MÁRIO BEIRÃO CINTRA Edição da Renascença Portuguesa Pôrto--1912 CINTRA DO AUTOR _O Último Lusíada_ (no prelo) MÁRIO BEIRÃO CINTRA Edição da _Renascença Portuguesa_ Pôrto--1912 A Teixeira de Pacoaes Oh Pena, altar de nuvens sobre a Serra, Paço de sombras reaes, feito em granito E seculos de Azul,--olhando a Terra Das janelas que ogivam o Infinito! Oh vôo das florestas que se esfólham, Tontas de ceus, fragancia! Oh tardas sombras rôxas da Distancia! Ruinas--noite donde as aguias ólham! Oh cedros esmanchando as ramarias, Afofando penumbras! Crepusculos longinquos de arcarias! Agua que, ao pôr-do-sol, és múrmura e deslumbras, Que deslumbras meus olhos, meus ouvidos, E, incerta de gemidos, Vaes esculpindo a diafanos lavôres As pedras onde o sol desmaia e verte côres! Oh paizagem do Ceu! Cintra! Visão suprema! Architectura dos accordes dum poëma! Em ti as mãos do Vento em furia batalharam! O Genio e a Lenda para alem te perpetuaram! Oh Graça que desceste á Terra por encanto, Granitos que, ao luar, sois brancos alabastros, Ramos verdes, á noite, onde estremecem astros, Meu canto vem de vós, é para vós meu canto! Fraguedos, serrania, Do alto de vós olhando, Tolhidos de invernia, Alados de neblinas! Nos longes acenaes, noctivagos, em bando, Franjas, espuma vaga de cortinas, Aereas e nevadas, Farrapos onde a Noite esconde as madrugadas... Oh figuras dum drama subterraneo, Gelidas do pavor das sombras que repassam! Fragas, espectros vãos, que a um rasgo momentaneo, O vento esculpe e os raios despedaçam! E ao longe o Mar é um canto de epopeia Memorando naufragios... Profundo ferve, anceia, Livido estagna, e sonha, e pára no caminho! Eis que numa revolta, amargo de presagios, Lavra de espuma e som visões em desalinho, Rasga o pano da Noite e, monstro de aguas, uiva, E tomba doido a rir, sobre os areaes, exhausto... A areia escalda ao sol... Ignea de sede ruiva, Mina-se de agua e Azul, absorve o mar num hausto! Oh Cintra, rente ao Ceu, o Mar te afaga, Floresces em murmurio, em halitos de vaga... De ti eu dominei, varei os horisontes, Estou cansado já, fui Jupiter na Terra! Nas tuas fontes, Onde um crepusculo erra E o ar é de abandono, Que eu fosse o musgo em sombra verdecendo, A voz de longe e Outomno, Baixinho fenecendo... Fosse a humildade! Os humidos recantos Onde a sombra se esquece, incerta de saudade, E a chuva cae em prantos... Fosse o tronco musgoso, enverrugado, Onde--lembrança eterna, Um coração se vê de setas trespassado! Fosse a Elegia do Ar quando o Ar inverna, Rumôres de agua, queixas... ...Mansa, como rezando, "--Porque me deixas!" Como que a Sombra diz no seu silencio frio Á fonte de esquecida memorando, Lucilante de lagrimas a fio... Ah, pudesse eu viver pela espessura Dos bosques rumorosos, Ás horas em que a Sombra as coisas transfigura! Ser o Outomno, o crepusculo, a harmonia Das aves cuja voz é um halito de luz De poentes que morrem de saudosos! Vestir os troncos nus, Chorar melancholia... Á tarde quando a luz penumbras vem rezando A Fórma é Apparição, Ha lagrimas de Azul as almas orvalhando, A Côr é emanação... Tudo se transfigura: Ha paizagens, scenarios pela Altura! Eu deixo de existir Para mais dentro em mim viver, sentir... É a hora transcendente Em que o Passado surge evocador do escuro, E, soffrego, o Presente Dissolve a nevoa do Futuro. Oh Pena ao alto erguida, Recortada na sombra--aza de aguia perdida, Nas rochas esfarpando-se! Nuvem numa outra nuvem evolando-se... Oh Cintra, ao poente, a fumos de viuvez, Subindo num adeus, Chymerica de longe a Terra já não vês: É uma ancia de Infinito a que te abraza, Oh verde forma de aza Com fremitos de ceus! Oh Cintra és já distancia Na communhão dos astros! Teus granitos transformam-se: alabastros, De brancos a rezar... Ideal sonancia! E, eu que vivi em ti, rezo comtigo, Eu, o incerto, miserrimo mendigo, Trago nos olhos tristes pedrarias, Astros radiando pallidos fulgores, Desmaios de harmonias, No concerto mais intimo das côres. E a Noite escuta, empallidece, Um murmurio de voz esvoaça numa prece: Flébil, o ar magoando, Idillios suspirando, Duma estrella que nasce ao por-do-sol O canto chóra... lagrimas sem fim! A alma dum rouxinol Sonha com Bernardim. E desfez-se, apagou-se Em ondas de saudade--o olor mais doce... Subito, heroico de saudades, Um canto accorda, funde o bronze das Edades! Oh canto pela noite, em prantos marulhado, Memoria em cujo olor ha mortas primaveras, Pelos astros, o Espaço cadenciado, Ungido pela benção das Esferas, Falas da minha raça, dos profetas Invectivando o Mar, De moiros pela areia, cujas setas Eram menos mortiferas que o olhar! Oh rithmo das oitavas Nas veias do meu sangue a tumultuar! Oh lyra de Camões, accordes de ondas bravas! E, bronzea a voz sucumbe: os ceus ficam arfando, Reboando, echoando... Mas a candura, a graça do sorriso, De quem vive a morrer, E tem no olhar de magoa o Paraiso, E Deus no coração sem o saber, Desfólham-se num halito de outomno Pelos ceus, pelas almas de abandono... Oh moreno cantor a ouvir de bruços, Das gothicas ogivas merencoreas, Musgosas de saudade, Echos duma outra Edade, Vozes de viola zoando moribundas, Morrendo gemebundas; Crepusculo de som, penumbra de memorias... Oh Lusiada absorto Na chymera do Alem! Infante é tudo morto, De que serve esperar! Falas de longe: a Morte diz á Vida A sua grande, eterna despedida... Em ti, meu pallido Anto, Ha mortos a falar! Oh moribunda voz em lagrimas de canto... E eis-me perdido e só, como um ceguinho, Tacteio ceus de extactica harmonia, E vejo Deus em mim a ungir-me de carinho, E sou onda de luz em melodia... Morri para viver alem da Morte: Meu negro olhar agora é azul-celeste, Oiço na minha lyra o meu transporte, Senhor! Bemdita a morte que me deste! Oh floresta! Oh granitos revestidos De auroras e crepusculos e Lenda: Que o som da minha lyra a vós ascenda! Vossa esculptura de intima harmonia Seja accordes em echos desferidos, Eternidade, Azul, melancholia... Quero inclinar a fronte, Quero dormir ouvindo de Alem-Mundo Meu carme gemebundo Rasgando nuvens, ceus, aladamente, E, baixinho, humanissimo, contente, Humedecendo resequida fonte... E eis-me esculpindo formas de florestas, Eis-me gravando a som um tronco esqualido, Abrindo nas prisões esguias frestas, Por onde o luar se escôa muito pallido... Eis-me gravado a som, eis-me esculpindo Oh Cintra o teu perfume pelo Outomno... Eis-me sagrado e lindo, Rasgando a luz a noite do meu somno... E vivo a Eternidade no meu canto! Attonito de mim, revolvo mundos, Sou magico de encanto, Érro pelos abysmos mais profundos, E trago auroras rutilas nos olhos E harmoniso de paz os horisontes! Sou melodia humida do mar Rezada nos escolhos... E, ao vir do Outomno, incerto de distancia, Saudoso olôr memóra a minha infancia, Vou ausente de mim por mim a andar... Tudo o que eu fui acórda! É agua viva... Cintra, vagueio em ti! Nas tuas fontes Minha saudade em lagrimas deriva, E o Outomno é o meu fantasma a recordar! Ancêde. Outubro de 1912 Impresso em Novembro de 1912 na Tipografia Costa Carregal, trav. Passos Manuel, 27--Pôrto. Biblioteca da RENASCENÇA PORTUGUESA A Águia--Revista mensal, Vol. I (1 a 6), 7, 8, 9, 10 e 11. A Vida Portuguesa--Quinzenário--N.^os 1 e 2. A Evocação da Vida--_Augusto Casimiro_. Regresso ao Paraiso--_Teixeira de Pascoaes_. Esta História é para os Anjos--_Jaime Cortesão_. O Espírito Lusitano ou o Saudosismo--_Teixeira de Pascoaes_. A Sinfonia da tarde--_Jaime Cortesão_. O Criacionismo--_Leonardo Coimbra_. A Educação dos povos peninsulares--_Ribera y Rovira_. Romarias--_António Correia de Oliveira_. A Primeira Nau--_Augusto Casimiro_. NO PRELO: O Doido e a Morte--_Teixeira de Pascoaes_. Daquem e Dalem da Morte (Contos)--_Jaime Cortesão_. Camilo Inédito--(_Notações de Vila Moura_). --- Provided by LoyalBooks.com ---