PORTUGAL E MARROCOS PERANTE A HISTORIA E A POLITICA EUROPEA por Carlos Testa Capitão de mar e guerra LISBOA Typographia Universal (Imprensa da Casa Real) 110, Rua do Diario de Noticias, 116 1888 ADVERTENCIA Não é nova a idéa, ou talvez chimera, que constitue o objecto d'estas linhas. Quem agora as apresenta, ainda ha poucos annos as emittiu por incidente, ao considerar uma questão de politica internacional que então se ventilava. A repetição do que então se consignou, explica-se pela obediencia aos mesmos dictames de um sentimento intimo, talvez illusorio, mas que para ser plausivel ou desculpavel, tem agora por si certa ordem de factos e a perspectiva de phases politicas e combinações diplomaticas, que tornam talvez opportuna a sua apreciação. Tal é o motivo e o fim que pode justificar a repetição d'estas considerações. Lisboa--Janeiro de 1888. I Dos grandes continentes que compõem o denominado Velho Mundo, é a Africa aquelle que ainda em grande parte mal devassado, se tornou modernamente objecto de uma especial attenção das potencias Europeas. Se o geographo, o geologo e o naturalista alli encontram amplo assumpto para estudo, na delimitação de seus territorios, de seus extensos rios, vastos lagos, asperas florestas, e na observação das feições do solo, e de seus differentes productos, tambem aos homens d'estado, secundando as vistas politicas e os variados interesses das potencias, não se tornou indifferente a importancia que a estas póde advir no futuro, da exploração d'aquelle vasto continente. No decurso dos acontecimentos de que o Mundo é o grande theatro, e a humanidade o actor, difficil cousa seria o pretender subordinar taes acontecimentos a uma regra invariavel, de modo a sujeitar seus effeitos a causas precisas. Problema assaz complexo seria pois o pretender designar e precisar o que possa haver contribuido para o atrazo em que a Africa ficou perante as outras regiões do Globo, mui posteriormente descobertas e conhecidas. Todavia talvez se podessem apontar como causas d'esse relativo abandono de tão vasta região, a influencia de um clima em grande parte deleterio, as difficuldades materiaes de transpôr suas inhospitas planicies e asperas cordilheiras, a influencia que a escravidão e seu trafico podessem ter no desvio de praticas mais conducentes á sua proficua exploração, e talvez mais do que tudo, a attenção de preferencia dada para outros emprehendimentos que eventualmente offereceram novas expansões á actividade humana. Mas, cousa notavel, se a Africa na sua maior extensão se apresenta ainda hoje por devassar nas suas regiões centraes, em contraposição deixa-nos vêr na sua orla mais septentrional uma zona de territorio já conhecido e explorado desde tempos os mais remotos, e na qual mais se disputaram os pleitos em que a humanidade andou por seculos empenhada em luctas de supremacia, mas onde ainda modernamente não se operou sensivel modificação em suas condições semibarbaras de existencia e de viver social, perante a grande transformação que o Mundo experimentou durante as mais modernas edades. Basta lançar uma vista sobre o mappa do Mundo, e folhear a historia do passado, para se tornar evidente esta verdade, que ao passo que nos leva a meditar nos commettimentos de outras eras, nos permitte evocar as eventualidades do futuro. Era limitada a area do Mundo conhecida na antiguidade. Abrangia ella na velha Europa o grande tracto desde as regiões Boreaes até ao Atlantico; na Asia as vastidões que desde a Scythia vão até á India Transgangetica para o Oriente, e até á Arabia pelo Occidente; e na Africa o vetusto Egypto, esse ancião dos povos, séde de uma das mais antigas civilisações que a historia recorda, testemunhada pelas ingentes pyramides e collossaes sphinges que por longo tempo causaram a desesperação dos archeologos. Seguindo a orla septentrional d'este continente, a Lybia, onde os Phenicios levaram suas colonias á fundação de Carthago, deixa-nos vêr a vetustidade d'aquella parte do Globo que já para o grande poeta do Lacio fornecia inspirações tiradas de factos coévos de Dido e dos exules de Troia. Depois a Numidia até á Mauritania, banhadas em seus littoraes pelo _mare internum_ ou Mediterraneo, até findar nas columnas de Hercules. A historia, portanto, durante milhares de annos, desde os tempos heroicos da Grecia, desde as nacionalidades mais remotas, Egypcias, Chaldéas e Assyrias, deixa-nos vêr as emigrações dos primeiros povos, a vida das gerações que se succedem, as navegações dos Phenicios, a grandeza de Carthago, a vastidão do poderio Romano, as invasões dos Barbaros, a destruição d'aquelle imperio collossal, a formação de novas nacionalidades, as invasões dos Sarracenos da Asia sobre os vandalos da Africa, e depois d'alli sobre a Europa, e mais tarde as cruzadas seguindo de Occidente sobre o Oriente. A geographia á sua parte deixa-nos vêr que todos esses aturados conflictos em que se decidiam pelo poder da força e pelo enthusiasmo das crenças, as luctas em que ora o Norte assoberbava o Meio Dia, ora o Oriente invadia o Occidente, ora se trocavam as invasões em sentido inverso, tinham por ambito aquella limitada porção do Globo conhecido, cujos littoraes eram banhados pelas aguas d'aquelle mar, ao qual por sua situação bem cabia o nome de Mediterraneo. Mas, se a obra dos seculos, mudando a face do Mundo moderno, deixava que parte do antigo permanecesse quasi nas suas condições primitivas, ou quasi esquecido dos obreiros da civilisação, á sua parte a historia da humanidade, revelando as variadas tendencias de suas differentes epocas e sociedades, tambem nos deixa vêr exemplos de nações ás quaes parece que a Providencia commetteu uma ou outra missão a cumprir, em virtude de caracteres peculiares de sua existencia e condições geographicas. N'este sentido coube tambem a Portugal uma boa parte e um importante papel a desempenhar nas evoluções sociaes pelas quaes o Mundo tem passado. Paiz pequeno, mas situado na orla mais occidental onde a Europa é banhada pelo Atlantico, foi a elle que competiu a missão de alargar os horisontes da geographia, rompendo aquelle limite além do qual tudo era desconhecido. No desempenho de tal encargo, não faltou aos dictames que uma justa hombridade lhe podia impôr, assim como tambem não deixou de mirar a um objectivo que significava uma conveniencia geral, a bem da humanidade. Assim foi, que quando ao deslisar da Edade Média D. João I conduziu suas hostes á conquista de Ceuta, levando a guerra á Africa, obedecia ainda áquelle impulso que vinha dictado pelo antagonismo de crenças e resentimento de armas. Não estava ainda de todo extincto aquelle espirito religioso, que quando levado até ao fanatismo, formára o ideal do heroismo cavalheiroso das cruzadas. A guerra aos inimigos da cruz como proseguimento das conquistas operadas sobre o crescente, e que fôra o principio em que se baseára a monarchia fundada em Ourique, estava apenas differida mas não finda. A guerra levada á Africa era pois o proseguimento da conquista sobre terras de mouros, tão justificada d'além, como o fôra nos Algarves d'aquem mar. Era a continuação da pugna, já uma vez encetada, e depois addiada mas ainda não terminada, contra os inimigos da fé. Era ainda dictada não só pelo ressentimento de armas e por aquelle não amortecido antagonismo de crenças que primeiro havia inspirado as cruzadas, mas a par d'isto por outra mira politica não menos grandiosa em seu conceito, qual a de alargar pela conquista material até aos _Algarves d'além mar_, o territorio e dominio da monarchia, como sendo a mais facil conquista, e a mais natural expansão do poderio portuguez. Esse pensamento de dilatar na Africa tal conquista como territorio de Portugal e não como feitoria colonial, quando proseguido e mantido, poderia ter dado logar a uma phase politica de grande alcance futuro, e que haveria formado de Portugal um grande estado europeu africano. Mas, aventurando-se a outros emprehendimentos deixou de seguir um plano que teria sido util para si, abalançando-se a outro que de futuro haveria de ser mais util á humanidade. Assim foi que outros enlevos, outras ambições, outros calculos de interesse, antecipando-se áquelle primitivo movel moral, o vieram impellir ao empenho de procurar novas regiões, transpondo o mar, alargando os limitados dominios em que a geographia se achava contida. Ceuta, o primeiro baluarte da Mauritania, foi o posto avançado para assegurar o ponto de partida e franquear o caminho, que aquelle inclito principe filho de D. João I, o immortal infante D. Henrique, preparava aos que largando de Sagres haviam de explorar as costas desconhecidas, desde o occidente, e a seguir para o sul, no continente africano. A obra a emprehender era tal, que n'ella devia predominar ora o valor do soldado, ora a coragem do marinheiro. Á consciencia da justiça que auctorisava a guerra, ligava-se tambem a perspectiva de resultados grandiosos para a sciencia, bem como de um alcance mais subido, desde que redundavam em vantagem da humanidade. N'esta ardua mas gloriosa tarefa, se ao cabo Tormentoso, vencido por Bartholomeu Dias, se seguiu o caminho do Oriente ser aberto pelo Gama; se á escola de Sagres se deveu o que era o resultado do arrojo e denodo dos nautas, tambem é certo que a escola de Ceuta, Tanger, Arzilla e Azamor, que deu em resultado a conquista do littoral Africano, foi a que preparou e alimentou aquelle valor guerreiro, que durante quasi um seculo tanto contribuiu para illustrar, por seus feitos no Oriente, o nome portuguez. Em toda esta obra grandiosa, Portugal, procedendo em harmonia com o espirito da época, soube desempenhar-se nobremente da missão que lhe competiu. Adquiriu para si uma gloria immorredoura, e alcançou uma época de prosperidade, que havia de ser ephemera; mas tambem preparou os elementos de uma das maiores revoluções que na ordem social, economica e politica o Mundo viu. Foi talvez mais longe do que lhe poderia ser moralmente exigido, ou do que o seu exclusivo interesse lhe aconselhava. O Oriente absorveu suas attenções e seus recursos; e por isso a Africa, ficando revelada em suas costas e no seu limite austral, deixou pelo adiante de ser o objecto de mais aturados empenhos, esforços e vistas politicas. II O final do seculo XV deixa vêr um conjuncto de acontecimentos tão importantes e tão extraordinarios, quão vastos e transcendentes foram os seus resultados. A geographia viu alargados seus horisontes. Novos continentes, novos mares e archipelagos se revelaram; e ainda antes que um seculo decorresse, já o mundo conhecido dobrava em extensão, o que por tantos seculos constituira o theatro dos feitos humanos. A passagem do cabo da Boa Esperança, e a nova derrota aberta para os mares do Oriente, logo depois o descobrimento da America e em seguida o precurso que Magalhães emprehendeu para circumdar o globo, foram os grandes feitos que por seu vasto alcance, vinham dar nova face ao estado politico e social da humanidade. Os portuguezes, tendo em devida conta as consequencias de taes feitos, tiraram d'ahi todo o partido não só scientifico, mas tambem commercial e politico. Elles não se limitaram a descobrir e a conquistar; prestaram tambem valiosos serviços á sciencia, descrevendo novos mares, seus littoraes e suas ilhas, tirando a geographia do cahos em que se encontrava, visto que ella se limitava a descrever porções de terras e mares, mas sem nexo e sem medição, e de modo que se substituia por supposições, o que a ignorancia occultava quanto ás regiões desconhecidas. Pelo lado commercial, Affonso de Albuquerque, conquistando Gôa para séde de administração e de centro governativo de todo o Indostão, apossando-se de Malaca como emporio do commercio das Moluccas, feira universal da Aurea Chersoneso, e expugnando Ormuz chave do golfo Persico, fundava o dominio portuguez no Oriente, fechando as antigas communicações por onde d'antes se effectuava todo o trafico, que tomando pelo Mar Vermelho ou pelo valle do Euphrates vinha aportar ao Mediterraneo para depois se concentrar em Veneza, até então rainha do Adriatico e emporio europeu de todo aquelle vasto commercio. Aquella diagonal immensa que no mappa do Oriente, abrangendo Gôa, Ormuz e Malaca, fôra traçada pela espada d'aquelle grande genio e conquistada pelo seu valor, representava a realisação do programma a que elle se propozéra, formando um conjuncto que politica, militar e commercialmente abrangia todas aquellas remotas regiões onde nasce o sol, e que assim, por obra de seus feitos justificava ao monarcha portuguez o acrescentar aos titulos que já tinha de _Rei de Portugal e Algarves d'aquem e d'além mar na Africa_, os de _Senhor da conquista, navegação e commercio da Ethiopia, Arabia, Persia e India_, não como um ornamento vão da sua corôa mas como sendo uma realidade. Fechadas as antigas communicações entre a India e a Europa pelo Mar Vermelho e golfo Persico, passou aquelle commercio a não ter outro trajecto senão pelo cabo da Boa Esperança. A nova derrota maritima veio, pois, estabelecer um desvio da antiga rotina. Assim Lisboa em communicação directa com Gôa, ou antes Portugal com a India, constituiam como duas partes de um Imperio cuja ligação era o Oceano. Grande, portanto, foi a revolução commercial que d'ahi resultou temporariamente em favor de Portugal, mas affectando não só commercial mas tambem politicamente aquelles estados maritimos do Mediterraneo; pelo intermedio dos quaes d'antes era feito tal commercio, e que por elle se haviam engrandecido durante a Edade Média. Nem as ameaças do grande soldão do Egypto, o poderoso inimigo da christandade, nem os manejos da republica dos Doges, que via cortado o nervo do seu poder e de suas riquezas, acobardaram os novos dominadores em seus intentos. O monopolio do commercio e o exclusivo de navegação ficou em poder dos portuguezes, que theoricos e praticos no mar, valentes na guerra e audazes nos seus emprehendimentos, sem olhar ao numero ou qualidade dos inimigos a combater, assim com suas frotas navegavam nos golfos da Arabia e Persia, para cortar outro transito que não fosse a derrota do cabo, por onde tudo vinha a Lisboa, tornada assim o grande e unico emporio do Oriente, para d'alli se espalhar pelos portos da Europa, tanto do Oceano como do Mediterraneo. Tal foi o systema, que a politica e o espirito da epoca dictava, e que as outras nações toleravam, com aquella indifferença que lhes podia resultar, onde só viam não um prejuizo proprio, mas apenas uma alteração no ponto de abastecimento, e isto a troco de vantagens de uma ordem geral, desde que procedendo d'esta fórma, Portugal tomava a si o encargo de desviar no Oriente a attenção do poder sarraceno, já altivo e ameaçador contra a Europa. E d'isto dá valioso testemunho Raynal na sua _Historia philosophica das Indias_, quando assevera que «se não fôra o descobrimento feito por Vasco da Gama e a acção dos portuguezes no Oriente, ter-se-hia de novo apagado e talvez para sempre o facho da liberdade na Europa, pois que isto seria inevitavel se os ferozes vencedores do Egypto não fossem contidos pelas expedições d'aquelles.» Póde pois dizer-se que Portugal trabalhava para si, mas tambem lidava a pró da humanidade, cujo interesse mais do que o seu proprio era attendido em taes procedimentos, desde que, desviando sua attenção e seus esforços para outras emprezas, largava por esperanças remotas e vantagens ephemeras, os augmentos que mais perduravelmente lhe asseguraria a conquista da fronteira Africa Tingitana, fertil e visinha, e tantas vezes já regada com o sangue dos expugnadores de seus baluartes. O Oriente era o sonho dourado e a mira quasi exclusiva de todas as especulações a que a sua exploração lucrativa havia conduzido os animos. A Africa, ficava como que abandonada a meio caminho, á semelhança do que acontece com o viandante, que em demanda de aventuras busca longiquo thesouro, fascinado pelo qual, esquece outros valiosos attractivos com que topara no caminho. Mas um dominio, uma prosperidade que se baseava no exclusivo da navegação e no monopolio commercial, não podia ser perduravel. Havia uma desproporção mui grande entre os recursos da metropole e a immensidade d'aquelle desenvolvimento de possessões longiquas. Nem se póde attribuir a declinação d'esse poderio ao decahimento d'aquelle valor que illustrára tanto o nome portuguez. Ainda quando esse fosse de egual tempera ao dos Albuquerques, Almeidas, Castros, Athaydes e Mascarenhas, elle por si só não bastaria para manter pelo futuro um predominio, fundado em principios de direito, que até então se toleravam, mas que o progresso da humanidade havia de banir mais cedo ou mais tarde, por isso que significava a negação do grande principio da liberdade dos mares. Um seculo não era decorrido desde que o Oriente vira monopolisado o seu commercio e dominados os seus mares, quando a monarchia de Portugal, apoz o desastre de Alcacer Quibir, onde perdeu seu Rei e seu exercito, passava ao regímen do rei castelhano, sob o qual logo depois perderia a sua melhor força naval, no desbarato da grande armada mal denominada «Invencivel». E desde que Filippe de Castella, nas suas luctas contra os Hollandezes, prohibiu a estes o virem como d'antes ao porto de Lisboa, emporio do commercio do Oriente, aquella nação de marinheiros e de commerciantes ousados, tratou logo ao findar do seculo XVI de ir áquelles mares orientaes fazer por sua conta um commercio, do qual até então só indirectamente tiravam vantagem. Por esta fórma, a guerra que a Hollanda declarára contra Castella e Filippe, veiu em seus effeitos affectar politicamente Portugal, como dependencia que era então d'aquelle monarcha; assim como o affectou economicamente, desde que por ella foi iniciado o desmoronamento d'aquelle edificio grandioso na apparencia, mas precario na essencia, mantido apenas pelo prestigio do nome portuguez, mas que á falta de base solida cahia com a mesma facilidade com que fôra erguido. O valor portuguez com quanto não esmorecido, não bastava para acudir a tão vasto dominio e aos calculados manejos dos seus aggressores europeus e asiaticos. Os navios da carreira da India que escapavam do naufragio, eram victimas da pilhagem; a decadencia de recursos d'ahi resultante tornando o paiz empobrecido e desalentado pelas desgraças publicas e desamparado d'aquelle mesmo poder tyrannico que o dominava, e que até parecia comprazer-se de seu abatimento, dava áquelles novos pretendentes o ensejo de se irem apoderando da maior parte das possessões, que á custa de tanto valor, cabedal e vidas, os portuguezes tinham conquistado. Era este o estado de cousas que ao despontar o seculo XVII este herdava do seu predecessor. Algumas phases notaveis apresentam as complicadas luctas d'aquella epoca, pelas quaes se explicam as evoluções operadas nos dominios europeus no Oriente. A revolução de 1640, pela qual Portugal proclamou a sua emancipação da Hespanha, deu logar á guerra com esta potencia, que já a tinha tambem empenhada com a Hollanda. Perante o adversario commum, Portugal e Hollanda concluiram no anno seguinte uma convenção estipulando uma acção combinada de reciproco auxilio na Europa. Mas os hollandezes interessados n'essa acção na Europa, proseguiam no Oriente e na America a conquistar as possessões portuguezas, e assim se apossaram do Cabo da Boa Esperança e Ceylão, e parte do Brasil. Pelo tratado de Munster de 1648 entre Hollanda e Hespanha, esta reconheceu a independencia d'aquella, cedendo-lhe não só as conquistas já feitas nas possessões portuguezas, ao tempo que estas eram dependentes da monarchia hespanhola, mas dando-lhe além disso o direito sobre as que de novo fossem adquirindo na India e Brasil. Por outra parte, a paz celebrada entre a França e Hespanha em 1659 pelo tratado dos Pyrineos, deixou est'ultima potencia livre e desembaraçada de inimigos para activar a guerra contra Portugal. N'este tratado o rei de França obrigava-se a não dar ao reino de Portugal auxilio ou soccorro de especie alguma, publico ou secreto, directa ou indirectamente em homens, armas, navios, viveres ou dinheiro. Abandonado Portugal aos seus unicos exforços, succumbiria perante o poder d'Hespanha. Foi então que se negociou o tratado d'alliança e casamento com a Inglaterra em 1661, cedendo-lhe Bombaim e Tanger, e recebendo auxilio de tropas e navios. N'esse mesmo anno negociava Portugal a paz com a Hollanda, estatuindo que as possessões de parte a parte ficassem ao actual possuidor na epoca da publicação do tratado. Os hollandezes demoraram tal publicação, para no intervallo effectuarem novas conquistas, e ainda nos dois annos seguintes se apoderaram de Cranganor, Cananor e Cochim. D'este procedimento resultou que só em 1669 se concluiu a paz definitiva entre Portugal e Hollanda confirmando a esta a posse de todas as conquistas, menos Cochim e Cananor, quando Portugal désse tres milhões de florins. Foi d'este modo que as possessões que Portugal adquirira por obra do seu valor, foram tomadas pelos hollandezes que mais pelo diante as haviam de perder a favor de outra potencia. Effectivamente, os ciumes e rivalidades entre as nações maritimas que de novo disputavam a primazia commercial, deu causa ao systema de reciproca exclusão. Assim foi que o acto de navegação de Cromwell, estatuindo restricções em favor da navegação ingleza, originou a guerra que a Inglaterra moveu á Hollanda. Foi no decurso d'esta, que a Inglaterra tomou aos hollandezes, as possessões que haviam sido portuguezas. Foi pois esta nova posse realisada em resultado da conquista pelo direito de guerra, não pelo roubo, como vulgarmente se insinua, com mais espirito de sanha do que de verdade. Na guerra que os hollandezes sustentaram com tanto empenho para se apossar do que fôra obra portugueza, é digno de ser notado, que a lucta foi travada não só materialmente pelas armas, mas tambem moralmente pelo meio da argumentação e controversias dos publicistas. A questão entre liberdade ou restricção, entre força ou direito, deixou de ter por unicos arbitros a violencia e as armas. Era submettida pela primeira vez a outra prova, em que a logica e a razão universal era chamada a exercer o seu ascendente salutar, constrangendo a prepotencia a ser julgada e processada na arena da discussão. Tal foi o effeito da obra publicada em 1609 pelo celebre philosopho e publicista hollandez H. Grocio, e que tendo por titulo _Mare Liberum_, compilou todos os argumentos com que a logica d'aquelle genio superior, soube demonstrar, a inconveniencia, e a lesão de justiça e de direito universal, d'aquella pretenção ao dominio do mar, cuja liberdade o auctor proclamava, não só para os seus conterraneos mas para todos os povos, quando depois de appellar para os recursos da placida e austera discussão do assumpto, exaltava a justiça da guerra que tinha tal liberdade por objectivo. A irresistivel tendencia que tinha levado todas as attenções e actividades por aquella inebriante senda do Oriente, deu causa como se disse, a deixar a Africa esquecida e abandonada. Mais do que isso. A Africa não só ficou desprezada como objecto que se ladeia e para o qual nem se lança a vista, mas até passou a ser como que exhaurida em auxilio e proveito de novas especulações, que eram o resultado de outro acontecimento notavel entre aquelles com que a Edade Média fechava a sua época. Colombo, o ousado genovez ao serviço de Castella, e que na escola de Sagres podéra aperfeiçoar-se na sciencia da nautica e da cosmographia, em sua mais feliz do que talvez discreta insistencia de ir ao Oriente pelo Oeste, engolfando-se n'este rumo havia encontrado, não o desejado Cathay de Marco Polo, mas as ilhas que, n'essa supposição, denominou Indias Occidentaes. Era a America, com a qual poucos annos mais tarde Cabral tambem topára em latitude mais meridional, quando se afastára para o Oeste em busca da melhor monção para demandar o já devassado Cabo da Boa Esperança; bem como contemporaneamente os portuguezes Corte Reaes a ella abordavam em mais alta latitude, quando empenhados em suas audaciosas, embora baldadas tentativas, de descobrir caminho para o Oriente pelas regiões Boreaes. Parece que o destino patentava aquelle ignoto hemispherio para dar nova expansão á humanidade; mas contrabalançava uma tal vantagem, associando-a a outras consequencias que importariam a desgraça da Africa, desviando d'ella as attenções e cuidados, em homenagem ás exigencias d'aquelle novo Mundo que Colombo dava á Hespanha. Se Portugal teve no Oriente um campo vasto para façanhas, conquistas e explorações, era por sua vez a Hespanha a nação á qual se offerecia identica área, para no Occidente d'além mar alargar seus vôos no caminho de aventurosas emprezas. Uma differença porém sobresahia na missão e na tarefa que a estas duas nações cabiam. Emquanto que no Oriente os portuguezes acharam regiões habitadas por povos cujo commercio já era tradiccional e florescente, e para se assenhorear do qual lhes bastou dominar as costas, e apossar-se dos mais ricos mercados impedindo a estes outras sahidas, os hespanhoes á sua parte iam encontrar na America, ilhas só habitadas por selvagens nús, ignorantes das artes, sem historia e sem commercio conhecido ou explorado; e passando ao continente, n'essas immensas florestas virgens, onde a natureza ostentava sua magnificencia n'uma vegetação luxuosa, opulenta e variada, só mais tarde é que as minas de ouro e prata do Potosi e de Zacatecas poderam offerecer uma fonte de riqueza para attraír a attenção da metropole, pois as extorsões nos desgraçados indios, e a pilhagem dos templos de Cusco e do Mexico, serviam mais para locupletarem os invasores, do que de proveito ao governo do paiz em cujo nome se apresentavam. Mas uma raça inerte, fraca e enervada, não podia fornecer a estes novos occupantes os meios de explorar vantajosamente as riquezas a extrair do seio da terra. As violencias que soffreram os indigenas, as crueldades n'elles exercidas dizimavam a população trabalhadora. Para sanar este mal recorreu-se a outro meio apparentemente mais plausivel, mas não menos deshumano, e tão depravado, qual foi a importação dos negros d'Africa, trafico este para o qual, a torpe especulação mercantil queria achar pretextos que o justificassem, mas onde o engodo do ganho fazia calar a voz da consciencia dos especuladores d'este mercadejo de corpos opprimidos pelo trabalho e soffrimento, e de almas embrutecidas pela servidão; mercadejo infame no qual, ao ganho realisado pelo trabalho do negro, se accrescia o ganho realisado sobre o proprio negro como cousa ou artigo de mercancia, e objecto de regulamento. Tal foi a origem do trafico de escravos, que desfalcando a Africa de seus braços em vez de os convergir em seu proveito, afastou d'alli a attenção da Europa, para tudo quanto não fosse sacrifical-a ás especulações egoistas e inhumanas de que a America era causa e objectivo. Esta origem ignobil de fortunas adquiridas á custa de miserias e aviltamento da especie humana, ainda tomou outra feição não menos abominavel, desde que com ella se especulou, reduzindo-a a um monopolio official adjudicado a contratadores, que tambem punham a preço a distribuição d'esta mercadoria de carne humana, com que a Africa contribuia como adubo, do qual se fazia depender a prosperidade das colonias do Novo Mundo. É certo, todavia, que muitas vezes a grandeza do mal marca a hora da reacção tendente a cohibil-o. Assim, as importantes lutas internacionaes do fim do ultimo seculo e começo do actual, em que se debatiam grandes questões de supremacia maritima e commercial, influiram para que variasse a politica até então seguida por varias nações com relação ás colonias. Erguiam-se vozes auctorisadas nas regiões da diplomacia, lançando stygmas sobre o trafico dos negros, essa nodoa indelevel na moderna historia das nações. Proclamados estes principios no congresso de Vienna, e acceite a doutrina pelas nações cultas, em breve passou a ser sanccionada internacionalmente pelo direito convencional dos tratados. O trafico deixou de existir como regra estabelecida e tolerada, limitando-se a dar amostra de si apenas como excepção furtiva e condemnavel. Mas, o ultimo passo para se chegar á sua completa extincção, está nas leis mais modernas, que abolindo a condição de escravo e o estado servil, consignaram o que o direito natural prescreve, isto é, a liberdade do homem, sem attender a côr, condição ou logar. Foi este decerto o golpe final n'aquella aberração social e depravada pratica, a escravatura, que foi um dos grandes obstaculos á civilisação da Africa. Mas tambem n'esta parte justiça deve ser feita a Portugal, que apezar da immerecida reputação de ter sido um dos maiores fautores d'aquelle trafico reprovado, foi todavia o que menos tardou em acceitar todas as medidas e pactos que á restricção do mesmo se propunham. III Menos de quatro seculos encerram um periodo, cujo começo se assignala pelo descobrimento da America e determinação da orla maritima até aos limites austraes da Africa, mas cujo termo nos deixa vêr em nossos dias as vastas regiões centraes d'esta velha parte do Mundo, em condições que pouco se avantajam áquella, em que as deixaram os que primeiro lhes demarcaram os contornos, emquanto que na America vemos um novo continente explorado e colonisado em todo o littoral e interior da sua vasta extensão nos dois hemispherios. As transições pelas quaes passou esta grande parte do Mundo, segundo a tendencia e indole das nacionalidades que a si vincularam sua exploração e posse, por longo tempo a amoldaram ás feições que taes elementos e systema da colonisação lhe imprimiram. Mas as grandes luctas de predominio e de interesses em que a Europa andou empenhada desde o ultimo quartel do seculo passado e durante o primeiro do actual, dando logar a vicissitudes e modificações na politica e na economia de varias potencias, foram causas, que prepararam a emancipação de todos aquelles dominios. Na America septentrional, a formação de um grande Estado maritimo e commercial, actuou nas relações internacionaes, desde que deu força aos principios favoraveis á bandeira cobrir mercadoria, e a garantir os direitos dos neutros. A independencia politica successivamente proclamada e firmada de norte a sul das Americas, constituindo novos e robustos Estados com todos os elementos de uma civilisação adiantada, e com todas as vantagens de um solo fertilissimo em productos de ampla procura, teve em resultado acabar com todas as restricções e exclusões, para dar logar a um commercio extensissimo, sempre crescendo em importancia e actividade, com prodigioso desenvolvimento da navegação, e contribuindo não só para o augmento das relações com as antigas metropoles, mas tambem com os grandes mercados e centros de consumo, tornando cada vez mais firmes e garantidos, pela solidariedade de interesses resultantes, os principios de direito maritimo, e de economia social, em vantagem de todos os povos. Assim foi que o trafico do Brazil d'antes restringido todo a convergir em Lisboa, logo depois da independencia d'aquelle Estado cedeu o logar á concorrencia, pela abertura dos portos ás nações consumidoras de seus productos de tão geral procura e consumo, em vantagem não só propria, mas da antiga metropole. E ainda sobre este ponto de vista tem Portugal um grande titulo ao reconhecimento geral, em ter lançado á terra a semente da civilisação, que pelo adiante tanto havia de medrar e de fructificar n'aquella extensa região, constituindo um grande e florescente Imperio, que pela identidade de raça, de lingua e por suas riquezas naturaes e livre exploração de seu vasto commercio, constitue não só a obra mais valiosa e perduravel da colonisação portugueza, mas tambem outro valioso titulo de gloria para a nação que lhe deu origem. O quadro que fica exposto, como resultado da abolição do systema restrictivo, abrange em seus traços o que se observa percorrendo todos os mares e regiões da Asia e Oceania até aos confins do Globo. Hoje em toda a America, bem como nas costas e portos das Indias, da peninsula Malaia, dos imperios Birman, China e do Japão, e até da Australia e Nova Zelandia, e ainda em volta até ao Pacifico, se encontram não só emporios commerciaes mas tambem pontos de escala de uma navegação prodigiosa, entretida por numerosos e esplendidos navios, onde a architectura naval, a sciencia do engenheiro, e a industria do ferro, nos deixam vêr maravilhas da arte, em typos de magnificencia, solidez e segurança, estabelecendo pela livre concorrencia e pela rivalidade no serviço, aquella activa, permanente, e admiravel rêde de communicações, que o telegrapho auxilia, e que o caminho de ferro ramifica pelos continentes. Vae-se hoje aos antipodas, e quasi se faz o circumgiro do Globo, com a mesma rapidez, e com maior segurança e conforto do que ha apenas meio seculo se ia de um ponto a outro da Europa. A propria Australia e a Nova Zelandia que ha apenas um seculo eram, aquella povoada de tribus antropofagas, e ésta ainda desconhecida, partilham hoje dos mesmos resultados, deixando vêr, como em paragens onde ha pouco só havia a floresta virgem, ou banquetes canibalescos do Gunya ou do Maori selvagem, ao presente se ostentam cidades florescentes, onde a colonisação, a indole e o genio da raça anglo-saxonia, implantou todos os progressos que a civilisação opéra, e onde todos os estabelecimentos e recursos que o commercio reclama e a industria anima, rivalisam com os que se encontram nas mais opulentas cidades europeas. Isto que ha um seculo pareceria um sonho phantastico, e ha meio seculo uma utopia de visionarios, é hoje uma realidade. Mas, o que d'este quadro se deprehende, é, que se ha apenas menos de quatro seculos que a geographia viu alargar seus horisontes; se novos hemispherios, novas regiões, novos mares e archipelagos se revelaram; se o Mundo até então conhecido dobrava em extensão; e se hoje o mappa do Globo assim desdobrado nos deixa vêr uma transformação cabal no sentido não só geographico mas tambem politico e commercial, é certo tambem que o inicio de tão grandiosa obra partiu de Portugal, desde que pondo pé em Africa e abrindo depois o caminho do Oriente, se aventurou a emprezas tão grandiosas de gloria para si, mas de mais proveito para a humanidade, á qual preparou e deixou tão vasto campo para explorar, e para colher os modernos fructos da civilisação. Póde-se pois afoutamente asseverar que Portugal foi o paiz benemerito da humanidade, e que portanto tem jus ao reconhecimento das outras nações que hoje mais fortes e mais opulentas, não tiveram todavia uma parte como elle n'essa grande obra que a historia registra e o Mundo contempla. Mas a obra e acção dos seculos, ao passo que ia dando, como já se notou, nova face ao Mundo, deixava que parte do antigo permanecesse quasi nas condições primitivas, ou quasi que esquecida e desattendida pelos obreiros da civilisação e do progresso. As margens d'aquelle mar interno, o littoral d'aquella antiga Africa que o Mediterraneo banha, passaram quasi que incolumes na grande transformação operada desde uma dezena de seculos. E todavia foi ahi, n'essa zona do globo terraqueo, que mais se disputaram os pleitos em que a humanidade andou por tanto tempo empenhada. Sem remontar ás guerras Punicas, quando Carthago e Roma disputavam a supremacia do mar e o dominio da Sicilia; quando a posse de Sagunto contestada, levava Annibal á Hespanha e d'alli a passar os Alpes e a bater ás portas de Roma; ou quando Scipião passava á Numidia e ia destruir os muros de Carthago; sem ir buscar exemplos d'essas insistentes luctas no norte da Africa ás expedições de Belisario ou ás sangrentas invasões dos mahometanos sobre as Hespanhas, só detidos quando achavam nas Gallias a barreira que lhes oppunham as hostes de Carlos Martel; sem ir tão longe emfim, basta partirmos de epocas mais recentes, para ver como aquellas antigas regiões ao Septentrião do Saharah, constituiram o objecto e o alvo de renhidas luctas, e de aturados esforços, em que se acharam empenhadas as nações do velho continente. Figura já na edade media o Mediterraneo e o seu littoral, nas tentativas do Soldão do Egypto contra a christandade; na ultima cruzada capitaneada por S. Luiz, o IX de França, e já no seculo XVI na expedição do Imperador Carlos V contra Tunis, sendo auxiliado n'essa empreza por Portugal, um de cujos galeões foi o que com seu talhamar de aço cortou a grossa cadeia que fechava o porto de Goleta. Figura mais modernamente o Mediterraneo e o littoral africano, nos reiterados ataques que as potencias maritimas dirigiam e sustentavam contra o Estado de Argel, valhacouto de piratas, ataques que por vezes representaram grandes expedições, e formidaveis bombardeamentos. Figurára no passado ainda mais notavelmente na expugnação de Ceuta emprehendida e effectuada por Portugal na cavalheirosa epoca de D. João I e de seus heroicos filhos. Foi este o ponto de partida, o signal de execução, o toque de avançar, que teve por complemento aquella grandiosa obra que dotou o Mundo com o dobro da sua superficie conhecida. Sagres, d'onde sahiram as primeiras expedições de navegadores, e Ceuta, onde provaram seu exforço os denodados guerreiros, que iam com suas lanças abrir as portas do Mundo desconhecido, são dois pontos ligados por uma idéa. Essa idéa é a base onde assenta aquella prodigiosa epopéa que já foi uma realidade; idéa que já teve um periodo de desempenho, e que soffreu interrupção. Essa idéa é tambem a que póde alimentar nas suas variadas concepções e consequencias, as aspirações que constituem o bello ideal, com que o futuro nos poderia sorrir! E porquê? Em quanto que pelas regiões transatlanticas ou sul equatoriaes, onde ha quasi quatro seculos tudo era ignoto, já o progresso da humanidade implantou suas leis e suas praticas, ainda ás portas da velha Europa em frente das nações civilisadas do antigo continente, adjacente a esse mar que banha seus littoraes n'aquella orla septemptrional da Africa, contemplavam-se ha pouco, e ainda hoje em parte se contemplam Estados, cuja condição politica e social, cujas leis e cujo fanatismo fatalista, formam a antithese mais completa, entre a civilisação e a barbarie. Já era decorrido um quartel do seculo XIX e ainda a margem africana do Mediterraneo jazia sujeita em toda a sua amplitude, aos sectarios de um obscurantismo invencivel, e de um fanatismo intransigente com a nova lei das nações; e as regencias barbarescas de Tripoli, Tunis, Argel, e o imperio Marroquino, constituiam em seu conjuncto a vergonha dos Estados cultos, desde que estes toleravam que aquelle mar, que fôra desde outras eras o centro das relações entre povos maritimos, ainda se conservasse como sendo o campo de depredações systematicas, área da mais auctorisada ou tolerada pirateria, flagello da navegação pacifica, e objecto constante de fadigosa lide para a vigilancia e para a acção repressiva das potencias maritimas e fronteiras d'aquem mar. Quando já não se offereciam novas regiões do Mundo para descobrir, e poucas por explorar; quando já o novo hemispherio dava largo campo para n'elle implantar a civilisação, via-se ainda a dois dias da Europa, como era possivel tolerar a existencia de taes Estados, vivendo da pilhagem, e da exacção, e subsistindo nas mesmas condições como quando ha tres seculos Carlos V lhes fora infligir castigo, e D. Sebastião de Portugal se ia aventurar á mallograda mas grandiosa tentativa de dilatar para _alem-mar_, a conquista só interrompida ou addiada, dos Algarbes _d'aquem mar_. Ao ultimo rei de França do ramo directo de Bourbon, estava reservada a empreza de começar essa liquidação de contas. O Argel submettido á França por conquista, foi o primeiro passo na realisação da obra de limpar o Mediterraneo d'aquelles fautores do latrocinio barbaresco. Tunis, a herdeira geographica da antiga Carthago, está hoje com apparencia de seguir a mesma sorte que Argel, ou de a imitar nas consequencias. Tripoli será depois, ou o pomo de discordia entre as nações do Mediterraneo que se disputam alli a supremacia de sua influencia; ou será quinhão que venha servir de compensação para a Italia, já que a França se antecipou sobre Tunis. O que se passa n'aquelle mar, em tudo leva á apparencia de que as nações maritimas cujas aguas por elle são banhadas, veem o seu futuro prestigio dependente de alli terem dominio ou influencia, como nos tempos de Roma e Carthago. Mas tambem se deixa perceber que a influencia da acção politica Europea, de onde quer que ella venha, ou quaesquer que sejam os interesses que alli a chamem, é o meio conducente a modificar a feição moral e a estagnação material de que tem sido causa o impassivel fanatismo mahometano. Como ultimo dos Estados em que o dominio da raça agarena ainda se perpetúa, resta Marrocos, esse imperio da Mauritania Tingitana, que deu aos Sarracenos ingresso na Peninsula, e que mais tarde foi d'elles o refugio, quando ao baquear do califado de Cordova e do reino de Granada elles foram de todo expulsos da Europa para as plagas d'além mar; e onde ainda assim por mais de uma vez Portugal conseguiu pôr pé, e dar sequencia á conquista sobre seu solo. E conquista era esta, para a qual o mar não era o ultimo limite, mas só fôra motivo para lhe retardar o proseguimento. IV Em vista das lições da historia, e das evoluções da politica, ninguem póde hoje duvidar, que um imperio nas condições de Marrocos, esteja destinado a ter contados os dias que hão de conduzil-o a um desmoronamento. Alli rége uma administração a mais despotica e brutal; as leis são a vontade do Sultão; as finanças são as extorsões tributarias e o absurdo fiscal; a justiça é o bastão dos alguazis, movido ao capricho dos pachás e dos caíds; o estado moral é a ignorancia a mais rude, de mão dada com o fanatismo mais intransigente. Em toda a extensão do seu fecundo sólo, não existe aberta nem uma unica estrada rodada, nem uma pósta, nem uma obra d'arte. Inutil é fallar em telegrapho ou locomotiva. Pressões externas e continuas agitações internas, umas provindas de desforços dos extranhos, e outras devidas á intermittente anarchia, e ás periodicas correrias das tribus kabylas, alli perpetuam a desordem, a instabilidade dos fracos elementos de vida social, e promovem as fómes, a miseria e as epidemias. Da vida ou morte de um sultão despotico, se faz dependente a existencia ou a dissolução de tão barbaro Estado. É assim que aquelle Imperio, que olha para a Europa pelo horisonte dos dois mares, Mediterraneo e Atlantico, pelo seu estado politico, social e economico, justifica plenamente as previsões de que com seu systema de governo vexatorio e repugnante ás leis da humanidade, elle vive sómente pela apathia das nações civilisadas; porém a gangrena que o devora pouco a pouco, é tão alarmante que ameaça exterminal-o. Todos quantos conhecem das cousas intimas do imperio Marroquino, consideram como um axioma aquella previsão fatal, que para os menos conhecedores do seu estado, pareceria uma mera opinião pessimista. N'essa previsão de uma tal eventualidade, disputam alli á porfia as nações do Mediterraneo, a manutenção de uma influencia e prestigio, para que lhes possa melhor aproveitar quando chegar a hora do _dies magna_. A Hespanha fronteira, senhora de Melilla e de Ceuta, ainda não ha muitos annos fez alli ensaio da sua pujança militar, ostentando n'uma guerra a força do seu poder, e revelando as vistas da sua politica previdente. A França, senhora de Argel, e confinante nas suas fronteiras, interessa-se como tal em manter aquella preponderancia que sempre resulta, quando os aggravos recebidos nos conflictos de má visinhança, são liquidados por um processo como em Isly ou Mogador, quando seus canhões, em terra ou no mar, impozeram aquelle respeito que leva á submissão. A Inglaterra, que no Mediterraneo possue dominios taes como Gibraltar guardando-lhe a porta, Malta e Chypre como postos avançados, tem n'essas outras tantas _Gáres_ do seu caminho aquatico, seguros os vinculos que lhe garantem a influencia no Egypto. Não carece de dominar em Marrocos quem abandonou Tanger; mas a grande potencia do mar, não póde descurar-se de que a influencia de outras não seja alli contrabalançada pela sua propria. A Allemanha, potencia continental, mas avida e solicita em não descurar sua ostentação, tambem tornou alli saliente a sua nova vitalidade, correspondendo com uma representação diplomatica permanente, á embaixada que recebeu em sua côrte. A Italia, embora com a mira em Tripoli, tambem não se descura de dar alli amostra da sua solicitude como nação do Mediterraneo. E é assim que todas as potencias européas, ou como ciosas do seu prestigio, ou por vigiar seus interesses presentes ou futuros, mantêem suas legações permanentes, estabelecidas na cidade maritima de Tanger, que assente graciosa e alvejante nas faldas septentrionaes da cordilheira do Atlas, banhadas pelas aguas do Estreito, parece ser como a guarita onde estão postadas as vedêtas européas, que á porfia entre si combinam a vigilancia, ou até certo ponto disputam a tutella sobre aquella região, d'onde á mourama ainda é permittido contemplar de longe as costas da Europa, povoadas de espaço em espaço pelas torres em ruinas, que recordam as epocas em que o crescente dominava onde hoje se ergue a cruz! Quem da bahia que dá ingresso á cidade mourisca, estender um olhar por sobre o alvejante montão de casas que pelas encostas vão apinhadas desde a porta do mar ao alto do castello El-Kasbah, verá fluctuar em varios pontos, sobre edificios mais salientes, as bandeiras das diferentes nações que alli mantêem seus representantes, tornando assim Tanger, cidade diante da qual se unem os dois mares, como sendo o latego politico das relações diplomaticas entre a Europa e o imperio de Marrocos. Por entre aquellas divisas das nações que alli policiam e espreitam os paroxismos sociaes dos ultimos restos da velha Mauritania, tambem lá se descobre a bandeira de Portugal hasteada onde outr'ora abordámos em tom guerreiro, mas hoje como symbolo de missão pacifica mas vigilante de uma nação, que tendo já posto de parte os velhos resentimentos, alli se apresenta e concorre, como mantendo um benevolo trato de amisade e reciproca estima. Onde ha tradições historicas de tão subido valor como as que recordam as proezas do immortal infante D. Henrique e a heroica abnegação do Santo Infante D. Fernando, aquelle emblema é como um incentivo para que a nação que tem tão glorioso passado, não descure quaesquer elementos conducentes a manter alli seu renome a par de outras que menos fizeram pelo passado, mas que mais ambicionam no presente. Mas a par de tal emblema em terra mauritana, alli tem Portugal, acima de qualquer outro paiz, outros titulos para ser considerado, quaes são os que se revelam nas muralhas de tantas praças maritimas, em cujos derrocados baluartes ainda hoje se conservam salientes os escudos d'armas portuguezas, como testemunho d'aquelle alto valor e esforço que alli se amestrou para depois cumprir os grandes feitos do Oriente. Para além de Ceuta e Tanger, ao poente do Spartel e a dois dias das costas de Portugal, lá o estão assim attestando, Arzilla, Alcacer e Azamor, todas sobre o fronteiro Atlantico, até Mazagão tão desastradamente votada ao abandono em 1763 pelo despotico governo do Marquez de Pombal, quando de preferencia desviava suas vistas para as colonias do Brasil, a troco de tão erroneo abandono d'aquella ultima reliquia da conquista na Mauritania, e padrão de que até alli se dilatára o territorio de Portugal. Ha impressões moraes que não escapam até áquelles cujo viver é quasi subordinado ao regimen brutal da força que lhes atrophia o espirito. Conhecem os mouros marroquinos que se nós fomos os primeiros em ir n'outras epocas combatel-os no seu ninho africano, a isso fomos com titulos mais legitimos e mais justificados, do que outros que mais pelo adiante e até em nossos dias os tem ido molestar, ás vezes mais por pretextos de prepotencia frivola, do que por justo desaggravo de offensas. Os velhos resentimentos e antagonismos extinguiram-se de ha muito, cedendo o logar ás relações pacificas. Já no seculo passado, reinando D. José I, a embaixada que em 1773 foi enviada a Marrocos assentar pazes, recebeu alli demonstrações de deferencia, e honrarias, que a outras nações não eram concedidas. Mantidas essas relações durante o seguinte reinado de D. Maria I, ainda ellas se perpetuaram regendo el-rei D. João VI a ponto que, querendo a côrte de Vienna pôr termo ás desavenças que entre ella e o imperio Marroquino se suscitaram, recorreu aquella ao governo Portuguez, como medianeiro para as compôr amigavelmente. As relações pacificas e o trato commercial entre Portugal e Marrocos nunca mais foram alterados. Não será pois a Portugal que convenha ou pertença o rompel-as prepotentemente. Mas o que não deve esquecer, nem perder-se de vista, é a idéa, de que quando o destino d'aquelle Estado tiver de obedecer a outras influencias que hajam de promover o seu desmembramento, existe um conjuncto de circumstancias politicas que constituem outras tantas disposições aproveitaveis, para que sem ser a causa directa d'essa versão, não seja indifferente aos seus resultados. Quem já foi adiante de outros e não quizer ficar atraz d'elles, deve pelo menos ir a par. A epoca das conquistas, tomando por pretexto unico o antagonismo de crenças ou o resentimento de armas, é já passada. Hoje estão em campo na politica outras luctas de interesses e de preponderancia. Vae decorrido o tempo em que a guerra se considerava mais um fim do que um meio. Tem-se visto porém adoptar uma politica nova, que como meio conducente a seus fins, aceita os factos e d'elles faz regra de direito pela medida da conveniencia. Quando os presentimentos que ácerca do destino de Marrocos se vão fundando não só em supposições, mas em probabilidades que se hajam de realisar; quando houvesse de soar a hora da partilha como resultado de uma expropriação inevitavel por utilidade Europea ou por honra da civilisação, ao menos que ella seja effectuada de modo que a equidade não tenha a queixar-se da justiça. E Portugal sob o ponto de vista historico, geographico e politico, deveria e poderia preparar-se para estar no caso de aspirar á competencia a que seus titulos possam dar-lhe direito. A historia o ensina, a geographia o indica, a boa politica o aconselha. A historia; porque foi Portugal quem alli primeiro poz pé e assentou dominio, como alargamento de territorio, e como um serviço então prestado á humanidade pelos resultados que d'ahi advieram. Desde Ceuta até Mogador, estão os padrões que assim attestam. A geographia o indica, porque as columnas de Hercules, onde o Mediterraneo termina e o Atlantico começa, marcam e dividem o limite até onde as nações fronteiras d'aquem mar, teriam razões para disputar preferencia e competencia. A politica o aconselha, não só porque a geographia o indica, mas tambem por isso que, se as questões de supremacia entre as nações do Mediterraneo, podessem dar a estas competencia para promover um desenlace que trouxesse o _delenda Mauritania_, como ha vinte seculos ellas sentencearam o _delenda Carthago_, outro elemento de politica internacional e de preponderancia de nações, não toleraria facilmente que o engrandecimento de alguma d'aquellas se estendesse sobre o Atlantico, dando logar á formação de um vasto dominio que traria a reproducção e os perigos do _summum jus, summa injuria_. A Inglaterra, que no Mediterraneo tem seus postos de vigilancia, não poderia vêr com bons olhos, que a sua preponderancia maritima e continental houvesse de ser contrabalançada por uma tal dilatação de imperio que fizesse qualquer nação um potentado, e que assim justificasse seus ciumes e suas rivalidades. Mas haveria uma versão que as poderia evitar; um desenlace que neutralisaria aquelle desequilibrio; uma partilha que não encontraria taes perigos. Essa versão seria, a que restituisse a Portugal o que já fôra seu por conquista de armas sobre inimigos, mas que n'estas condições seria restituição pelo pacifico assentimento de amigos, e como justa retribuição de passados feitos. As antigas columnas de Hercules seriam a moderna delimitação, não já do _mare internum_, mas sim da parte que caberia ás duas nações da peninsula fronteira, Hespanha e Portugal, aquella sobre o Mediterraneo, esta sobre o Atlantico. Quando entre as especulações da politica européa se torne um ponto assentado e decidido a partilha da preza, não póde ser disputado a Portugal o direito eventual a ter n'ella quinhão. Habilitar pois Portugal á eventualidade de rehaver o que já lhe pertenceu, e que por direito de preferencia melhor lhe deve ser restituido, é o bello ideal que se affigura como sendo o caminho para o levar a uma posição digna, desassombrada e considerada na communidade europea; e tal seria aquella versão mediante a qual, sem desperdicio de forças em aventurosas e longiquas expedições que revelam uma sobreposse de dominio com espirito exclusivista, e que muitas vezes significam esforços improficuos, complicações em politica externa, e até prejuizo não compensado em cabedal e vidas, e sómente para disputar palmos de terra em regiões inhospitas e sáfaras, melhor ensejo lhe désse para aproveitar taes forças e vontades, convergindo-as para mais perto e melhor caminho, e onde a posse e dominio seriam mais proveitosas em todo o sentido material e moral. E poderá Portugal acertar no caminho a que o levariam aspirações taes como as que constituem o ideal acima indicado? É este, como se viu, um ponto mui vago para exame; uma idéa d'onde podem germinar mais amplos concebimentos; um calculo politíco que póde subordinar-se a muitas probabilidades e eventualidades. Póde mesmo ser um sonho; mais do que isso, um delirio de visionario. Mas assim como Calderon de la Barca diz em seus versos sublimes, _la vida es sueño_, tambem ha sonhos que sem serem delirios, podem ser justas aspirações de quem tem vida; e desde que é licito conceber estas, tambem não é vedado o manifestal-as. O bello ideal, esse sentimento que faz com que muitas vezes o nosso espirito se assemelhe a uma bussola moral, que percorre um horisonte cujos rumos são os vôos da nossa phantazia: esse bello ideal que em muitos casos é como um sonho passageiro que a reflexão bem depressa dissipa, tambem algumas vezes nos sorri á idéa com a perspectiva de o vêr tornado em realidade. O bello ideal ahi fica assim consignado, talvez como imagem poetica, todavia como caso para meditação prosaica. A perspectiva d'estas aspirações, será pois um vôo de imaginação, de breve duração e desengano certo, ou poderá ter visos de se tornar um pensamento persistente e uma feição susceptivel de realidade? Poderá ser, e poderá não ser. Na dependencia em que está de tantas eventualidades, a decisão pertence ao futuro. Mas quando para justificar taes aspirações, não bastasse a solicitude em vigiar as phases politicas do presente, e aguardar com previdente hombridade os acontecimentos futuros, bastariam os titulos que Portugal tem na historia de seu passado, facho de luz gloriosa que não se póde apagar, e que lhe dá direito á consideração das potencias de cuja cooperação possa tornar-se dependente a solução do grande problema. --- Provided by LoyalBooks.com ---