exilio, Contrario em guerra crua, Mas que não sei verter o fel da affronta Sobre uma ossada nua. VIII. Lavradores, zagaes, descem dos montes, Deixando terras, gados, Para as armas vestir, dos céus em nome, Por phariseus chamados. De um Deus de paz hypocritas ministros Os tristes enganaram: Foram elles, não nós, que estas cáveiras Aos vermes consagraram. Maldicto sejas tu, monstro do inferno, Que do Senhor no templo, Juncto da eterna cruz, ao crime incitas, Dás do furor o exemplo! Sobre as cinzas da Patria, ímpio, pensaste Folgar de nosso mal, E, entre as ruinas de cidade illustre, Soltar riso infernal. Tu, no teu coração insipiente, Disseste:--Deus não há!» Elle existe, malvado; e nós vencemos: Treme; que tempo é já! IX. Mas esses, cujos ossos espalhados No campo da peleja Jazem, exoram a piedade nossa; Piedoso o livre seja! Eu pedirei a paz dos inimigos, Mortos como valentes, Ao Deus nosso juiz, ao que distingue Culpados de innocentes. X. Perdoou, expirando, o Filho do Homem Aos seus perseguidores: Perdão, tambem, ás cinzas de infelizes; Perdão, oh vencedores! Não insulteis o morto. Elle ha comprado Bem caro o esquecimento, Vencido adormecendo em morte ignobil, Sem dobre ou monumento. É tempo d'olvidar odios profundos De guerra deploravel. O forte é generoso, e deixa ao fraco O ser inexoravel. Oh, perdão para aquelle, a quem a morte No seio agasalhou! Elle é mudo: pedi-lo já não póde; O dá-lo a nós deixou. Além do limiar da eternidade O mundo não tem réus, O que legou á terra o pó da terra Julgá-lo cabe a Deus. E vós, meus companheiros, que não vistes Nossa triste victoria, Não precisaes do trovador o canto; Vosso nome é da historia. XI. Assim, foi do infeliz sobre a jazida Que um hymno murmurei, E, do vencido consolando a sombra, Por vós eu perdoei. A CRUZ MUTILADA. Amo-te, oh cruz, no vertice firmada De esplendidas igrejas; Amo-te quando á noite, sobre a campa, Juncto ao cypreste alvejas; Amo-te sobre o altar, onde, entre incensos, As preces te rodeiam; Amo-te quando em prestito festivo As multidões te hasteiam; Amo-te erguida no cruzeiro antigo, No adro do presbyterio, Ou quando o morto, impressa no ataúde, Guias ao cemiterio; Amo-te, oh cruz, até, quando no valle Negrejas triste e só, Núncia do crime, a que deveu a terra Do assassinado o pó: Porém quando mais te amo, Oh cruz do meu Senhor, É se te encontro á tarde, Antes de o sol se pôr, Na clareira da serra, Que o arvoredo assombra, Quando á luz que fenece Se estira a tua sombra, E o dia ultimos raios Com o luar mistura, E o seu hymno da tarde O pinheiral murmura. ----- E eu te encontrei, n'um alcantil agreste, Meia-quebrada, oh cruz. Sósinha estavas Ao pôr do sol, e ao elevar-se a lua Detraz do calvo cerro. A soledade Não te pôde valer contra a mão ímpia, Que te feriu sem dó. As linhas puras De teu perfil, falhadas, tortuosas, Oh mutilada cruz, falam de um crime Sacrilego, brutal e ao í­mpio inutil! A tua sombra estampa-se no solo, Como a sombra de antigo monumento, Que o tempo quasi derrocou, truncada. No pedestal musgoso, em que te ergueram Nossos avós, eu me assentei. Ao longe, Do presbyterio rustico mandava O sino os simples sons pelas quebradas Da cordilheira, annunciando o instante Da _Ave-Maria_; da oração singela, Mas solemne, mas sancta, em que a voz do homem Se mistura nos canticos saudosos, Que a natureza envia ao céu no extremo Raio de sol, passando fugitivo Na tangente deste orbe, ao qual trouxeste Liberdade e progresso, e que te paga Com a injuria e o desprezo, e que te inveja Até, na solidão, o esquecimento! ----- Foi da sciencia incredula o sectario, Acaso, oh cruz da serra, o que na face Affrontas te gravou com mão profusa? Não! Foi o homem do povo, a quem consolo Na miseria e na dôr constante has sido Por bem dezoito seculos: foi esse Por cujo amor surgias qual remorso Nos sonhos do abastado ou do tyranno, Bradando--_esmola!_ a um--_piedade!_ ao outro. Oh cruz, se desde o Golgotha não fôras Symbolo eterno de uma crença eterna; Se a n­ossa fé em ti fosse mentida, Dos oppressos de outr'ora os livres netos Por sua ingratidão dignos de opprobrio, Se não te amassem, ainda assim seriam. Mas és núncia do céu, e elles te insultam, Esquecidos das lágrymas perennes Por trinta gerações, que guarda a campa, Vertidas a teus pés nos dias torvos Do seu viver d'escravidão! Deslembram-se De que, se a paz domestica, a pureza Do leito conjugal bruta violencia Não vae contaminar, se a filha virgem Do humilde camponês não é ludibrio Do opulento, do nobre, oh cruz, t'o devem; Que por ti o cultor de ferteis campos Colhe tranquillo da fadiga o premio, Sem que a voz de um senhor, qual d'antes, dura Lhe diga:--é meu, e és meu! A mim deleites, Liberdade, abundancia: a ti, escravo, O trabalho, a miseria unido á terra, Que o suor dessa fronte fertiliza, Emquanto, em dia de furor ou tedio, Não me apraz com teus restos fecunda-la.» Quando calada a humanidade ouvia Este atroz blasphemar, tu te elevaste Lá do oriente, oh cruz, involta em gloria, E bradaste, tremenda, ao forte, ao rico:-- Mentira!» E o servo alevantou os olhos, Onde a esperança scintillava, a medo, E viu as faces do senhor retinctas Em pallidez mortal, e errar-lhe a vista Trépida, vaga. A cruz no céu do oriente Da liberdade annunciára a vinda. ----- Cansado, o ancião guerreiro, que a existencia Desgastou no volver de cem combates, Ao ver que, emfim, o seu paiz querido Já não ousam calcar os pés d'estranhos, Vem assentar-se á luz meiga da tarde, Na tarde do viver, juncto do teixo Da montanha natal. Na fronte calva, Que o sol tostou e que enrugaram annos, Ha um como fulgor sereno e sancto. Da aldeia semideus, devem-lhe todos O tecto, a liberdade, e a honra e vida. Ao perpassar do veterano os velhos A mão que os protegeu apertam gratos; Com amorosa timidez os moços Saúdam-no qual pae. Nas largas noites Da gelada estação, sobre a lareira Nunca lhe falta o cepo incendiado; Sobre a mesa frugal nunca, no estio, Refrigerante pomo. Assim do velho Pelejador os derradeiros dias Derivam para o tumulo suaves, Rodeiados de affecto, e quando á terra A mão do tempo gastador o guia, Sobre a lousa a saudade ainda lhe esparze Flores, lagrymas, bençãos, que consolem Do defensor do fraco as cinzas frias. Pobre cruz! Pelejaste mil combates, Os gigantes combates dos tyrannos, E venceste. No solo libertado, Que pediste? Um retiro no deserto, Um pi­ncaro grani­tico, açoutado Pelas azas do vento e ennegrecido Por chuvas e por soes. Para ameigar-te Este ar humido e gelido a segure Não foi ferir do bosque o rei. Do estio No ardor canicular nunca disseste:-- Dáe-me, sequer, do bravo medronheiro O despresado fruct­o! O teu vestido Era o musgo, que tece a mão do inverno, E Deus creou para trajar as rochas. Filha do céu, o céu era o teu tecto, Teu escabelo o dorso da montanha. Tempo houve em que esses braços te adórnava C'roa viçosa de gentis boninas, E o pedestal te rodeiavam preces. Ficaste em breve só, e a voz humana Fez, pouco a pouco, juncto a ti silencio. Que te importava? As arvores da encosta Curvavam-se a saudar-te, e revoando As aves vinham circumdar-te de hymnos. Affagava-te o raio derradeiro, Frouxo do sol ao mergulhar nos mares, E esperavas o tumulo. O teu tumulo Devera ser o seio destas serras, Quando, em génesis novo, á voz do Eterno, Do orbe ao nucleo fervente, que as gerára, Ellas nas fauces dos volcões descessem. Então para essa campa flores, bençãos, Ou de saudade lagrymas vertidas, Qual do velho soldado a lousa pede, Não pedíras á ingrata raça humana, Ao pé de ti no seu sudario involta. ----- Este longo esperar do dia extremo, No esquecimento do ermo abandonada, Foi duro de soffrer aos teus remidos, Oh redemptora cruz. Eras, acaso, Como um remorso e accusação perenne No teu rochedo alpestre, onde te viam Pousar tristonha e só? Acaso, á noite, Quando a procella no pinhal rugia, Criam ouvir-te a voz accusadora Sobrelevar á voz da tempestade? Que lhes dizias tu? De Deus falavas, E do seu Christo, do divino martyr, Que a ti, supplicio e affronta, a ti maldicta Ergueu, purificou, clamando ao servo, No seu trance final:--Ergue-te, escravo! És livre, como é pura a cruz da infamia. Ella vil e tu vil, sanctos, sublimes Sereis ante meu Pae. Ergue-te, escravo! Abraça tua irman: segue-a sem susto No caminho dos seculos. Da terra Pertence-lhe o porvir, e o seu triumpho Trará da tua liberdade o dia.» Eis porque teus irmãos te arrojam pedras, Ao perpassar, oh cruz! Pensam ouvir-te Nos rumores da noite, a antiga historia Recontando do Golgotha, lembrando-lhes Que só ao Christo a liberdade devem, E que impio o povo ser é ser infame. Mutilado por elle, a pouco e pouco, Tu em fragmentos tombarás do cerro, Symbolo sacrosancto. Hão-de os humanos Aos pés pisar-te; e esquecerás no mundo. Da gratidão a divida não paga Ficará, oh tremenda accusadora, Sem que as faces lhes tinja a côr do pejo; Sem que o remorso os corações lhes rasgue. Do Christo o nome passará na terra. ----- Não! Quando, em pó desfeita, a cruz divina Deixar de ser perenne testemunho Da avita crença, os montes, a espessura, O mar, a lua, o murmurar da fonte, Da natureza as vagas harmonias, Da cruz em nome, falarão do Verbo. Della no pedestal, então deserto, Do deserto no seio, ainda o poeta Virá, talvez, ao pôr do sol sentar-se; E a voz da selva lhe dirá que é sancto Este rochedo nú, e um hymno pio A solidão lhe ensinará e a noite. Do cantico futuro uma toada Não sentes vir, oh cruz, de além dos tempos Da brisa do crepusculo nas azas? É o porvir que te proclama eterna; É a voz do poeta a saúdar-te. ----- Montanha do oriente, Que, sobre as nuvens elevando o cume, Divisas logo o sol, surgindo a aurora, E que, lá no occidente, Ultima vês seu radioso lume, Em ti minha alma a eterna cruz adora. Rochedo, que descanças No promontorio nú e solitario, Como atalaia que o oceano explora, Alheio ás mil mudanças Que o mundo agitam turbulento e vario, Em ti minha alma a eterna cruz adora. Sobros, robles frondentes, Cuja sombra procura o viandante, Fugindo ao sol a prumo que o devora, Nesses dias ardentes Em que o Leão nos céus passa radiante, Em ti minha alma a eterna cruz adora. Oh mato variado, De rosmaninho e murta entretecido, De cujas tenues flores se evapora Aroma delicado, Quando és por leve aragem sacudido, Em ti minha alma a eterna cruz adora. Oh mar, que vais quebrando Rolo após rolo pela praia fria, E fremes som de paz consoladora, Dormente murmurando Na caverna maritima sombria, Em ti minha alma a eterna cruz adora. Oh lua silenciosa, Que em perpetuo volver, seguindo a terra, Esparzes tua luz ameigadora Pela serra formosa, E pelos lagos que em seu seio encerra, Em ti minha alma a eterna cruz adora. Debalde o servo ingrato No pó te derribou E os restos te insultou, Oh veneranda cruz: Embora eu te não veja Neste ermo pedestal; És sancta, és immortal; Tu és a minha luz! Nas almas generosas Gravou-te a mão de Deus, E, á noite, fez nos céus. Teu vulto scintillar. Os raios das estrellas Cruzam o seu fulgor; Nas horas do furor As vagas cruza o mar. Os ramos enlaçados Do roble, choupo e til, Cruzando em modos mil, Se vão entretecer. Ferido, abre o guerreiro Os braços, sólta um ai, Pára, vacilla, e cáe Para não mais se erguer. Cruzado aperta ao seio A mãe o filho seu, Que busca, mal nasceu, Fontes da vida e amor. Surges, symbolo eterno No céu, na terra e mar, Do forte no expirar, E do viver no alvor! LIVRO SEGUNDO POESIAS VARIAS. A PERDA D'ARZILLA. (1549). Era noite: do céu limpo e sereno Milhões d'estrellas trémulas pendiam, Quaes as nocturnas lampadas d'um templo, E as ribas ermas sussurrar se ouviam. D'alterosa galé o negro vulto Corta ao largo, bem largo, o mar do Algarve, E lá nas serras d'Africa fronteiras Branqueja a espaços o albornoz do alarve. Como tocheiros com brandões accesos, De um féretro ao redor, Cuja vermelha luz o horror da morte Só faz sentir melhor, Taes as nocturnas almenáras fulgem Nas torres d'atalaia, Pelos outeiros, que circumdam muros De povoação na praia. ----- Arzilla, a guerreira. Lá jaz na afflicção, Que a rendeu aos mouros Elrei dom João. Tomar-te-ha Deus contas, Rei fraco e prasmado, De tão grande vilta, De teu grão peccado. Maldiz-te nos mares Valente fronteiro, Que na sé de Ceuta Se armou cavalleiro; Que dez aduares Em Tanger queimou, E em muros d'Alcacer Dez elches matou: Que era hoje d'Arzilla Temido adaí­l, E a quem tu mandaste Fugir como vil. ----- Vêde-o lá na gavia Da negra galé, De braços cruzados, Immovel, em pé; E a náu que arfa e voa Na fremente via, Ferindo na esteira Fugaz ardentia; E d'Africa as praias, Que a ré vão fugindo, E as vagas, que rolam, Distantes mugindo. Em roda o silencio: No céu noite escura: E o peito do triste Confrange a amargura. ----- Do veterano as faces O salso pranto réga: Nos africanos montes Saudoso os olhos préga. Sente no seio as ancias D'incomportavel dor, E ás vezes range os dentes Em trances de furor. Um cantico á su' alma A indignação inspira: Vai sussurra-lo ao longe Aura que branda espira. O CANTO DO ADAÍL. Quando, ao longe, nos campos d'Arzilla, Alvejava do mouro o albornoz, E corria, e corria veloz O ginete de Bellamarim; Quando o esculca, saído da villa Da manhã ao primeiro fulgor, Não podendo a atalaia transpôr, Vinha ás portas bater de Çafim; Quando em Tanger, a forte, se ouvia De armaduras continuo tinir, E nos ares se via luzir O montante, a acha d'armas, e o criz; Quando em Ceuta vencida se erguia Sobre o alcacer pendão português, Contra o qual na mesquita de Fês A gazúa prégava o caciz: Quando Alcacer-Ceguer, a viçosa, Que em vergeis se reclina gentil, Pela noite fragrante d'abril D'entre os robles sorria ao luar; Porque, rico de presa formosa, Já voltou nobre alcaide christão, E inda ao longe de incendio o clarão Tinge o céu sobre um triste aduar: Nossa estrella era então esplendente; Nosso nome era um som do terror; Nossos paes conduzia o Senhor, Qual Judá d'entre a sarça do Horeb. Portugal, oh leão do occidente, Tu rugias á beira do mar, E o teu grito cá vinha troar Temeroso no ardente Moghreb: Era o tempo dos crentes e ousados: Era o tempo da gloria da cruz! Ora contam-se as páreas d'Ormuz; Tem só nome Cochim, Calecut! E esses muros d'Arzilla, regados Com o sangue de martyres mil, Ermos hoje tu deixas, rei vil, Porque o Estreito passou Rais Dragut! Oh valentes da India, do oceano, Roncadores de féros no mar, Cuja espada, porém, faiscar Não sabe inda do mouro no arnez, Mostrar vinde o valor sobre-humano Neste clima de sol mirrador! Aqui fama se compra com dor: Facil gloria esquecei uma vez. As galés do arrais mouro são fortes; Sua chusma berbers do Takrur; Como o vosso rei indio, Badur, Não ha-de elle acabar á traição. Uma festa de sangue e de mortes Do occidente nas vagas tereis; Elmos rijos aqui achareis, Não o craneo d'inerme sultão! Mercadores!--deixae vosso cravo, A canella, a pimenta, o marfi; Os vestidos de seda despí; Ponde, em vez de collar, um gorjal. Vella e remo soltae no mar bravo; Vinde juncto de nós combater; Nós que Arzilla deixámos perder, Porque elrei... é um rei desleal. Para nós os castellos d'avante; Para nós a arrombada e bailéu; Para nós pelejar ante o céu, Que nos campos d'Arzilla nos viu: Para nós o machado e montante; Para vós a bombarda e arcabuz; Para nós, ao cahir, ver a luz; Ver a mão que estes peitos feríu; Para nós o tombar derradeiro Sobre o ferreo esporão das galés; O pelouro, de sob o convés, Cá de longe enviar... para vós! O sudario do morto fronteiro Alva escuma da proa será; E em seus labios--_Arzilla!_--ouvirá Quem ouvir sua ultima voz. ----- E elles, os fortes d'Asia, não vieram Do cavalleiro d'Africa ao chamar; E a náu d'elrei ao infamado Tejo Veio aportar: E o adaíl depôs as armas rotas, Não no espaldar; Que nunca o bom fronteiro viram mouros Costas voltar. ----- E tomando o bordão de peregrino, Foi-se á Batalha, que é mosteiro pobre De dominicos, Frades mui sanctos, que os judeus queimavam, Porque eram ricos. No meio desses tumulos, que encerram Os despojos mortaes dos reis que foram, Féretro antigo O adaí­l procurou. De um rei soldado Era o jazigo. Quando o viu, ajoelhou nos degraus delle, E palavras, que as lagrymas cortavam, Lhe dirigiu: Maldicção para alguem pedia ao morto; Mas nada ouviu! Então, livido o rosto, os labios brancos, A fronte lhe pendeu sobre o ataúde Do rei extinto. Expirára ao dizer--_perdeu-se Arzilla!_-- A Affonso Quinto. A ROSA. Pura em sua innocencia. Entre a sarça espinhosa, Purpurea esplende, inda botão intacto, Na madrugada a rosa. É da campina a virgem A pudibunda flor; Em seus efluvios matutina brisa Bebe o primeiro amor. O sol inunda as veigas: Calou-se o rouxinol; E a flor, ebria de gloria, á luz fervente, Desabrochou-a o sol. O sôpro matutino No seio seu pousára: Prostituida á luz, fugiu-lhe a brisa, Que a linda rosa amára. Bella se ostenta um dia; Saúdam-na as pastoras; Dão-lhe mil beijos, gorgeando, as aves; Voam do goso as horas. Lá vem chegando a noite, E ella empallideceu: Incessante prazer mirrou-lhe a seiva; A rosa emmurcheceu. Desce o tufão dos montes, Os matos sacudindo; Desfallecida a flor desprende as folhas, Que o vento vai sumindo. Onde estará a rosa, Do prado a bella filha? O tufão, que espalhou seus frageis restos, Passou: não deixou trilha. Da sarça a flor virente Nasceu, gosou, e é morta: E a qual desses amantes de um momento Seu fado escuro importa? Nenhum, nenhum por ella Gemeu saudoso á tarde; Não ha quem juncte as derramadas folhas, Quem amoroso as guarde. Só da manhan o sôpro, Passando no outro dia, Da rosa, que adorou, quando a innocencia Em seu botão sorria, Juncto do tronco humilde O curso demorando, Veio depositar perdão, saudade, Queixoso sussurrando. De quantas és a imagem, Oh desgraçada flor! Quantos perdões sobre um sepulchro abjecto Tem murmurado o amor! O MENDIGO. I. O sol passa nos céus:--sob o carvalho, Por cujos troncos se pendura a vide, Cego ancião, Mirrada dextra supplice estendendo, Ao passageiro, que o despreza, implora Do opprobrio o pão. Ninguem o escuta, o dia foge, e a noite Involve a luz no manto impenetravel: E elle chorou: E em seus andrajos para choça alpestre, Sem se queixar de Deus, tardios passos Encaminhou: Mas antes que chegasse ao pobre alvergue, Do presbyterio o sino harmonioso Soar ouvia, Que, despedindo em roda os sons pausados, Convidava os fiéis a erguer as preces Da Ave-Maria. Á cruz do adro relvoso as mãos mirradas O velho ergueu, e ao céu inuteis olhos E uma oração, A oração do infeliz, que Deus só ouve Quando o desdenha o mundo e ludibria Sua afflicção. Para o velho a existencia é solitaria, Bem como a fonte que esgotou o estio. Onde os pastores Vinham a saciar o manso gado; Onde contavam penas e prazeres Dos seus amores. A alampada na igreja triste e muda Bruxuleava seu clarão, pendendo Ante o altar-mór: Como o templo, o porvir era do velho Cheio de sustos; muda como o templo Era a sua dor. Resou, resou, e os olhos se enxugaram: O orar fervente as lagrymas enxuga, Qual prado o léste. Deus o inspirou; sperança é filha sua, Doce esperança, que os mortaes só deixa Sob o cypreste. Voltou á choça, e a macilenta fome, Sem gemer, supportou sobre o seu leito, Que é quasi a terra; E, confiado em Deus, entre as angustias Do mal, menos crueis que as do remorso, Os olhos cerra. II. Restruge o mar cavado; o vento zune Pelos mastros da náu; colhido o panno Das vergas pende; Brinco das vagas, o baixel arfando Fluctua incerto, e dos bulcões guiado Os mares fende. Correndo árvore secca avulta ao longe, Como alma em pena vagueiando á noite Em seu fadario; E pelas trévas branquejando a escuma, Que da prôa espadana, imita as prégas D'alvo sudario. Envolto no gibão amplo e felpudo, Rude piloto ao leme trabalhoso Véla encostado; Que, se não mentem calculos, o porto Proximo está, dos lassos navegantes Tão suspirado. III. O vento vai quebrando, e já rareiam Grossos montões de acastelladas nuvens: Diurno alvor Traça no céu d'oriente um risco immenso, Que reflecte no mar, que veste, ao largo, Cerulea côr. Surge o sol radioso e inunda as vagas, Que se acalmam, nivelam-se: o horisonte Mais amplo é já: Cava aragem ligeira a larga vela, E do cesto o gageiro clama:--terra! Ei-la acolá!» Como deslisa o goso nos semblantes Por entre as rugas do terror passado! Como é formosa Essa pallida praia, e esses rochedos, E lá no extremo os pincaros da serra Erma e saudosa! De indicas mérces, de ouro carregada Aproa á terra, com celeuma alegre, A náu pujante; E pelo verde mar do porto amigo Abrindo a esteira, restitue á patria O navegante. IV. É meia noite:--os gallos pela aldeia Dizem que um dia mais desceu ao nada E que outro vem, Para dar luz a dores e alegrias E depois nos abysmos do passado Cahir tambem. E o mendigo da aldeia, o velho cego, Sobre o duro grabato, em choça humilde, Achou a paz. Em sonhos via um filho: a longes terras A miseria o levou: mudada sorte Feliz o traz. Quantas vezes presága a mente do homem Véla como um propheta, em quanto o somno Seus membros prende; E como, em trevas de amargosos dias, No porvir uma luz, prevista em sonhos, Grata se accende! V. Nos gonzos ferrugentos range a porta Do tugurio do pobre adormecido, E descuidado; Que do mendigo o umbral patente é sempre, Nem carece de estar, como o do rico, Aferrolhado. O bom do velho ao sobresalto acorda, E as lagrymas de alguem banham-lhe a face, E o pranto é mudo; Mas breve um grito e o soluçar e os beijos E o sonho que passou e a voz do sangue Lhe dizem tudo. Não mais sob o carvalho ao velho honrado Esmoladora mão o peregrino Estenderá: Meigos lhe sorrirão extremos dias, E as suas cinzas filial gemido Consolará. O BOM PESCADOR. O sol rubro, em leito De nuvens descendo, Tremente, crescendo, No mar se ia a pôr. Sentado no barco, Que a onda embalava, Scismando cantava O bom pescador. A paz da sua alma No olhar exprimia, E a voz traduzia Scismar do cantor: E o canto sereno Levava-lho a brisa, Que á tarde deslisa Com meigo frescor. ----- «Acabem de todo No prado as boninas, E em vastas campinas Não surja uma flor; Dispa-se o ameeiro Da folha viçosa, E o Tejo em lodosa Mude esta azul côr; O vento gelado Só reine e as procellas; Das vivas estrellas Se apague o fulgor: O sol radioso Em nuvens se envolva, E á terra não volva Seu grato calor; Que do horrido inverno, Comtigo, oh serrana, Na minha choupana Rirei do furor! Não pensa se as veigas Se vestem de relva, Se está nua a selva Do lindo verdor; Nem ouve os rugidos Do vento inquieto Quem, sob o seu tecto, Se abriga no amor. Nasci, eduquei-me N'um mundo mais nobre, Agora sou pobre, Sou um pescador. Ás bordas do abysmo Chegou-me a ventura; Medí delle a altura, Descí sem pavor. Co'a dita se enlaça Humilde existencia, Se do homem a essencia O orgulho não fôr. Emquanto de paços, De ferteis devesas, Emfim, de riquezas Eu pude dispor, O somno tranquillo A mim não descia, Que o ferro temia Do vil salteador. Na minha alma, immersa Em noite e amargura, Pesava bem dura A mão do Senhor! Agora misturo Do rude oceano Nas vagas, ufano, O honrado suor; Agora sereno Vem dia após dia, E a noite sombria Não cerca o temor; Porque entre teus braços, Esposa querida, Me esqueço da lida Do mar bramidor. Da vida no sonho Que importa vil ouro, Se tu és thesouro Perpetuo de amor; Se ainda em teus labios, Oh cara consorte, Virá doce a morte Minha alma depor? Nas ribas fragosas, Que os ventos castigam, E as ondas fustigam Com longo fragor, Ao pé da ermidinha, Nesse adro tão só, Envoltos no pó, Sem goso, sem dôr, Tranquillos, obscuros, Privados de luz, Á sombra da cruz Do Deus Redemptor, De ti só lembrados, Em triste oração, Os restos serão Do teu pescador. TRISTEZAS DO DESTERRO. (FRAGMENTOS). Erit tristis et moeretis. Isaias. I. Terra cara da patria, eu te hei saudado D'entre as dores do exilio. Pelas ondas Do irrequieto mar mandei-te o choro Da saudade longi­nqua. Sobre as aguas, Que de Albion nas ribas escabrosas Vem marulhando branqueiar de escuma A negra rocha em promontorio erguido, D'onde o insulano audaz contempla o immenso Imperio seu, o abysmo, aos olhos turvos Não sentida uma lagryma fugiu-me, E devorou-a o mar. A vaga incerta, Que róla livre, peregrina eterna, Mais que os homens piedosa, irá depo-la, Minha terra natal, nas praias tuas. Essa lagryma acceita: é quanto póde Do desterro enviar-te um pobre filho. No silencio da noite, em sólo estranho, Patria minha gentil, em ti pensando, Para os astros de Deus olhei: fulgiam, Neste céu achatado, tristemente Com luz mortiça e pallida, não ricos De inspiração e amor, quaes lá refulgem. Pela sombra ameni­ssima, que chama Do affastado oriente o sol no occaso, No teu profundo céu has-de tu vê-los: Do desterrado filho os votos levam: Acceita-os delles, desgraçada patria! Já se acercava o tenebroso inverno; Vinha fugindo a rapida andorinha, Para um abrigo te ir pedir, oh patria, Em cujos valles nunca alveja a neve: Juncto de mim passou: em suas azas Tambem mandei o filial suspiro. Pelo dorso das vagas rugidoras Eu corri de além mar para estas plagas. Pelas antenas, em nublada noite, Ouvi o vento sul que assobiava, E de ouvi-lo folguei. Da patria vinha: Seu rijo sopro refrescou-me as veias. ..................................... II. Que ferreo coração esquece a terra, Que lhe escutou os infantís vagidos, E lhe bebeu as lagrymas primeiras, Preludio a tantas que no curto espaço Da vida ha-de verter? Quem, nunca, esquece O tecto paternal, embora adeje Ao redor delle o medo de tyrannos? Quem não deseja misturar, na morte, Com a gleba nativa o pó de extincto, E murmurar seu ultimo suspiro Alli, onde primeiro a luz diurna O allumiou na rapida passagem Entre o nada e o morrer, chamada a vida? Ai, que és tu existencia?! Um pesadelo, Um sonho mau, de que se acorda em trévas, Na valla dos cadaveres, em meio Da unica herança que pertence ao homem, Um sudario e o perpetuo esquecimento. A infancia é dormir placido: inquieta A mocidade é, já; mas entre dores Vem o amar e esperar, e a crença ardente, E affectos sanctos consolar quem dorme: Pouco a pouco, porém, sobre a jazida Do sonhador, do mal se assenta o anjo, E as imagens ridentes da ventura Co' as negras asas dispersando ao longe, Com duro pé o coração lhe opprime. Oh, no grabato meu bem cedo esse anjo Veio assentar-se, e o juvenil enleio De affectos puros em dormir sereno Affugentou de mim. Vagueei nos mares; Peregrinei na terra: em toda a parte O pé maldicto me esmagou o peito, E da patria a saudade, em sonho triste, Immovel, do viver me tece a noite. .................................. III. Solidão, solidão, quem diz que existes Onde não soa tumultuar das turbas Mentiu-te a essencia! Solidão e morte São uma idéa só; um pensamento Doloroso, indistincto. Oh, dae-me um valle, Onde haja o sol da minha patria, e a brisa Matutina e da tarde, e a vinha e o cedro, E a larangeira em flor, e as harmonias Que a natureza em vozes mil murmura Na terra em que eu nasci, embora falte No concerto immortal a voz humana, Que um ermo assim povoará meus dias. Mas aqui!... Que me importa o murmurio Dos que passam? Que vale essa campina Humida e verde, e no gelado pégo Raio do sol que se refrange turvo? É o desterro solidão e morte Para o poeta: embora estranha lingua Lhe revele o pensar, o intimo verbo Que em ar vibrado traduziram labios, Se o céu, o til, o arroio, o prado, a selva Não tem para lhe dar um pensamento De poesia e de amor? Não! Tudo é pallido, Tudo é morto e sósinho e silencioso Como um sepulchro e um cemiterio! E ainda Campas e adros inspiram, quando hi dormem Nossos irmãos e paes, porque tem lagrymas Que desopprimem a alma; tem memorias, Tem uma cruz, em tôrno á qual sussurram Preces, que alli vamos guardar, qual guarda O avaro em ferreo cofre os seus thesouros, Para os contar hoje, ámanhan e sempre Emquanto vivo for. E cá? O engenho Nem crê, nem sente bafejar-lhe um canto O crepusculo, a lua, a aragem fresca, O arrebol da manhan, ou céu sereno Por noite escura recamado de astros. Harpa meridional, porque, no extremo Da terra patria, o trovador errante Não deixaste partir só com seus males? Porque vieste, oh filha do occidente, Cruzando os mares embrenhar-te em nevoas De céu septentrional? Tu, pobresinha, Se, hoje, pendente em tronco de pinheiro, Sem haver mão que te vibrasse as cordas, Jazesses esquecida, ainda soáras Com incerta harmonia. Ás horas meigas Em que o dia se esvai, placida a brisa, Que espira do oceano e encrespa as vagas, Passaria por ti, e te agitára, E murmuráras som que respondera Trémulo, fraco, á flauta dos pastores Sussurrando suave entre as quebradas Da montanha selvosa. E aqui? És muda; És muda, que essas cordas carcomiu-t'as Este ar gelido e turvo, e qual o engenho De teu dono, no viço da existencia, Envelheceu, envelheceste, oh harpa! ................................... IV. Berço do meu nascer, sólo querido, Onde crescí e amei e fui ditoso, Onde a luz, onde o céu riem tão meigos, Meu pobre Portugal, hei-de chorar-te! Quando, aterrado ante o minaz aspecto Do anjo de Deus, tremente vagueiava Nosso primeiro pae em volta do Éden, Não lhe tecia tanto de amarguras A vida o duro affan com que trocava Pelo pão o suor co' a avara terra; Não era tanto o traspassar-lhe os membros O hiberno sopro do aquilão, queimar-lh'os O sol estivo, e o magoar, errante, Os pés feridos nos tojaes bravios Pelas sendas que abria em ermos valles, Como as saudades de passados tempos, Dessa infancia viril, em que surgira, Para viver e amar, do barro inerte; Não o pungia tanto o mal presente Como a recordação dos claros dias De innocencia e de paz que alli vivêra. A primavera eterna, as auras puras, O murmurar do arroio, o canto da ave, O frémito do bosque, o grato aroma E o vistoso matiz do ameno prado, O lago quedo a reflectir a lua, As montanhas tão ricas de mysterios, De ecchos, de sombras, de tristezas sanctas; Isso tudo, trazia-lh'o ante os olhos Vingadora a memoria inexoravel. Por entre a bruma da estação chuvosa Passavam-lhe de abril perfumes, galas; Sob estuoso sol vinha a saudade Dizer-lhe o sussurrar do manso arroio E o ramalhar dos platanos copados. Por tenebrosas noites de procella, Quando a torrente e o vendaval bramiam, Cria d'entre o fragor ouvir romperem Os matutinos canticos das aves, E ver no pégo reflectir-se a lua. Longe, assim, do seu berço, o criminoso Com dura punição remia o crime: Mas para o consolar na senda agreste, Em cujo termo o esperava a morte, O severo juiz deixára ao triste De uma esposa querida o seio casto, Onde aspirar o amor, olhos que o pranto Misturassem co'o seu. Perdendo a patria Perdia encantos só de natureza Formosa e juvenil. As harmonias Dos corações, os misticos affectos Não lhe truncou a espada flammejante Do cherubim ao repelli-lo do Éden: Para elle a patria renasceu no exilio. Eu, prófugo como elle, o Éden nativo Perdí; e perdí mais. Despedaçados Os affectos de irmão, de amante, e filho Restam-me na alma qual buída frecha, Que no peito ao cravar-se estala e deixa, Cahindo, o ferro na ferida occulto. ................................... V. Oh meu pae, oh meu pae, como a memoria Me reflecte, alta noite, a tua imagem Por entre um véu de involuntario pranto! Quão triste cogitar em mim desperta A imagem cara! Á noite, o bom do velho As bençams paternaes de Deus co' as bençams Sobre minha cabeça derramava, E ao começar o dia; e ellas desciam A um coração exempto de remorsos Onde encontravam filial piedade. E agora? É-lhe mysterio o meu destino. Qual o seu para mim o exilio occulta. Saciado, talvez, de dor e affrontas Dorme já sob a campa o somno eterno? Suas trémulas mãos não mais lançar-me Virão a bençam da piedade? O extremo Arranco seu não roçará meus labios? Ah, se um dia raiar para o proscripto O suspirado alvor do sol da patria, E se entre nós de um í­mpio as mãos ergueram A barreira da morte, ai delle, ai delle! E tambem, ai de mim!........................ ...................... Mas se 'inda um filho Houver digno de o ser, eu criminoso Terei quem me deplore; mãos que plantem No adro deserto onde jazer maldicto Um cypreste, uma flor, e quem deponha Aos pés do throno do juiz supremo Por mim, uma oração fervente e pia. ................................... VI. Arvores, flores, que eu amava tanto, Como viveis sem mim? Nas longas vias, Que vou seguindo peregrino e pobre, Sob este rude céu, entre o ruído Dos odiosos folgares do sicambro, Do monotono som da lingua sua, Pelas horas da tarde, em varzea extensa, E ás bordas do ribeiro que murmura, Diviso ás vezes, em distancia, um bosque De arvoredo onde bate o sol cadente, E vem-me á idéa o laranjal viçoso E os perfumes de abril que elle derrama, E as brancas flores e os dourados fructos, E illudo-me: essa varzea é do meu rio, Esse bosque o pomar da minha terra. Aproximo-me; o sonho de um momento Então se troca em acordar bem triste, Como surge e se esvai por entre as nevoas Vulto indeciso nos cantares d'Ossian. É uniforme e torva esta verdura, Acre o cheiro que exhala este arvoredo, Mal-assombrado o rio, humido o valle, Frio do sol o raio derradeiro Espirando neste ar denso e pesado, Que amplo aspirar recusa ao peito oppresso, E rouba aos olhos horisonte immenso. Ai, pobres flores que eu amava tanto, Por certo não viveis! O sol pendeu-vos Mirradas folhas para o chão fervente: Ninguem se condoeu: seccou-se a seiva, E morrestes. Morrestes sobre a terra, Que por cuidados meus vos educára. E eu? Talvez nestes campos estrangeiros Minha existencia o fogo da desdita Faça pender, murchar, ir-se mirrando Sem que torne a ver mais esses que amava, Sem que torne a abraçar a arvore annosa, Que se pendura sobre a limpha clara Lá no meu Portugal, onde a frescura Da ribeira perenne, da floresta Tem valor, porque o sol tem luz, tem vida! .......................................... VII Eu já vi n'uma ilha arremessada Ás solidões do mar, entre os dous mundos, Vestigios de volcões que hão sido extinctos Em não-sabidos seculos. Scintillam, Aqui e alli, nos areientos plainos, Onde espinhosas sarças só vegetam, Restos informes de metaes fundidos Pelas chammas do abysmo, entre affumadas Pedras que em parte amarellece o enxofre, Que a lava em rios dispersou, deixando Só delle a côr em lascas arrancadas Das entranhas dos montes penhascosos. A natureza é morta em todo o espaço Que ella correu, no dia em que, rugindo, Da cratéra fervente, á voz do Eterno, Desceu ao mar turbado, e elle, escumando, A engoliu e passou, qual sumiria De soçobrada nau celeuma inutil. Tal é meu coração. Bem como a lava É o desterro ao trovador. Meus olhos Hão-de esquecer as lagrymas; que a seiva Do vivido sentir vai-se queimando Ao suão mirrador de atroz saudade, Que excede tudo em dor; excede a de orpham, De viuva, de mãe que sobre o berço Vê jazer morto o pallido filhinho. E porquê? Porque ahi ha inclinar-se Sobre o corpo do extincto; ha despedir-se Com suspiros e prantos desses restos, Que vão quedos dormir em adro antigo, Onde os avós já dormem; onde ha patria, Ha fami­lia, ha irmãos.--Cá, tudo é ermo, E a dor está no coração do prófugo Como um cadaver hirto quando espera De noite, em leito nú, que á tumba o desçam. A dor aqui é gelida, immutavel; Pousa em labios alheios que sorriem, E até em sorrir nosso; está sentada Ao pé do umbral do tecto que nos cobre, Embebida na enxerga do repouso, Entranhada no pão que nos esmolam, Enroscada, qual cobra peçonhenta, No nodoso bordão do peregrino, E em toda a parte e em todo o tempo é nossa. E depois, o morrer em leito alheio; Despedir-se de um sol que não é esse, Que, na infancia, nos fez florir os prados, Que nos crestou, na infancia, as faces virgens; Volver em torno os olhos moribundos E não ver uma lagryma; inclinar-se E não achar um seio feminino, Ou de esposa ou de mãe, onde repouse A fronte accesa por ardente febre; E pensar entre as ancias derradeiras, Que será terra estranha a que nos trague; Que será til do norte o que proteja Nosso humilde moimento, a verde gleba, Onde de pinho a cruz por dous invernos Apenas luctará co'a negra nuvem Do esquecimento eterno, unica herança Do que expirou no exilio! Amarguradas São taes cogitações para o que sente No seio em ondas trasbordar-lhe a vida. Quaes, porém, não virão ao pobre velho, Que, arrancado das bordas do seu tumulo, Foi por cima dos mares arrojado Para juncto do umbral de um cemiterio, Onde não achará paternos ossos, Para ao pé delles se deitar morrendo?! ...................................... VIII. Quando nos luz o sol no céu da patria, Embora sobre nós verta a desdita Torrentes de amargura, ha um consolo: É o altar e a oração. Ao desterrado Nem sequer isso resta. O templo alheio É como ermo de Deus; como que param Nesse craneo de marmore arqueado Do gigante edificio as tristes preces Em lingua estranha proferidas. Gelidas E duras são do pavimento as lageas Para quem sabe certo não o escutam Mortos que muito amou; que nesse tecto Vai bater frouxa uma oração discorde Entre mil orações. «É falso! É impio!-- A razão o dirá--De Deus o templo É o mundo. No cimo das montanhas O nome do Senhor sussurra em sopro Do vento que passou rasgando as asas Pelo cardo bravio; a gloria delle Di-la o rolo do mar correndo á praia; É o seu hymno o canto da avesinha No salgueiro que pende e se balouça Sobre o arroio do valle, e é do regato O murmurinho o cantico nocturno Mandado pela terra silenciosa Qual suspiro fraterno, aos soes e aos mundos Que pelos céus harmoniosos gyram. Esses montões de cinzeladas pedras De columnas e torres, que se elevam Como as mãos junctas de quem resa, apenas São um memento da oração, um marco Posto no ermo da vida, que nos lembre Quem no-la deu, e o mal e o bem, e Aquelle, Que é senhor e que é rei, que é pae e entende O vento, o mar, os astros, a avesinha, O sussurrar do arroio humilde, e as preces De milhões d'orbes em milhões de li­nguas.» Ao brado da razão só não se dobra O coração do desterrado! Embora Sob as asas do amor abrigue o Eterno Homens, nações e o mundo: o amor por elle Nasce, cresce, vigora-se enredado Com os beijos de mãe, com sorrir meigo De nossos paes e irmãos, ensina-o a tarde, O pôr do sol da nossa terra, o choupo Da nossa fonte, o mar que manso geme, Nosso amigo da infancia, em praia amiga. Quando isso tudo se converte em sombra, Que em confuso passado apenas surge Qual fumo tenuissimo ou phantasma Á meia-noite visto, á luz da lua, Ao longe entre arvoredo: quando o sopro Da tempestade assobiou nas trévas Pela antena da nau do vagabundo; Quando a dor sua em olhos de ente vivo Não achou uma lagryma piedosa, E nos seus proprios são vergonha as lagrymas, Quando, se 'inda as derrama, ellas gotejam, Não sobre seio que as esconda e enchugue, Mas sobre a vaga que se arqueia, e passa Sem as sentir; então o soffrimento, Filho de longo padecer, converte O coração do desditoso em marmore, Onde nunca penetra um puro affecto, Onde o nome de Deus soçobra e morre Entre o bramir de maldicções e pragas. Oh, do desterro o mal supremo é este! É o seccar-se o coração; mirrar-se Como a sarça do monte em fins d'estio; É o descrer, e o blasphemar do Eterno. Se aos céus levanta o desgraçado os olhos, É que primeiro os pôs lá no futuro, E, bem que tenue luz, um fulgorzinho Por entre as sombras lhe sorriu fagueiro: Mas quando se ergue um muro intransitavel Entre nós e a ventura; quando ao longe Pelos campos da vida é tudo pallido E perece a esperança, então a mente Recúa com horror, e dando em terra, Maldiz-se a si e a providencia e o mundo, ......................................... O MOSTEIRO DESERTO. I. No mosteiro vai fundo o silencio; Um silencio que gera terror; Só nos tectos, que banha o luar, Sólta o mocho seu pio de horror: Só o vento que gyra nos pateos, E se engolfa na escada ogival, Ramalhar vem nas folhas dos ulmos, Que ladeiam normando portal. Meia noite. E na crasta deserta Não reboam os ecchos do sino, Que, vagando, murmuram nas cellas:-- São as horas do officio divino.» Meia noite! Bem como na torre Voz de bronze dormente parece, Tal o monge, na dura jazida, Priguiçoso do templo se esquece. Monge, o brado nocturno do sino Ao resar não te chama, é verdade; Mas talvez já no topo do côro Somnolento te espera o abbade. ----- Nada quebra o remanso da noite Pelas gothicas, vastas arcadas: Nem de quicios ranger vagaroso, Nem murmúrio de lentas passadas. «Está só o mosteiro?-- Este grito Repetiram-no os ecchos inteiro; E, bem como em resposta á pergunta, Retumbou: --Está só o mosteiro!» ----- Pouco ha inda, na alta noite Passava no espaço a lua, Dos ulmos a cima ondeava Negra, qual ora fluctua: Mas tenebroso silencio Não ía, como ora vai: Bradava o sino da torre Aos monges dizendo:--orae.» E pelos vidros córados Reverberava fulgor; De passos no longo claustro Soava tenue rumor. Depois, lá dentro na igreja, Em côro alterno rompia O canto lento dos monges, Que ás vozes do orgam se unia: ----- Porém, como se ao sopro do archanjo A trombeta final retumbasse, E da vida o tumulto na terra Ao terrivel signal expirasse, Assim do orgam calou a harmonia, E dos córos os hymnos calaram, E os fulgores das lampadas frouxos Das vidraças não mais transudaram. II. É que o filho dos ermos, renegando Das tradições antigas, Desceu a pelejar na ardente arena Das facções inimigas. Amar, soffrer, orar era a existencia Que lhe talhára a sorte; Enxugar muitas lagrymas na terra, E repousar na morte; Realisar té onde é dado ao homem Esse typo ideal, Que nos legou o Salvador, tomando Nossa veste mortal. ----- E não o quiz. Sacrilego, do pobre A herança, que a piedade Confiára ao ministro de uma crença Que é toda caridade, Offertou-a, traidor a Deus e aos mortos, No altar impio da guerra, E, abrindo o manto, sacudiu irado A assolação á terra. ----- De noite no bosque, Na gandra deserta, No viso do monte, Do valle na aberta, Á luz das estrellas As armas fulgiam, E ouviam-se ao longe Corceis que nitriam: Horrendo propheta O abutre passava, E sobre as encostas Calado pairava: Depois, na alvorada, Com gritos sem fim Saudava do sangue Vizinho o festim. ----- E á voz das trombetas, Ao trom dos canhões, Ao som das passadas De vinte esquadrões; E em meio do fogo, Do fumo alvacento, Em rolos ondeando Nas asas do vento, De agudas baionetas A renque brilhante Tremente avançava, Ao brado de--ávante!» E ao baço ruí­do Dos leves ginetes, No plaino calcando Da relva os tapetes, Os ferros cruzados Luctavam tinindo, Peões, cavalleiros De involta ruindo, E a ferrea granada Nos ares zumbia, E aos seios das alas Qual raio descia. E aos ares, revolta, A terra espirrava, E o globo encendido Um pouco se alçava, E prenhe de estragos, Com fero estampido, Mandava mil golpes, Em rachas partido. ----- E as horas passavam Em scenas de morte; E o abutre mirava Os trances do forte. ----- Na garganta da serra ou sobre o outeiro, Pelo pinhal da encosta ou na campina, Nesse dia de atroz carnificina, Negros uns vultos vagueiar se viam: A cruz do Salvador na esquerda erguida, Na dextra o ferro, preces blasphemando, «Não perdoeis a um só!--feros bradando, Entre as fileiras rapidos corriam: E era o monge que bradava, E era o monge que corria, E era o monge que, blasphemo, Preces vans a Deus fazia; Vans que, á tarde, nesse plaino No sangue d'irmãos retincto, Só restava o moribundo, O cadaver só do extincto. E por gandras e por montes, Aterrados, perseguidos, Em desordenada fuga Retiravam-se os vencidos. E os vencidos eram esses Que a esperança da victoria Arrastára, miserandos, A uma guerra i­mpia, sem gloria! Lá dos gritos de raiva baldada Restrugia o confuso clamor, E o gemido do mau desgraçado Na alma oppressa gerava terror. ----- Cáia em pó o mosteiro; e maldicto O que ergue-lo outra vez intentar, Se não treme ante as nuas cáveiras, Que insepultas verá branquejar! III. Surge a luz da alvorada. Podessem Dessas campas geladas que vejo Os bons monges dos tempos antigos Surgir vivos á voz de um desejo! E que ao longo das vastas arcadas Se escutassem seus passos serenos, Como se ouve o tranquillo regato Sussurrar nestes campos amenos! Quem então não curvára ante o velho? Quem a bençam da mão descarnada, Como a bençam do céu, não pedíra Da virtude ao poder confiada? Quem ousára soltar no deserto Estridente clangor da trombeta, E fazer scintillar pela noite A cruel decisiva baioneta? Quem ousára o sorriso do insulto Juncto ao negro edificio soltar, E com goso, na mente, por terra Suas grimpas jazendo pintar? Mas ha muito que os bons se finaram; Mas ha muito que ás dores fugiram, E depois, nesses velhos sepulchros Quantos maus inquietos dormiram! Quem o sabe? Quaes foram? Seus nomes Pereceram: ninguem o dirá. O que o sabe os julgou; e do abysmo Nem um ai o cantor tirará. Mas, oh harpa, transmitte as saudades Do que foi em legado ao porvir, E o presente, que em breve ha-de o olvido Com o seu amplo manto cubrir. Contarão as canções do poeta Tão-sómente do claustro o segredo. Vai a hera vestir estas pedras: Cahirá este annoso arvoredo. Sim, virá a segure insensata Da montanha o senhor derribar! Rei deste ermo, que os curos insultas, Tu serás o ludibrio do mar. Bem antigo é teu cepo. Tu viste O mosteiro da encosta crescer; Viste o colmo do humilde retiro Em arcadas, em torres volver. Tambem nasce o regato na origem Pobre e puro: cem valles passou; Vai já rico, mas turvo e suberbo; Que a torrente desceu e o turbou. ----- Como esta aura suave suspira Pelos bosques, e as ramas meneia! Como a limpha murmura na fonte, Sobre a qual pende o merlo e gorgeia. Cala, oh ave! Que importam teus cantos? Quem vens tu saúdar, cantor do ermo? É aos mortos? Aos gosos mais puros Pôs-lhe a lousa, na terra, já termo. Tua voz costumava o eremita Nos bons tempos folgando sentir: Era imagem do céu, que entre as dores Do desterro lhe vinha sorrir. Mas depois affligiu o malvado Da avesinha innocente a cantiga; Tal os olhos affeitos a trévas A cerrar-se luz subita obriga. Nunca ao i­mpio na dor deu consolo Meigo som de cadente gorgeio. Que harpa eolia lhe adoça o azedume De que seu coração está cheio? Ai do mau, cuja vida travada Vai de sustos mandados do céu! Nunca o sol a acorda-lo tranquillo Em seu brilho dos montes desceu. Mas duas vezes ai delle, se na alma Não lhe soa uma voz pavorosa, Que o atterre, quando o ermo o rodêa, Ao passar da procella ruidosa! IV. É tão doce esta vaga saudade, Na soidão das montanhas colhida, Para quem entre mil tempestades Transitou pelos campos da vida! Foge a luz: é sol-posto: na aldeia Dá o sino esse triplo signal, Com que o espirito, erguendo-se a Deus, Diz ao dia seu ultimo val; E o pastor, que o rebanho guiava Á malhada, descendo do outeiro, Parou lá, e ajoelhou descuberto Juncto ao velho sósinho pinheiro. Gloria a Deus! A oração do crepusculo Pelo tronco elevado se ergueu. E a guia-la ante o throno do Eterno Sancto archanjo das preces desceu. Ao piedoso pastor no chão duro Brando a noite o repouso trará E por certo em seu leito da morte Mais tranquillo inda o somno será. ----- A estas horas, talvez, nos combates Um atheu expirante caíu: Oh, eu vejo-o voltear-se entre as ancias! O seu grito final já se ouviu! A luz foge-lhe aos olhos: a espada Apertou: ainda a tenta esgrimir: Não a sente: conhece que morre, Sem, comtudo, deixar de existir. Não o crê: abre os olhos a custo: Nada o ceu, que se enluta, lhe diz: Fecha-os breve; e no extremo soluço Pensa e existe, e a existencia maldiz. E o atheu, que era grande na terra, Uma campa terá magestosa; E ao pastor naquelle adro da aldeia Cubrirá uma gleba relvosa. ----- Como o atheu e o pastor, nas batalhas Mil e mil sem alento caíram; Mil e mil, que em seu sangue este solo, Nas fraternas discordias, tingiram! Essas scenas de pranto e de lucto Quem as trouxe a esta terra querida? Foi o monge, que em animos rudes Instillou o furor fratricida. Que pediamos nós? Ver abrir-se Ante nós da familia o larario, E dormir juncto aos ossos paternos Somno extremo n'um pobre sudario: Sim, poder, ao mandar-nos a morte Nossos corpos aos vermes ceder, Ao sol bello, e tão bello, da infancia Com saudade, inda os olhos volver. Respondeu-nos da balla o sibilo; Respondeu-nos o brado da guerra! Combatemos. Pertencem na patria A qualquer sete palmos de terra. Isso, ao menos, tê-lo-hemos! Da lucta Sabe Deus qual a sorte será: Mas á sombra do teixo da infancia O proscripto infeliz dormirá. ----- Cáis em pó o mosteiro; e maldicto O que ergue-lo outra vez intentar, Se não treme ante as núas caveiras, Que insepultas verá branquejar! A VOLTA DO PROSCRIPTO. I. Já suave a sorte dura Mostra a face ao desterrado: Porque surge ainda a amargura Em seu rosto carregado? Vento amigo ao patrio solo Pelo mar guia o proscripto, E um sorriso de sonsolo Não lhe luz no rosto afflicto? Corta a proa o mar fremente; O cantor lá se assentou E sua torva e altiva frente Sobre a dextra reclinou. Vem-lhe idéa após idéa, Já tristonha, já serena; Que no gesto lhe vaguêa Ora o goso, logo a pena. Coração affeito á mágoa Da esperança desconfia: Desalenta, e em viva frágoa, É-lhe negra a noite, e o dia. Mas se, emfim, lhe tece a sorte Á existencia um aureo fio, E vencendo o mar e a morte O conduz ao patrio rio, A que mais agora aspira O mancebo trovador? É por gloria que suspira? Não lhe ri propicio o amor? Não vê perto a terra cara, Que chorou de dor absorto, E nos braços dos que amára Não terá paz e conforto? Mas silencio!--A fronte erguendo, Elle os olhos poz nos ceuz, E a canção da alma rompendo Sussurrou nos labios seus. II. «Rasga as ondas do pégo indomado Leve barca: já freme o galerno: Susta as iras o rabido hynverno: Torna á patria infeliz trovador. Como bate no seio ancioso Coração que opprimiu a amargura, Quando meiga sorrí a ventura, Quando volve esperança de amor! Esperança, e sómente esperança Cabe áquelle que os mares correu, Quem lhe diz que 'inda não o esqueceu A donzella por quem suspirou? Quem lhe diz não irá n'outros laços Venturosa encontra-la e infiel, E que a voz do remorso cruel Para a ingrata tremenda soou? Quem lhe diz não irá murchas rosas Tão-sómente encontrar sobre a lousa, Onde a amada tranquilla repousa, onde vá juncto della expirar? Esperança, e sómente esperança Cabe áquelle que os mares correu: Ella só resta áquelle que o ceu Longos dias de dor fez passar Eu traguei estes dias de lucto; Encarei muitas vezes a morte; Pude o louro colhêr dado ao forte: Tambem myrto de amor colherei? Ou o arbusto que outr'ora plantára, Que por mim cultivado crescêra, Que entre angustias jámais me esquecêra Esquecido por ella acharei? Como além desse cabo, que esconde Verdes aguas do meu patrio Tejo, A alma levam saudade e desejo! Como atraz a compelle o terror! Ledo o nauta saúda a guarída Aonde incolume o vento o ha guiado, E alegrou esse olhar carregado Com que insulta do mar o furor. Feliz nauta, em teu seio tranquillo Pulsa em paz coração baixo e rude; Fado amigo negou-te o alaúde: Deu-m'o a mim:--para prantos m'o deu. Nunca, pois, surgirá uma aurora Em que nelle resoe a alegria, E em que o triste, que a dor opprimia, Erga um hymno de jubilo ao céu? Nunca rir-me propicia a ventura Sobre a terra verão estes olhos? Será sempre cuberto de abrolhos Agro trilho que á morte conduz? Ou nas trévas da minha existencia Surgirá inda um dia radioso, Como, ás vezes, em céu tenebroso Rompe o sol com torrentes de luz?» III. Já no porto a leve barca Longa esteira desdobrou, E ao clarão final do dia Ferreo dente ao mar lançou. Eis as plagas da saudade; Eis a terra de seus sonhos; Eis os gestos tão lembrados; Eis os campos tão risonhos! Eis da infancia o tecto amigo; Eis a fonte que murmura; Eis o céu puro da patria; Eis o dia da ventura!... IV. Foi o cantor feliz?--Em breves dias Viu-se cruzar errante incertos mares. Sob o tecto paterno anciada noite Elle passou; e o somno socegado Não lhe cerrou os olhos lachrymosos. Conta-se que o seu amor fôra trahido, E que mirrado achou de amor o myrto, Que deixára viçoso, e que saudára Desde além do oceano em seu deli­rio. Sobre a proa outra vez indo assentar-se, Não entoou um hymno de alegria. Com ar sinistro e torvo e os labios mudos Correu co' a vista as ondas inquietas, E, porventura, a idéa que as passára Nas asas da esperança, e que a esperança Tinha expirado ao limiar do goso, Mais lhe turbou a fronte carregada. O misero sorriu-se. Em tal sorriso O passado e o futuro estava impresso, E da sua alma a dolorosa noite. V. Não mais o trovador no lar da infancia Repousará talvez: talvez sua harpa Durma pendente em solitario tronco Do pinheiro bravio, onde a desfaça O sôpro do aquilão. Ao desditoso Sonho de gloria e amor tinha emballado; Mas foi sonho, e passou, e uma existencia Nua d'encantos despregou-se ante elle. Quem o consolará?--De fogo essa alma Consolo não terá, nem quer consolo. A maldicção de Deus vestiu-lhe a vida De padecer e lagrymas. Ignoto Será ao mundo que surgiu na terra O genio de um cantor, bem como planta Morta apenas saída á flor do solo, Ou como a aragem da manhan, que passa Antes de o sol nascer, em dia estivo. E que importa essa gloria ao dono della? Esse fructo do Asphaltite que encerra Senão cinza em involucro formoso? Que é o eccho de um nome, que não soa Senão sobre o sepulchro do que impresso Na fronte o trouxe, em meio de amarguras, Por vezes de ignominias? «Vive, oh triste, Esquecido do mundo, e esquece o mundo! Nas solidões profundas da tua alma, Vazia das paixões que a assassinaram, Some os cantos que della transudavam Para correr n'um seculo sem vida, Sem virtude e sem fé, e em que desabam As crenças todas do passado, e é sonho A constancia e o amor.» Palavras estas Extremas foram do proscripto. Longe, Em praia estranha abandonando a barca, Qual o seu fado foi ninguem mais soube. N'UM ALBUM. Quando o Senhor envia O trovador ao mundo, Faz devorar a essa alma Fel amargoso e immundo; Porque lhe diz:--Poeta, Vai conhecer a terra; Prova dos seus deleites; Prova do mal que encerra. Desses e deste esgota As taças muitas vezes, Embora de uma e d'outra Aches no fundo fézes: E quando bem souberes Que tudo é sonho vão; Que é nada a dor e o goso, Sólta o teu hymno então.» E o pobre desterrado Vem seu mister cumprir. Nasce: homens e universo, Tudo lhe vê sorrir; E o seu balbuciar Um canto é d'innocencia: Mas outro foi seu fado; Guia-o a providencia. É cherubim precíto Qu' inda entrevê o céu, Mas através da vida, Mas através de um véu. Em turbilhão d'affectos, Seu íntimo viver Rapido lhe devora Sperança, amor e crer. Do goso nos deli­rios Debalde busca o amor; Saudade melancholica Pede debalde á dor. Depois, desanimado, Pára a pensar em si, Acha no seio um ermo, E tristemente ri. É desde aquelle instante De um acordar atroz, Que ao condemnado lembra Do que o mandou a voz. Então entende e cumpre Seu barbaro destino; Então é que elle aprende A modular um hymno. Virgem, ao que assim passa Por meio do existir, Calcando os frios restos Do crer e do sentir, Não peças te revele Sua alma na poesia, E dê aos pensamentos O encanto da harmonia; Porque lá, nesse abysmo, Não resta uma illusão: Só ha perpetua noite, E injuria e maldicção. Não entenderas, virgem Ainda innocente e pura, O canto que surgira Dessa alma gasta e escura. Deixa-o seguir seu norte, Cumprir missão cruel; Deixa-o verter o escarneo; Deixa-o verter o fel; Deixa-o cuspir em faces Onde não ha pudor, E ao mundo, ebrio de si, Rindo ensinar a dor. As sanctas harmonias De cantico innocente Sabe-as o alvor do dia Quando rompe do oriente; Murmura-as o regato; Vibra-as o rouxinol; Vem no zumbir do insecto, No prado, ao pôr do sol; Vivem no puro affecto Da filial piedade, Nos sonhos e esperanças Da juvenil idade. Esta poesia é tua: Eu já a ouvi e amei; Mas hoje nem a entendo, Nem repeti-la sei. Assim, meu nome só Escreverei aqui; Som vão, intelligivel Apenas para ti; Extincto candelabro Do templo do Senhor, Que por algumas horas Deu luz, teve calor; Lenda de sepultura, Que fala em gloria e vida, E esconde ossada infecta Dos vermes corroída; Pinheiro solitario, Que o raio fulminou, E que gemeu tombando, E não mais murmurou. */ A FELICIDADE. Era bello esse tempo da vida, Em que esta harpa falava de amores: Era bello quando o estro accendiam Em minha alma da guerra os terrores. Nesse tempo o balouço das vagas Me era grato, qual berço da infancia; E o sibillo da bala harmonia Semelhante á de flauta em distancia. Eu corri pelos campos da gloria, D'entre o sangue colhendo uma palma, Para um dia a depor aos pés dessa Que reinou largo tempo nesta alma. Mas qual ha coração de donzella, Que responda a um suspiro de amor, Quando vibra nas cordas sonoras Do alaúde de pobre cantor? Triste o dom do poeta!--No seio Tem volcão que as entranhas lhe accende; E a mulher que vestiu de seus sonhos Nem sequer um olhar lhe compr'hende! E trahido, e passado de angustias, Ao amor este peito cerrara, E, quebrada, no tronco do cedro A minha harpa infeliz pendurara. Um véu negro cubriu-me a existencia, Que gelada, que inutil corria; Meu engenho tornou-se um mysterio Que ninguem neste mundo entendia. E embrenhei-me por entre os deleites; Mas tocando-o, fugia-me o goso; Se o colhia, durava um momento; Após vinha o remorso amargoso. Esqueci-me do Deus que adorara; O prestigio da gloria passou; E a minha alma, vazia de affectos, No limiar do porvir se assentou: Meus pulmões arquejaram com ancia, Buscando ar na amplidão do futuro, E sómente encontraram, por trévas, De sepulchros um halito impuro. Mas, emfim, eu te achei, meu consolo; Eu te achei, oh milagre de amor! Outra vez vibrará um suspiro No alaúde do pobre cantor. Eras tu, eras tu que eu sonhava; Eras tu quem eu já adorei, Quando aos pés de mulher enganosa Meu alento em canções derramei. Se na terra este amor de poeta Coração ha que o possa pagar, Serás tu, virgem pura dos campos, Quem virá a minha harpa acordar Como a luz duvidosa da tarde, Quando o sol leva ao mar mais um dia, Reverbera poesia e saudade Na alma immensa de um rei da harmonia; Tal poesia e saudade em torrentes No teu meigo sorrir eu aspiro, E no olhar que me lanças a furto, E no encanto de um mudo suspiro, Para mim és tu hoje o universo: Soa em vão o bulicio do mundo; Que este existe sómente onde existes: Tudo o mais é um ermo profundo. No silencio do amor, da ventura, Adorando-te, oh filha dos céus, Eu direi ao Senhor:--tu m'a déste: Em ti creio por ella, oh meu Deus!» OS INFANTES EM CEUTA. DRAMA LYRICO EM UM ACTO. (1415) _O infante D. Duarte._ _O Infante D. Pedro._ _O Infante D. Henrique._ _Gulnar_, filha do wali de Ceuta. _Lobna_, escrava. _Haleva_, escrava. _Um pagem._ _Um sobrerolda._ _Côro de cavalleiros portugueses._ _Côro de cavalleiros mouros._ _Côro de escravas, e de eunuchos negros._ SCENA I. Sala d'armas do alcacer de Ceuta. Córos de cavalleiros portugueses. D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique entram na scena agitados: D. Duarte pára, cruza os braços e contempla por um instante os cavalleiros que ficam immoveis: os infantes afastam-se para um lado falando a sós, e volvendo de quando em quando os olhos para o principe. D. DUARTE. Eia pois, cavalleiros! Breve os mares Cruzaremos de novo além do Estreito! Os inimigos timidos refogem Da conquistada Ceuta. Pelas campinas pallidas, ao longe, Das altas torres espraiando os olhos, Não se vê alvejar lá no horisonte Um albornoz mourisco. Folgue o que volta á patria enriquecido Pela ganhada gloria: folgue aquelle A quem coube o desterro entre estes muros, Por conservar erguida Sobre a mesquita a cruz, sobre as ameias O estandarte real: morrendo, é martyr: Seu nome eterno viverá na historia. Folgae, meus cavalleiros! CÔRO DE CAVALLEIROS VELHOS. Oh, bem vinda, bem vinda essa nova, Para o velho homem d'armas d'elrei, Que ha trinta annos nos diz:--combatei!» Sem jámais a armadura largar! Sob o forro do elmo pulido Nossa fronte, senhor, se enrugou, E estes peitos robustos quebrou Dos arnezes conti­nuo pesar! Bem vinda a hora Em que voltemos, E emfim saudemos O nosso lar; Em que possamos No patrio rio O sol do estio Ver scintillar; E, dos sinceiros Entre a espessura, Da guerra dura Ir repousar! CÔRO DE CAVALLEIROS MANCEBOS. Parti vós, cavalleiros: A Portugal tornae; E o nosso nome ás bellas Donzellas Lembrae! Dizei-lhes que, se ás lides Votámos peito e braços, Por ellas suspiramos, E amamos Seus laços; E que destes labios Palavra amorosa Por moura formosa Jámais sairá. Opprobrio e vergonha Ao que as esquecer! Infamia ao que arder Por filha d'Allah! D. Pedro e D. Henrique dirigem-se, com colera mal reprimida, ao meio dos cavalleiros. D. PEDRO E D. HENRIQUE. Infamia, dizeis vós? D. DUARTE. Aproximando-se vivamente delles, e guiando-os pela mão para a frente da scena. Por Deus, calae-vos! Ignoram vosso amor esses guerreiros. Da patria elles falavam: Não a trahir juravam. E vós? Vós que sois filhos D'elrei de Portugal; vós, cavalleiros, Que d'Aviz e Lancastre a gloria herdastes, Vosso nome manchastes Com um affecto ignobil... D. PEDRO E D. HENRIQUE. Que ousaes dizer, senhor! D. DUARTE. Sim, ignobil affecto! Amor gerado Entre rios de sangue, ao lampejarem Cruzados ferros, no aduar mourisco Á viva força entrado. Conduziu-vos, dissestes-me, o combate A suberbo palacio. Alto repouso Era de morte ahi: seus defensores Tinha-os o ferro português ceifado, Duas mouras formosas, Vencidas do terror, na fuga anciosas, Cahindo a vossos pés pediram vida, Liberdade, honra, e vós... D. PEDRO. Assegurámos-lhes Liberdade, honra e vida. Oh, somos filhos D'elrei de Portugal, e cavalleiros! Era o nosso dever. D. DUARTE. E era-o cederdes A um amor insensato; o prometterdes Pelas nocturnas trévas conduzi-las Ás naus que vão partir? D. HENRIQUE. Será rouba-las Á falsa crença do koran... D. DUARTE. Com vehemencia. E a infamia Lhes gravareis depois nas frontes puras? Isso é torpe! Isso é vil! D. PEDRO E D. HENRIQUE. Senhor infante! D. DUARTE. Com ardor. Oh, que não ha-de ser! No quarto d'alva A armada partirá. D. PEDRO E D. HENRIQUE. Com inquietação. Zombaes? D. DUARTE. Ouvi-me! É o mandado d'elrei... Dirigindo-se aos cavalleiros. Meus velhos guerreiros, As armas tomae, E á praia fremente Os passos guiae; Que as náus já fluctuam: Não tarda o partir. Nos mares a aurora Veremos surgir. CÔRO DE CAVALLEIROS VELHOS. Ajoelhando e estendendo os braços para o céu. Virgem! Esperança! Estrella do mar, Ouvi nosso orar; Mandae-nos bonança! Salvae-nos, salvae-nos! E á patria levae-nos! Erguem-se e vão saindo. Ouve-se-lhes ainda ao longe. Á patria levae-nos!... D. DUARTE. Guerreiros novéis As armas vestí, E os muros de Ceuta De lanças cubrí­. Bandeira da serpe, Bandeira d'elrei, No alcacer, nas torres Guardae, ou morrei! CÔRO DE CAVALLEIROS MANCEBOS. Tirando as espadas e cruzando-as umas sobre outras. Contentes saudamos Os dias de guerra: Ser dignos da terra Da infancia juramos. O braço não treme!... O peito não teme!... Vão saindo, e ouve-se-lhes ainda fóra: O peito não teme!... D. DUARTE. Restam bem poucas horas: Salvos estaes infantes! D. PEDRO E D. HENRIQUE. Sabe um amor immenso Horas fazer de instantes. D. DUARTE. Que!? Ousarieis 'inda?... D. PEDRO E D. HENRIQUE. Nós ousaremos tudo! D. DUARTE. Não! Filial piedade Vos servirá d'escudo! Com gesto supplicante. Pela memoria sancta De nossa mãe querida, Que na feral jazida Tal crime assombrará, Afugentae qual sonho Esse insensato amor, Que o odio, que o furor Do céu accenderá! D. PEDRO E D. HENRIQUE. Mas deste amor profundo Quem nos libertará? D. DUARTE. Vêde quem sois, e o mundo Como vos julgará! D. PEDRO E D. HENRIQUE. Duas formosas almas Por nós a fé ganhou. D. DUARTE. Antes por vós o sangue De Aviz se deshonrou. UM PAGEM. Entrando apressado. Principe, elrei vos chama. D. DUARTE. Ide; eu vos sigo. Lançando os braços ao pescoço dos dous infantes apenas o pagem sáe, D. Duarte os vem conduzindo lentamente para a frente da scena. Oh meu Pedro, oh meu Henrique, Louco intento abandonaes?! Não passar de Ceuta as portas Hoje, aqui, vós me juraes?! Os dous, volvendo olhar rapido um para o outro D. PEDRO E D. HENRIQUE. Senhor, do sceptro herdeiro, Vossos irmãos mandaes... De Ceuta as ferreas portas Não cruzaremos mais! D. DUARTE. Basta-me tal promessa! Só mentem desleaes. SCENA II. D. PEDRO E D. HENRIQUE. D. HENRIQUE. Olhando para o principe que sáe, e sorrindo. A promessa ha-de cumprir-se! Nobre infante, vae seguro! D. PEDRO. Com hesitação. Mas de Ceuta o erguido muro Como além, hoje, transpôr?... D. HENRIQUE. Conduzindo D. Pedro a uma gelosia, e apontando para fóra. Vedes vós, lá em baixo, esse vulto Amplo e negro da torre de Fez, Que inda ha pouco o mais forte pavez Do vencido muslim se ostentou? D. PEDRO. Vejo; e lembram-me as portas robustas Que a acha d'armas a custo desfez; E que nesse momento se fez Um silencio que instantes durou... D. HENRIQUE. E parámos; e ouvimos ao longe Tinir d'armas, correr de corceis, E o confuso bradar d'infiéis, Restrugindo os seus gritos de dor... D. PEDRO. Subterraneo caminho os salvava Das espadas dos nossos fiéis, Quando inuteis alfanges, broqueis Lhes tornára profundo terror... D. HENRIQUE. O que ao mouro no trance tremendo De destino cruento remiu, Esta noite, a quem nunca mentiu De mentir uma vez salvará. D. PEDRO. Com grande jubilo. Oh sim! sim! Velae guardas de Ceuta! Outras portas o amor nos abriu; Nossa estrella dos céus nos sorriu; O caminho, o caminho é por lá! D. HENRIQUE E D. PEDRO. Noite placida e formosa, Noite grata a um vivo affecto, Para nós no torvo aspecto Te deslisa almo prazer! Bella noite silenciosa, Sê propicia ao nosso intento; Com teu véu cobre o momento Do partir e do volver! SCENA III. Sala nos paços do wali Bensalá n'uma aldeia das vizinhanças de Ceuta. Um candelabro, que derrama uma luz frouxa, pendente do tecto. No fundo, sobre uma especie de coxim elevado, Gulnar reclinada. Côro de donzellas arabes cantando ao som de harpas. CÔRO. Dorme, dorme desgraçada! Dorme, filha do wali! Possa o somno sobre ti O consolo derramar. Quando dormes é teu gesto Brando e meigo qual de huri; Mas vingança nelle ri Ferozmente ao despertar. GULNAR. Erguendo-se lentamente. Oh, como é doce o som de vossas harpas, Desterradas de Ceuta!.. Adormecestes Um pouco minha dor. Senti correrem Destes olhos as lagrymas... Ai! breve, Repentino terror veio enxuga-las. Meu pae... Que diz Levi? CÔRO. Oh Deus! GULNAR. Entendo: Não tenho que esperar?.. CÔRO. Delira. Golfa o sangue Da profunda ferida, Por onde foge a vida Do inerte corpo exangue. GULNAR. Com gesto ameaçador, e erguendo-se. Oh, basta! Inulto, Senhor de Ceuta, em cemiterio estranho Não dormirás! Meu pae, Gulnar t'o jura! Lobna e Haleva onde estão? SCENA IV. LOBNA E HALEVA. Entrando apressadamente assustadas. LOBNA. Eis-nos, princesa! Os espias voltaram: tumultuando Na marinha de Ceuta homens, ginetes, Ao pôr do sol: as naus soltando as vélas, Proas á terra: o esquife após o esquife Entre a praia e as galés cruzando as ondas; Tudo do amir christão mostra a partida. GULNAR. O tigre português volta ao seu antro! Mas Ceuta... Com amargura. Profanada e serva és Ceuta! O que te amou qual pae jaz moribundo No seu leito de dor. Foi por salvar-te Pérola rica do Moghreb. Inutil O sangue se verteu! Oh, sem vingança Não ficaremos nós: nós ambas orphans, Eu desterrada e tu escrava. O nobre Teu senhor e meu pae, talvez, da aurora Não veja mais a luz. Mas trema o fero Amir de Portugal! Gulnar, a filha Do vencido wali, ha-de vinga-lo. Lobna e Haleva esta noite... HALEVA. Hesitando. E quem vos disse Que elles hão-de voltar?.. GULNAR. O juramento: O juramento seu!.. Já não sois servas, Bellas filhas do Caucaso; sois socias Da implacavel Gulnar. A vós a gloria De tornar mais cruel su' hora extrema. Quanto ardente paixão tem de ternura Quantas fascinações ha no amor virgem: Quanto o meigo sorrir, quanto as promessas, O pranto, o resistir tem de deli­rio; Tudo, tudo empregae! Raio de morte, Juncto ás portas do céu, lance-os no inferno. Erguendo as mãos. Escuta, emfim, meu pranto, Dos impios vencedor: Manda, propheta sancto, O anjo exterminador. Chore a roubada prole O português amir: Que o sangue me console Antes de o sol surgir. Cercae-os vós de goso: Sintam que é bom viver: Será mais horroroso Meu brado:--Ide morrer!» Vem, oh terrivel hora, Hora do meu folgar, Hora em que vingadora Triumphará Gulnar. Dirigindo-se ao côro. Ide; patente Do alcacer seja o ádito: silencio Profundo reine em toda a parte: os gritos Dos moribundos só... hão-de quebra-lo! Vingança a Bensalá. CÔRO. Vingança á patria! GULNAR. A Haleva e Lobna com gesto terrivel. Em breve me vereis!... SCENA V. LOBNA E HALEVA. Olham aterradas para Gulnar, que sai precedida do côro, e depois correm a lançar-se nos braços uma da outra. HALEVA. Ai, como foi mesquinha A nossa escura sorte! Porque a terrivel morte Os tristes conduzir? LOBNA. Oh, se Gulnar os víra, De sangue inda banhados, Vencidos, humilhados, A nossos pés cahir! HALEVA. Que lhes valêra? Sangue, Sangue só quer a hyena: A cólera a aliena: Não póde perdoar! LOBNA. Haleva, minha Haleva, De susto eu titubeio: Tu imagina o meio De as victimas salvar. HALEVA. Miseras! Só nos resta, Em festa sanguinosa, Sob a traidora rosa O aspide esconder. LOBNA. Que importa a pobre escrava De susto e de amor trema? Embora chore e gema, Cumpre-lhe obedecer. HALEVA E LOBNA. Sólta o suave canto Captivo rouxinol, Quando o nascente sol Derrama seu fulgor; E as aves vem, correndo, Pousar no umbroso til, Onde com arte vil As prende o caçador. O canto da avesinha Foi nosso amor fatal! E elles... destino igual Lhes reservou o amor! SCENA VI. Terrado no primeiro plano da Torre de Fez, cujo corpo superior se alevanta ao lado esquerdo no fundo, seguindo para a direita a linha das ameias. Ao longe o facho de uma atalaia exterior. No cimo da torre, tambem ameiada, outro facho, cuja claridade allumia a scena, onde se vêem tres ou quatro vigias encostados ás ameias do plano inferior. Sobre a porta do corpo superior da torre lê-se a seguinte inscripção:==_Esta torre de Fez ffoy combatida e entrada pollo muy eyscelente e esforçado Iffante Dom Anrigue a 21 Dagosto de 1415 annos._==É noite. D. DUARTE. Saíndo seguido de um sobrerolda, ambos apressados. Viste-los vós?... SOBREROLDA. Jura-lo Posso. Dous cavalleiros: Negras armas: cavallo Negro ambos. Ligeiros Voam... Ouví!... D. Duarte chega ás ameias escutando. Ao largo Ainda soa o tropel. D. DUARTE. Áparte com afflição e despeito. Oh pensamento amargo! Oh receiar cruel! Ao sobrerolda. E os homens d'armas? SOBREROLDA. Velam: Não falta um só. Escutando para a campanha. Dir-se-hia, Ao seu correr, que anhelam Voltar antes do dia. D. DUARTE. Não mais... Chegando-se ás ameias, e apontando para baixo. Para a barreira Cem lanças o adail Conduza: da dianteira Todos; que valem mil! E eu lá serei em breve: E elles hão-de seguir-me. Sabe-lo elrei não deve. Ai do que ousar trahir-me! O sobrerolda sai. Sob o seu gesto candido O engano se escondia! Era uma idéa perfida Que na alma lhes surgia, Quando de Ceuta as portas Juravam não transpôr! Creram que a noite lobrega Seu crime esconderia! Perante o céu, oh miseros, Que importa a noite, o dia, Se de ira se ha turbado A face do Senhor? Pausa: com terror. Mas se a suprema cólera Terrivel já descesse!... Se, em vez do goso vívido, A morte os acolhesse!... Erguendo as mãos. Meu Deus perdoa aos tristes; Cede á fraterna dor! Oh minha mãe, da placida Morada da ventura, Guia-me os passos tremulos Por esta noite escura, Para salvar teus filhos, Filhos de tanto amor! SCENA VII. A mesma sala da scena II mal allumiada pelo candelabro onde apenas arda um ou dous lumes: a gelosia está aberta: é noite escura. Lobna e Haleva saíndo pela direita, e parando de quando em quando, lançam os olhos inquietos ora para a gelosia, ora para o portico da esquerda. LOBNA. No seu rapido gyro foge a noite Ligeira e socegada: Fulgor da madrugada Em poucas horas subirá d'oriente. Não poderam voltar!... Respiro... HALEVA. Aproximando-se da gelosia. Escuta! Ouviste um silvo agudo? É o signal!... LOBNA. Eu tremo... Porém não... Quedo é tudo; Salvo um ruído sussurrando ao perto, De almogavar talvez... HALEVA. De dous ginetes O tropeiar parece... Elles!... São elles! Sobre trajos de ferro espadas tinem! Não ha que duvidar... LOBNA. Oh! desfalleço! Ouve-se um sibillo já perto. HALEVA. Ei-lo o triste signal, signal de morte! Á sua esquiva sorte Não poderão fugir! Meu Deus! LOBNA. Patente Ante si tudo hão-de encontrar. Se ao menos Suspeitassem de nós! HALEVA. Ei-los! Silencio! SCENA VIII. D. Pedro e D. Henrique entrando dirigem-se para Lobna e Haleva, que recuam aterradas. D. PEDRO. Lobna! D. HENRIQUE. Haleva! D. PEDRO. O juramento O momento é de cumprir! De partir não tarda a hora: Ha-de a aurora Refulgir-nos juncto ao mar. D. HENRIQUE. Sobre os rapidos corceis Nós fieis vos guiaremos Aonde achemos mil delicias Nas caricias De que amor nos vai cercar! D. PEDRO E D. HENRIQUE. Vinde! a noite nos protege: Dorme tudo pela aldeia; E este braço não receia, Quando cumpre, o pelejar. Vinde ser enlevo d'almas, Sob um céu meigo e sereno; Que nunca ha-de o sarraceno Como nós saber amar! LOBNA. Correndo ao portico da direita, e voltando com afflicção e energia. Fugí breve, oh desgraçados, Que cercados sois da morte! Queira a sorte que um momento Seu intento A cumprir tarde Gulnar! HALEVA. De ninguem serdes sentidos, Já perdidos, ainda creis! Mal sabeis vos esperava Quem velava Para em vós um pae vingar! LOBNA E HALEVA. Triste umbral haveis cruzado, Do wali ultimo abrigo, Que no extremo do perigo Jaz a ponto d'expirar. Por seu sangue a feroz filha, Que essas portas franqueiou, Vingativa aos céus jurou Vosso sangue derramar. D. PEDRO. A perfidía em recompensa Só achou o nosso ardor?! Desleaes! Porque o furor De mulher cruel servir? D. HENRIQUE. Porque a vida nos pedieis, No olhar terno amor pedindo, Quando os golpes retinindo Era livre inda o fugir? D. PEDRO E D. HENRIQUE. Porque em noite deliciosa De deli­rios seductores, Generosos vencedores Só pensaveis em trahir?! LOBNA. Uma idéa tenebrosa De Gulnar surgiu na mente Nessa noite, em que estridente Veiu a espada aqui luzir: HALEVA. «Ide:--disse-nos--sois bellas: Fascinae os nazarenos, Talvez possa assim, ao menos, Da vingança a senda abrir!» LOBNA E HALEVA. A leôa do deserto Entre as cervas se escondia: Seu aceno constrangia Pobre escrava a amor fingir. D. PEDRO E D. HENRIQUE. Com vivacidade e despeito. Era pois um falso affecto?!... LOBNA. Foi-o só um breve instante... HALEVA. Hoje puro, hoje constante LOBNA E HALEVA. Far-nos-ha por vós morrer. D. PEDRO. Pondo a mão sobre o punho da espada. Que ella venha, pois, e a cerquem Seus escravos traiçoeiros! Portugueses, cavalleiros Somos nós: ha-de tremer! D. HENRIQUE. Sabe o forte nos combates Se este braço é prompto e duro; O covarde, que no escuro Fere só, o ha-de saber! LOBNA E HALEVA. { Oh, fugi; que ainda é tempo, { Antes de ella aqui volver! { 4 { D. PEDRO E D. HENRIQUE { { Partiremos! Dentro em breve { Nos vereis aqui volver! O exterior da sala illumina-se de repente: a luz penetra pela gelosia, e pelos porticos da direita e da esquerda. Os infantes, que vão a sair, param e escutam. CÔRO DE GUERREIROS MOUROS, _fóra_. Gloria ao sancto propheta que aos impios A cerviz insolente vergou, E do amir português crueis filhos Do muslim ao punhal entregou! LOBNA E HALEVA. Bateu funerea hora... Morreu nossa esperança! D. PEDRO E D. HENRIQUE. Resta-nos a vingança... Sangue por sangue... Embora! SCENA IX. Eunuchos negros armados de punhaes, que se precipitam na scena e vão collocar-se no fundo do theatro. Gulnar, saindo da direita, encaminha-se vagarosamente para as escravas e para os infantes. GULNAR. A Lobna e Haleva. Fugir?!... É tarde, infames! Vós me trahieis, vís! Tremei! Gulnar velava... E eu sou vosso juiz! Aos infantes. Deponde inuteis ferros, De Ceuta vencedores! Lá fóra meus guerreiros... Apontando para os eunuchos. Alli meus vingadores. LOBNA. HALEVA. -------------^------------- «Ide trahi-los-- Para trahi-los I­mpia,disseste... Nos escolheste!.. Mui facil creste Se nos venceste Fingir amor. Foi por temor. LOBNA E HALEVA. Morrer com elles É grata pena... Feroz hyena, Temos-te horror. D. PEDRO. D. HENRIQUE. -------------^------------- Aos teus escravos, Os teus escravos Mulher infida, Com mortal lida Mais larga vida A nossa vida Deixa gosar! Tem de comprar! D. PEDRO E D. HENRIQUE. Que nunca o susto Nos fez no p'rigo O ferro amigo Abandonar. Começa a ouvir-se um ruído como de golpes de machado. GULNAR. Da louca audacia, Da van affronta Vingança prompta Gulnar vai ter. O ruído augmenta: tinir d'armas, gritos confusos. Mas qual ruí­do Confuso soa? Porque reboa Voz do adail?!... Ao chefe dos eunuchos, apontando para o portico da esquerda. Hussein!.. O ferro Retine!.. Gritos! Gemer d'afflictos! Sons de anafil!.. Toque de trombeta fóra. Hussein sai correndo pela esquerda: Gulnar fica suspensa. D. PEDRO E D. HENRIQUE. Que escuto?! Lá bradaram: --São Jorge! Ávante, ávante!» Oh jubiloso instante! Restruge o pelejar. GULNAR. Acenando aos eunuchos. Morram os i­mpios! Morram! Servos, rasgae seu peito. Sintam, emfi­m, o effeito Dos odios de Gulnar. Os infantes dirigem-se para o portico da esquerda: os eunuchos apinham-se diante delles com os punhaes erguidos: o côro das donzellas arabes precipita-se na scena pela direita com gestos de assombro e terror: no mesmo tempo pela esquerda guerreiros mouros fugindo desordenados diante dos cavalleiros portugueses, que rompem por entre os eunuchos e os dous infantes. SCENA X E ULTIMA. Os dictos: D. Duarte: córos de cavalleiros portugueses e mouros: côro de donzellas arabes. Os mouros fugindo param no fundo da scena, e os cavalleiros portugueses prolongam-se pela esquerda. Gulnar, recuando, fica rodeada dos eunuchos e das donzellas. Lobna e Haleva refugiam-se juncto dos infantes. CÔRO DE DONZELLAS. Que horri­vel espectaculo! Por toda a parte a morte... CÔRO DE GUER. MOUROS. CÔRO DE CAVALLEIROS. ---------------^--------------- Ferros inuteis, ide-vos: Cede o agareno timido: Cumpra-se a nossa sorte! Honra ao valor do forte! Depondo os alfanges no chão. Brandindo as armas. D. DUARTE. Lançando os olhos para os eunuchos armados de punhaes estremece, e correndo para os infantes, ergue as mãos ao céu. Vivos ainda, e incólumes! Graças te dou, Senhor! Laços de um impio amor Vinha-lhes eu partir... E a morte ia-os ferir!.. Graças, oh meu Senhor! D. PEDRO E D. HENRIQUE. Curvando o joelho aos pés de D. Duarte. Foste enganado, e salvas-nos!.. Perdoa, nobre infante! Foi de delirio instante, Que ao erro nos levou. LOBNA E HALEVA. Agita ancioso o seio Insolito pulsar; Mas d'horrido receio Não é este agitar! D. DUARTE. Abraçando successivamente os irmãos. Pedro, Henrique, sois salvos! Invenci­vel A espada portuguesa, Mais uma vez, terrivel, A barbara fereza Dos infiéis domou. O perfido punhal, Da vingança guiado, em vão se alçou... GULNAR. Adiantando-se. Vencestes, nazarenos! Folgae na vossa gloria... Seguí facil victoria. Puní­-me! Eis-me captiva... Do vosso amir na prole Vingar meu pae eu quiz... Pensando-o era feliz: Agora infeliz sou. Morrer é a esperança, Que o fado me deixou. CÔRO DE CAVALLEIROS. Interrompendo Gulnar, e brandindo de novo as armas. Pune, oh principe, infames traidores: Lava a affronta do sangue real! Dos covardes, em trance fatal, Tinja as faces da morte o pallor! CÔRO DE GUERREIROS MOUROS E DONZELLAS. Com gesto supplicante. Por piedade, dos teus seguidores Não escutes o voto lethal! Generoso, o seu odio infernal, Por piedade, não ouças, senhor! D. DUARTE. Aos cavalleiros. Silencio! Aos mouros. Livres sois. Aos cavalleiros. Nunca aos vencidos Sangue pediu meu pae. Eu serei digno Filho do vosso rei. A Gulnar. Mulher, és livre. GULNAR. Tua clemencia hypocrita, Tyranno, vem mui tarde! Pensas apagar, barbaro, Fogo que immortal arde?! Dá-me Ceuta, a miserrima: Torna-me um pae que expira: Foge das praias d'Africa Serva, que mal respira! Foras assim magnanimo: Grata Gulnar te fora: Sem isso, um favor unico, Prompto morrer te implora! CÔRO DE MOUROS E DONZELLAS. CÔRO DE CAVALLEIROS. ---------------^--------------- Turba-te a dor e a cólera, Da perfida a van cólera Filha de Bensalá: Inutil brame já: A tua raiva indomita Do seu cruel proposito É van e inutil já! Ella nos vingará. Em quanto duram os córos o principe e os infantes falam em voz baixa: os infantes apontando para Lobna, e Haleva: D. Duarte mostra-se agitado, e depois dirige-se rapidamente para ellas. D. DUARTE. Tomando pela mão as duas escravas. Não!... Innocentes victimas D'impios não deveis ser! O vosso amor ingenuo Cumpre-vos esquecer; Mas a vingança barbara Não vos entregarei. A Portugal seguindo-nos Olhando para os infantes com aspecto severo. Eu vos protegerei! LOBNA E HALEVA. Só ir nos concede O fado inhumano Além do oceano De amor expirar! D. PEDRO E D. HENRIQUE. Nest'hora solemne Do peito no arcano Nosso amor insano Juramos calar. D. DUARTE. Da nossa clemencia Aprenda o africano A ser nobre e humano, E o que é perdoar. GULNAR. Do meu odio immenso Cruel desengano!.. Feroz lusitano Se ri de Gulnar! CÔRO DE CAVALLEIROS. Risquemos da mente O perfido engano; Que o principe humano É bello imitar. CÔRO DE GUERREIROS MOUROS E DONZELLAS. A nobre clemencia Do heroe lusitano Áquem do oceano Sempre ha-de lembrar. LIVRO TERCEIRO VERSÕES. O SECCAR DAS FOLHAS. (_Millevoye_). Das ruinas destes bosques O outomno alastrou o chão: A selva perdeu seus mimos; Os rouxinoes mudos são. No bosque, amigo da infancia, Triste um joven vagueiava; Na sua aurora a doença Para o sepulchro o inclinava. «Adeus floresta querida! Vestes lucto por meu fim? Como te cai folha e folha A morte me segue assim. Intima voz, que revela Seu fado extremo aos mortaes, Me diz:--vês cahir as folhas? São essas só: não ha mais! Sobre esta pallida fronte O torvo cypreste ondeia, Como o que, pharol de mortos, Sobre campas se meneia. Antes da vide na encosta, Antes da relva no prado, Os dias da juventude Terão para mim murchado! Minha linda primavera Qual a van sombra passou! Eu morro: o euro gelado Da vida a seiva mirrou. Cáe, oh passageira folha; Vem esta senda cobrir; Esconde ao pranto materno Logar onde vou dormir. Mas se vier minha amante, Involta em véu luctuoso, Ao pôr do sol, na lameda, Dar-me um suspiro saudoso, Com o teu leve rugido Desperta, oh, desperta o morto; Que assim sua sombra tenha Ainda allivio e conforto!» Disse: afastou-se, e não volve: Ultima folha cahiu: Era o signal: seu sepulchro Sob o carvalho se abriu. Mas sua amante não veio: E só do valle o pastor Quebrou com som de passadas Repouso do trovador. A NOIVA DO SEPULCHRO. (_Imitado do inglez_). I. Juncto da raia d'Hespanha, Em monte calvo e deserto, Vê-se um vulto negro ao longe, Castello é, vendo-se ao perto: Mas castello derribado, De bons tempos, de outras eras, Hoje abrigo escuro e triste De reptis e bravas feras. Foram formosos e fortes Esses muros derrocados, Por onde trepam as heras; Que cingem bastos silvados. A voz delrei nelle tinha Nobre alcaide dom Sueiro; Nobre por sua linhagem, Nobre por bom cavalleiro. Noivados, torneios, festas, Ninguem sem elle fazia: Ninguem, sem o convidar, Ajustava montaria; Que nunca da sua bésta Viróte partiu em vão; Como nunca os justadores O viram perder o arção. Mulher, que elle muito amara, Lh'a roubara a sepultura; Mas por este golpe o alcaide Não mostrou grande tristura. Até corria entre o povo Um mysterio de maldade... Suppunham uns ser mentira; Criam outros ser verdade. Mas o que? Cubria a terra Esse caso mysterioso; E só o povo sabía Ser viuvo o que era esposo. II. Cedo se ergue dom Sueiro; Cavalga no seu cavallo, E para caçada alegre Passa áquem do extremo vallo. Por essas margens do Lima, Debaixo de puro céu, O nobre senhor alcaide Á rédea solta correu. Veredas segue torcidas, Até descubrir o outeiro, Que revestem pela encosta O zimbro, a urze e o pinheiro. Soam sonoras buzinas, Ri do dia o lindo alvor, E no meio da paizagem Uma brilha e outra flor. Dom Sueiro o seu cavallo Incita com ferrea espora; Que no logar aprazado Deve estar dentro de um' hora. Nada lhe põe embaraço; Nem resonantes ribeiros, Nem as chans apaúladas, Nem escarpados outeiros. Mas ao sair da floresta, Ainda perto do rio, Viu ir formosa donzella Buscando do ermo o desvio. Celestes são seus meneios: Não mortal, anjo parece: Da sua tez a brancura Alva açucena escurece. O seu corcel dom Sueiro Fez parar. Já se esquecera Da caçada; e que no monte Em breve estar promettera. --Dizei-me vós, oh donzella, Quem sois, que nunca vos vi; Que por minha alma vos juro Sois já senhora de mi.» Resposta nenhuma teve, Que ella não lhe respondia, E, sempre guiando ao valle, A curva senda seguia. --Não me fugireis assim: Bofé que não fugireis! Um momento, um só momento, Dom Sueiro escutareis!» Disse: desmonta, e persegue-a, Nos braços para a estreitar; Mas ella furta-lhe o corpo, E elle abraça o subtil ar. --Dizei-me vós, oh donzella, Pela vossa alma dizei, De que procede tal susto, Que a meu pesar vos causei? Que, pelos céus o asseguro, É verdadeiro este amor. Não me fujaes, bella dama: Não ha de que ter pavor. De esposo, se vós quereis, Dar-vos-hei, contente, a mão: Sereis dona de um castello, Dona do meu coração.» --Dom Sueiro, oh dom Sueiro-- Tornou a dama formosa-- Eu sei quem és, qual teu nome, E eu seria tua esposa: Mas como crer nos teus dictos, Dictos de homem fraudulento? Conheço tuas perfidias, E qual é teu vil intento. Dês que morreu dona Dulce, A tua infeliz mulher, A linda Elvira roubaste Para teu ludibrio ser. Com promessas refalsadas Enganaste uma innocente. Quem crerá juras de um ímpio, Que só jura quando mente? Ella te creu, desditosa! Porém não te creio eu: Nem, qual de Elvira o destino, Será o destino meu. E como soffrera, esposa Tua sendo, uma rival? Folgáras tu nos meus zelos; Folgáras della no mal? Ousáras tu, dom Sueiro, A pobre Elvira expulsar, E dias de angustia e pejo, Misera, vê-la tragar?-- «Oh, voto a Christo, que sim!-- O nobre alcaide atalhou: E desfazer-se de Elvira, Com mil pragas, protestou. --Mas dizei vós, dama linda, Quem sois? quem são vossos paes? Que eu vos direi de mim tudo, Se tudo me perguntaes.-- «Nunca!--tornou a donzella:-- Quem eu sou não te direi. Nada te devo por ora: Quando dever pagarei. Mas pódes estar seguro, Que, bem que nobre senhor. Não é que o meu o teu sangue Sangue de maior primor.-- «Pois sim, querida, pois sim!-- Dom Sueiro proseguia; E algum signal de ternura Á bella dama pedia. «Não, oh não, meu cavalleiro! Quando a mim te vir ligado Tua serei; que antes disso Fôra horroroso peccado.-- «Porém dizei-me, oh donzella, Onde vos hei-de encontrar? Que, pela cruz, ahi juro Nossas nupcias celebrar.-- «Oh, que não será de dia; Que mal de nós julgarão!-- Tornou a dama--e os praguentos Certo de mim se rirão. É pela noite que eu voto; De noite no cemiterio, Quando soar doze vezes O sino do presbyterio. Sob o teixo solitario, Onde ninguem nos não veja; E aonde nunca chegar-se Quem passar ousado seja.-- «Vivam meus lindos amores!-- Interrompeu dom Sueiro:-- Sob o teixo, á meia noite?... Veremos quem vae primeiro.-- «Sim!--volveu ella--a ess' hora. Nenhuma fôra melhor; Porém, da tua palavra Que me darás em penhor?-- «Minha paixão em seguro Do que promettí te dou: Nunca promessas mentidas Fez quem devéras amou. Curvando o joelho, eu juro Teus grilhões sempre rojar: Meu corpo e alma são teus; E o tempo o ha-de provar.-- «Basta!--a donzella lhe disse.-- Dom Sueiro, sou contente. São meus teu corpo e tu' alma: Meus serão eternamente.-- Dicto isto, ao longo do rio Ligeira a senda seguiu, E elle aos outros caçadores Alegre se reuniu. III. Já da larga montaria O folguedo se acabava, E dom Sueiro ao castello, Ao seu castello voltava. Arde-lhe na alma o desejo Com as imagens do goso, E róe-lhe idéa damnada O coração criminoso. Infeliz e linda Elvira, Nos dias da juventude, Perdera nos braços delle Flor de innocencia e virtude. Mas gosos faceis não duram; Breve após o tedio chega: Elvira é já enfadonha: Novo amor o alcaide cega. Cumpre de si afasta-la: O caso difficil é: Ajunctará crime a crime? Elle outro meio não vê. Emfim decidiu-se: a morte Em aurea taça lhe deu. Nobre senhor, folgar pódes, Teu crime a terra escondeu! Era noite: e dom Sueiro Para o adro ermo partia. Logar, horas ou remorsos, Nada terror lhe infundia. Brilha a lua em seu crescente: Passa a noite silenciosa; E só lhe quebra o socego O mocho e a fonte ruidosa. Ao cabo o adro elle avista: No meio o teixo lhe avulta: Não deu meia noite ainda; A dama ainda se occulta. Mas troa o sino! Uma!... Duas!... Contou; contou: mais dez são: E uma donzella, de branco, Surge da lua ao clarão, E está debaixo do teixo. Para lá o alcaide corre. Não enganou seus desejos Essa por quem elle morre. Porém que é isto? Recúa? Para trás a face vira? Sim; que não era a donzella, Mas o phantasma de Elvira. «Maldicto!--clamou o espectro-- Pune a traição o traidor. Negro o sepulchro te espera. De teu mal és só o auctor. Pensa, monstro, emquanto é tempo; Que não tardará teu fim. Teu nome apagou-se. Agora, Recorda-te bem de mim!-- Não disse mais; e esvaeceu-se. Dom Sueiro, espavorido, Fugiu: sem volver os olhos, Sem parar, sempre ha corrido. Brilha a lua em seu crescente: Passa a noite silenciosa; E só lhe quebra o socego O mocho e a fonte ruidosa. Á porta do seu castello Já dom Sueiro chegava. Alli, vestida de branco, Do bosque a donzella estava. «Mal-hajas tu, cavalleiro:-- Apenas o viu lhe disse:-- O ter de mulheres medo É signalada pequice. Fui eu que fiz de phantasma: Teu valor conhecer quiz. Tremer como tu tremeste É só proprio de homens vís.-- As faces do nobre alcaide De vermelho se tingiram; Mas voltou logo a ternura; Passados sustos fugiram. «Vinde a meus braços, querida! Vinde: não vos detenhaes, Digna de ser minha esposa Só vós sois, e ninguem mais. Neste sitio, hoje vos juro Amor firme e puro e ardente: Em corpo e alma sou vosso; Sê-lo-hei eternamente.»-- «Em corpo e alma!?--ella clama, Com uma voz sepulchral.-- Certo será graciosa Nossa união conjugal!» Então, qual bravo terçol, Que em sua presa poz mira, Ao mesquinho dom Sueiro, Abrindo os braços, se atira. «Arredo! Filha do inferno!-- Grita o alcaide.--Isto o que é?» Ai!... olhou... É dona Dulce, Não a donzella, quem vê. Com os braços descarnados Ella o collo lhe estreitou, E os labios apodrecidos Aos labios delle chegou. Mortal halito de serpe Seu halito assemelhava: Sua figura era horrivel: Tocada apenas gelava. «Deixa-te agora de medos:-- Disse o espectro a dom Sueiro.-- Que é da audacia que mostravas, Audacia de cavalleiro? Tremes?... De quê, assassino? Antes devêras tremer, Quando envenenaste Elvira, E a tua pobre mulher. Meu amor e meus encantos Pouco tempo te prenderam: Em mim do sepulchro os vermes Por tua mão se pasceram. Depois, a amar-me tornando, Repetiste um crime horrivel... Teu amor é frouxo sempre; Teu odio sempre terrivel! Mas agora, odiada ou grata, Não sairei de teu lado: Nada quebra no outro mundo Dos mortos negro noivado. Alma e corpo me cedeste: O corpo aqui dormirá: Porém tua alma comigo Mais longe se acolherá!» Não lhe respondeu o alcaide, Que a morte empallidecera, E, ao som de arranco profundo, No chão, extincto, batera. Mas contam 'inda os pastores, Que á meia-noite vagueia Nas margens do ameno Lima, Que murmurando serpeia; E que, gritando e gemendo, O seguem duas figuras, Ambas com brancos vestidos E tisnadas cataduras. O CANTO DO COSSACO. (_Béranger_). Vem, meu ginete: oh vem, meu nobre amigo! Chama-te em altos sons tuba do norte. Prestes no saque, intrepido nas brigas, Dá, guiado por mim, asas á morte. Os teus jaezes não arreia o ouro; Mas de meus feitos o terás em paga. Meu ginete fiel, rincha orgulhoso, E os reis e os povos com teus pés esmaga. Tuas rédeas me entrega a paz que foge. Ei-los por terra os europeus baluartes! Meus aureos sonhos realisa agora; Terás repouso na mansão das artes. Volve a terceira vez ao Sena inquieto, Que te lavou sangrento, e a sede apaga. Meu ginete fiel, rincha orgulhoso, E os reis e os povos com teus pés esmaga. Reis, sacerdotes, grandes nos clamaram, Entre o choro de mi­seros humanos: --Cossacos, vinde ser de nós senhores! Servos seremos, por ficar tyrannos.» E a cruz e o sceptro quebrarão meus fortes; Que eu hei tomado minha lança e adaga. Meu ginete fiel, rincha orgulhoso, E os reis e os povos com teus pés esmaga. De um enorme gigante vi o espectro Nosso campo correr co' a vista ardente; E, gritando:--meu reino outra vez surge!»-- Mostrar com a acha d'armas o occidente. A sombra era immortal do rei dos Hunos; D'Áttila a voz, qual maldicção aziaga. Meu ginete fiel, rincha orgulhoso, E os reis e os povos com teus pés esmaga. De que serve seu brilho á velha Europa? Que lhe presta o saber para salvar-se? Os turbilhões de pó, que hão-de sumi-la, Debaixo de teus pés vão levantar-se. Templos, palacios, leis, memorias, usos, Na correria extrema, e pisa e estraga. Meu ginete fiel, rincha orgulhoso, E os reis e os povos com teus pés esmaga. O CAÇADOR FEROZ. (_Burger_). Sua buzina tocára O conde, altivo senhor: «De pé, de cavallo, álerta!-- Disse; e monta o corredor. O nobre animal relincha: Pula e parte; e a turba após. Ei-los vão! Quem era o conde? Era o _caçador feroz_. Por estevaes e por sarças, Por campinas cultivadas, Voam rapidos. Resoam Motejos, gritos, risadas. O sol que vinha rompendo Em luz as veigas banhava, E do zimborio do templo O lanternim scintillava. «_Tlim, tlão!_--convocando á missa, Tangia o sagrado sino; E involto nos sons de um orgam, Do côro se ouvia o hymno. Duas sendas lá se cruzam; E a turba chegára lá. Da direita um cavalleiro, E outro da esquerda está. Nedio ginete, qual neve Alvo, guiava o primeiro; O segundo, á rédea solta, Esporeava um fouveiro. Quem taes cavalleiros eram Creio certo adivinha-lo, Bem que ainda com certeza Não me atreva a declara-lo. Da direita ao cavalleiro Fulgia o rosto formoso; Porém no olhar do da esquerda Fulgor havia horroroso. «Bem vindos sois, cavalleiros; Bem vindos á montaria! Qual prazer, no céu, na terra, Ao nosso se igualaria!-- Assim disse o conde, e rija Palmada na côxa deu. Atirando pelos ares A grande altura o chapeu. «O som da tua buzina-- Tornou logo o da direita-- Nem aos canticos do côro Nem do sino ao som se ageita. Ruim caçada te espera! Atrás te cumpre voltar. Contra ti a ira celeste Não queiras desafiar.» «Nobre conde monteae-- Prestes o outro atalhou-- Que importa a bulha do côro, E se o sino badalou? Deixae ao povo o seu medo: Que para a relé foi feito. Não são palavras sandías Das que merecem respeito.-- «Ah, bem dicto! Oh tu da esquerda, Um heroe és quanto a mim. Só padre-nossos empecem A algum caçador ruim! Que tem missas, que tem resas Com o montear, sandeu? Se medo queres metter-me, Falhou o calculo teu.-- Disse o conde. Ávante correm: Vão por campinas e outeiros. Sempre da direita e esquerda Estão os dous cavalleiros. Eis, lá em distancia, um cervo Branco transpõe a assomada, Tendo de pontas galhosas A erguida fronte adornada. Então o conde a buzina Com mais alento assoprou, E tudo, a pé, a cavallo, Com mais rapidez voou. Ora dos que por diante, Ora dos que de trás vão, Um ou outro rebentado Fica no meio do chão. E o conde:--Cahem? No inferno Baqueiar podesseis vós! Os que desalentam fiquem: Sem elles bem vamos nós.-- N'uma seara guarida, Fugindo, o cervo buscou: O pobre dono do campo, Triste, ao conde se chegou: «Meu bom senhor--clamou elle-- Compaixão, meu bom senhor! Ah, poupae mesquinhos fructos De um abundante suor.-- Da direita o cavalleiro O conde amoestou então: Cortezes eram seus dictos, Cortezes e de razão: Mas, atiçando-o o da esquerda Á maldade perpetrar, Desprezou o da direita Para o maldicto o enredar. «Fóra cão!--ao camponez Grita o conde esbravejando-- Quando não, com mil diabos, Soltar-te a matilha mando. Álerta, socios! O açoute Pelas orelhas chegae-lhe; E que sou fiel ás juras Dessa maneira provae-lhe.» Dicto e feito. O conde salta Por cima os vallos fronteiros; E atrás delle, estrepitando, Homens, cavallos, balseiros. O tropel, com grita horrenda, Pisa e destroe a seara; Que ninguem do lavrador Dorido choro escutára. Pelo estridor acossado, Que já bem perto sentia, O cervo os crueis intentos, Veloz fugindo, illudia. Através de montes, valles, Perseguido e não tomado, Manhoso se foi metter Entre um rebanho de gado. Entrando do campo ao bosque, Saindo do bosque ao claro, Seguiram-no os cães, e em breve Lhe acharam da pista o faro. Cheio de angustia o pastor, Por seu rebanho temendo, Por terra se arremessou Aos pés do conde, tremendo. --Deixae meu pobre rebanho; Senhor, tende dó de mi: De muitas tristes viuvas O gado retouça aqui. Cada qual das pobrezinhas Tem das rezes uma só: Eis toda a sua riqueza: Senhor, tende dellas dó.» Da direita o cavalleiro O conde amoestou então: Cortezes eram seus dictos, Cortezes e de razão: Mas a maldade do conde Sempre atiçava o da esquerda, E elle, o bom ludibriando, Corria á ultima perda. «Cão! A mim oppôr-te queres? As contas vou-te eu fazer. Quem me déra entre essas vaccas Comtigo as taes velhas ver; Que seria o mais suave Prazer do coração meu Montear-vos, mais que fosse Pelas campinas do céu. Álerta, socios, ávante! Cães, avança! csê! perdido!-- E os cães no que acham mais perto Saltam com fero latido. O pegureiro por terra Cái em seu sangue banhado, E sanguento o gado fica Todo alli atassalhado. Á morte escapou a custo O veado, que fugia Cada vez menos ligeiro, N'uma floresta sombria. Cuberto de escuma e sangue, Perdida a respiração, Do bosque em meio salvou-se No alvergue de um ermitão. Segue-o o tropel incançavel: Estala o açoute incessante: Soam buzinas; retinem Os gritos de--abóca! ávante!» O solitario piedoso Da cabana então saíu, E ao conde, com brando gesto, Taes palavras dirigiu: --Senhor, deixa teus intentos, E o sacro asylo venera: A creatura ao céu se queixa; Delle teu castigo espera. Aos bons avisos, oh conde, Cede pela ultima vez; Quando não, na perdição, Certo, abysmado te vês.» Cuidadoso o da direita Ao conde correu então: Cortezes eram seus dictos, Cortezes e de razão. Mas o da esquerda atiçando Nelle o animo damnado, Do bom apesar do aviso, Ai, do mau foi enganado! «Perdição?! Disso me rio, Não cuideis que eu tenha susto. No terceiro céu que fôra Me escapára o cervo a custo. Que me importa a ira divina? Vae-te prégar ao deserto. Teus sermões a montaria Não farão falhar, por certo.-- Assim disse o conde. O açoute Sacode; as buzinas soam. «Csê! abóca!..--Ui! de diante Homens e cabana voam. De trás corceis, homens fogem: Sons e gritos de caçada Se esvaecem de repente Da morte na paz gelada. Pávido o conde olha em roda: Tóca a buzina... não soa: Grita... em vão: nada ouve: o açoute Vibra: mas no ar não toa. Para um e para outro lado O seu cavallo esporeia... Nem para trás voltar póde, Nem àvante se meneia. Então escurece emtorno: Cada vez mais de ennegrece: Qual sepulchro fica: ao longe Bramir triste o mar parece. Lá troa voz de trovão! Que era o que dizia a voz? Era a sentença do conde, Sentença medonha e atroz. «Genio infernal, atrevido Contra Deus, homens e feras! Das creaturas os gemidos Resoaram nas espheras. Tuas maldades e insultos Alto pedem punição, Onde da vingança o facho Ondeia erguido clarão. Malvado, foge; que os monstros Do inferno te vão seguir, Para que sejas exemplo Aos tyrannos do porvir!» Qual d'aurora boreal, Flavo pallido fulgor Tingiu então na floresta Das folhas a verde côr. Immovel, pasmado, mudo, Gelado o conde ficou; Trépida angustia dos ossos Á medulla lhe chegou. Frio susto pela frente Contra elle arroja o terror: Pelas costas o persegue O trovão atroador. O susto o gela; o céu ruge... Da terra vai-se elevando Negra agigantada mão, Ora abrindo, ora fechando. Pelos cabellos da fronte, Ai, quer o conde prender!.. Elle atrás o rosto volta; Nem mais o pôde volver. Em roda chammeja a terra Verde, azul, vermelho fogo: Delle um mar rodeia o conde: Surge o inferno em peso logo. Lá dos abysmos profundos Sáem mil mastins raivosos, Que, pelo averno açodados, Se tornam mais furiosos. Toma alento o conde, e foge: Por montes, por campos vai, Do seio arrancando a espaços Do espanto terrivel ai: Mas por todo o largo mundo Atrás delle ruge o inferno, De dia do orbe no centro, De noite no ar superno. Ficou-lhe a face voltada, Por mais que ávante corresse, Sem que dos horridos monstros Os olhos tirar podesse. Eis como a caçada foi Do tropel desenfreiado, A qual até nossos dias Tão constante tem passado, Que, muitas vezes, durante As horas da noite escura, Ainda ao dissoluto causa Do medo o horror e amargura De bastantes caçadores Podia a boca dize-lo, Se antes não lhes conviesse Calado comsigo te-lo. O CÃO DO LOUVRE. (_Delavigne_). Tu que passas, descobre-te! Alli dorme O forte que morreu. Dá ao martyr do Louvre algumas flores; Dá pão ao seu lebreu. Da batalha era o dia. O canhão troa: E o livre corre á morte, e juncto delle O seu cão vai: A mesma bala ambos feriu: o martyr Não deploreis: o amigo seu que vive Só pranteai! Tristonho, sobre o forte elle se inclina, Affagando-o e gemendo; e a ver se acorda Põe-se a latir; E do seu companheiro no combate Sobre o cadaver sanguinoso o pranto Deixa cahir. Essa gleba guardando onde repousam As cinzas dos heroes, nada o consola No seu gemer; E ao que o ameiga triste repellindo, «Oh, que não és meu dono!--o cão parece Tentar dizer. Quando sobre as grinaldas de perpetuas O matutino alvor da aurora o orvalho Faz scintillar, Os olhos abre vívidos, e pula Para affagar seu dono, que elle pensa Ha-de voltar! Quando da noite a viração as c'roas Fez ranger sobre a cruz do monumento, Desanimou: Elle quizera que seu dono o ouvisse; E ladra e uiva; mas o adeus de á noite Lá lhe faltou! O inverno chega, e a neve, com violencia, Cái, e branqueia, e esconde esse gelado Leito de morte: Ei-lo que sólta um lugubre gemido, E busca, alli deitando-se, ampara-lo Do frio norte. Antes que os membros lhe entorpeça o somno, Mil tentativas para erguer a campa Inuteis faz: Depois comsigo diz, como hontem disse, --Quando acordar, por certo, ha-de chamar-me.» E dorme em paz. Mas, na alta noite, em sonhos vê trincheiras, E seu dono entre as balas encontradas Cahir ferido: E ouve-o que o chama com sibillo usado; E ergue-se e corre após uma van sombra, Dando um bramido. É alli que elle espera horas e horas, E saudoso murmura: alli pranteia, E morrerá. O seu nome qual é? Todos o ignoram. O que o sabía, o dono seu querido, Nunca o dirá!.. Tu que passas, descobre-te! Além dorme O forte que morreu. Dá ao martyr do Louvre algumas flores, E esmola ao seu lebreu. LEONOR. (_Burger_). Ralada de ruins sonhos Já desperta está Leonor, E 'inda agora os céus d'oriente Da manhan tingiu o alvor. «Guilherme, és morto?--ella exclama-- Ou trahiste a pobre amante? Se vives, porque retardas De te eu ver feliz instante?» Nas tropas de Friderico Tempo havia que partíra Para a batalha de Praga, E cartas delle quem vira? Mas a imperatriz e o rei[1], De guerras, emfim, cansados, Depondo os animos feros, De paz faziam tractados. Já aos seus lares tornavam Ambas as hostes folgando. Cingem frentes ramos verdes; Vem atabales rufando. E por montes e por valles Velhos e moços chegavam, Dando brados de alegria, A encontrar os que voltavam. «Boa vinda! Adeus!--diziam As filhas, noivas, e esposas. E Leonor? Nenhum dos vindos Lhe faz caricias saudosas. Por Guilherme ella pergunta; Por qual estrada viria. Vão trabalho; vans perguntas: Novas delle quem sabia? Não o vê. Passaram todos... Em furioso devaneio, Ei-la arranca as negras tranças; Fere crua o lindo seio. Sua mãe, correndo a ella: «Valha-me Deus!--lhe bradou.-- Minha filha, pois que é isso?!» E entre os braços a apertou. «Minha mãe, perdeu-se tudo! O mundo, tudo perdi: De nada Deus se condoe... Oh dor, oh pobre de mi!-- «Ai! Jesus venha á minha alma! Filha, um padre-nosso resa. Deus é pae: sempre nos ouve: Nunca a humana dor despreza.-- «Minha mãe, inutil crença! Que bens me tem feito Deus? Padre-nossos!.. padre-nossos!.. Que importam resas aos céus?-- «Ai! Jesus venha á minha alma! Pois não é quem resa ouvido? Busca da igreja o consolo Verás teu pesar vencido.-- «Mãe, oh mãe, esta amargura Nenhum sacramento adoça: Não sei nenhum sacramento, Que aos mortos dar vida possa.-- «Filha, quem sabe se, ingrato, Elle ás promessas faltou; E lá na remota Hungria Novo amor o captivou? Se, mudavel, te abandona, Do crime o premio terá: Do ultimo trance na angustia O remorso o punirá.-- «Morreu-me, oh mãe, a esperança. Perdido... tudo é perdido! Morrer, tambem, só me resta. Nunca eu houvera nascido! Foge, oh sol resplandecente! Manda a noite e os seus terrores... Deus, oh Deus, que nunca escutas O gemer de humanas dores.-- «Meu Senhor! A desditosa Não pensa o que a lingua exprime. Não julgues a filha tua: Nem te lembres do seu crime. Vans paixões esquece, oh filha: Cogita no goso eterno, No sangue que te remiu, E nos tormentos do inferno.-- «O que é goso eterno, oh mãe, E o inferno em que consiste? Com Guilherme ha goso eterno, Sem Guilherme o inferno existe. Sem elle, que a luz fugindo, Se troque em nocturno horror; Sem elle, no céu, na terra Só conheço acerba dor!» Assim no sangue e na mente Furia insana lhe fervia: Cruel chamando ao Senhor, Mil blasphemias repetia. Desde o sol brilhar no oriente Até que o céu se estrellava, As mãos, louca, retorcia, O brando seio pisava. ----- Porém ouçamos!.. A terra Pisa um cavallo lá fóra!.. E pelos degraus da escada Tinem sons d'espada e espóra... Ouçamos! Batem na argola Pancadas que mal feriram... E através das portas, claro, Estas palavras se ouviram: «Oh lá, querida, abre a porta. Dormes? Estás acordada? Folgas em riso? Pranteias? De mim és 'inda lembrada?-- «Guilherme, tu?! Na alta noite? Tenho velado e gemido. Quanto padeci!.. Mas, d'onde Até 'qui tens tu corrido?!-- «Nós montamos á meia-noite Só. Vim tarde, mas ligeiro, Desde a Bohemia, e comigo Levar-te-hei, por derradeiro.-- «Oh meu querido Guilherme, Vem depressa: aqui te abriga Entre meus braços; que o vento Do bosque as crinas fustiga.-- «Rugir o deixa nos matos. Sibilla? Sibille embora! Não paro... que o meu ginete Escarva o chão... tine a espóra... Nosso leito nupcial Dista cem milhas d'aqui. Sobraça as roupas... vem... salta No murzelo, atrás de mi.-- «Além cem milhas, me queres Hoje ao thalamo guiar? Ouve... o relogio ainda soa: Doze vezes fere o ar.-- «Olha em roda! A lua é clara: Nós e os mortos bem corremos. Aposto eu que n'um instante Ao leito nupcial iremos?-- «Mas dize-me, onde é que habitas? Como é o leito do noivado?-- «Longe, quedo, fresco, breve: De oito taboas é formado.-- «Para dous?--«Para nós ambos. Sobraça as roupas: vem cá. Os convidados esperam: O quarto patente está.-- Sobraçada a roupa, a bella Para o ginete saltou, E ao seu leal cavalleiro Co' as alvas mãos se enlaçou. Ei-los vão! Soa a corrida. Ei-los vão, á fula-fula! Ginete e guerreiro arquejam: A faisca, a pedra pula. Ui, como, á direita, á esquerda, Ante seus olhos se escoam Prado e selva, e do galope Sob a ponte os sons ecchoam! «Tremes, cara? A lua é pura. Depressa o morto andar usa. Tens medo de mortos?--«Não. Mas delles falar se escusa.-- «Que sons e cantos são estes? O corvo alli remoinha! Sons de sino? Hymnos de morte? É morto que se avizinha!-- Era de feito um saimento, Que andas e esquife levava: Aos silvos de cobra em pégo Seu canto se assemelhava. «Um enterro á meia-noite, Com psalmos e com lamento, E eu a minha noiva levo Ao sarau do casamento? Vinde, sacristão e o côro, O ephitalamio entoai-nos; Vinde, abbade, e antes que entremos No leito, a bençam lançai-nos.-- Cala o som e o canto: a tumba Some-se: finda o clamor A seu mando; e o tropel voa Na pista do corredor. Sempre mais alto a corrida Soa. Vão á fula-fula. Ginete e guerreiro arquejam: A faisca, a pedra pula. Como á dextra e esquerda fogem Montes, bosques, matagaes! Como á dextra e esquerda fogem Cidades, villas, casaes! «Tremes, cara? A lua é pura. Depressa o morto usa andar. Temes os mortos, querida?-- «Ai, deixa-os lá repousar!-- «Olha! Ao redor de uma forca Dançar em tropel não vês Aereos corpos, que alvejam Da luz da lua através? Oh lé, birbantes, aqui! Birbantes, acompanhai-me! Vinde. A dança do noivado Juncto do leito dançai-me.-- E os vultos vem após logo, Ruído immenso fazendo, Como o furacão nas folhas Seccas do vergel rangendo. E resoando a corrida Ei-los vão, á fula-fula. Ginete e guerreiro arquejam: A faisca, a pedra pula. Para trás fugir parece Quanto o luar allumia; Para trás suas estrellas Sumir o céu parecia. «Tremes, cara? A lua é pura. Depressa o morto andar usa. Temes os mortos, querida?-- «Ai, delles falar se escusa!-- «Murzelo, o gallo ouvír creio! Breve a areia ha-de correr... Murzelo, avia-te, voa; Que sinto o ar do amanhecer! Nossa jornada está finda: Ao leito nupcial chegámos: Ligeiro os mortos caminham: A méta final tocámos.-- D'uma porta ás grades ferreas Á rédea solta chegaram, E de fragil vara ao toque Ferrolho e chave saltaram. Fugiram piando as aves: A corrida, emfim, parára Sobre campas. Os moimentos Alvejam; que a noite é clara. Peça após peça, ao guerreiro Cáe a armadura lustrosa Em negro pó impalpavel, Qual de isca fuliginosa. Sua cabeça era um craneo Branco-pallido, escarnado: Nas mãos tem fouce e ampulheta, Triste adorno de finado. Alça-se e arqueja o ginete: I­gneas fai­scas lançou, E debaixo de seus pés Abriu-se a terra, e o tragou. Dos covaes surgem phantasmas: Feio urrar os ares corta: Bate incerto o coração Da donzella semimorta. Ao redor danças de espectros Em remoinho passavam: Canto de medonhas vozes Era o canto que cantavam: «Aflliges-te? Oh, tem paciencia! Não fosses com Deus audaz. Teu corpo pertence á terra: Á tua alma o céu dê paz.-- [1] Maria-Theresa d'Austria e Friderico de Prussia. A COSTUREIRA, E O PINTASILGO MORTO. (_Lamartine_). Tu cujas azas tremulas O meu olhar tornava; Cujo trinado harmonico Meus dias alegrava, Ai, já não ouves!--Chamo-te, E é vão este chamar! Chegou a estação gelida; Foi para te matar. Nunca me has-de esquecer! Por bem seis annos, Companheira leal Tu me foste, avesinha; Meiga entre as meigas, desprezando os campos, Deslembrada da mãe, que, á noite, aninha No movel cannavial. A ti, affeita a mim, affiz-me em breve. Meu unico recreio Era brincar comtigo. Ao veres-me encerrar no pobre alvergue Gorgeiavas, e o tedio o canto amigo Volvia em brando enleio. Meu amor te suppria a liberdade; Meus passos traduzias, Meu gesto, meu falar; Repetias-me o nome em teus modilhos; Punhas-te a chilrear Quando sorrir me vias. Oh, que par! Que viver sereno e sancto! Estavamos tão bem! Nosso parco alimento Com a ponta da agulha eu mourejava, E dizia scismando:--o meu sustento É o delle tambem.» Sementes varias dava-te co' a alpista, E, qual ramalhetinho Feito na orla do prado, Á 'splendida gaiola atar me vias, Para debique teu, de herva um punhado, De alface um tenro olhinho.... Se ao menos fosse licito Saberes que pranteio!.. Ai, foi em dia identico, Que teu adejar veio Fazer brilhar o jubilo Neste triste aposento, Onde em saudosa magua, Sósinha te lamento! INDICE. LIVRO I A HARPA DO CRENTE PAG. A Semana Sancta. 3 A Voz. 35 A Arrabida. 41 Mocidade e Morte. 63 Deus. 81 A Tempestade. 87 O Soldado. 95 A Victoria e a Piedade. 111 A Cruz mutilada. 121 LIVRO II POESIAS VARIAS. A Perda d'Arzilla. 137 A Rosa. 147 O Mendigo. 151 O Bom Pescador. 159 Tristezas do Desterro. 165 O Mosteiro deserto. 185 A Volta do Proscripto. 201 N'um Album. 211 A Felicidade. 217 Os Infantes em Ceuta. 221 LIVRO III VERSÕES O Seccar das Folhas. 273 A Noiva do Sepulchro. 277 O Canto do Cossaco. 293 O Caçador feroz. 297 O Cão do Louvre. 311 Leonor. 315 A Costureira e o Pintasilgo morto. 327 --- Provided by LoyalBooks.com ---