RATTAZZI A VOL D'OISEAU URBANO DE CASTRO CHA-RI-VA-RI A PRINCEZA NA BERLINDA RATTAZZI A VOL D'OISEAU COM A BIOGRAPHIA DE SUA ALTEZA (SEGUNDA EDIÇÃO) LISBOA TYPOGRAPHIA PORTUGUEZA 7, Rua da Paz, 7 1880 A PRINCEZA NA BERLINDA Não será talvez máo começar por fazer uma declaração:--nunca passei pelos beiços os guardanapos da princeza... Parece-me conveniente dizer isto. A _minha terra_, que era pequena no tempo de Garret, não me consta que tenha crescido, depois da sua morte... Tem até diminuido um pouco... talvez! * * * * * Foi pelos jantares que a princesa conseguiu tornar-se conhecida em Lisboa. Quando aqui chegou, vendo que ninguem a procurava, que a litteratura não corria pressurosa ao _Bragança_, cumulando-a de elogios banaes e de bilhetes de visita baratos, sentio dentro da sua alma a mordedura cruel do amor proprio offendido. E amor proprio de mulher, amor proprio de princeza! Calculem que dentada! Esperou, um, dois, tres dias... uma semana, outra... a litteratura não apparecia!--Pois ha de apparecer! exclamou ella--E convidou-a para jantar. E a litteratura appareceu. Os livros da princeza, que até então ninguem conhecia em Lisboa, e que ella mandara adiante para os livreiros, como batedores da sua fama, começaram por essa epoca a ter uma tal ou qual extracção. Não é difficil advinhar quem os comprava--eram os convivas dos seus jantares--Comprehende-se. Realmente seria pouca amabilidade comer o _foie gras_ de Rattazzi, e não dizer ao menos, no fim, que era admiravel o seu livro _Si j'etais reine_; beber o champagne da princeza, e não lhe segredar que nunca mulher nenhuma escrevera um volume como _Nice la Belle_. E a proposito dos livros citavam-se os trechos das paginas abertas, abril-os seria muito, e bebia-se mais um copo. A princeza, que é inquestionavelmente uma mulher d'espirito, percebeu, o que de resto não era muito difficil, a _manobra fraudulenta_, como diz o sr. Duc nos livros de mortalhas, dos litteratos de Lisboa... Callou-se porém muito bem callada e continuou a dar-lhes jantares hebdomadarios. A concorrencia cada vez era maior. Houve sujeito que se fez litterato, só para jantar com a princeza. Cá fóra, no Martinho e na Havanesa, esses jantares eram digeridos e commentados com a face vermelha e a palavra quente... Contavam-se anecdotas, que é deveras pena não terem chegado aos ouvidos da princeza, porque, algumas d'ellas não são em nada inferiores a muitas que lêmos no seu livro... E aqui está como madame Rattazzi conseguiu durante um mez ser uma notabilidade em Lisboa. Sua altesa, porém, em vez de contentar-se com esta gloria, embora de 2.^a ordem, lembrou-se um dia de querer uma gloria de 1.^a sorte, e escreveu uma comedia que, depois de muito applaudida em sua casa pelos seus commensaes, foi representada no theatro dos Recreios, a quem ella, com carradas de rasão chama um calvario, visto que lá teve... a cruz da pateada... Tambem que diabo de publico este de Lisboa... atrever-se a patear uma princeza... Se sua alteza tem a mania dos cumulos,--e porque não a terá?--sim, porque não terá sua alteza a mania dos cumulos, se a tem, é impossivel que pelo seu preclaro espirito não tivesse passado este--o cumulo da selvageria:--_Patear uma princeza_... Ah! decididamente sua alteza não estava em sorte... _Pas de chance_! No hotel os convivas faziam muito mais despeza de iguarias do que de elogios; nos Recreios, o publico muita mais despeza de botas do que de luvas... _Pas de chance_! * * * * * Foi então, naturalmente, que o seu espirito se orientou na direcção a dar ao _Portugal à vol d'oiseau_. --Ah! os senhores julgam que não é mais do que comerem-me os meus jantares, do que patearem-me as minhas peças, esperem ahi que já os ensino! Até aqui tenho-os recebido como convivas, agora vou passar a tratal-os como assumptos! Os senhores pensam, quando estão á minha mesa, que são meus commensaes?--pois enganam-se, são paginas para o meu livro! Não sou eu quem os obsequeio aos senhores, os senhores é que me obsequeiam. Escusam de dizer «muito obrigado!» eu é que tenho que dizer-lhes «_merci_»! E escreveu _Le Portugal à vol d'oiseau_. * * * * * Lisboa já sabe pouco mais ou menos o que o livro é. Os jornaes tem dado excellentes amostras d'aquella famosa peça... Porque não havemos nós de dar tambem algumas? Estes dois perfis da nossa nobreza, por exemplo... Venha primeiro o conde de *** «--O conde *** um dos meus valsistas, e um valsista encantador, entre parenthesis, não é menos notavel. De muito antiga e nobre familia, é verdadeiramente um dos typos mais salientes de Lisboa. Orça pelos cincoenta, mas não obstante apparenta um grande ar de mocidade. Baixinho, apurado, e elegante, ha em toda a sua pessoa uma excessiva vivacidade. Esta vivacidade será natural ou o resultado d'um estudo paciente para parecer ainda mais novo? Talvez que sim a avaliar a sua petulancia pelo mais. Os bigodes do conde de *** são mais negros do que o ebano. Mas isto não é nada comparado ao craneo do encantador conde; o proprietario d'este craneo conserva n'elle alguns cabellos, raros, semeados aqui e ali, tratados com zelosos cuidados, e que puchados artisticamente para a testa, ahi occupam o maximo espaço possivel para assim substituirem os ausentes. Para suprir os defuntos põe no cucuruto uma especie de pequeno crescente--não, eu nunca ousaria dizer chinó fallando de tão perfeito cavalheiro--que se confunde graciosamente com os cabellos: depois cobre tudo isto com uma espessa camada de pez e summo de alcaçuz de que faz uma pomada a fogo lento; por fim o seu creado de quarto, confidente d'esta excentricidade, traça no meio d'esta pasta de _raisiné breton_, uma risca d'uma delicadeza, d'uma puresa, d'uma nitidez a causar inveja a uma rapariga de quinze annos. Quando a cataplasma está secca, o conde póde apparecer no meio dos seus concidadãos. Todos conhecem o mysterio d'aquella cabeça e ha delirios de alegria quando o excellente homem é obrigado, em pleno sol ou em pleno baile, a andar de chapeu na mão, porque o calor tendo acção dissolvente sobre aquella untura, resulta d'ahi começar ella a mover-se, a palpitar, a derreter-se, acabando por escorrer pelo pescoço e pelo nariz do seu proprietario. Não obstante o conde de *** é um grande conquistador, um namorador que não perde occasião de deitar a sua olhadella, sendo porém capaz de praticar heroismos, como o demonstram varias circumstancias da sua vida. Conta-se este facto digno dos melhores tempos da monarchia. O conde era camarista da infanta D. Izabel, que morreu ha annos, em avançada edade, no seu palacio de Bemfica nos arrebaldes de Lisboa. Sendo os principes da familia real depositados na egreja de S. Vicente, situada n'um dos extremos da cidade opposto a Bemfica, o cortejo funebre teve de percorrer duas leguas, a passo, em pleno mez de julho. O conde devia seguir a cavallo, uniformisado e de cabeça descoberta, o corpo da sua real ama, debaixo d'um sol torrido, o que elle fez magnanimamente, sem trepidar, entregando aos abrasadores raios de Phebo a sua untura quotidiana--facil presa--sem temer a troça dos graciosos que, no dia seguinte, alludindo á liquefação do cosmetico, diziam por toda a parte que ninguem figurara no cortejo com o rosto mais tristemente cheio de luto do que o infeliz conde de ***.» Igual a isto só aquella celebre caricatura do _Antonio Maria_... «_Dá-lhe cuspo_...» * * * * * Agora o marquez de V. *** * * * * * --«Como exemplo não, quero citar senão um dos meus amigos o marquez de V. ***. Vale bem a pena. É uma personalidade, uma celebridade, uma curiosidade de primeira ordem. Em vão lhe procurariam rival na galeria do duque de Saint-Simon, e ainda menos na collecção tão rica de Moliére. Em certas festas de gala ou de representação exterior, o marquez de V. *** julga-se obrigado a seguir as carruagens da côrte na sua equipagem, e é esta equipagem que faz do nobre marquez uma curiosidade unica do mundo. Imagine-se um coche do seculo passado, envidraçado de modo a ver-se todo o interior, montado sobre molas e rodas que fazem pensar nas machinas de _Leviathan_, tudo isto pintado de verde, cheio de dourados em alto e baixo relevo. No meio d'esta caixa throno, o marquez de V. *** só, de cabeça descoberta, com o grande uniforme d'uma ordem qualquer, com os olhos fitos na sua frente, parecendo contemplar em extase as abas da libré do seu cocheiro, não voltando a cabeça nunca, nem para a direita nem para a esquerda: dir-se-hia uma estatua e não um homem. A carruagem é atrelada a quatro cavallos, montados por dois postilhões e guiados por um cocheiro gorducho sentado n'uma almofada que parece um divan. Na taboa da carruagem dois enormes lacaios em pé. Todo este pessoal vem empoado e veste uma libré verde claro que deslumbra a vista e faz piscar os olhos. Não se póde imaginar nada mais original. Quando a cerimonia terminou e a parte official do programma está cumprida, o marquez faz gravemente o giro das principaes ruas e praças de Lisboa para se fazer admirar. Em Paris entraria em casa corrido a batatas cozidas. Aqui deixam-o em paz--_é costume_. Se eu fosse rei de Portugal prohibia a este fidalgo, sob as mais graves penas, de me fazer assim cortejo com a sua entrudada, mas, com isso, arriscaria talvez a minha corôa. É de justiça acrescentar que o marquez de V. é um homem instruido. Que seria, Deus meu, se o não fosse!» Realmente está parecido... O _Antonio Maria_ não o faz melhor... * * * * * Depois d'estes perfis hilariantes como o protoxido de azote, tenha o leitor a paciencia de me acompanhar ao capitulo em que sua altesa nos dá a honra de fallar dos nossos enterros. Dêmos a palavra á princeza: «É realmente coisa curiosa que acompanhando o pae os filhos ao cemiterio, estes não acompanhem os paes: não é costume. Deixa-se este cuidado aos parentes mais affastados ou aos amigos. Porquê? Não m'o poderam explicar: acho porém esquisito.» Está no seu direito. Foi porém mal informada. Os paes tambem não acompanham os filhos. Quanto a achar o caso estranho não tem de quê. O facto de em França os parentes mais proximos acompanharem os cadaveres dos seus defunctos não prova nada, senão que até na morte é verdadeiro o dictado:--_Cada terra com seu uso_... O que é deveras esquisito, é querer sua altesa que os costumes sejam os mesmos em todos os paizes. Para quem se propõe escrever livros de viagem, não póde haver ponto de vista mais ridiculo nem mais acanhado. Continua a auctora:--«Quando uma pessoa morre, a familia não envia cartas de participação. Faz um annuncio nos jornaes, e está tudo prompto, visto que o dito annuncio termina invariavelmente por este _cliché_: _Não se fazem convites especiaes attendendo ao estado de consternação indizivel em que a familia está_... Comprehendo muito bem que a familia esteja n'um estado de consternação indizivel: entretanto, visto que esta consternação lhe permitte fazer annuncios nos jornaes, parece-me que, com um pequeno esforço, lhe permittiria tambem enviar cartas de participação impressas a casa de cada um, como se faz nos outros paizes. Resulta com effeito d'este costume que, se não se lerem os jornaes, ou antes os annuncios dos jornaes, póde muito bem acontecer deixar uma pessoa de acompanhar ao cemiterio o seu tio, primo, ou o seu melhor amigo.» Foi ainda mal informada sua alteza. É verdade que muitas vezes o annuncio funebre termina por aquelle molho, mas não é menos verdade que rarissimas vezes se deixa de enviar cartas de participação. Sua alteza não recebeu nenhuma, e por isso naturalmente lembrou-se de nos ensinar como estas coisas se fazem nos paizes civilisados. Obrigado princeza. Quanto a não ter recebido carta alguma de participação desculpe:--hei de mandar-lhe uma... quando morrer o meu Tareco. Coitada! Infeliz princeza! Ninguem lhe mandou carta de participação. Então que se lhe ha de fazer, no nosso paiz os enterros serão tudo quanto quizer... mas não são entrudadas... A respeito dos chavões com que é costume fechar annuncios funebres faltou-lhe ainda um. É este:--_não se fazem convites especiaes por expressa determinação do finado_. Foi pena escapar. Que bella pagina humoristica não escrevia a princeza com thema tão divertido! * * * * * Mas nem só os enterros tem a honra de espantar sua alteza... O livro está cheio de exemplos do mesmo genero. Sente-se mesmo em algumas paginas que a princeza não chega a contar metade dos seus espantos... Qual metade!--nem a decima, nem a centesima, nem a milesima parte... Porque a verdade é esta:--sua alteza apenas transpoz a fronteira começou a sentir as dôres... do espanto... Exactamente, agora é que eu acertei... começou a sentir as dôres do espanto, e o seu livro, que até hoje ninguem sabia bem o que é, passa agora muito logicamente a ser o feliz parto que a alliviou das citadas dôres, logo que ella se viu em terreno conhecido, que é como quem diria:--logo que a natureza permittiu que o robusto menino visse a clara luz do dia... Espanto! Espanto! sempre espanto! Os portuguezes não dizem «até manhã» dizem «até ámanhã se Deus quizer»--espanto: não acompanham seus paes ao cemiterio,--espanto: as varinas carregam-se de oiro,--espanto: vae muita gente aos bastidores de S. Carlos,--espanto: dizemos _um copo d'agua_ e não _un verre d'eau_,--espanto: estamos a uma latitude e a uma longitude differentes de Paris,--espanto: as nossas pulgas mordem,--espanto: o nariz do sr. Minhava é enorme,--espanto: _pomme de terre_, chama-se batatas,--espanto: uma _precieuse ridicule_ é uma tola... espanto! Espanto, espanto, sempre espanto! Porque não escreveu o seu livro tal qual o pensou princeza? Porque não nos deu, por exemplo, uma pagina n'este genero:--«Uma vez, tendo entrado casualmente n'uma egreja, approximei-me d'uma mulher que estava rezando, em voz sufficientemente alta, para que se podesse perceber o que ella dizia... Approximo-me mais, e calculem o meu espanto, ao ouvir estas palavras:--_Padre, nosso, que estaes nos céus santificado_... Accreditarão agora que isto quer dizer em portuguez:--_Notre père qui étes aux cieux, que votre nom soit, santifié_... Como diabo, perdoe-se-me a heresia, quererão os meus bons amigos portuguezes que Nosso Senhor os entenda?» E não seria este por certo o menos notavel dos seus espantos. * * * * * Antes de passarmos adiante contemos um disparate que não deixa de ter graça. A paginas, não sei quantas, escrevendo a princeza que nós não fazemos uso de fogões para aquecer as casas, diz pouco mais ou menos o seguinte:--De resto, se fizessem uso d'elles, não se haviam de vêr em pequenos embaraços para arranjar o combustivel, a não ser que deitassem a mobilia ao fogo. A lenha é absolutamente desconhecida em Portugal, e custa cada kilo... tres mil réis!» --Oh! princeza, se vossa alteza quando esteve em Lisboa pagou a lenha por aquelle preço, devo dizer-lhe duas coisas:--a primeira, é que o seu livro passa a ser um favo do Hymeto, a segunda... é que foi roubada! * * * * * O que é verdade porém é que Lisboa deve um grande serviço á princesa. Nem mais nem menos do que a rusga feita ás casas de jogo nos principios d'este mez. Se duvidam, leiam. * * * * * Ha muito que no governo civil havia uma tal ou qual suspeitasinha, uma vaga desconfiança, de que a roleta, esse terrivel philloxera das algibeiras, tivera o inqualificavel arrojo, o descaro inaudito de assentar os seus arraiaes--aqui--na patria de Camões, nas bochechas do sr. Rosa Araujo, representante da dita patria. Mas tudo era vago, incerto, nebuloso... A policia posta em campo nada descobrira. Procurara-a,--oh! se a procurara!--como o nauta procura o norte, como a ave procura o ninho, como a féra o seu covil--mas, apesar de a procurar com todo este excesso de poesia, o resultado era sempre o mesmo... nada, nada, nada, tres vezes nada coisa nenhuma! O habil Antunes, o eximio Castello Branco, o nunca assás cantado 37--e muitos outros egualmente habeis, egualmente eximios, egualmente nunca assás cantados, encarregados secretamente de a descobrirem, pozeram em pratica as maiores subtilesas policiaes. Um d'elles chegou a disfarçar-se em G. L. P... Nem assim a encontrou! Nada os fazia recuar, nada os intimidava, desconheciam... e creio que ainda desconhecem, o verbo trepidar! Passeios, botequins, theatros, tudo assaltaram em busca da criminosa... Era um phrenesi, um delirio, uma raiva... Mas a scelerada não apparecia! --E comtudo ella existe! exclamava o governo civil com o tom solemne com que por muito tempo se julgou que o sabio Gallileu dissera o legendario:--_E pur si muove!_ Era para perder a cabeça. * * * * * Estavam as coisas n'estes termos quando chegou o livro da princeza. O governo civil compra-o, começa a lêl-o e ao chegar a paginas 149, já não diz: «E comtudo ella existe!» no tom de Gallileu, mas, qual outro Archimedés, _toilette_ aparte, solta do fundo do seio um jubiloso _Eureka!_ Ah! é que effectivamente o caso não era para menos. A pagina 149, fallando das batotas, diz a princeza: Ha uma na rua do Alecrim. Uma, rua das Gavias. Uma, praça de Camões. Duas, rua da Emenda. Uma, rua de S. Francisco. Uma, travessa de Santa Justa. Tres ou quatro á Ribeira Velha. --Obrigado meu Deus! exclamou então o governo civil imitando d'esta vez a sr.^a Emilia das Neves, obrigado meu Deus! * * * * * E aqui está como a policia conseguiu saber onde eram as batotas. Ah! princeza, princeza, vossa alteza merecia que pelo menos a fizessem... chefe d'esquadra. E note-se mais, é ella, é ella quem ensina no seu livro como se faz uma rusga. Duvidam? Leiam. «--Em Paris a policia tem um serviço especial para este genero de industria prohibida. Os agentes d'este serviço espiam os batoteiros, estudam cuidadosamente o terreno, e uma bella noite cahem lá dentro como um raio e prendem todos, levando o dinheiro que está em cima das mesas.» A policia seguiu as instrucções da princeza tanto á risca, que até escolheu uma bella noite, _une belle nuit_, para fazer a sua rusga! Diz ainda sua alteza:--A mobilia é confiscada... e a policia confiscou a mobilia. Decididamente, a princeza tem todo o direito... a um apito honorario! * * * * * Vejamos agora como sua alteza falla de alguns dos nossos escriptores. * * * * * --_Camillo Castello Branco_, que parece o condemnado aos trabalhos publicos da litteratura portugueza, escreve, escreve, escreve, escreve sempre: superiormente, é questão controversa; enormemente, com certesa. A quantidade excede em muito a qualidade, diz-se, (diz ella); dotado de uma actividade laboriosa, infatigavel, comparavel á de uma legião de formigas, construe romances contemporaneos sobre romances historicos, com uma preseverança e uma sequencia que intrigam a imaginação. É uma especie de Quevedo com certo sentimentalismo catholico. Particularidade curiosa: em todos os seus romances entram infallivelmente um brazileiro, uma menina que se mette n'um convento, um fidalgo provinciano, e um namorado amorudo e transparente. É invariàvel como a chuva e o bom tempo. De fórma, que o primeiro romance que se lê do sr. Branco parece muito interessante, o segundo accorda remeniscencias, e o terceiro adivinha-se; o quarto sabe-se de cór, volta-se a pagina sabendo-se o que vae passar-se. É uma galeria de personagens que raramente se renova, como a dos museus de figuras de cera. Os seus principaes romances são: _Onde está a felicidade_, _Doze casamentos felizes_, _O que fazem mulheres_, _Historia d'um homem rico_; são feitos com este arcabouço em que as vigas, as asnas e os alicerces são invariavelmente os mesmos.» * * * * * «--_Bulhão Pato_. É um peninsular, um sybarita, um camaleão. Como muitos rapazes que se dizem artistas pintores ou esculptores, para terem o direito de usar umas enormes cabelleiras e de adoptarem umas maneiras e um modo de fallar desbragado, este, fez-se poeta, o que na alta sociedade de Lisboa é um titulo de apresentação. O sr. Bulhão Pato é incontestavelmente um homem d'uma conversação encantadora. Passando por espirituoso e mordente, imaginou que para ser um genio lhe bastava o querer sel-o, esquecendo que não é poeta quem quer. Assim, creou-se por si só, e por si só, ainda, se julga um grande poeta. O seu poema, a _Paquita_, é uma imitação dupla do estylo aggressivo de Byron e da finura de Musset, um urso fazendo rendas de Alençon. Escreveu muitos volumes de versos, satiras, novellas, etc., onde se não encontra o reflexo do espirito notavel que tem a fallar. O que escreve não traduz o que diz (_Sa plume ne traduit pas sa langue_). Para acabar este retrato é necessario acrescentar que é impertinente, irritavel, invejoso, que pouco sabe da vida, julga-a mal, e por isso mesmo declara-se descontente com cada um e com todos, passando a vida a lamentar-se sem rima nem rasão.» N'uma nota continúa no mesmo tom amavel chamando-lhe o _poeta da melena_ (_poète aux longs cheveux_). * * * * * «--_Ernest Biestero_, o grande magro litterario de quem Castilho dizia:--É um fructo de inverno, por mais que o expremam não deita nada! O que elle traduziu, apanhou, pilhou, é incalculavel: seriam necessarios volumes só para fazer a sua rapida enumeração. Os seus dramas originaes, _Caridade na sombra_, _Moscovellos_, _Natureza de alma_ (?) são uma galeria de manequins sem vida e até sem cordeis. Deve accrescentar-se--segundo a chronica--que os seus dramas são retocados por seu cunhado Mendes Leal. O que os não embelleza! Biester teve a gloria de ser um dos fundadores da _Revista Contemporanea de Portugal e Brazil_, que durou cinco annos, onde se acham associadas todas as individualidades do _elogio mutuo_.» * * * * * «--_Mendes Leal_ (José da Silva) nasceu em Lisboa em 1820. Sem talento e até sem disposições dramaticas escreveu muitos dramas e romances historicos. É o litterato portuguez que fez mais plagiatos, e isto com a maxima audacia e sem-cerimonia. O seu theatro pertence á escola do ultra-romantismo, e os _Dois renegados_, que passam por ser a fina flôr da sua corôa litteraria, são um drama insipido, cheio de punhaes, venenos e ciladas. O seu romance _Calabar_ é completamente tirado do _Bateur d'Estrade_, de Paul Duplessis; as suas poesias formam um volume no qual só uma poesia é digna de menção, a _Morte de Carlos Alberto_. Este fructo secco da litteratura foi bibliothecario de Lisboa, ministro, e finalmente ministro plenipotenciario em Paris. O que prova que as mediocridades são muita vez empregadas.» * * * * * Agora querem saber como apparecem os nomes portuguezes no livro da princeza? Ahi vae uma amostra. _Odio velho não cança_, o notavel romance de Rebello da Silva, é:--_Odio, velho, vraô cauca_. _O prato de arroz dôce_, de Teixeira de Vasconcellos, chama-se:--_O Porto de oroz dou_. _As tempestades sonoras_, de Theophilo Braga, são:--_As tempos tades sanoras_. _Moços e velhos_, que a princeza erradamente attribue a Ernesto Biester, apparece assim no livro:--_Mocosvellos_. * * * * * Aos theatros de Lisboa faz sua alteza a honra de lhes consagrar um capitulo do seu livro. E como a princeza é mulher coherente em todos os actos da sua vida, não quiz deixar de ser mexiriqueira tratando de assumpto que tanto a mexericos se presta. Assim diz, por exemplo, fallando do theatro do Gymnasio:--«Este theatro não tem praso determinado para as suas representações pela excellente rasão de que as receitas são mais de que mediocres. Os artistas e directores do Gymnasio acham-se constantemente, uns para com os outros, na situação de um credor importuno para com Mr. de Tayllerand. --O senhor não me dirá quando me paga o que me deve? dizia o credor. --Ora sempre é muito curioso, respondeu o principe.» Realmente é difficil perceber a que vem isto. Pela nossa parte entendemos que são profundamente ridiculos todos estes promenores da vida intima dos theatros... Julgamos além d'isso haver falsidade no mexerico da princeza. Mas ainda que seja verdade o que ella diz, não será de mau gosto trazer questõesinhas de soalheiro para um livro de viagens? Do Gymnasio, diz ainda, que viu ali representar magistralmente o actor _Pedro_, secundado por duas jovens e formosas mulheres _Candida_ e _Lora_? Dou-lhes um doce se adivinharem quem são estas duas jovens e formosas mulheres. Candida e Lora quer dizer Amelia Vieira e Emilia dos Anjos. Ha porém uma difficuldade, e desde já nos confessamos incompetentes para a resolver:--Qual será a Lora? Mysterio que só a princeza poderá decifrar. * * * * * Do theatro da Rua dos Condes diz que se representa ali _Lazaro, o pastor_... É possivel. Em todo o caso devemos declarar que essa peça subiu á scena expressamente para sua alteza a ver, e que foi ainda sua alteza a unica espectadora... O publico não a viu nunca. * * * * * No capitulo _Theatros_ trata muito natural e judiciosamente o assumpto pateadas. Não gosta d'ellas, parecem-lhe estupidos e injustos os sujeitos que pateiam. Abre curso de sensibilidade no artigo _pateader_. Comprehende-se:--ella é que está sensibilisada ao escrever tudo isto, recordando-se do modo porque a plateia dos _Recreios_ recebeu a sua insipida e soporifera comedia. _Tenha paciencia_. Diz no seu livro que esta phrase se applica a tudo no nosso paiz. É verdade. Applica-se a tudo. Até ás princezas infelizes que são pateadas. Diz sua alteza fallando nos hoteis que os colchões são durissimos em todos elles; no _Braganza_ parecem até cheios de cacos de garrafas... Mas afinal sempre temos por cá alguma coisa mais dura do que os colchões... as pateadas... Custam a roer, custam... Mas que se hade fazer? Rôa, rôa. De resto parece-nos que sua alteza tem deveras a bossa do estylo lacrimoso... Chore--a lagrima é livre. * * * * * Depois da nenia das pateadas passa sua alteza a fallar da vida dos bastidores em Lisboa. Dêmos-lhe mais uma vez a palavra:--«--A vida dos bastidores em Portugal está ainda no estado primitivo. É mais burgueza que desregrada. Na maioria dos theatros as actrizes são casadas ou vivem maritalmente com pessoas da sua escolha, dando, com rarissimas excepções tanto que fallar pela sua conducta como pelo seu talento. Se quizesse citar alguma que se distinguisse das suas collegas pelo seu luxo ou pelos seus amores, ver me-hia deveras embaraçada, não obstante ter pedido informações a toda a gente.» * * * * * Sim, a princeza pedio informações a toda a gente. Apenas qualquer sujeito tinha a honra de lhe ser apresentado, a primeira coisa que a princeza fazia era disparar-lhe esta pergunta á queima roupa:--Ora diga-me meu bom amigo, sabe alguma coisa da Emilia das Neves?--Que lhe consta da Delfina?--Não se rosna coisa nenhuma d'aquella Joanna Carlota da rua dos Condes? Esta febre da princeza em indagar a vida intima das nossas actrizes faz-me lembrar a historia de um provinciano que vindo a Lisboa pela primeira vez, com ideas muito errados acerca das nossas mulheres de theatro, começou durante a representação, de não sei que peça em D. Maria, a interrogar o visinho do lado, pelo theor que vae vêr-se, sempre que apparecia em scena alguma actriz. Entrava por exemplo a sr.^a Emilia das Neves, o provinciano voltava-se para o sujeito e dizia-lhe piscando-lhe o olho intencionalmente: --Esta...? E o sujeito: --Não sei... Entrava a sr.^a Virginia: --E esta...? --Homem deixe-me... Entrava a sr.^a Amelia Vieira. --E esta...? --Diabo, o senhor é inconveniente! Não sei nada... O provinciano porém não se dava por vencido. --E esta...? continuava elle sempre a perguntar. De repente entra o Theodorico. Então o sujeito, desesperado, fulo, volta-se para o pobre provinciano e diz-lhe muito serio: --Olhe este... com certesa... A princeza fez exactamente o papel do provinciano, e, tão infeliz como elle, não ficou sabendo coisa nenhuma... Ficou até sabendo menos que o provinciano... * * * * * Em todo o caso registe-se que no entender de sua alteza a vida dos bastidores em Portugal é uma pulhice... «Mais burgueza que desregrada...» chega a ser infame, não é assim princeza? E depois que mulheres estas de theatro! Que impossiveis creaturinhas! Dão tanto que fallar pela sua conducta como pelo seu talento... O mesmo não se pode dizer que aconteça com certa pessoa que nós sabemos... Essa dá muito mais que fallar pela sua conducta do que pelo seu talento... Foi devéras infeliz a princeza em questões de theatro. Viu-se sempre embaraçada. Até se quizesse citar alguma actriz que se distinguisse das suas collegas pelo seu luxo ou pelos seus amores, até n'essas circumstancias os embaraços lhe não permittiriam a citação... É realmente estar com azar. Pois nós se quizessemos citar alguma princeza que se distinguisse de todas as outras pelo seu luxo _tapageur_ ou pelos seus amores, faziamos isso sem a mais pequena difficuldade... * * * * * Termina sua alteza o capitulo dos theatros fallando das dançarinas de S. Carlos. Diz sua alteza:--«As dançarinas não dão que fallar de si. Ha para isto duas razões:--a primeira é que, salvo duas ou tres excepções são feias que mettem medo a segunda é que a maioria d'ellas parece-me ter chegado, a esta edade feliz em que se tem jus á veneração e ao respeito.» Ora aqui está o que aconteceria a sua alteza se em vez de ser uma _bas bleue_ pretenciosa fôsse dançarina de S. Carlos. Ninguem fallaria n'ella... Por tudo, e principalmente... pela segunda razão... * * * * * Deixemos porém os theatros e vejamos o que a princeza diz a respeito do nosso mais notavel monumento--o mosteiro da Batalha. «_Batalha_, tambem pequena cidade, (que disparate!) alguns kilometros mais longe (do que Alcobaça, que descreve antes) possue um mosteiro mais pequeno; mas tambem gothico, e de um estylo ainda mais puro que o de Alcobaça. Este mosteiro foi fundado pelo rei D. João I, que ahi repousa. Nota-se particularmente a sala do capitulo, cuja elegancia é superior a toda a expressão, bem como o claustro. Decididamente, os senhores frades d'aquelles tempos tinham bem boas habitações, e é pena que se não tivessem construido mais, tão encantadoras, não para lhe servirem unicamente de residencia, mas para alegrarem os olhos dos _touristes_.» Ter visto a Batalha, ter entrado n'aquelle monumento, que é uma verdadeira epopeia de pedra, e escrever o que ahi fica, sabe o que é, princeza?--é um diploma. Simplesmente não lhe digo de quê.--Vá ter com alguns dos muitos estrangeiros illustres que visitaram aquelle mosteiro, francezes, inglezes, italianos, hespanhoes, russos, allemães, ou de qualquer outra nacionalidade, diga-lhes que viu a Batalha, mostre-lhes depois o que escreveu no seu livro... qualquer d'elles lhe dirá de que é o tal diploma... Mas, que diabo! tambem não pode haver tempo para tudo, e, ella por ella, a equipagem do marquez de V. é decerto muito mais digna de attenção do que o monumental edificio da Batalha! É pena, diz sua alteza, que não se tivessem construido mais monumentos para alegrar os olhos dos _touristes_... Ah! sim, é pena! pois não! chega a ser uma dôr d'alma não estar o reino de Portugal cheio de monumentos, como a Batalha, para que sua alteza, a muito alta e muito nobre princeza Rattazzi, podesse percorrer o paiz com os olhinhos alegres! * * * * * Porque afinal de contas, o magestoso e sublime mosteiro não lhe causou nenhuma outra impressão... alegrou-lhe o olho. Frei Luiz de Sousa, descreve-o com a sua penna de ouro, o inglez Murphy estuda-o maravilhado durante largos annos, o erudito patriarcha D. Francisco de S. Luiz dedica-lhe uma extensa memoria:--n'uma palavra, nacionaes e estrangeiros, curvam-se reverentes em presença do patriotico e veneravel monumento... Rattazzi vae vel-o... faz-lhe a honra de conceder-lhe doze linhas... e alegra-se-lhe o olho... Isto é, o mosteiro produz-lhe o mesmo effeito que um copinho de _chartreuse_... Vamos compatriotas, sirvam café á princeza, e tragam n'uma bandeja... mosteiro da Batalha e copos... Sua alteza tem o olhar basso e triste... alegremos-lhe o olho... dêmos-lhe um calicesinho da _sala do capitulo_... Então princeza, nada de ceremonias... Se quer mandamos tambem buscar os Jeronymos... Beba, beba... Alegre-se... alegre-se... É impagavel no fim de tudo esta Rattazzi:--Melicio é espirituoso e incisivo, e a Batalha... alegra-lhe o olho... Delicioso, como dizia o Leoni nos _Amores de Boccacio_... * * * * * Tudo quanto o leitor tem visto até agora, fica porém eclipsado pelo capitulo em que a muito nobre princeza falla do modo porque os estrangeiros são recebidos em Lisboa. Leiam: * * * * * «Pode dizer-se, sem grande exaggero, que ha um secreto horror pelos estrangeiros e que são olhados com maus olhos. Entretanto esta execração tem graus e não deixa de ser curioso fazer o seu estudo. Supponhamos que um pobre diabo cae de inanição n'uma das praças publicas de Lisboa, confessando que não recebeu do céu a graça de ter nascido cidadão portuguez. 1.^o--Se é inglez, dão-lhe os restos da comida do dia antecedente. 2.^o--Se é allemão, um bocado de pão. 3.^o--Se é americano, umas migalhas. 4.^o--Se é italiano, um copo de agua. 5.^o--Se é francez, não lhe dão nada. Aqui está approximadamente a gradação de estima a que um estrangeiro póde aspirar em Portugal. Os inglezes são os mais considerados, o que se explica, dizendo-se que Portugal é um pouco uma colonia ingleza, uma terra de exportação para os productos da Grã-Bretanha: o ouro e os uniformes militares são inglezes. Ha n'este povo meridional muitos costumes anglicanos que ficaram como recordação da alliança das armas inglezas contra os francezes em 1808. Os allemães gosam de alguma consideração. Os americanos do norte são antes temidos do que estimados. Os italianos são todos pastelleiros ou tenores; é a opinião dos portuguezes que dou aqui, não a minha. Mas é uma opinião perfeitamente estabelecida, e qualquer que seja a posição social d'um italiano que chega a Portugal, será considerado por todos como um pastelleiro que fez fortuna, ou como um tenor em procura de escriptura. Os francezes muito bem acolhidos á superficie, são perfeitamente detestados no fundo. Quando não são luveiros, cabelleireiros ou cozinheiros consideram-os como uns aventureiros. Ha uma avidez por todos os fructos da sua intelligencia, tira-se-lhes tudo que produzem em sciencias, bellas artes e litteratura, mas ninguem se julga em obrigação de lhes dar nada em troca. Detestam-os por instincto. Esta antipathia transmitte-se de paes a filhos, ou para melhor dizer, remonta de filhos a paes até ao primeiro imperio.» * * * * * Disse uma vez um poeta nosso que certo sujeito era uma perfidia dentro d'um assucareiro, d'este trechosinho póde dizer-se, parodiando aquella phrase:--que é tambem uma perfidia dentro d'outra coisa acabada em _eiro_. Com que então em Lisboa quando se encontra um francez cahido no meio da rua, cheio de fome, morto de inanição, passa-se para deante e não se lhe dá nada, absolutamente nada, _rien du tout_? Oh! honestissima e honradissima princeza, porque não se atolou mais um poucochinho no esterquilinio da calumnia,--para que deixou a cabecinha de fóra? Que diabo! tem pouca imaginação vossa alteza! gira-lhe nas veias sangue de principes, mas a calumniar não passa d'uma burguesinha--porque dizer só, que a um francez que se encontra estendido na praça publica, nada se dá, nada se lhe faz?--porque não disse antes, que se varria esse francez d'envolta com o lixo, porque não disse que se lhe dava um bolo de strichinina?--_Per Baco_, produzia mais effeito, princeza! * * * * * Afinal, de tudo quanto ha no seu livro, a pagina deveras torpe, é aquella. Do resto, diga-se a verdade, nem quasi valia a pena fallar. Ah! mas aquella paginasinha, merece, merece que se escrevam algumas linhas... Quem lhe disse, princeza, que os francezes eram detestados em Lisboa, detestados por instincto?--Eu sei quem lh'o disse,--foi a sua espertesa saloia. Vossa alteza sahiu de Portugal despeitada com muita gente,--por isto, por aquillo, por aquell'outro,--porque a nossa boa nobreza, que ainda a temos, não a visitou;--porque os jornaes não fallaram tanto quanto vossa alteza queria do seu talento e das suas obras;--porque a platéa dos Recreios a pateou desapiedadamente; etc. Sahindo d'aqui despeitada quiz vingar-se. É natural. Era preciso porém para que a sua vingança fosse completa que ella encontrasse echo n'essa grande nação que ainda hoje dá as leis ao mundo.--«Vou desacreditar Portugal á face da França--» disse a princeza com os seus algodões.--Mas para que a França faça o acompanhamento á minha serenata, o que heide eu fazer?--Porque afinal a verdade é esta:--eu sou muito conhecida em França... Alfonse Karr, Boissieu, Pelletan... que o diabo, os confunda a todos,--mostraram bem quem eu sou, nas _Guépes_ nas _Lettres de Colombine_, na _Nouvelle Babylone_... Ah! já sei! exclamou vossa alteza de repente:--escrevo que os francezes são detestados, execrados em Portugal... Sim, sim, é isto:--_Tonerre de Dieu!_ estava-me desconhecendo... Que tempo levei para fazer uma descoberta afinal tão simples, e tanto na minha indole... É claro como agua:--dizendo eu que os francezes são odiados, detestados, execrados, que ao vêl'os estendidos no meio da rua ninguem os soccorre, e que para ali ficam abandonados como famintos cãos vadios, elles, esses bons e enthusiasticos francezes, sentirão o fogo da indignação girar-lhe nas veias, e correndo ao meu palacio, virão gritar em côro debaixo das minhas janellas:--Bravo princeza, bravo, quanto dizes d'essa cambada, d'essa canalha de portuguezes é pouco; nunca as mãos te doam, mulher! Patifes, deixarem-nos morrer sem soccorros no meio da rua... Tira-lhes a pelle, escorraça-os, frege-os em postas--e conta que as nossas bençãos cahirão sobre a tua cabeça.» * * * * * Ora tudo isto, princeza, permitta-me que repita a phrase, não passou de esperteza saloia. A França, sabe perfeitamente quanto é querida e estimada em Portugal. Ella não ignora de certo que na hora da provação, quando rebentou essa terrivel guerra franco-prussiana, aqui n'esta cidade de Lisboa,--onde se abandonam vilmente francezes no meio da rua,--todos, sem distincção de classes, desde o chefe do estado, podemos dizel-o, até ao mais humilde cidadão, todos faziam votos para que a victoria fosse coroar com a sua rutilante aureola as armas d'esse valente e generoso povo, que Portugal tem o bom senso de não tornar responsavel pelos actos praticados por dois dos seus despotas. E olhe vossa alteza princeza:--tudo isto aconteceu estando um Bonaparte á frente da França... Hoje, que não está lá nenhum, calcule como terá augmentado a nossa sympathia por aquella grande nação. * * * * * A esperteza saloia precisava de correctivo. Ahi fica. A princeza diz que nós os portuguezes somos muito pacientes. Assim é, mas quando um mosquito começa a zumbir-nos aos ouvidos, a importunar-nos, depois de o sacudirmos, uma, duas, tres vezes, zangamo-nos e damos-lhe uma palmada com tanta vontade... que o esborrachamos. É uma porcaria, d'accordo. Mas tambem para que serve a agua? * * * * * Agora as ultimas palavras... as palavras da despedida. N'uma carta circular que sua alteza dirigiu á imprensa diz:--_Il faut me pardonner quelques plaisanteries sans importance et sans parti pris_... que é como se dissesse:--queiram os senhores desculpar alguns gracejos innoffensivos e sem intenção... Ah! pois não princeza! Com todo o gosto... Sem mais aquella, como se diz em giria... E se o nosso folheto tiver a honra de ser lido por vossa alteza, lembre-se das suas linhas e queira tambem desculpar-nos:--_quelques plaisanteries sans importance et sans parti pris_. * * * * * Segue a biographia da princeza. BIOGRAPHIA Rattazzi--(Maria Studolmire Wyse, princeza de Solms, depois condessa) mulher de lettras franceza, nascida em Waterfard (Inglaterra) em 1833. É neta de Luciano Bonaparte, irmão de Napoleão I, e filha de Letizia Bonaparte, e de sir Thomaz Wise, membro do parlamento de Inglaterra, que morreu ministro plenipotenciario da Grã-Bretanha em Athenas. Descendente de uma serie de uniões consideradas como outras tantas _mesalliances_ para a familia Bonaparte, foi sempre considerada por esta como uma intrusa, ou como uma inimiga. Quando o principe Luiz, seu primo, foi eleito presidente da Republica franceza, prohibiu-lhe formalmente que usasse o nome de Bonaparte-Wise, pelo qual eram conhecidos seu pae e seu irmão. Entretanto, a sua filiação napoleonica, está tão bem estabelecida senão melhor que a do seu proprio primo. Seu avô Luciano, principe de Canino, casára, em segundas nupcias, com madame Bleschamp, viuva de um agente de cambio, casamento que descontentou muito Napoleão, e fez romper todas as relações da familia imperial com Luciano; este, tendo-se retirado á Italia, fez naturalisar romanos todos os seus filhos, tão pouca era a sua fé na restauração da dynastia a que pertencia. A neta, nascida de mãe romana, Letizia Bonaparte, e de pae irlandez, era realmente uma Bonaparte, mas tão pouco franceza quanto possivel. Foi comtudo educada na casa da Legião de Honra de S. Diniz, e, como não tivesse meios, fez-se professora. Em 1848, quando á familia Bonaparte foi permittida a entrada em França, e o principe Luiz se propoz a presidente da Republica Franceza, foi pedida em casamento por Mr. Frederico de Solms, rico alsaciano que a dotou em 700 ou 800 mil francos, esperando que ella viesse a ser uma das estrellas da futura côrte de seu primo, e que assim o levasse ás grandezas. Não aconteceu nada d'isto. Os Bonapartes, e principalmente o futuro Napoleão 3.^o não a consideraram como da familia; como o pae da segunda mulher de Luciano occupara um emprego d'inspector _nos direitos reunidos_, pretendiam não terem nada de commum com a descendente d'um vendedor de tabacos, e foi isto o que os jornaes do Elysseu lhe disseram, nu e cru, quando Madame de Solms, posto que muito nova ainda, porque então apenas contava 16 annos, começou a tornar-se notavel. Lançou-se então na opposição, attrahiu a sua casa algumas notabilidades do partido democratico, abriu as suas salas aos litteratos, deu festas esplendidas, e ostentou um luxo que tinha a pretenção de fazer epoca na historia contemporanea. No seu pequeno circulo comparavam-a a mademoiselle Montpensier e dizia-se que do seu _boudoir_ sahiria uma nova Fronda. Por occasião do golpe de estado de 2 de dezembro, em que estavam implicadas algumas pessoas que frequentavam as suas salas, julgou-se tambem obrigada a deixar a França, habitando ora em Roma, na Belgica, ora as cidades de caldas mais notaveis. Considerava-se como exilada, e tendo alguns jornaes publicado que ella pedira para ser amnistiada, fez-lhes publicar esta resposta altiva:--«Só um governo liberal e sensato me póde fazer voltar á França. Até o dia em que triumphem as nossas liberdades, acceito o exilio; mas protesto energicamente contra toda e qualquer nova insinuação, grave ou pueril, tendente a fazer admittir que, no presente ou no futuro, sob qualquer consideração, e em qualquer extremidade em que me encontre, eu possa ligar-me directa, ou indirectamente, a uma familia da qual me separei voluntaria e seriamente.» Isto não a impediu de entrar em França em fins de 1852; mas em fevereiro de 1853, recebeu ordem de expulsão e seu primo fel-a conduzir á fronteira acompanhada pelos gendarmes. A causa d'esta expulsão escandalosa era sempre a mesma, a sua obstinação em querer usar o nome de Bonaparte que lhe negavam. Protestou pelos tribunaes, encarregou Berryer de a defender, e o governo fez admittir pelos jornaes que a ordem (arrêté) d'expulsão estava em fórma, visto que madame de Solms era estrangeira e casada com um estrangeiro não naturalisado. É muito provavel que M. de Solms, nascido em Strasburgo, fosse francez; mas o governo obteve d'elle uma declaração na qual dizia não reclamar a qualidade de francez. Na _Patria_ foi publicada a seguinte nota: «Por ordem do sr. intendente geral da policia, foram expulsos do territorio francez madame de Solms, dizendo-se condessa de Solms, e M. Wyse, (seu irmão, M. Bonaparte-Wyse) ambos estrangeiros; estas duas pessoas usavam sem direito nenhum o nome de Bonaparte, e longe de respeitarem o nome illustre que usurparam, serviam-se ao contrario d'elle para se entregarem a escandalos desordenados, afim de mais facilmente abusarem da credulidade das pessoas com quem estavam em contacto. A ordem do sr. intendente geral de policia foi posta em execução e madame de Solms e o sr. Wyse deixaram a França.» Quando se fez a annexação de Nice e da Saboya (1862), pediu a Napoleão III a permissão de ficar em França, e obteve mesmo a de voltar a Paris; abriu ali o seu salão, como antigamente, deu festas, escreveu chronicas e _causeries_ em varios jornaes, o _Pays_, o _Constitutionel_, o _Turf_, etc., fez fallar de si, como de costume, e, tendo-se reconhecido n'um malicioso retrato traçado por M. de Boissieu, (_Fragment d'histoire, une des plus spirituelles lettres de Colombine_, 1863), intentou no _Figaro_ uma indemnisação de 200:000 francos de perdas e damnos. O tribunal regeitou-lh'a. Entretanto tendo-lhe morrido o marido, uniu-se a Rattazzi n'uma das suas viagens a Turim, e esta ligação teve algum tempo depois o casamento por desenlace. A sua estada em Paris em 1865 trouxe-lhe novas decepções; foi-lhes dada nova ordem de expulsão e retirada uma pensão de que havia tres annos gosava. Desde então madame Rattazzi viveu constantemente em Turim, Florença e Roma, e publicou grande numero de volumes. Um dos seus romances, _Richeville_, fez algum barulho na Italia, e valeu ao marido de madame Solms, algumas provocações em duello. --- Provided by LoyalBooks.com ---